DUPLO ETÉREO 1 PERSONAGENS: Tico, irmão gêmeo de Teca. Teca, irmã gêmea de Tico. ÉPOCA: presente; LUGAR DA CENA: casa dos irmãos 2 Cenário minimalista, sugerindo apenas ambientes de uma casa de família. O único objeto que se destaca em cena é um pedaço de corda, que será um símbolo a ser usado no decorrer da encenação. No palco, durante todo o tempo, apenas dois personagens (um casal de gêmeos por volta dos 20 anos). Ambos são muito atraentes. PROTASIS Quando da entrada do público no teatro, os dois personagens já estão em cena. Ele dorme no colo da mulher (se possível em postura semelhante à da Pietà de Michelangelo). Ela o afaga e, demonstrando zelo pelo sono do irmão, interage com o público pedindo-lhe para não o acordar. TECA Cuidadosamente, desvencilha-se do irmão, reclinando o corpo dele carinhosamente no chão. Dirige-se ao proscênio, onde se senta. (num sussurro) Gente, por favor... Ele está dormindo... Por caridade, não façam barulho... Ele está muito cansadinho, coitado... Por favor, assentem-se em silêncio... Logo, logo a gente vai conversar... mas esperem um pouco, por favor... É dado o primeiro sinal, ela se assusta. (perturbada) Que barulho é esse? Por favor, gente, eu já pedi... Façam silêncio!! (leva as mãos aos ouvidos como se quisesse evitar qualquer tipo de som) É dado o segundo sinal, ela se perturba ainda mais. Será que não adianta pedir? Vocês querem que eu implore? É dado o terceiro sinal, ela tenta identificar de onde vem o som, inutilmente. (quase chorando) Por favor, por favor... Ele acordar... Deixem ele dormir pelo amor de Deus... vai Desconfia que o silêncio enfim se fez; recobra a calma e dirige-se ao público como se nada houvesse acontecido. Obrigada... Eu sabia que vocês me compreenderiam... E sei também por que vocês vieram aqui... Mas, tenham 3 paciência... Aos poucos vocês vão entender o que eu estou passando com o meu irmão ali... Sei lá... Dizem que desabafar é bom... Eu só sei é que nunca tive tempo de fazer amigos, sabe? Desabafar com quem? (sorri desapontada) Dizem que um bom psicólogo me ajudaria... Mas isso pra mim é luxo...(pequena pausa; súbita mudança de desapontamento para esperança)... Já sei, tive uma ideia!! Quem sabe vocês podem me ajudar... ser meus conselheiros?! Levanta-se e volta para perto do irmão. Acaricia-o. Meu irmãozinho... Ele é tudo pra mim... Meu companheiro desde o nascimento... (dirige-se ao público)... Nós somos gêmeos, sabe?... A gente sempre andou junto, nunca nos desgrudamos... Pra vocês terem uma idéia, nós éramos tão inseparáveis que mamãe começou a chamar a gente de Tico e Teca... Ela dizia que a gente parecia aqueles dois esquilinhos das histórias da Disney... onde um estava, lá estava o outro também... (ela o observa com olhar carinhoso) ...Ele é uma criança... Vive em outro mundo... (pausa, olha para ele ainda mais enternecida)... Uma criança presa num corpo de adulto... Parou no tempo, coitadinho... Tem a mentalidade de um menino de 10 anos... Dizem que é problema de nascença... É bem verdade que ele sempre foi um pouco mais lento no aprendizado do que eu... Mas... por outro lado... ele já passou por tantos traumas!... Eu tenho quase certeza... Foram os traumas que deixaram o Tico assim... Levanta-se, deixando o irmão, e circula pelo palco como se estivesse decidindo contar ou não ao público o que acontecera ao irmão. Bem... Eu não gosto de tocar nesse assunto com qualquer um... mas como resolvi me abrir com vocês... acho que tenho de deixar a vergonha de lado e contar o que houve com ele... Tenho vergonha, sim, porque foi uma atrocidade o que nossos pais fizeram... Meu pai sempre foi um homem truculento, de má índole... Abria espaço na vida pisando as pessoas... Não porque precisasse... Sempre tivemos um bom padrão de vida... É bem verdade que papai não era um milionário, mas, com os negócios que fazia, sempre nos deu uma vida de muito conforto... O grande problema dele era ser tão obcecado por poder... Parecia ter um prazer sádico em torturar, intimidar, xingar, humilhar as pessoas... Não aceitava nãos em hipótese nenhuma... A palavra dele tinha de ser a última... Sua perseguição aos desafetos era incansável e ele só se acalmava quando os destruía ou quando os tinha sob seu controle... então, se refestelava nas comemorações... Embebedava-se para celebrar as vitórias e soltava gargalhadas tenebrosas que pareciam sacudir não somente os nossos tímpanos como também todos os cômodos da casa... (torna-se ainda mais sombria)... Ah, mas quem dera ele vivesse só de vitórias!... Minha mãe, por outro lado, era muito doce e amável... Tão doce que deixou papai tomar todos os espaços de sua vida... Ela era quase uma escrava... Não podia ter empregados porque papai dizia não 4 querer estranhos e enxeridos dentro de casa... Ela, então, sem necessidade nenhuma, era obrigada a fazer as vezes de mãe, esposa e empregada... Como sempre uma boba, aguentava os maiores desaforos que papai lhe jogava na cara... Ele não a poupava nem da humilhação de ser comparada a suas várias amantes... Não era raro chegar em casa bêbado, depois das farras que promovia... E quando mamãe perguntava onde tinha ido, papai se transformava... Para intimidá-la e evitar que ela não o pressionasse mais, rugia palavrões e insultos que a faziam encolher-se num canto, sem reação... Não foram poucas as vezes em que ele a espancou, exigindo que se calasse e não se intrometesse mais na sua vida... Ele não tinha nem um pingo de misericórdia... Mesmo quando ela já se achava inerte, muitas vezes no chão, contorcendose de dor... Aí é que ele se aproveitava da fragilidade física da mamãe e passava a torturá-la emocionalmente... Ah, meu Deus, quantas vezes eu e meu irmão assistimos a essas sessões de sadismo!!!... Quantas vezes ouvimos papai dizer a ela: ”Você não vale nada! ‘Fulana’ é que é mulher de verdade!”