Engenharia e história: percursos cruzados Maria Fernanda Rollo Breve ensaio que procura avaliar em que medida as sucessivas conjunturas históricas que marcaram o século XX português até ao 25 de Abril de 1974, tendo em conta os seus principais contornos políticos e os seus enunciados e opções essenciais de desenvolvimento económico, determinaram – inibindo ou estimulando - (o desenvolvimento d(as obras de)a engenharia em Portugal. Da Monarquia Constitucional à I República O século XX inicia-se num ambiente sombrio. A monarquia agonizava, entre humilhações externas e a decadência interna, num contexto de crise política a que se associava uma profunda crise económica e financeira, empreendendo o caminho que, a prazo, poria termo ao primeiro liberalismo português. Ao ano do ultimato britânico sucedera-se o da revolta republicana no Porto, a 31 de Janeiro de 1891. O modelo económico da Regeneração confrontado com as limitações do seu próprio enunciado, debatendo-se com as hesitações e as inércias da actividade económica de um país que tardava em dar resposta aos desafios e às possibilidades da moderna expansão industrial e, em comparação com a situação internacional, entra claramente em derrapagem revelando sinais evidentes de esgotamento. Sob uma crise generalizada, o País debatia-se à procura do seu ressurgimento, em confronto com as expectativas falhadas e sob o trauma e a ameaça sempre à vista da bancarrota que o final do século trouxera. Para trás ficava a memória do ambiente de prosperidade que encaixava no período de crescimento e de modernização que a Regeneração se propusera impulsionar. Ao seu principal inspirador, engenheiro Fontes Pereira de Melo, ficar-se-ia a dever a criação, em 1852, do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. O dinamismo que a política fontista imprimiria à construção de grandes infra-estruturas (estradas e caminhos-de-ferro), tendo embora efeitos positivos mas insuficientes, até para a unificação do mercado interno, foi feito em grande medida através do recurso constante ao aumento da dívida pública interna e externa e ao déficite orçamental o que, associando-se à deficitária balança comercial portuguesa, acabaria por arrastar a economia para uma difícil situação financeira, colocando-a sob a perspectiva de uma falância generalizada. A prosperidade da Regeneração desapareceria com o seu inspirador, Fontes Pereira de Melo. É certo, porém, que o período que antecedeu a I Guerra Mundial registou um crescimento razoável do sector industrial, mas circunscrito e longe de conseguir catapultar Portugal para o nível dos países industrializados da Europa. De resto, num enquadramento mais geral, Portugal não foi excepção às tendências gerais de crescimento industrial e às transformações estruturais registadas “nas economias mais atrasadas da periferia europeia” 1 durante as décadas que precederam I Guerra.1 A economia nacional, continuaria a contar essencialmente com a sua actividade agrícola, mesmo se ameaçada por uma crescente concorrência internacional embora, na tese de vários autores2, o sector industrial tenha registado um ritmo de crescimento mais rápido do que o agrícola, particularmente no período posterior a 1870. Vísivel a importância que os engenheiros vinham assumindo em diversas áreas da realidade portuguesa. Assumindo uma crescente intervenção na esfera política e participação na definição e condução das políticas de desenvolvimento do País, a sua presença é notória um pouco por todo o lado - fruto do reconhecimento da sua indispensabilidade como agentes da inovação tecnológica necessária ao desenvolvimento. Engenheiros que, intervenientes destacados em áreas da especialidade, eram em boa parte, porém, formados no estrangeiro. É aliás sabido como só tardiamente se começa a ministrar em Portugal um ensino de engenharia fora do âmbito da engenharia militar. Até então, o escol de engenheiros portugueses que se afirma, especialmente nas áreas da engenharia civil e de minas, mas também no campos da agronomia e das florestas, adquire a sua aprendizagem no exterior, sobretudo em instituições francesas e alemãs. Por outro lado, são os próprios engenheiros que adquirem progressiva consciência da indipensabilidade da sua participação activa na esfera nacional e que procuram encontrar uma plataforma específica de afirmação da sua especificidade e simultaneamente a sua autonomização relativamente à esfera militar. Sintomáticos, a este respeito, a criação do Corpo de Engenharia Civil e Auxiliares (1864) e os acontecimentos que levaram à constituição da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (1869) - a primeira associação profissional de engenheiros criada em Portugal na sequência da extinção do primeiro.3 De reter, para o tema central deste ensaio, a oportunidade da criação do Corpo de Engenharia Civil no contexto da prossecução da vontade modernizante do País, embora em boa medida traduzida na construção dos caminhos de ferro e obras públicas, e os seus reflexos na gestação de um ambiente propício ao desenvolvimento da engenharia em Portugal. Sublinhe-se ainda a importância desta Associação, como terá a sua herdeira Ordem dos Engenheiros, enquanto espaço de divulgação, plataforma de formação e de importação de conhecimentos do exterior - pela sua internacionalização e contactos com associações estrangeiras congéneres, pelo corpo bibliográfico que passou a reunir, pela Revista de Obras Públicas e Minas, que publicou durante vários anos. Na verdade, assistimos à prossecução de realizações diversas em que a vontade de modernizar o País passa por um apelo aos engenheiros. A sua presença é cada vez mais 1 Jaime Reis, “A industrialização num país de desenvolvimento lento e tardio: Portugal, 18701913”, O Atraso Económico Português, 1850-1913, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1993. 