BEM ESTAR ANIMAL Causas de coxeiras em pequenos ruminantes e o seu efeito sobre o bem-estar dos pequenos ruminantes Ana Vieira, Inês Ajuda, George Stilwell , AWIN – Animal Welfare Indicators Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Técnica de Lisboa [email protected] Neste segundo artigo resultante da colaboração da equipa do AWIN com a Revista Ruminantes decidimos abordar o tema das coxeiras ou claudicações em pequenos ruminantes. Escolhemos este tema uma vez que as claudicações e o sobrecrescimento das unhas, assim como as lesões no úbere e tetos e lesões na pele e prurido, têm vindo a ser identificadas nas explorações de pequenos ruminantes como as principais falhas de bem-estar animal (BEA) (Eze, 2002; Anzuino et al., 2010). No seguimento daquilo que foi discutido no artigo anterior, lembramos que as claudicações incluem-se numa das 5 Liberdades definidas pelo Farm Animal Welfare Council, nomeadamente naquela que refere que os animais devem estar livres de dor, ferimentos e doença e devem-lhes ser garantidas condições de prevenção de doenças, diagnóstico rápido e tratamentos adequados (FAWC, 2011). Mais uma vez, gostaríamos de deixar o desafio aos leitores para que nos sugiram temas que gostariam de ver discutidos. Estamos empenhados em criar um espaço de discussão e esclarecimento de dúvidas que contribua para uma cada vez maior profissionalização do sector de produção de pequenos ruminantes. AS CLAUDICAÇÕES: UMA QUESTÃO EMERGENTE OU UM PROBLEMA DE SEMPRE? A produção de pequenos ruminantes tem vindo a tornar-se cada vez mais intensiva com recurso ao confinamento dos animais em regime permanente, sujeito a densidades elevadas. O facto de os animais terem cada vez menos acesso ao ambiente exterior reduz o desgaste das unhas que a maior actividade e exercício garantia, ficando os animais dependentes de boas práticas de maneio para fazer face ao sobrecrescimento das mesmas. Outro factor importante a ter em consideração na produção intensiva é que nestes animais, devido à sua dieta com um elevado nível de energia e proteína, as unhas tendem a crescer mais rapidamente (Reilly et al., 2002). De facto, a presença de animais com diferentes níveis de claudicação tem vindo a tornar-se cada vez mais frequente e neste momento estamos perante a situação de, em algumas explorações, isto 54 Ruminantes • Janeiro | Fevereiro | Março • 2012 ser considerado como uma vicissitude normal da produção, à qual os produtores apenas dedicam uma atenção esporádica (Eze, 2002). Neste momento não é possível apresentar um valor médio para a prevalência de animais com claudicação nas explorações nacionais. Por estudos realizados noutros países sabemos, no entanto, que este é um problema transversal a diferentes explorações; embora também exista o registo de explorações nas quais este problema praticamente não se coloca (Anzuino et al., 2010). Os valores de prevalência apontados nos diferentes estudos oscilam bastante: Eze (2002) no estudo realizado na Nigéria refere um valor médio de 15%, Mazurek et al. (2007) numa exploração experimental observaram no seu estudo valores indicativos de 12,5% e Christodoulopoulos (2009) referiu para a Grécia o valor de 24%. Por outro lado, Hill et al. (1997) encontraram no seu estudo no Reino Unido uma prevalência média de 9,1%, com uma das explorações do estudo a apresentar valores de 23,4%. É importante referir que uma vez que ainda não foram desenvolvidos sistemas de avaliação da claudicação eficazes, estes valores podem, na realidade, ser muito superiores, uma vez que podemos estar apenas a considerar os animais classificados como mais graves. Devido à grande divergência dos valores apresentados, ao facto de alguns casos poderem passar despercebidos e à possibilidade de existirem explorações em que o problema tem um impacto muito importante sobre o bem-estar e produção, os responsáveis das explorações e os seus médicos veterinários devem ficar cada vez mais atentos a esta problemática. MAS QUAIS SÃO OS SINAIS DE ALARME? Por definição, as claudicações são andamentos e posturas atípicos caracterizados por afecção de um membro, ou mais, que perde a capacidade de suportar o peso corporal, e que está de uma maneira geral associado a dor no sistema músculo-esquelético (Radostitis et al., 2007). A claudicação pode ainda ser considerada um comportamento compensatório para fazer face à dor que os animais sentem (Bahr, 2008). Existem, no entanto, outros sinais aos quais de deve dedicar atenção. Particularmente, a presença nas explorações de animais que se movimentem de joelhos ou que estejam muito tempo de joelhos; BEM ESTAR ANIMAL Mazurek et al. (2007) demonstrou uma correlação significativa entre as restrições de movimentos e o nível de claudicação. Outros sinais podem ser