... E quantas vezes ouvimos essa tal ‘Fulana’ mudar de nome!...(ri desalentada)... Eu até me lembro de um dia... No meio da discussão, o Tico teve a inocência de perguntar a ele:... “Por que, papai? A mamãe é mulher de mentira?”... Ah, maldita hora!... Papai se voltou na direção dele e tascou-lhe um safanão que arremessou o menino longe... “Isso é pra você aprender a não se intrometer em conversa de adulto!”, papai berrou... Enquanto o Tico chorava de um lado, mamãe tentava se levantar do outro... Num fio de voz, ela ainda tentou chamar o papai à razão... “Alcides, por favor, deixa o Tico fora disso.”... Ah, pra quê? Parece que o pedido da mamãe acendeu uma fúria ainda maior nele... Sem esperar que ela se levantasse por completo, deu-lhe um bofetão covarde que a fez novamente desabar no chão... Depois, raspou a garganta como se quisesse reunir o que de pior tinha dentro de si e despejou sobre ela uma cusparada cheia de ódio e desprezo... A seguir, começou a desafiá-la: (com uma calma irônica) “Quem é você para me dizer como tenho de criar meus filhos?... Você é uma fracassada que não sabe se comportar como mulher nem como mãe... (com voz de deboche)... Tico!... Tico!... (Teca olha para o rapaz dormindo; volta a voz de deboche) ... Vê se isso é apelido que se dê a um homem!... (pausa; nervoso)... Se eu deixo você criar sozinha esse menino, ele vai acabar virando um veado... Meu pai me criou na porrada e é por isso que eu acabei me dando bem na vida... Deixa ele chorando um pouco aí... É bom pra aprender que a vida não é tão fácil quanto a idiota da mãe dele pensa que é”... (pausa; Teca volta a ser ela mesma, fica cabisbaixa, olha para o rapaz, senta-se perto dele)... A verdade é que o Tico apanhou muito dele... Papai nunca entendeu a deficiência do menino... Sempre se envergonhou dele... Não aceitava que o filho frequentasse uma escola especial nem admitia que ele sempre repetisse de ano nas escolas tradicionais... Escondia o Tico como se ele fosse uma aberração... Vê só, que ignorância!... Aberração um menino bonito desses!... Por causa do Tico, não perdoava a mamãe, a quem culpava de ter-lhe dado um filho com “defeito de fabricação”, como ele dizia... Aquele 5 animal!... Como se não tivesse nada a ver com o próprio filho!... E o Tico sempre foi tão carinhoso... e tão carente do amor paterno... Mas toda vez que se aproximava do papai na tentativa de mendigar um pouquinho de amor...(deixa a frase inacabada)... Tudo o que o Tico sempre quis foi ser chamado de “meu filho”, assim como os coleguinhas eram chamados pelos pais... mas em vez disso, o que ele sempre escutou foi só “retardado!”, “burro!”, “imbecil!”, ou até coisa pior... (pausa)... Vocês podem estar se perguntando como eu me encaixava nessa história toda...(se entristece)... E eu lhes respondo... Na época, eu me sentia uma princesa... Fazia de tudo para ser o que o papai queria que o Tico fosse... Por isso, sempre fui tratada com o maior carinho por ele... Embora eu amasse o Tico, no fundo torcia para que ele sempre fosse o “retardado” e o “burro” da casa... Assim, era mais evidente o contraste entre a minha performance intelectual e a dele... Além disso, morria de medo do papai fazer comigo o que fazia com o Tico...(quase chorando)... Se vocês soubessem o remorso que tenho disso...(se justificando)... Mas naquela época eu era uma criança, como é que eu ia saber?... Só hoje é que percebo o estrago emocional causado em nós pelo papai... Nossa vida com ele era um inferno... A cada dia ficava pior... Com o tempo, mamãe foi parando de retrucar as provocações... Mas parece que isso, em vez de acalmá-lo, o deixava ainda mais irado...(imitando o pai)... ”Como é, mulher?... Perdeu a dignidade?... Não vai me responder, não?... Coisa mais desprezível é uma pessoa sem amor próprio!” ...(fica macambúzia)... Mamãe parecia anestesiada... não reagia a nada mais... até que um dia...(suspense)... mamãe estava na cozinha, acho que fazendo o jantar... eu, o Tico e o papai estávamos na sala; ele vendo televisão e nós dois brincando no chão... A gente gesticulava e falava baixinho para não incomodar o papai... que, pra variar, estava tonto... Nossa brincadeira consistia em um imitar o outro... era uma coisa boba, eu sei, mas aquilo nos divertia...(suspira entristecida)... Tudo aconteceu tão de repente!!... O Tico achou engraçada uma careta que eu fiz e, em vez de me imitar, começou a rir alto e falou uma besteira qualquer, dessas que ele fala a toda hora... Ao ouvir o que o Tico disse, papai se irritou e exigiu: ...(voz brava)... “cala a boca, retardado!”... Por infelicidade, o Tico, ainda no espírito da brincadeira, virou-se para ele e, na maior ingenuidade, falou: ...