2 Nomeadamente Manuel Villaverde Cabral, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, A Regra do Jogo, Lisboa, 3a Ed. 1981 e Portugal na Alvorada do Seculo XX. Forças Sociais, Poder Politico e Crescimento económico de 1890 a 1914, A Regra do Jogo, Lisboa, 1979 e Jaime Reis, op. cit.. 3 Vd. sobre esta matéria os trabalhos de Ana Cardoso de Matos e de Maria Paula Diogo. Nomeadamente Ana Cardoso de Matos, "Os engenheiros e a transferência de tecnologia na 2ª metade do século XIX", working paper apresentado no XX Encontro da Associação de História Económica e Social, Porto, 2000 e Maria Paula Diogo, A construção de uma identidade profissional. A Associação dos Engenheiros Civis Portugueses. 1869-1937, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, 1994. 2 activa na construção e desenvolvimento de infraestuturas (pontes, estradas, caminho de ferro, portos…), no reconhecimento do território, e mesmo em actividades industriais. Além disso, signatários de projectos e autores de estudos técnicos, reclamam-se promotores de estratégias e agentes do progresso do País. E, efectivamente, como exemplo, foram os engenheiros, sobretudo eles, os primeiros a querer experimentar construir, em tempos precoces, um metropolitano em Lisboa ou a defender intransigentemente o estabelecimento da indústria siderúrgica. Foram, de resto, inúmeros os projectos, propostas mais ou menos ousadas, que ficaram por realizar em absoluto ou no tempo das suas primeiras formulações, porque o optimismo e voluntarismo que os guiava nem sempre se fez acompanhar do realismo indispensável ou porque, na verdade, o País não produzia as condições necessárias à sua concretização. Até porque, para além do acentuado clima de instabilidade política e financeira que ameçava instalar-se duradouramente, não era claro o curso que haveria de presidir à condução dos destinos do desenvolvimento económico do País e ampliava-se o debate que opunha, em termos de ideias, duas concepções contraditórias que o deviam orientar. De um lado uma concepção cuja matriz, em síntese, derivava das formulações de Oliveira Martins, fundadas em torno da lei do fomento rural (1887) que, no quadro das ideias da época, defendia a especialização do País na produção agrícola - em tese, Portugal não tinha recursos naturais, nem capitalistas, nem capitais interessados na indústria e por isso teria que encontrar a via do seu desenvolvimento na terra e nos frutos que dela pudesse colher. Por outro, um conjunto de ideias dispersas, com algum fundamento nas principais correntes do pensamento económico, que defendia o apoio a uma industrialização sempre adiada numa “revolução industrial nunca iniciada, uma “idade do ferro” que impotências e interesses inconfessáveis sempre iam fazendo abortar. Contra as ideias económicas que então prevaleciam, ou, sobretudo, a sua falta, havia quem teimosamente apostasse na industrialização do País. À fisiocracia serôdia de Oliveira Martins opunham-se esses arautos do progresso procurando mostrar que sem indústria dificilmente se conseguiriam romper os grilhões do subdesenvolvimento e da dependência externa de Portugal. Foi assim no século XIX, foi assim também que essas duas correntes de pensamento foram caminhando a par durante cerca de um século até que finalmente, nos meados dos anos 40 e de forma mais inequívoca nos meados da década de 50 do século XX, a industrialização seria convictamente aceite como via de desenvolvimento do País. De qualquer das formas o século XIX conheceu em Portugal experiências inovadoras em diversos campos, apadrinhadas pelo poder público, também ao nível da promoção do ensino técnico. A tudo não foi obviamente estranho o clima inspirador suscitado pelos países mais desenvolvidos e a comunhão de um ambiente internacional de prosperidade económica e de evidente dinamismo tecnológico – tão visível nas célebres exposições internacionais que doravante marcam o calendário ‘das realizações’. Como referido, aconteceu sobretudo ao nível das “grandes realizações” infraestrutuais, contando – e simultaneamente estimulando – com a acção dos engenheiros, oferecendo-se assim terreno às expressões reais da engenharia civil. Mousinho de Albuquerque apresentara, em 1840, um plano de rede viária. Dez anos passados, aprovava-se uma nova lei destinada a regulamentar a classificação da nova rede de estradas e as modalidades de construção e as formas do seu financiamento; em 1862, nova lei e nova classificação das estradas definindo responsabilidades, prioridades e prazos para a construção de eixos fundamentais. Procurava-se, através da rede viária, corrigir 3 assimetrias regionais, assegurar as ligações entre as principais cidades, facilitar os acessos ao interior, unificar o mercado interno. Programa que ficou aquém das expectativas, mantendo as estradas uma função essencialmente complementar dos caminhos-de-ferro. Os engenheiros eram chamados a participar, por vezes reorientando as suas práticas militares para uma engenharia civil. Entretanto, os caminhos de ferro, sinal e mesmo sinónimo de progresso e modernidade, que trilhavam os territórios do mundo mais desenvolvido, chegam a Portugal. A política oitocentista de modernização dos transportes logrou lançar uma rede ferroviária, os engenheiros participaram, primeiro estrangeiros (até porque parte das linhas estavam em mãos estrangeiras) mas, depois, também portugueses. Referência de um novo ritmo, símbolo da velocidade, a rede ferroviária convivia inicialmente com a tradicional almocrevaria que asseguraria, até à década de 1920-30, os pequenos trajectos e o contacto com e entre as regiões mais afastadas. A intenção inicial, de Fontes Pereira de Melo e dos seus seguidores, era a de criar uma rede