animais com dificuldades em movimentos transitórios (levantar e deitar), articulações aumentadas em volume (inflamadas), animais com posturas desviantes quando se encontram em pé ou animais que permanecem muito tempo deitados (Reilly et al., 2002; Radostitis et al., 2007). A claudicação é assim um sinal e não uma doença em si, já que, com muito poucas excepções, a coxeira resulta de uma tentativa de reduzir ou evitar a dor resultante do apoio de um ou vários membros. Existem diferentes etiologias, genéticas, físicas por traumatismo e infecciosas, que podem estar na origem destes processos (Smith et al., 2009; Gelasakis et al., 2011). A maior parte das claudicações em pequenos ruminantes está associada a patologia da extremidade distal dos membros. Embora este seja um facto sobre o qual nos falta muita informação, diversos estudos têm vindo a referir que o sobrecrescimento das unhas é a patologia podal mais comum (Reilly et al., 2002). É importante referir que uma porção importante destas claudicações pode ser atribuída a questões ambientais, nutricionais e anatómicas, sendo que a grande maioria pode ser prevenida através de boas práticas de maneio e de um programa adequado de corte funcional das unhas (Reilly et al., 2002). AS CONDIÇÕES EPIDEMIOLÓGICAS QUE CONTRIBUEM PARA O APARECIMENTO DESTAS AFECÇÕES SÃO: (adaptado de Radostitis et al., 2007) 1. lesões provocadas por pavimento dos parques 2. redução do desgaste por piso pouco abrasivo e falta de exercício. 3. camas persistentemente húmidas e com poucas condições de higiene 4. falhas em termos nutricionais 5. falta de um programa regular de corte funcional das unhas. As unhas dos pequenos ruminantes apresentam menos problemas em ambientes secos (Reilly et al., 2002) (Fig.1). Assim, a incidência deste tipo de afecções aumenta quando a humidade ambiental aumenta e as camas dos animais ficam permanentemente molhadas. Em ovinos a afecção podal mais comum é de origem infecciosa – a peeira (Fig. 2) (Reilly et al., 2002). Caracteriza-se por casos mais ou menos severos de claudicação sendo que a sua prevalência aumenta em ambientes húmidos e quentes. É provocada por uma associação de agentes (Dichelobacter (Bacteroides) nodosus e Fusobacterium necrophorum) e caracteriza-se por lesões visíveis na junção da pele com o estojo córneo da unha, necrose mais ou menos profunda e cheiro pútrido (Radostitis et al., 2007). Por ser uma afecção altamente contagiosa recomendam-se boas práticas de maneio das camas, utilização de pedilúvios que promovam um uma desinfecção, um endurecimento e um fortalecimento das unhas e a utilização de um programa vacinal adequado (apenas quando a incidência de peeira no rebanho é muito elevada e as restantes medidas de prevenção não parecem ser suficientes). Nas cabras mantidas em regime intensivo, as afecções mais comum parecem ser as lesões provocadas por um crescimento excessivo da unha (Fig.3). Num estudo realizado no Reino Unido 91,2% das cabras leiteiras em regime intensivo apresentavam sobrecrescimento das unhas (Hill et al., 1997). O sobrecrescimento e as claudicações consequentes, são indicadores importante de fraco bem-estar animal e de mau maneio em explorações intensivas de leite. OUTRAS CAUSAS DE CLAUDICAÇÕES EM PEQUENOS RUMINANTES SÃO: - infecciosas – certos vírus e bactérias podem provocar artrites, sendo consideradas mais importantes aquelas causadas pelo vírus da Artrite-encefalite caprina (CAEV) e por Mycoplasmas (Agaláxia Contagiosa). Geralmente as claudicações fazem parte de uma quadro clínico que pode incluir mastites, pneumonias, - Doenças neurológicas e defeitos anatómicos são responsáveis por casos esporádicos. - Traumas – por agressões entre animais, acidentes ou até devido a injecções de substâncias oleosas (oxitetraciclina) nos músculos dos membros posteriores. - Causas metabólicas e nutricionais – edema das extremidades que surge nos casos de Toxémia de Gestação ou casos de carência em certos minerais (e.g. zinco, selénio). O QUE FAZER PARA PREVENIR? Relativamente a boas práticas é de referir a importância de manter as camas secas e, quando tal for possível, dar acesso aos animais a um parque de exercício que tenha superfície que possa provocar algum desgaste nas unhas. Uma outra possibilidade é colocar os comedouros e bebedouros sob uma superfície que provoque algum desgaste das unhas. Nas cabras uma outra situação que tem tido alguns resultados é construir ou empilhar material que possa provocar este desgaste (por exemplo, blocos de cimento) para as cabras escalarem e brincarem (Reilly et al., 2002). Uma vez que estas sugestões são muitas vezes difíceis de cumprir na rotina diária das explorações, será sempre importante ter em prática um bom e regular programa de corte funcional das unhas. Não existe