(voz de criança)... “cala a boca, retardado!”... Papai voou pra cima do menino e, em meio a vários palavrões, começou a espancá-lo sem piedade... E aí...(suspense)... do nada... eu vi mamãe surgindo com uma faca na mão... o rosto transfigurado numa máscara medonha... Parecia uma leoa disposta a tudo para defender sua cria... Numa rapidez que não deu ao papai nenhuma chance de reação, ela lhe desferiu vários golpes nas costas e no pescoço... Depois, soltou a faca de lado e desabou num choro doído... toda descabelada... entregue... Apavorada, eu fugi para o meu quarto e me escondi debaixo da cama... único lugar da casa em que me sentia segura... Por mais que eu tente, não consigo esquecer a cena que parece ter ficado parada no tempo:... mamãe estatelada aos prantos e o cadáver do papai 6 em cima do Tico, ambos encharcados de sangue... Cheguei a pensar que o meu irmão também tinha morrido, pois não ouvia a voz dele... Mas não... Em estado de choque com o acontecido, ficou assim, meio que um zumbi, durante um bom tempo... O que se seguiu eu só fiquei sabendo tempos depois pela Tia Júlia, irmã da mamãe que ficou com a nossa tutela até a gente atingir a maioridade... Prenderam a mamãe, mas ela foi definhando rapidamente até morrer na prisão... O escândalo foi para os jornais... a imprensa nos perseguia, querendo saber qual seria o destino dos pobres órfãos... o juiz decidiu que a Tia Júlia ficaria com nossa guarda, administrando nossa herança até sermos capazes de assumila... Durante o tempo que ficamos com ela, éramos como patinhos feios... um estorvo na vida da família inteira... provas vivas do fracasso de um clã marcado pela tragédia... algo a ser varrido para debaixo do tapete... um travo a ser sorvido durante um período longo até que o próprio tempo trouxesse o esquecimento de seu gosto amargo...(ela acaricia os cabelos do irmão; ele ameaça acordar; ela retira a mão de sua cabeça como se quisesse evitar acordálo)... Hoje, sou eu a responsável por cuidar de tudo... Tenho de vigiar o Tico o tempo todo... Ele é muito puro... Não tem condições de viver por si só nesse mundo de hoje... Sozinho, ele seria trucidado em poucos dias... E por mais que pareça loucura, eu dependo dele pra viver... Não sei o que seria de mim sem o Tico... Ele é a única referência que me dá a sensação de não ser absolutamente só nesta vida... Sem ele, eu acho que entraria em pânico... Gosto de vê-lo dormindo assim... Ele parece tão sereno, em paz... Quando acorda, eu nunca sei como vai ser o dia... Tem vezes que o Tico acorda bem, brincando, feliz... Outras vezes, acorda sobressaltado... como se estivesse sendo perseguido por fantasmas que só ele vê... Nesses dias, minha vida vira um verdadeiro inferno... Custo a acalmá-lo... Tenho medo dessa loteria que é o estado de espírito do meu irmão... Quando está acordado, em surto, torço para que durma logo. Quando está dormindo, torço para que não acorde logo... Que me dê um tempo para descansar... Às vezes, eu sonho que ele está lúcido... normal assim como eu e vocês... Por isso, quando ele acorda bem, eu tenho a ilusão de que vou alcançá-lo no abismo em que está para trazê-lo de volta à tona... para o nosso mundo... o mundo real... Isso às vezes me parece tão próximo... (estende as mãos como se quisesse alcançar algo no vazio)... Mas aí, quando estou quase chegando no resto de lucidez que ele possui, o Tico se encolhe, se retrai, volta a ficar distante demais... Acho que não suporta a vida como ela é... Prefere ficar nesse mundo à parte, dentro de um casulo que não admite a entrada de mais ninguém...(ri desajeitada)... É por causa desse jeito de se comportar que eu dei a ele um outro apelido: “Tatuzinho”... diante de qualquer ameaça, ele age como um tatu-bola... se fecha numa carapaça emocional... fica blindado lá no mundinho dele... protegido... inalcançável...(ele volta a se espreguiçar e aos poucos acorda)... 7 EPITASIS Tico acorda. Sua irmã o observa. A iluminação é mais forte e cobre todo o palco, dando liberdade aos atores para explorar todo o espaço disponível TICO Esfrega os olhos como se retornasse de um longo sono. (meio zonzo) Oi... Teca? TECA (maternalmente) Sou eu, meu anjo... Dormiu bem? TICO Dormi, ué... alguém... E sonhei que você estava conversando com TECA (piscando para o público) Era só um sonho, Tico. Com quem eu podia estar conversando? Nós estamos sozinhos aqui... TICO (se levantando) E o que a gente vai fazer agora? TECA (também se levanta) O que você quer fazer? TICO Vamos sair? Ir brincar no parque? TECA (contrariada, fala duro) Ah, não, Tico... Todo dia?... Eu também preciso fazer as minhas coisas... Não posso ficar só por conta de ficar levando você em parque, em shopping... TICO (fazendo birra) Eu te odeio! Você é uma chata!! TECA (fingindo estar brava, se aproxima dele e puxa sua orelha como se fosse lhe dar um castigo) Chata eu, é?... Olha o respeito, moleque! 