Capítulo 1
O salão é branco, como pedaços do céu eternizando aquele
momento. Tudo brilha. A suave luz do luar entra pelas janelas
brincando com os castiçais. Nunca me senti tão feliz. Aqui, a
escuridão não existe.
Os olhos dele me fitam e eu nada mais vejo. Os braços fortes
tomam delicadamente a minha cintura e rodopio pelo salão, como
naqueles belíssimos filmes antigos. Nada parece ser verdade.
Quando menos espero, ele me puxa. Nossos corpos unidos
parecem seguir a mesma respiração e as bocas se aproximam ansiosas
e saudosas de um contato já tão conhecido…
Devo estar no céu!
Ou só posso estar sonhando…
Sonhando… Sonhan… So…
O rádio relógio gritou no meu ouvido! Droga… Era mesmo
um sonho! Infelizmente era hora de largá-lo e correr para a triste
realidade do dia a dia.
Tomei um banho rápido e o tempo passou impiedoso, dando
somente a oportunidade de me arrumar com o básico, tomar um
rápido café e correr para o trabalho.
Que pena não poder ficar dormindo… Trabalhar, era nisso que
tinha de pensar agora. Tranquei a casa como um autômato e corri
para o ônibus.
Como tenho saudade de quando a vida era mais calma e ser
adolescente não era fonte de preocupações. Ser independente tem
o seu preço.
Cheguei nesta cidade há pouco tempo. Antes morava com minha
família em uma grande fazenda em Minas Gerais, encravada no
pé da serra. Ali, para mim, era o paraíso na Terra. Quantas boas
lembranças tenho de lá! Tantos momentos felizes! Tive uma infância
ótima. Éramos uma família que sempre teve como lema a alegria
e felicidade para com todos. Não consigo mensurar em palavras o
amor que recebi de meus pais. Minha mãe era uma pessoa alegre,
repleta de vida, e meu pai… Amei cada instante que passei ao seu
lado. O carinho e a atenção que fizeram parte da minha infância
foram essenciais.
Sinto muita saudade de cada gesto de carinho. Mas na vida tudo
acaba e esse momento não tardou a chegar.
Em um dia nublado vi meus pais discutindo pela primeira vez.
Não acreditava em meus olhos, que eram testemunhas daquela cena
inédita. Minha mãe, visivelmente alterada, e meu pai, tentando
dialogar quando não havia mais possibilidade.
Ele, com os olhos tristes, curvou as costas e saiu lentamente
da sala, como se seu corpo não tivesse mais forças. Saiu, mesmo
querendo ficar, e a porta da sala bateu com um estrondo, ao sabor
do vento.
Eu queria alcançá-lo. Precisava saber o que estava acontecendo
naquela situação que enchia de medo o meu peito. Mas, logo à
minha frente, ele não deu nem sequer dez passos. Curvou-se em um
gesto de dor e caiu espalhado pelo gramado.
Meu coração pareceu estancar no peito. Naquele instante perdi
meu pai, sem conseguir dizer pelo menos um simples adeus.
Foi naquele dia que me despedi do colorido da minha infância.
Tudo passou a adquirir um sombrio tom cinza. Nada mais seria igual.
Minha mãe se fechou para o mundo. E o segredo da discussão
nunca foi revelado. Seu amor pela vida e por mim morreram com
meu pai. Conheci o significado da palavra desprezo.
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Cansada daquele clima pesado que pairava sobre todos nós, fui
embora. Peguei minhas poucas coisas e segui em frente, sem olhar
para trás. Queria uma nova vida repleta de sensações que pudessem
preencher o meu vazio. Queria sentir-me livre!
Ao chegar à cidade nova, encontrei uma pensão pequena, mas
respeitável, onde paguei o aluguel de alguns dias com o pouco
dinheiro que eu tinha trazido comigo. Arrumei minhas roupas em
uma cadeira, tomei um longo banho e devo ter dormido por umas
dez horas seguidas.
No outro dia, saí à procura de emprego e, com sorte, não
demorei muito a encontrar. Consegui a vaga de atendente em uma
videolocadora.