uma frequência certa para este controlo, uma vez que este é muito dependente das condições da própria exploração, no entanto, podemos referir como mínimo um corte de unhas semestral dos animais em regime intensivo. As claudicações são um exemplo em que a garantia do bem-estar animal apenas pode ser alcançada através da aplicação de práticas de produção adequadas, que tenham em conta não só a espécie animal em si, mas também os sistemas de produção, as condições climáticas, o alojamento e as metodologias de maneio e de alimentação. O IMPACTO ECONÓMICO DAS CLAUDICAÇÕES Para além de constituírem um problema em termos de BEA, as claudicações constituem ainda um problema económico importante para as explorações. » Ruminantes • Janeiro | Fevereiro | Março • 2012 55 BEM ESTAR ANIMAL » Fig. 2 - Ovelha com caso severo de peeira. Fig. 1 - Unhas em boas condições de um animal que não apresentava quaisquer sinais de claudicação. Fig. 3 - Cabra que apresenta deformação severa das unhas. Vimos no artigo anterior da Revista Ruminantes que animais em que está garantido o bem-estar são mais saudáveis (Horgan & Gavinelli, 2006), e consequentemente mais produtivos, tanto em termos de quantidade como de qualidade. No caso particular das claudicações, as perdas económicas devem-se ao facto que animais que estejam em dor (Fig.4) e tenham dificuldade em se movimentar, acabam por não se alimentarem adequada mente o que conduz a quedas de produtividade (Radostitis et al., 2007). A performance reprodutiva, de machos e fêmeas, é também diminuída e a taxa de refugo aumenta consideravelmente (Eze, 2002; Radostitis et al., 2007). Estudos realizados em cabras demonstram uma relação directa entre a existência de afecções debilitantes, como claudicações por sobrecrescimento das unhas, ou a existência de doenças que afectem a saúde do úbere, e uma redução significativa de produção de leite, assim como da sua qualidade (Jackson & Hackett, 2007; Mazurek et al., 2007; Christodoulopoulos, 2009; Anzuino et al., 2010). O PROJECTO ANIMAL WELFARE INDICATORS (AWIN) E AS CLAUDICAÇÕES Fig. 4 - Cabra que apresenta uma postura que denuncia desconforto e dor perante condição de claudicação. 56 As claudicações, pelo peso que apresentam a nível das nossas explorações foram consideradas como um objectivo de estudo do projecto AWIN. E consequentemente, as claudicações vão ser consideradas como indicador de BEA na maneira em que afectam a “liberdade dor, ferimentos e doença”, no critério de BEA de ausência de ferimentos e doenças. Quando iniciámos o estudo deste indi- Ruminantes • Janeiro | Fevereiro | Março • 2012 cador fomos confrontados com uma grande ausência de informação a este nível em pequenos ruminantes, nomeadamente a falta de um sistema de avaliação eficaz e fiável dos animais com claudicação. A grande maioria dos sistemas em uso (Hill et al., 1997; Anzuino et at., 2010) apenas é clara para os casos mais graves, não permitindo uma detecção precoce dos animais afectados. Desta forma, um dos nossos grandes objectivos passará pelo desenvolvimento de uma escala de avaliação contínua de claudicação que permita a todos os interessados a classificação dos animais segundo o grau de severidade de claudicação. Pretendemos também no AWIN desenvolver conteúdos de formação e informação sobre o tema de forma a divulgarmos de uma forma eficaz os achados do nosso trabalho. Pretendemos ainda avaliar qual a prevalência desta afecção nas nossas explorações, fornecendo a cada produtor uma ferramenta para, de uma forma rápida e eficaz, avaliar este problema (autoavaliação). Um resultado preliminar dos nossos estudos é que a melhor forma de avaliar os animais com claudicação será à saída da ordenha. Além de se conseguir uma melhor visibilidade, o facto de nos parques os animais andarem sob superfícies mais moles pode diminuir o grau de dor e assim a manifestação de claudicação; ao mesmo tempo que oculta determinadas condições, como o sobrecrescimento das unhas. De facto, em alguns estudos verificou-se que para as mesmas explorações e animais, a prevalência de animais identificados com claudicação era superior quando estas eram avaliadas à saída da ordenha, relativamente à classificação dos animais nos parques (Anzuino et al. 2010) Pretendemos depois relacionar este conhecimento com o conceito de dor, percebendo se a dor é uma vertente importante na patogénese das claudicações, de que forma esta se encontra associada aos diferentes níveis da escala que desenvolvemos e se a analgesia deverá ser consi derada como parte essencial do tratamento das claudicações facilitando a recuperação do animal. Referências bibliográficas: Não foram incluídas por uma questão de espaço editorial, mas os autores disponiblizam bastando enviar um email para: [email protected]