8 TICO (sem se soltar do puxão) Ai, ai! Pára!! Solta! (ela continua puxando, como se realmente estivesse ofendida; ele sente o puxão, mas rindo ao mesmo tempo em que continua a pirraça, provoca) Não tá doendo nada!! Chata! Chata! Chata! TECA Ah! Não tá doendo não? (fingindo estar ainda mais brava, dá outro puxão com mais força ainda) TICO (cedendo à dor) Aaaaaaiiii!! Agora tá doendo!!! TECA E então? Agora quem é a chata? TICO (sem se soltar do puxão) Ninguéééém! Ai! Ai! TECA E quais são as sete palavrinhas mágicas que a gente usa quando é mal-educado? TICO (ele resiste em responder; ela aperta ainda mais o puxão, enquanto sorri para a platéia buscando cumplicidade) Ai! Ai! Ai! (gaguejando)... Desculpa... perdão... piedade... clemência... compaixão... caridade... (esquece-se de uma das palavras) TECA Ainda tá faltando uma palavrinha... (tenta ajudar, enquanto aperta ainda mais o puxão)... Mi... Mi... Mi... TICO (gritando ao se lembrar) Misericórdia! TECA (soltando a orelha dele) Aí!! Muito bem! É assim que eu gosto do meu irmãozinho querido... TICO 9 Foge para um lado do palco, fazendo muxoxo e sussurrando várias vezes a palavra “chata”, como se a irmã não o pudesse ouvir. TECA (fingindo não ter ouvido bem) O que é que o doutor aí está resmungando? TICO (fazendo beicinho) Nada, não! TECA Ah, bom! Pensei que ia ter de continuar puxando a orelha de alguém... TICO (ainda amuado) Você nunca brinca comigo! Eu fico aqui em casa preso o dia inteiro! Ficar aqui o tempo todo é muito chato! É por isso que eu vou amanhã na casa do seu Clélio! TECA (preocupada) Como assim? Por que justamente o seu Clélio? Já não te falei que não quero ver você de conversa com esse homem? TICO (inocente) Mas ele é legal! Vive dando bala e sorvete pra todo mundo na rua... Só eu é que fico aqui em casa preso e acabo não ganhando... Ontem ele me chamou pra ir na casa dele... Me disse que amanhã ele vai me mostrar muita coisa legal...(ela vai se enervando com o relato)... Disse também que vai convidar outros meninos pra ir lá brincar com a gente... TECA (para si, embora audível) Pedófilo filho da puta!! TICO (avança para a irmã, pegando em sua orelha; tom de deboche) Você falou palavrão, que eu ouvi!! E quais são as sete palavrinhas mágicas que a gente usa quando fala palavrão? TECA (nervosa, se desvencilha do irmão e o pega pelo braço com rudeza) Tico, escuta aqui! Eu já te falei mil vezes que esse seu Clélio não presta! Amanhã quem vai lá sou eu! Ele 10 vai ver que comigo não vai ter brincadeira nenhuma!...(pausa, fica mais mansa, desanimada, solta o braço do irmão ao perceber que usa força excessiva)... Poxa, Tico! Quantas vezes eu já te pedi pra não falar com esse homem? Ele é perigoso! Ele finge que é bonzinho, mas na verdade é muito mau... Você não confia em mim?...(ele concorda, amedrontado, cabisbaixo)... Pois então, querido...(pausa, mais calma)... por que você não conversa com a D. Maninha? Ela gosta tanto de você! TICO (choroso) Ela é muito velha! E não gosta de brincar... Toda hora fica reclamando de dor... (fica imitando a velha) ... “Ai, ai, tá doendo aqui!”... “Ai, ai, Tico! Para com isso, senão minhas costas vão doer!”... E tem mais: toda vez que eu peço pra ela me dar qualquer coisa, ela fala que não tem... TECA (impaciente) Tico, eu já falei pra não ficar pedindo nada pros outros! Que coisa feia! Parece até que eu deixo faltar alguma coisa aqui em casa! Você não é nenhum mendigo! TICO (impaciente) Mas você só compra coisa ruim! E ainda obriga a gente a comer! (com nojo) Verdura! Argh! Quem é que gosta dessa porcaria? Eu quero é doce e sorvete; essas coisas que o seu Clélio sempre dá pros meninos da rua... TECA (mais calma) Tá bom, Tico, a partir de hoje eu vou sempre trazer uma surpresa pra você quando vier da rua... Mas você tem de prometer que não vai mais ficar dando confiança pro seu Clélio. Deixa, que com ele eu me entendo... TICO (alegre) E você também vai brincar mais comigo? TECA Você quer brincar do quê? TICO (pegando a corda) Vamos brincar de pular corda igual a gente fazia quando era pequenininho? TECA 11 (desanimada) Ah, não, Tico! Pular corda? cansada! Não dá pra ser outra coisa, não? Eu estou tão TICO (emburrado) Tá vendo? Eu não disse? Você nunca brinca comigo! Parece até uma velha, que nem a D. Maninha... TECA (vencida) Tá bem, Tico, me dá essa corda aí... TICO (ainda emburrado) Agora não quero mais... (pausa; ela olha para o irmão com semblante cheio de ternura e compaixão, aproxima-se dele e o acaricia) TECA Vem cá, meu menininho!... Acho que já sei o que vou fazer... Eu te prometo que a partir de amanhã, você vai ter um novo amiguinho pra brincar... TICO (levanta-se abruptamente; alegria desmedida) É mesmo, Teca? TECA Prometo! Amanhã, nós vamos ao mercado pra comprar um cachorrinho aqui pra casa...(pausa, ele se decepciona, ela estranha)... O que é que você acha?... (ele fica em silêncio, ela fica intrigada)... O que foi? Não gostou? (pausa, ele permanece incomodado; ela se aproxima dele e o abraça)... Tico, você se lembra do Lunes? (ele se encolhe ao ouvir o nome)... O que foi, Tico? Você adorava o Lunes... Andava com ele pra baixo e pra cima... E ficava todo sorridente quando ele pulava em você, pedindo pra brincar... (ele vai se tornando ainda mais inquieto com as lembranças)... Eu me lembro até que a mamãe vivia te xingando porque você levava o Lunes pra cama e ele deixava pelo pra todo lado... TICO (interrompendo-a no auge do incômodo) Eu não quero cachorro nenhum, não!!! TECA (surpresa) Tá bom, Tico, tá bom!! TICO 12 (pausa; Tico pega a corda por uma extremidade e simula estar puxando um cachorro com ela; anda pelo palco enquanto fala) Eu gostava tanto do Lunes... Conversava com ele e ele me entendia... Era o meu melhor amigo... Sempre ficava do meu lado... Jogava bola comigo... Passeava comigo... Tomava banho comigo...