ferroviária que ligasse Lisboa ao estrangeiro, através de um entroncamento em Badajoz, e acessoriamente ao Porto. Em 28 de Outubro de 1856 inaugurava-se em Portugal o primeiro troço de via férrea, entre Lisboa e Carregado, parte da linha do Leste que viria a ser concluída em 1863 com a abertura à exploração do troço entre Elvas e à fronteira; até ao final do século tem início a construção e a exploração das principais linhas de caminhos-de-ferro. Mas foram pesados os encargos para as finanças e magros os resultados para a economia nacional. Afinal, construíram-se as linhas, mas não se tendo feito acompanhar de outros elementos modernizadores o destino desejado não se cumpriu totalmente. Naturalmente, os caminhos-de-ferro, impondo-se pela sua rapidez e pelo volume de mercadorias e de passageiros transportados, remetendo para um segundo plano a navegação de cabotagem e a circulação fluvial, contribuíram para criar as condições de um mercado nacional, dinamizando de alguma forma a economia envolvendo embora dependências e capitais do estrangeiro. Como em todo lado por onde se construíram, tornaram mais baratas e mais rápidas as transacções e as deslocações, sendo decisivos até pelas implicações que exerceram ao nível das comunicações postais, em particular a telegrafia, - que viria a tornarse decisiva para proclamar a República ao País – cujo desenvolvimento se devia às exigências da própria segurança da circulação ferroviária; tudo a permitir uma maior mobilidade da população, naturalmente ligando-se aos fenómenos da urbanização e das migrações internas e externas, acentuando e mesmo alterando os seus perfis, muito embora tenham provocado a compartimentação de várias regiões do País e gerado novas discriminações regionais. Visível eficácia no século XIX a da navegação marítima ao longo da costa. Um tráfego que, do Norte ao Sul do País, unia os inúmeros portos costeiros a partir dos quais se fazia boa parte do abastecimento de mercadorias para o interior. A navegação a vapor garantia o transporte de passageiros, a bordo do Lusitânia, do Restaurador Lusitano, do Porto ou da Quinta do Vesúvio, que asseguravam a ligação mais importante: Lisboa – Porto. A circulação no interior do País apoiava-se também nas principais vias fluviais, sendo o Tejo, o Douro, o Sado os principais eixos de circulação fluvial que podiam complementar a terrestre. Ainda no final do século XIX dá-se início à construção do porto artificial de Leixões e a um plano de desenvolvimento do porto de Lisboa. Mas será a partir de 1929, com o lançamento do primeiro Plano de Portos, que se procederá à realização das grandes obras nos portos de Lisboa e Leixões. 4 O final do século XIX, traria porém, constrangimentos e inibições à prossecução de trabalhos da natureza acima referida. Entre outros, Ezequiel de Campos, engenheiro civil e de minas pela Academia Politécnica do Porto, que virá ao longo da I República e do Estado Novo a assumir um lugar de destaque entre a elite preocupada com as matérias do pensamento e do desenvolvimento económico em Portugal, acusava a ausência de estratégia e a inconsequência dos trabalhos realizados: Tendo sido um erro o dispêndio de dinheiro sem plano e a execução de obras aos poucos – estradas, dispensáveis ou de há muito incompletas, caminhos de ferro de directriz e perfil vicioso, porto de Leixões aos poucos … devemos marcar precisamente o que é necessário fazer, e estudar a maneira de construir e explorar com as máximas vantagens.4 Refira-se que também no universo industrial, particularmente no domínio do que hoje designamos por “indústrias de processos” se operaram inovações, se bem que de forma relativamente mitigada, visíveis sobretudo no âmbito das indústrias químicas, especialmente na produção de adubos, esferas em que nem sempre era óbvia a presença de engenheiros. Assinalem-se, como exemplo, os sectores do papel (onde pontua a Caima Pulp), do vidro (na Marinha Grande) ou o dos novos materiais de construção (a primeira fábrica de cimento artificial "Portland" em Alhandra entrou em funcionamento em 1894). Ainda, pela importância que virá a assumir, uma referência à constituição da União Fabril, em 1865, e à sua posterior fusão (1898) – organizada por Alfredo da Silva - com a Companhia Aliança Fabril. Sedutoras e contangiantes ainda nos anos oitocentos, as possibilidades que a electricidade vinha oferecer. Desde há alguns anos que se vinham revelando em Portugal as maravilhas que a electricidade podia produzir no campo da iluminação. Fascínio transbordante e conquistador que num curto espaço de tempo gerou as primeiras empresas de produção e distribuição de energia eléctrica em Portugal. Uma referência para a primeira grande empresa de produção e distribuição de energia eléctrica em Portugal: a sociedade Companhias Reunidas Gás e Electricidade - C.R.G.E. (1891) e a construção da Central da Boavista (1903). Paulatinamente a construção de centrais termo-eléctricas passava a pontuar o território, sendo de apontar a Central do Ouro (Porto, 1908/9), a primeira (1908) e a segunda (1914) Central Tejo (Lisboa). Mas, para além de chegar às ruas, às casas, e também às fábricas (onde se montam pequenas centrais produtoras) … a electricidade chegava também aos transportes. Pioneira, a cidade do Porto foi a primeira a dispor de uma rede de tracção eléctrica. Depois de experimentado o novo transporte (em 31 de Agosto de 1895 privadamente e em 7 de Setembro oficialmente), no dia 12 de Setembro de 1895 era aberta ao público a primeira linha de eléctricos: a da Restauração. Seguir-se-ia Lisboa, já no século XX, embora a ocorrência de uma primeira experiência datasse de 1887. Na madrugada de 31 de Agosto de 1901 o primeiro eléctrico alfacinha percorria o trajecto Terreiro do Paço a Belém e Algés. Coimbra teria ainda que esperar pelo primeiro dia do ano de 1911. Novidade também, no campo da técnica e da engenharia, a intervenção dos engenheiros associada à aplicação de novos materiais nas recentes edificações, disputando de alguma forma o terreno aos arquitectos. O ciclo do ferro, que produzira obras como o Palácio de Cristal e a Ponte D. Maria no Porto ou o elevador de Santa Justa e a Garagem Auto-Palace em Lisboa e que homenageara o caminho de ferro com as estações do Rossio e S. Bento 4 Ezequiel de Campos, A Conservação da Riqueza Nacional, 1912, p. 597. 