Pelo meu esforço e dedicação, fui recompensada com muitos
amigos e a confiança de todos. Atualmente administro a loja. Um
trabalho de grande responsabilidade e muito amor. Com muitas
economias, aos poucos comprei os meus móveis e aluguei uma
pequena casa perto do centro da cidade.
Como todo jovem, estou ralando para tirar a minha carta de
motorista e comprar o carro que tanto vai facilitar minha vida. Mas
isso ainda leva tempo…
Pena que a minha vida amorosa não é tão simples assim. Nesse
quesito, nasci com os dois pés esquerdos. Como se pagasse por
alguma maldade terrível de alguma vida passada!
Meu último namorado foi uma fonte de tristezas e decepções.
Ele se chama Rodrigo. Mas depois descobri que em muitos lugares
escuros da cidade seu apelido impera: Rambo. Ficar com ele era a
mesma coisa que estar em uma roleta-russa: uma emoção intensa e
quente, mas extremamente perigosa.
Ansiava pelo toque dele como um beduíno morrendo de sede
que encontra uma fonte de água. Rambo não pedia, exigia. Tomava
de mim tudo o que julgava possível. No entanto, em uma noite, ele
conseguiu destruir tudo o que sentia por ele. Os meus planos sumiram
em meio à vergonha que me fez passar. Vamos esquecer isso…
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Não me achava pronta para novos relacionamentos por enquanto.
Talvez não tenha encontrado o homem especial. Mas, no fundo,
devia estar com medo das marcas desse meu passado. Bom, por
enquanto nada disso me interessava. Nem ninguém.
Entrei no ônibus em um pulo, brigando com o prendedor que,
teimoso, se soltou dos meus cabelos. Sentei-me acompanhando o
ritmo dos solavancos e, quando comecei a relaxar, era hora de descer
novamente. E recomeçar a maratona.
São duas quadras do ponto até a locadora, que percorri com
velocidade sobre-humana. Entrei na loja parecendo um furacão.
Pontualidade britânica! Melhor dizendo, quase…
Parei repentinamente diante do balcão. Só então respirei, me
ajeitei e ouvi os comentários brincalhões dos amigos:
– Que pressa é essa, meu Deus!
– E é dada a largada da grande corrida… Ana está na frente, em
disparada…
Ah, antes que eu me esqueça, a Ana sou eu! Muito prazer!
– Oi, gente! – respondi, depois de tomar fôlego. Cumprimentei
todos e estou pronta para mais um dia que começa…
É assim que passo os meus dias, que correm ligeiros como
páginas amareladas arrancadas pelo véu do tempo. Concentrada em
trabalhar sem cessar até me sentir exausta, mas realizada. Não quero
parar e pensar que preciso de um tempo para mim.
Não posso dizer que o assédio não acontecia, ainda mais lidando
com o público. Mas levo na brincadeira e deixo passar. Preferia passar
as minhas noites com os amigos ou vendo filmes tranquila no sofá.
Quando estava em casa e a solidão me avassalava, saía pela porta e
ia bater papo com a minha vizinha, Paula, que havia se tornado uma
grande amiga.
Querem saber como eu sou?
Dizem que sou bonita, mas não sou muito de avaliar. Várias vezes
os homens me paqueraram na rua, me chamando de linda. Nesses
dias penso que estou arrasando os corações.
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Bem, vou tentar me descrever. Sou morena com cabelos longos
e cacheados que caem até o meio das costas. Gosto da sensação que
me dão, como se emoldurassem meu rosto. O nariz é pequeno e
arrebitado e minha boca é grande e carnuda. Ela é a parte que mais
gosto do meu rosto. Nada de grandes curvas. Corpo magro e esguio,
mas tudo no seu exato lugar.
Não sou convencida, mas amo cada parte minha do jeito que é. Não
sou especial, mas vivo bem com o que tenho. E o mais importante:
tento a cada dia fazer o melhor para os que estão comigo. Afinal, ter
amigos é cultivar preciosidades.
A Adriana e o Tiago trabalham comigo na locadora. Mesmo
extremamente brincalhões, são pessoas sinceras e amáveis.
Willian, namorado de Adriana, é um amigo superafetuoso e a
Paula é a alegria em pessoa. Cada um deles é um pedaço de felicidade
na minha vida.
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Capítulo 1 - Livraria da Travessa