(pausa)... Mas aí... Vocês mataram ele... Pensa que eu não sei? A prima Luíza me contou tudo... TECA (intrigada) Contou tudo o quê, Tico? TICO (choramingando) Que você e a Tia Júlia levaram o Lunes pro veterinário e...(pausa)... Por que vocês fizeram isso com ele?... Ele era bonzinho... Não mordia ninguém... Quando ele sumiu, eu pensei que não gostava mais de mim... Que tinha me abandonado, que nem a mamãe e o papai... TECA (constrangida) Tico, a gente não queria que você sofresse... Mas era preciso fazer o que a gente fez... O Lunes estava doentinho... O veterinário disse que ele não ia melhorar... Só ia ficar pior do que já estava... Eu também gostava muito dele, Tico... Mas quando a gente gosta muito de alguém, não quer que ele sofra à toa... Então...(pausa para escolher as palavras)... no caso de um bicho que a gente ama... é difícil... mas a gente tem de ter a coragem de sacrificar... quer dizer... matar, você sabe... a gente faz com que ele vá para o céu antes de sofrer mais do que precisa, entende? TICO (choramingando ainda) Isso é maldade... Eu podia cuidar do Lunes... quem sabe ele não ia melhorar... TECA (incisiva) Não ia não, Tico... O doutor falou que era até capaz dele passar a doença pra você... TICO E aí, vocês iam me matar também? TECA (ri, sem graça, abraça o irmão) É claro que não, seu bobo... (pausa)... Mas vamos parar de falar de coisas tristes... (pausa)... Já sei!...(tenta animá-lo)... Que tal aquele sorvete que você tanto estava querendo?... Vamos sair pra tomar um? 13 TICO (animado) logo) Oba!! Então vamos!!...(puxa-a para que saiam TECA (mandona) Espera um pouco aí, seu porquinho... Você acha que eu vou sair com você assim?... Com essa cara amassada e com essa roupa?... Primeiro o senhor vai tomar um banho e depois a gente sai... TICO (emburrado) Ah, não! Banho de novo? Que chatura! TECA Deixa de manha, Tico! Todo dia é a mesma coisa! Deixa de preguiça... 14 CATASTASIS (Teca puxa o irmão para o centro do palco, o foco vai se tornando mais fraco sobre os dois. Ela começa a despilo; ele se deixa despir praticamente imóvel. Enquanto vai tirando as peças de roupa do irmão, Teca acaricia o corpo dele de uma forma estranhamente sensual.) TECA Você sabe que eu não gosto de ver você sujo, não é? (tira a camisa dele, acariciando seu tórax) TICO (submisso) Mas eu gosto de ficar brincando... E quando eu vejo, já fiquei todo sujo!! TECA Mas um menino bonito como você não pode ficar por aí parecendo um mendigo... Tem que tomar banho todo dia... tem que ficar cheirosinho... com o cabelo bem penteado... parecendo um príncipe... (ela se torna cada vez mais ousada nas carícias; ele não percebe maldade no seu toque). TICO Você me acha bonito, mesmo? TECA Claro que é!!! (sedutora) Seu rosto é tão liso... Seus cabelos, tão macios... Adoro essa sua boquinha pequena... os lábios bem desenhados... E quanta perfeição existe nos seus olhos... eu me vejo dentro deles duplamente... ah, se eu pudesse estar realmente dentro de você quanto seus olhos me fazem acreditar... TICO (ingênuo) Dentro de mim... Como você é boba... TECA (como se não o ouvisse) Eu amo suas orelhas... as voltas que ela dá... (aproxima seu rosto do dele, como se o quisesse beijar. Aos poucos, vai retirando o que resta de suas roupas. Quando cai a última peça, ela toca o rosto do irmão como se quisesse sentir todos os seus traços com o tato. A partir deste ponto, o rapaz fica completamente nu até o final da encenação.) TICO 15 (demonstra incômodo, como se estivesse envergonhado estar sem roupa) Teca, eu estou sentindo frio... por TECA (continua a fala, como se ele não tivesse dito nada; observa-o de cima a baixo) Essas curvas do seu corpo... tão bem delineadas... ondas convidativas... chamando a gente... hipnotizando a vontade que eu tenho de... TICO (interrompendo-a, com riso sem graça) Teca, você está tão esquisita... TECA Seu corpo é maravilhoso... uma delícia proibida... uma promessa de prazer que me faz perder o juízo... (ela não se contém; ameaça tocar-lhe o sexo. Ele se abala, começa a tremer de nervosismo) ... Você nem sabe do que eu sou capaz para fazer você feliz... Eu te quero de uma forma inteira... Nunca pense que te quero mal... Eu só te quero assim porque te quero muito... sem limites... sem regras... sem moral... você é linda... (nessa fala, Teca fala ‘linda’ e não ‘lindo’; quando está muito perto de tocar o sexo do rapaz, ele foge, perturbado). TICO (em surto) Para, papai! Para, para, para! Não faz isso, por favor... TECA (como se acordasse de um sonho) Tico, olha pra mim! Sou eu, a Teca! Desculpa, eu só quero o seu bem... (tenta novamente abraçá-lo, ele se desgarra em fuga, tapando o sexo e as nádegas, como se os quisesse proteger) TICO (cada vez mais perturbado) Por favor, não faz mais isso comigo não, papai... TECA (tensa) Isso o quê, Tico? TICO (ainda mais perturbado) O que você faz toda vez que a mamãe sai... (passa a mão nas próprias nádegas) Dói muito, papai... Toda vez que você enfia isso em mim, dói muito... 