5 cede, na transição do século, deu o lugar ao ciclo do betão (garantindo o sucesso da primeira fábrica de cimento Portland artificial acima apontada). Emblemática, neste campo a Ponte de Vale de Meões (1904) como primeira referência no domínio da utilização do betão armado na engenharia de pontes. Na década de 10, contando já com o Laboratório de Resistência de Materais criado junto da Universidade do Porto, o betão armado mostra as suas potencialidades em diversas edificações. Sublinhe-se, aliás, o significado que detém a criação deste Laboratório, relativamente à ligação promovida entre a actividade científica da engenharia, em termos de investigação mas também ao nível do ensino da construção e da aprendizagem da utilização dos materiais, e a actividade da construção propriamente dita. Preocupação patente na promoção do Congresso Nacional da Construção Civil em 1911, no Porto. Mas, os tempos são de acentuada agitação política e de hesitação em relação ao curso que se há-de imprimir ao País. O País assistira ao regicídio (1908). D. Manuel II sucedia a D. Carlos, mas a monarquia, afundada em dívidas e no desamor do povo, ‘sucumbe” à implantação da República. I República Passados os tempos agitados que se seguiram à Revolução republicana, era a altura de cumprir e pôr em prática os ideais e as propostas que o republicanismo vinha proclamando. Sabemos como a história foi diferente… mas, questões essenciais, como a alteração do regime, e mesmo a laicização do Estado, não tiveram retorno. No que diz respeito ao tema em análise, e mesmo não se tendo concretizado tudo o que a República almejou em termos de ensino, foi logo no ano seguinte ao da proclamação que se registou um dos acontecimentos mais relevantes para o desenvolvimento da engenharia em Portugal. Brito Camacho, ministro do Fomento, promulga em 23 de Maio de 1911, o decreto que cria do Instituto Superior Técnico. Para director, Brito Camacho convidou Alfredo Bensaúde, mineralogista e engenheiro que anos antes publicara o "Projecto de Reforma do Ensino Technologico para o Instituto Industrial e Comercial"5. Tendo colhido boa parte da sua formação na Alemanha, conduzirá o futuro do recém-criado instituto tendo sempre presente a indispensabiblidade do desenvolvimento prático da investigação e a colaboração com o sector industrial. Eram então cinco os cursos de engenharia ministrados no IST: minas, engenharia civil, mecânica, electricidade e químico-industrial. Além da criação do IST, deve ainda assinalar-se a iniciativa, ocorrida no mesmo ano, da reforma do Instituto Geral de Agronomia, que passa a Instituto Superior de Agronomia e a formar engenheiros agrónomos e silvicultores. Poucos tempo passado, em 1915, a Academia Politécnica do Porto transforma-se em Faculdade Técnica, mais tarde Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (1926). No entanto, a I República, tal como a Monarquia Constitucional, não lograria trazer a estabilidade política e financeira. De resto, nesses aspectos, pouco se alteraria em relação ao passado, até porque em matéria económica as promessas da República não anunciavam propriamente um programa económico. Ou, na formulação de António Telo, “A política económica da 1ª República pode resumir-se como a procura inútil do grande surto económico, prometido na época dourada da propaganda e nunca alcançado”. (…) “A República nunca chegaria a alterar profundamente o modelo económico que herdou da 5 "Projecto de Reforma do Ensino Technologico para o Instituto Industrial e Comercial" (Lisboa, 1892). 6 monarquia constitucional”6. A industrialização do País, área que, pela sua natureza, produziria dinâmicas e sinergias no campo da engenharia, tardava. Os caminhos que se indicavam para o País não colocavam tão pouco a industrialização na ordem do dia, além de que, os efeitos das inconstâncias políticas e das fragilidades das finanças públicas repercutiram-se negativamente na iniciativa privada, já de si pouco disponível em concorrer com os seus capitais para a promoção industrial do País. São escassos os interesses da elite económica em apostar nesse sector - a agricultura e o comércio continuam a representar as suas preferências enquanto os seus capitais eram colocados, em montantes cada vez mais elevados, no exterior. Poucos estímulos, os suscitados à engenharia pela actividade económica do País. O sector industrial continuará a ocupar uma posição secundária em relação ao agrícola, e assim se manterá por largos anos, embora a sua importância seja maior do que o sugerido pela reduzida percentagem de população activa que ocupa, assegurando mesmo o grosso das exportações nacionais. É um sector maioritariamente explorado de forma artesanal ou manufactureira, que se mantém dominado pelas indústrias mais tradicionais, sobretudo a têxtil e a alimentar (conservas de peixe e moagem), e alguma química (resinosos e adubos). Neste tecido a indústria pesada prima pela ausência. Poucas são as unidades industriais inovadoras e essas encontram-se fortemente ligadas ao sector agrícola e muito concentradas na área da grande Lisboa. Entre todas, de realçar o desenvolvimento da indústria química. Inicialmente dominado quase exclusivamente pela produção de adubos, fortemente