16 TECA (cada vez mais tensa, tentando chamar o irmão à razão) Tico, olha pra mim! Sou eu, a Teca, sua irmã! (ela vira o rosto dele em sua direção, mas ele fica apavorado e não a reconhece.) TICO (chorando, inconsolável) Você vai me machucar de novo, eu sei... Você sempre me machuca... E depois... Sai sangue... Junto com aquela coisa gosmenta e fedida que o senhor espirra em mim... TECA (sacudindo-o, também entra em desespero) Tico, sou eu, Tico! Por favor... Não me deixa ainda mais nervosa do que já estou... TICO (em crise) Me solta!! Me solta!! Senão eu vou gritar... TECA (esbofeteia-o, começa a falar com a voz grossa como se fosse outra pessoa) Para com isso, eu já falei!! Se você não ficar quieta, eu chamo o bicho papão pra te pegar... Você quer apanhar ou vai calar logo essa matraca? TICO (caído no chão, chora de pânico, agora fazendo escândalo) Não me bate, não... Eu vou contar pra mamãe que você me bateu... TECA (sacudindo-o, ainda com mais força) Você não vai contar nada pra ninguém, está ouvindo? TICO (ainda mais alto) Vou sim... Você não me manda... Eu vou contar pra mamãe... Vou contar pra todo mundo... TECA (com ódio) Ah, miserável... Essa sua doença não tem cura... Você nunca vai entender que eu te amo, não é? Será que é tão difícil assim entender isso? TICO 17 (dá-lhe as costas enquanto grita) Ama nada! E eu te odeio! Eu te odeio! Eu te odeio! Eu te odeio!! TECA (pega a corda e o enforca, enquanto ele ainda está gritando) Você nunca vai entender... E nunca vai se curar dessa loucura... E quando a gente gosta muito de alguém, não quer que sofra à toa... Então...(pausa, enquanto o rapaz agoniza)... é difícil... mas a gente tem de ter a coragem de sacrificar... quer dizer... matar, você sabe... a gente faz com que a pessoa amada vá para o céu antes de sofrer mais do que precisa, entende? (ele finalmente jaz inerte) 18 CATASTROPHE A encenação agora chega ao clímax. A solução do conflito se dá sob luz mortiça, lúgubre, basicamente no proscênio. Ao mesmo tempo que o foco se abre na parte anterior do palco, a luz sobre os dois atores no centro do palco vai se esvaindo até se apagar de vez. Lentamente, Teca se levanta no escuro, encaminhando-se para o proscênio, que deve possuir um pequeno praticável em forma de plataforma onde a atriz deve ficar em posição de destaque. Seu rosto agora traz as feições de uma desvairada. Embora em silêncio, ela transmite estar fora de si. Respira ofegante, olha a platéia como se quisesse agredi-la para se defender. Senta-se. TECA (para o público) O que vocês estão olhando?... Eu fiz o que era preciso... Ele não tinha nenhum futuro... Eu não disse que preferia ver ele dormindo?... É pelo que aconteceu agora, vocês viram?... Quando ele tem um surto, ninguém controla... (pausa)... Eu não estava aguentando mais essa pressão... Ele não podia lembrar do papai... Coitado!... É muito difícil ficar livre das sombras... Aquele maldito destruiu a sanidade do menino... E eu pergunto: viver assim, perseguido para sempre por uma sombra, vale a pena?... (pausa)... É muito fácil julgar os outros... Mas vocês não sabem o que é viver na expectativa do imprevisível... Ele não tinha chance... Eu não tinha chance... Eu amo o Tico... Era preciso dar a ele um descanso... Ele vivia num inferno... (pausa; ela leva as mãos ao rosto e chora desconsolada, enquanto murmura)... num inferno... O rapaz se levanta no escuro, mas apenas seu vulto é pressentido pela platéia. Lentamente, ele pega a corda deixada ao lado de seu corpo pela irmã e se encaminha para o proscênio, enquanto ela ainda chora com as mãos no rosto. Enquanto contracena com a atriz, o ator brinca com a corda, ora usando-a como chicote, ora envolvendo o próprio pescoço com ela. A mulher está no chão e ele se posta ao seu lado, de pé, na penumbra. Deste ponto em diante, o rapaz permanecerá nu, na penumbra, seu perfil apenas adivinhado, girando em torno da mulher, agachada no proscênio com um foco intenso pairando sobre si. TICO (não lembra em nada o menino ingênuo; pelo contrário, sua voz é firme, assertiva, e seu tom acusador) Um inferno! TECA (olha para ele aterrorizada) Você nunca vai entender... TICO 19 (ainda mais acusador) A sua vida é um inferno! E você é que é a responsável por ela ser assim... Porque você é covarde! TECA (olhos esbugalhados, não acredita na visão) Eu não tenho culpa de nada... O culpado de tudo é você... TICO (ri, zombeteiro) Eu? Culpado? Como eu posso ser culpado de alguma coisa se eu nem ao menos existo? TECA (gritando) Existe sim! Existe sim!!! TICO Não, minha cara!... Você sabe que eu não existo, assim como não existem essas pessoas com quem você insiste em conversar... (mostra a ela o público) TECA (gritando) É mentira!! Você é um mentiroso!! Eu estou vendo você! E vejo todo mundo aqui, sim! Eles vieram para me ajudar! TICO Ajudar a alimentar sua anestesiada na sua culpa? alucinação? A manter você TECA (olhando para o público, tenta confirmar que ele realmente está ali) Não!! Vocês existem, não é?! Vocês estão aqui, não estão? TICO (ajoelha-se perto dela e lhe fala ao ouvido) Você sabe tão bem quanto eu que isso tudo é uma criação da sua cabeça... Uma fuga para o remorso de ter assassinado seu pai... TECA (chorando) Não!! Eu amava o papai... TICO (cruel, acusador) Mas matou! 