beneficiário do proteccionismo conferido à lavoura, quer no final do século XIX (sobretudo a partir da publicação da lei de Elvino de Brito) quer posteriomente (particularmente no âmbito da Campanha do Trigo), o sector conhecerá um crescimento e dimensão assinaláveis, nomeadamente no âmbito do complexo industrial da CUF acima referido, que em 1908, sob a acção de Alfredo da Silva, inaugurava as suas instalações no Barreiro. Entretanto num tempo em que o ambiente internacional fazia temer a iminência de uma deflagração bélica, Ezequiel de Campos, debatia-se, ao seu modo, pelo fomento do País, tal como o concebia. Em 1913 publica a Conservação da Riqueza Nacional onde procura demonstrar a necessidade de promover o aproveitamento dos rios para a produção de energia eléctrica destinada a abastecer o País. Entendendo, claro, a abundânca de energia, a preços competitivos, como condição para o desenvolvimento da riqueza nacional, mesmo se no seu pensamento, por enquanto, essa tivesse essencialmente a ver com a actividade agrícola. Anos depois, já noutro contexto, e com contornos diferentes, Ferreira Dias encetaria uma cruzada que teria o seu momento alto com a aprovação da lei da Electrificação do País, em 1944, tendo como pressuposto o desenvolvimento da hidroelectricidade. Na verdade, embora recentes em Portugal, as primeiras experiências de aproveitamento das quedas de água para a produção de electricidade, permitiam que se projectassem os melhores cenários relativamente ao abastecimento do País. Aliás, Braga já era iluminada a partir do aproveitamento das águas do Cávado pela Sociedade Eléctrica do Norte de Portugal e o aproveitamento hidróeléctrico da Serra da Estrela estava na ordem do dia, tendo-se constituído a Empresa Hidroeléctrica da Serra da Estrela e iniciado a construção da Central do Desterro em 1909. Em breve, também, União Eléctrica Portuguesa (constituída 6 António José Telo, "A busca frustrada do desenvolvimento", in Portugal Contemporâneo, Vol. III, 1910-1926, Dir. António Reis, Publicações Alfa, Lisboa, 1990, p. 123. 7 em 1919) passaria a distribuir a energia produzida na hidro-eléctrica do Lindoso onde a Electra del Lima, fundada em 1908, construíra uma central que dispunha de três turboalternadores com a potência total de 40 000 CV. Sob o signo da I Guerra, entrecruzado por crises e perturbações nacionais e internacionais afectando quer a Metrópole quer as colónias nos diversos sectores de actividade, defrontado com o crescimento da contestação operária, o período republicano conheceu, apesar de tudo, momentos em que ocorreram desenvolvimentos interessantes no sector produtivo nacional. Assinale-se, portanto, a importância da I Grande Guerra, embora os seus efeitos tenham sido desiguais e contraditórios para os diversos ramos de actividade. Particularmente, a indústria extractiva conheceu um desenvolvimento interessante à sombra da Guerra, conseguindo exportar minérios raros que em condições normais assumiam preços de exploração não compensatórios. Desde logo, a intensificação da actividade das minas portuguesas durante o período, face à nova conjuntura e à incapacidade manifesta do serviço de minas tal como estava montado em corresponder às novas exigências suscitadas por essa uma acrescida actividade mineira, conduziu Bernardino Machado à promulgação da Lei nº 677 destinada a regulamentar o exercício da exploração de minas7. Novas alterações de carácter administrativo sucederiam sob o sidonismo. Sidónio Pais que, depois de algumas medidas de aliciamento, acabaria preterindo o sector industrial na preferência que confere ao sector agrícola, acabando por beneficiar apenas aquelas indústrias mais directamente ligadas à agricultura. Não apenas as químicas, mas também as que vinham produzindo equipamento para os campos. Além do incentivo intrínseco ao sector mineiro, este súbito crescimento da indústria extractiva, acompanhado do desaparecimento da concorrência internacional, contribuiu para o desenvolvimento da metalurgia e metalomecânica que figura entre os sectores que de facto ganharam, pelo menos momentaneamente, com a Guerra. Não obstante as debilidades intrínsecas à estrutura oficinal do sector, a sua fraca competitividade – até porque a industrialização falhava em potenciar a produção de equipamento - e a vulneralibilidade à concorrência estrangeira, as metalúrgicas, ultrapassadas as dificuldades resultantes dos déficites de fornecimento e que se fizeram sentir com maior acuidade nos períodos inicial e final da Guerra, e vivido o dinamismo que entremeou esses dois momentos (de que é testemunho a fusão, em 1915, da Vulcano com a Colares), é no período do pós-guerra que vão entrar num ciclo de crescimento e expansão nomeadamente protagonizado por empresas como a a própria Vulcano & Colares, Duarte Ferreira, a Fundição de Construções Mecânicas de Oeiras ou a Oliveira, Filhos & C.ª. Note-se como no pós-guerra, com a pesada herança financeira da Guerra e do sidonismo, o Partido Democrático no poder assumiu uma política inflacionista que acabará por favorer um surto industrial beneficiário da liquidez que a guerra propiciara, das medidas proteccionistas e de desvalorização da moeda implementadas. Mas o debate prosseguia, entre aqueles que apontavam o desenvolvimento da indústria e os que vinham defendendo a via da agricultura e que insistentemente denunciavam os perigos da industrialização. Ou, na prosa de Anselmo de Andrade: “quando entre nós se promove à toa o desenvolvimento de algumas indústrias de êxito mais que duvidoso, fazendo desviar do campo para as cidades populações trabalhadoras, corre-se o risco de colher apenas o arrependimento. Faz-se um grande mal ao País em procurar transformar em fabril uma indústria que verdadeiramente só 7 Lei nº 677, Diário do Governo, nº 57, I Série, de 13 de Abril de 1917. 