20 TECA (desconsolada) Foi sem querer!... TICO Não importa! Matou!! TECA Eu já disse!... Por favor!... Foi sem querer!... Ele é que pediu... TICO Você sabe que não foi bem assim... TECA Papai pediu, eu juro!... Ele gostava de se acorrentar na cabeceira da cama e... pra completar a fantasia... me mandava amarrar um saco de plástico na cabeça dele... Pra dificultar a respiração... Era uma tara esquisita... Ele gostava disso... Dizia que na hora do orgasmo o prazer era ainda maior...(desconsolada)... Nós nunca tivemos problema... até aquele dia...(cai num pranto convulsivo)... TICO Você poderia ter livrado o seu pai do sufocamento! TECA Mas antes de ser amarrado ele me pedia pra que eu não fizesse nada... Por mais que ele parecesse estar sofrendo...(desconsolada)... Eu amava o papai... Só queria que ele ficasse feliz comigo... Eu não sabia que tudo ia terminar daquele jeito... Eu era tão pequena... Não sabia nada da vida... Eu confiava tanto nele... TICO (irônico) Confiava?! Não se faça agora de inocente! TECA (como se não o tivesse ouvido) Eu me lembro de tantas coisas que vivemos juntos... Como naquela tarde em que nós fomos visitar o Seu Ari e a D. Cotinha... Eles moravam num apartamento muito alto... E comentavam que a vista era linda... Eu, pequenininha, não conseguia chegar até a janela para ver a maravilha que eles narravam... Pedi então ao papai que me mostrasse... Ele sorriu pra mim de um jeito carinhoso... pediu licença a todos... e me carregou com enorme facilidade até o parapeito da janela da sala... ali, 21 enquanto me enlaçava a cintura para que eu não caísse, ele beijava minha nuca e meus cabelos...(pausa; suspira)... ah!, o mundo parecia estar aos meus pés... Ali, enlaçada por aqueles braços fortes, eu me sentia amparada, amada, segura... Os carros e as pessoas pareciam miniaturas... brinquedos móveis num vaivém harmônico e ritmado... E aquele pôr-do-sol?... Nunca mais vi um igual... A noite descia lentamente, enquanto as luzes da cidade iam se acendendo de forma tímida, quase envergonhada... Não sei quanto tempo durou aquilo... Só sei é que quando voltei a dar conta de mim, o horizonte já tinha se transformado num imenso manto negro coberto de faíscas frenéticas... tudo se tingia de forma psicodélica, numa profusão de cores e movimentos que pareciam desafiar a sufocante escuridão imposta pela noite próxima... Eu me sentia tão grande ali, junto com ele... E as pessoas lá embaixo tão pequenas... tão minúsculas... TICO (acordando-a do sonho) Um formigueiro a seus pés! TECA (como se lembrasse de outro momento) É! Um formigueiro! Engraçado! Eu sempre gostei de brincar com formigas! Ficava horas perseguindo as que moravam no quintal de casa... Achava divertido ver como elas formavam filas imensas, umas indo, outras voltando... E sempre que elas se cruzavam no caminho, batiam uma cabeça com a outra antes de prosseguir rumo ao destino... De vez em quando, eu riscava com o dedo a trilha que elas formavam... Era engraçado ver como elas ficavam perdidas com o fato imprevisto... Como ficavam desnorteadas até conseguirem, enfim, recompor a procissão... Tolas...(pausa; volta a sonhar romanticamente) ... De vez em quando, papai se juntava a mim para observar a caravana das formigas... E então... era tão bom!!... Com ele, tudo era muito mais divertido e engraçado... Qualquer acontecimento, por mais banal que fosse, se transformava numa apoteose... Para ele, cada formiga era diferente da outra... cada uma tinha um traço especial... cada uma era um indivíduo... (imitando a voz do pai)... “Olha só aquela formiguinha bunduda!”, ele dizia, “Deve ser chefe das que vão na frente!”... “E olha aquela outra carregando sozinha uma folha enorme!”...”Ninguém chega pra ajudar a coitadinha”... (entristecida) ... No fundo, eu não via diferença nenhuma entre elas, mas o entusiasmo do papai era tanto... Eu confesso que algumas vezes me iludi e acabei acreditando nas histórias contadas por ele... TICO (com desprezo) Como você é patética! Não passa de uma formiga desnorteada que viu seu caminho ser interrompido bruscamente pela insanidade de um monstro... TECA 22 (defendendo-se) Ele me adorava... Eu o venerava... O nosso amor era segredo... Eu queria ser dele... Tudo que me pedia era mais que uma ordem... Por mais que doesse o meu corpo todo, eu queria ser do papai... por inteiro... Queria que ele gostasse de mim de qualquer jeito... Eu tinha ciúmes... Não podia ver ninguém perto dele... Queria que tivesse atenção só pra mim... TICO (concluindo a fala de Teca) E foi por isso que você também matou a sua mãe... TECA (perturbando-se) Por favor! Já chega! Cala essa boca! Você não sabe de nada! Como se atreve a me julgar? TICO (rindo sarcasticamente) Eu sou a voz da sua culpa, minha cara! Eu só existo porque você me criou para justificar o remorso que sente... TECA (ainda mais perturbada, grita com as mãos nos ouvidos) Eu não matei a mamãe!! Foi ela que se matou, você sabe disso! Ela morreu na prisão! Todo mundo sabe! TICO Ela assumiu um crime que não era dela... Só para proteger você... Confessou à polícia que foi ela quem matou aquele monstro só para não ver você exposta... TECA Ela fez isso porque quis! Eu não pedi nada! Além do mais, ela me fez prometer que nunca iria contar o que tinha acontecido pra ninguém... TICO (inquisidor) Ela morreu de desgosto... Por sua causa... Destruiu a própria vida para salvar a sua reputação... E para salvar a reputação daquele velho pedófilo que te seduziu... TECA (justificando-se) Ele me seduziu!! Ele é um monstro!! Eu não tenho culpa de nada! Você não tem o direito de me julgar! (dirigindo-se ao público) Ninguém aqui pode me julgar!!! 