8 pode ser agrícola, e preparam-se acaso para o futuro crises industriais, que não têm por certo tão fácil e pronto remédio como as agrárias”8. E escreve, evocando as ideias de Ezequiel de Campos – “O senhor Ezequiel de Campos (...) escreve que se poderá obter energia hidroeléctrica para todo o terreno português” – “onde a hulha branca é ainda um problema, as indústrias só podem medrar à sombra de protecções caras”9. De resto, “É a agricultura a nossa legítima função de trabalho. (...) É perigoso erro económico fazer a industrialização de um país quando lhe faltam as apropriadas condições.”10 O ímpeto industrial, assumido sem convicção ou futuro, é certo, seria de pouca dura. O desconforto aumenta, não só entre os mais ligados aos sectores da agricultura e do comércio, também junto daqueles que vêem os seus magros salários esmagados pela inflação. Quanto à deflagração da crise, Anselmo de Andrade, tinha afinal razão, mas porventura pelas razões erradas. A crise de contornos internacionais de 1921, o agravamento do deficit orçamental e o seu aproveitamento político, os limitados pressupostos em que vinha assentando o próprio desenvolvimento da indústria que cresce virada para dentro e sem que, teimosamente, aceite modernizar-se, ditariam o fim do ciclo. A crise bancária e a crise colonial de 1923, a falta de crédito e, já em 1924, a valorização do escudo, fariam o resto. A partir de 1924, o programa económico radical, à procura do equilíbrio das contas e da estabilidade do escudo, fracassaria nos seus propósitos agravando o mal-estar de um sector industrial que vive uma crise em parte provocada pelo ambiente que criara a sua própria prosperidade. A tudo isto, não era certamente estranho o eterno problema da exiguidade do mercado nacional e da dificuldade em competir nos externos ou, afinal, a questão essencial do atraso económico português. Ezequiel de Campos publicava então, em co-autoria com Quirino de Jesus, A Crise Portuguesa. Subsídios para a Política de Reorganização Nacional. Não esquecendo a agricultura “como labor primário”, apela para a necessidade da “electricidade abundante e barata. E a electricidade nestas condições provocará a introdução de outras indústrias fundamentais11. Genericamente, as propostas mais arrojadas em relação a um desenvolvimento assente na modernização/industrialização da actividade económica nacional ficariam por concretizar. As vocações e as opções não passavam por aí; mesmo que o progresso industrial tenha composto o sonho de alguns políticos, a constante ameaça do estrangulamento financeiro que comprometia as contas do Estado e derrubava governos, inviabilizava os apoios do Estado - embora tenha sido vivo o debate e tenha ficado clara a contradição entre aqueles que conduziam a política do País apostados na promoção do equilíbrio das contas e numa política de contracção e os outros que defendiam a condução de uma política de déficit orçamental, convictos dos seus efeitos estimulantes para a economia nacional. De qualquer forma, a instabilidade política determinava a impossibilidade da concretização das 8 Anselmo de Andrade, Portugal Económico. Theorias e Factos, Nova edição em dois tomos, Coimbra, 1918, p. 342. 9 Idem, p. 342. 10 Idem, pp. 343-344. 11 Quirino de Jesus e Ezequiel de Campos, A Crise Portuguesa. Subsídios para a Política de Reorganização Nacional, Porto, 1923, p. 123. Trabalho reeditado recentemente em Ezequiel de Campos, Textos de Economia e Política Agrária e Industrial, 1918-1944, Introdução e direcção de Fernando Rosas, Banco de Portugal, Lisboa, 1998. 9 orientações económicas que se pretendiam imprimir, muitas vezes, aliás desajustadas e condenadas pelas imposições que representavam para o seu suporte social. Para trás, ficaram perdidas as convicções de Azeredo Perdigão, que em 1916 procurava rebater os argumentos de Anselmo de Andrade e que visionava um Portugal apostado no fomento industrial12 e o plano de desenvolvimento industrial assente na intervenção do Estado através de uma política de crédito, de desenvolvimento das infra-estruturas, de formação técnico-profissional e de proteccionismo aduaneiro gizado por Geraldo Coelho de Jesus13. Também este autor avalia recursos e aponta para a possibilidade do “aproveitamento das quedas de água” como “factor de maior importância no nosso desenvolvimento industrial”. Sempre presente, o problema da produção da hidroelectricidade contava já com várias empresas: valendo a pena destacar a constituição, nesta fase, da Companhia Electro-Hidráulica de Portugal (1918) e a Hidro-Eléctrica Alto Alentejo (1925). Logo a seguir, em 1926, seria publicado o decreto nº 12 599 promulgando a lei dos aproveitamentos hidráulicos.14 Além dos aproveitamentos ligados à produção de electricidade em curso, uma referência a dois dos sectores mais dinâmicos da actividade económica industrial no período: a inauguração (em 1923) do primeiro forno rotativo moderno, com uma capacidade de produção de 220 ton/dia, na Empresa de Cimentos de Leiria, de Henrique Sommer, e, em 1926, a constituição da Sapec, sociedade de capitais belgas, que explorava as pirites alentejanas das minas do Lousal para produzir ácido sulfúrico e superfosfatos na sua fábrica de Setúbal; recordando, claro, a intensa actividade que a CUF continua a desenvolver, prosseguindo uma estratégia de diversificação de actividades que dentro de poucos anos estenderia a acção da Companhia a grande número de sectores de actividade (fiação, texteis, cordoaria, óleos e azeites, moagem...), dispondo de instalações comerciais e fabris espalhadas por quase todo o território nacional15 e constituindo-se como o maior empregador privado de engenheiros do País. A Ditadura Militar e a implantação do Estado Novo Em 1926 fecha-se um ciclo. O golpe de 28 de Maio, comandado pelo general Gomes da Costa, dava início a um período de Ditadura Militar que veria o seu termo com a institucionalização do Estado Novo em 1933. Com a saída da cena política de Gomes da Costa e de Mendes Cabeçadas, emerge a figura do general Carmona, eleito Presidente da República em 25 de Março de 1928 que se apressa a chamar para o Governo Oliveira Salazar. A Ditadura Financeira, o êxito conseguido por este em termos do reequilíbrio financeiro e a sucessiva eliminação política dos seus principais adversários, conduzem Salazar (em Julho de 1932) à Presidência do Ministério. A ambiguidade dos primórdios da Ditadura vai-se gradualmente diluindo. O já histórico dirigente do sector católico conservador vai moldando e lançando as bases do novo regime que sob a égide da fórmula corporativa se vê formalmente legitimado e constitucionalizado em 1933. 12 José Henrique de Azeredo Perdigão, “A indústria em Portugal (notas para um inquérito)”, in Arquivos da Universidade de Lisboa, vol. III, Lisboa, 1916, pp. 5-192. 13 Geraldo Coelho de Jesus, Bases para um Plano Industrial, 1919, p. XVI. 14 Decreto nº 12 599, de 27 de Outubro de 1926. 15 Cf. Maria Fernanda Rollo, «Le “Grand Industriel” Alfredo da Silva», Biographies. Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, vol. XXXIX, Paris, 2000. 10 É certo que o impacto e as consequências da crise de 1929 foram tardias e, de certo modo mitigadas, em Portugal, Desde logo porque a própria arquitectura financeira e monetária laboriosamente cersida por Salazar constituíram um amortecedor aos efeitos da crise, mas porque a fraca internacionalização da economia portuguesa assim o proporcionava. No entanto, foi o suficiente para que se instalasse um certo mal-estar. Não apenas porque o aumento do nível do desemprego e outros indicadores assim o determinavam (diminuição de rendimentos e juros de capitias colocados no estrangeiro, baixa da cotação dos produtos de exportação e quebra das remessas dos emigrantes), mas, também, porque confrontada com a realidade da economia nacional, ganha terreno a angustiante consciência e denúncia do atraso nacional, sobretudo industrial. Ou, noutra formulação, aproveitando a oportunidade que o momento político de certa forma oferecia num curto espaço de tempo foi possível aos portadores dessa proposta industrializante do País, acreditar que era chegado o momento de assistir ao arranque auto-sustentado da economia portuguesa, viabilizado pelo motor industrial. Além disso, o novo contexto internacional de contracção dos mercados e de crescente proteccionismo foi conducente a uma mais intensa exploração dos recursos nacionais. Tudo se conjugava no sentido de completar um quadro de propaganda nacionalista do estado progressivo da indústria, concorrendo para a teorização formal da política desenvolvimentista baseada na indústria que vinha crescendo nos meios industriais desde os finais da década de vinte. Embora a intenção não fosse historicamente inédita, recorde-se que ela beneficia do espaço de tempo que medeia entre o 28 de Maio e a formulação e consolidação das bases orgânicas e corporativas da economia e da sociedade portuguesas. Trata-se, de facto, de um período caracterizado por alguma indefinição, por parte do poder estatal, no que respeita às directizes que hão-de presidir à condução do futuro económico do país. De facto, nos anos 30 assiste-se à tentativa de afirmação de dois grupos sociais em termos de definição e orientação da linha de desenvolvimento económico do País. Quer engenheiros, quer industriais, consideram-se como os portadores das virtualidades que hãode viabilizar a reconstrução e ressurgimento económico de Portugal através do seu desenvolvimento industrial.16 Reivindicando a parcela do poder de que se julgam credores, eles parecem acreditar que vão desempenhar um papel determinante na definição e condução da política económica do País convictos de que as suas ideias e habilitações bem como as directrizes e projectos que preconizam são passíveis de aceitação e realização mediante o consentimento e a participação do Governo. Foram eles os responsáveis pelo despertar de uma ideologia produtivista, voluntarista, industrializante, nacionalista, geradora de um modelo de desenvolvimento económico centrado no crescimento industrial, cuja possibilidade residia nas capacidades em recursos materiais do País e nas potencialidades industrializantes dos homens. 17 Procuraram então, recorrendo à realização de iniciativas destinadas a trazer à discussão pública a realidade e o futuro da economia nacional, formular as bases para um projecto de 16 Vd. sobre este tema os trabalhos de J. M. Brandão de Brito, em particular, "Os Engenheiros e o Pensamento Económico do Estado Novo" in A.A.V.V. - Contribuições para a História do Pensamento Económico em Portugal, "Universidade Moderna, 84", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988, pp. 211-234 e A Industrialização Portuguesa no Pós-Guerra (1948-1965). O Condicionamento Industrial, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1989. 