23 TICO (brinca com a corda que tem nas mãos) Você é uma covarde! Uma mentirosa! Não tem ninguém aqui e você melhor do que ninguém sabe disso... TECA (chorando baixo) Você é mau! Me deixe em paz!! TICO Você é quem deve se deixar em paz... Eu sou apenas voz da sua consciência... Por mais que você tenha tentado se iludir... Chegou a hora da verdade... E eu sou a sua verdade... Assim...(mostra o próprio corpo)... Nua... Crua... Sem disfarces... Sem maquiagem... Por mais que você me mate... Eu ressuscito... Porque é essa a minha razão de ser... Lembrar a você da sua culpa... TECA (chorando e sussurando) Eu não tenho culpa!! TICO Tem sim... E tem a pior das culpas: a que leva ao remorso... Você tem a culpa do pusilânime... daquele que, por medo, não se confronta e, por isso, não se move para reparar o erro... Não é o mundo que te julga... É você que não se perdoa... Ninguém pode afrontar quem não se sente acossado... Por isso é que você tem a impressão de que todos estão ao seu encalço... A verdade é que você é covarde demais até mesmo para ser covarde... Por isso é que foge de si... Por isso é que cria fantasmas cruéis... Dói menos atribuir a culpa aos outros, nem que esses outros sejam ninguém... Ouvir a minha voz é tão incômodo assim?... Pois eu repito o que você já está cansada de saber: seu pai era um tarado!! Um monstro que destruiu a infância da própria filha! Um maníaco que não tinha a capacidade de amar ninguém... O que ele sentia por você não era amor... Tudo era apenas sedução... Um jogo desigual com apenas um objetivo: sentir um prazer mórbido, deturpado...(cabisbaixa, continua chorando baixinho) ... E como você é idiota!... Você pensa que se fosse um garotinho, assim como me criou, ficaria livre do assédio daquele crápula?...(pausa; ela simplesmente balança a cabeça afirmativamente)... Ingênua!! Esse tipo de depravação não poupa idade, sexo, cor... O único objetivo é corromper o que é puro, manchar o imaculado, dar vazão ao prazer selvagem e vândalo... sacrificar o cordeiro no altar da volúpia insaciável... TECA (ainda sussurando) Eu não tenho culpa!! 24 TICO A culpa que você tem poderia ser libertadora, se a levasse ao arrependimento... Porque o arrependimento não paralisa como o remorso... Ele motiva, leva à ação... Sua única culpa reside no fato de não se perdoar... De tentar se proteger permanecendo paralisada no tempo, como uma menininha carente e traumatizada... Até hoje, tudo que você tem conseguido com suas fantasias é perder tempo... O passado não vai redimir você da culpa que sente por ter sido traída... Sim, porque seu pai não roubou apenas a inocência da menininha desprotegida... Ele roubou uma coisa bem mais preciosa: a sua crença no amor... Matar quem você ama é matar o amor que você pode sentir... Sua vida é cercada de morte por todos os lados... Em vez de enfrentar o sofrimento, você sempre optou pela tentativa inútil de transferi-lo para os ombros de outra pessoa... mesmo que essa tal pessoa fosse uma miragem... uma fantasia criada na medida justa de sua covardia...(pausa)... Mas eu lhe trago uma péssima notícia... Não há neste mundo sofrimento que se transfira... Porque o sofrimento é um recado particular da vida... um mecanismo engenhoso que ela utiliza para destruir ilusões... uma estratégia infalível de forçar um encontro inadiável: o da nossa ignorância com a nossa verdade... E é do resultado desse encontro que depende nosso destino...(enquanto fala, o rapaz vai atando a corda que tem nas mãos num suporte acima do praticável onde está a atriz, montando uma espécie de forca sobre ela) ... E você sabe que vem postergando esse encontro por muito tempo... Mas e agora?... Não dá mais para adiar a decisão... Não há mais nada nem ninguém que possa continuar alimentando suas fugas desta hora crucial... E então?... A quem você está disposta a atender?... (termina a montagem da forca; balança a corda sobre a cabeça da mulher. Inclina-se para dizer a fala seguinte bem perto de seus ouvidos)... O arrependimento?... Ou o remorso?... (lentamente, o rapaz caminha em direção às coxias, mas, antes de sair de cena, ainda diz a última fala) ... A decisão sempre foi e sempre será somente sua... Mais soluçando que chorando, a mulher observa o rapaz sair do palco e, lentamente, olha para a corda balançando sobre si. Seu semblante é misterioso, revelando a dúvida por trás de uma tênue esperança. Seu rosto transmite um suspense que poderia ser traduzido na seguinte pergunta não pronunciada: “o que eu faço agora?”. Pausadamente, ela leva as mãos em direção às cordas e parece se arrepender. Abaixa as mãos e olha na direção do público; contudo, agora dá a impressão de não enxergá-lo. Olha as próprias mãos, enxuga as lágrimas, e novamente olha para cima, deixando o rosto banhar-se pela luz intensa do foco que a ilumina. Fecha os olhos, suspira fundo. O foco vai lentamente perdendo a intensidade até perder-se totalmente na escuridão do palco. FIM 25