17 Idem. 11 política industrial, propondo as medidas conducentes a um verdadeiro processo acelerado de industrialização, definindo quer a sua própria actuação quer o papel que o Estado haveria de desempenhar nesse processo. Tudo ficou essencialmente consagrado no I Congresso Nacional de Engenharia (1931)18 e no I Congresso da Indústria Portuguesa (1933)19. É sabido como não lograram ver cumpridas as suas ambições nem realizados os seus projectos. Todavia, não tendo podido impor a realização do seu programa de desenvolvimento industrial e económico, pelo menos, e durante um curto período desenvolveram a sua formulação, exploraram possibilidades e alimentaram a polémica. A realidade das orientações políticas sobrepunha-se. Num quadro em que progressivamente se clarificavam as intenções do novo regime no que diz respeito ao futuro do País, a resposta dada por Salazar aos industriais e engenheiros mais ousados era clara. Tome-se como exemplo a resposta que deu aos industriais reunidos no seu I Congresso em Lisboa, em 1933: segui com o maior interesse as teses apresentadas (...). Há, certamente, entra elas algumas que podem chamar-se ambiciosas, programas vastos de mais para um futuro imediato, que passam além das possibilidades do momento (...)20. Nas palavras de Brandão de Brito, “A contraproposta de Salazar às exigências e apelos que os empresários faziam ao Governo era a seguinte: o Estado reserva para si as tarefas de sanear a moeda, de embaratecer o crédito, de unificar o mercado interno, de reabilitar o País nos mercados externos, de reduzir os custos do capital e do trabalho, de disciplinar a sociedade; aos industriais compete saber aproveitar as condições criadas sem porém, andar depressa de mais”.21 As prioridades tornar-se-iam evidentes, subordinadas, claro, às preferências e orientações que o Dr. Oliveira Salazar definia para o País e para a sua actividade económica. De qualquer forma, encontrada a estabilidade política e financeira, estavam criadas as condições internas e externas para o estabelecimento de um período durante o qual algumas iniciativas económicas, públicas e privadas, viriam encontrar terreno para surgir e prosperar. Em síntese, como refere Fernando Rosas, num “quadro basicamente determinado pelo objectivo central da estabilidade e do equilíbrio económico, social e político”, o “modelo económico”, se é que assim lhe podemos chamar, desta fase inicial do Estado Novo, definiu-se “dentro das seguintes balizas fundamentais: a busca da autarcia (…) o nacionalismo económico (…) o intervencionismo económico do Estado.”22 Foi com este cenário de base, e tendo presente a institucionalização das bases orgânicas e corporativas da economia e da sociedade portuguesas, que se deu expressão a uma política de realizações infraestruturias particularmente visível nas obras portuárias, na expansão da rede rodoviária e na construção de edifícios de carácter público, que traduzem bem a importância que estas despesas assumiram nas contas públicas. 18 1º Congresso Nacional de Engenharia, Lisboa 1931. Relatório, Imprensa Libanio da Silva, Lisboa, 1931. 19 I Congresso da Indústria Portuguesa. Indústria Continental, Lisboa, de 8 a 15 de Outubro de 1933, Associação Industrial Portuguesa, Lisboa, 1933. 20 Oliveira Salazar, “A acção governativa e a produção industrial”, in Discursos, Vol. I 1928-1934, Coimbra Editora, 4ª ed., 1961, p. 252. 21 J. M. Brandão de Brito, A Industrialização… op.cit., p. 154. 22 Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974). História de Portugal, Sétimo Volume, Dir. José Mattoso, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994, p. 251. 12 Na prática, para o País, esta década de 30, são os anos das obras públicas, de um novo «fontismo», de que Duarte Pacheco, quer como ministro das Obras Públicas e Comunicações (1932/36 a 1938/43) quer como presidente da CML (1938-1943), será o principal protagonista. Depois da estabilização e equilíbrio das contas públicas e das reformas financeiras que lhe estiveram associadas, em termos de estratégia e política económicas, o sector das obras públicas parecia ser mesmo o único para o qual existia algo estruturado. Está dado o mote e são criadas as condições para que em Portugal se desenvolvam na área da engenharia civil obras notáveis associadas, especialmente, à construção de edifícios, da rede viária, dos portos e das barragens, acompanhadas pelo desenvolvimento da investigação e do ensino da engenharia no Instituto Superior Técnico (a partir de 1930 integrado, conjuntamente com o Instituto Superior de Agronomia, a Escola Superior de Medicina Veterinária e o Instituto Superior de Comércio na Universidade Técnica de Lisboa), na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e, em breve, no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (criado em 1946, o Laboratório de Engenharia Civil, um organismo vocacionado para a investigação na área da engenharia civil do qual foi primeiro director o o engenheiro Eduardo Arantes e Oliveira, passará, em 1952, a designar-se Laboratório Nacional de Engenharia Civil). É evidente neste contexto o carácter determinante do programa de obras públicas do Estado Novo relativamente ao desenvolvimento da engenharia civil nacional, e como esta, cativa das orientações e preferências da administração pública, se desenvolverá tendo atingido nalgumas áreas uma excelência reconhecida internacionalmente. A lei nº 1914, de Reconstituição Económica23, executável para um período de 15 anos, que mais não era do que “um cálculo de disponibilidades financeiras e uma lista de prioridades para a sua aplicação”24, defraudando as expectativas dos que desejavam ver formulado e implementado um programa de desenvolvimento económico, viria dar um enquadramento global e continuidade aos empreendimentos em curso, definindo a aposta em três sectores principais – defesa, fomento e colónias. Dentro do fomento passam a integrar-se a execução do plano portuário e as estradas, que vão representar a maior fatia em termos de despesas. O primeiro Plano de Portos, lançado em 1929, vinha determinar a realização de grandes obras nos portos de Lisboa e Leixões (sucedendo-se, em ambos, novos planos específicos), e intervenções de construção ou melhoramentos nos portos de Viana do Castelo, Póvoa de Varzim, Aveiro, Figueira da Foz, Peniche, Setúbal, Vila Real de Santo António, Funchal e Ponta Delgada. No final da década de 40, o Estado empreenderá ainda um esforço de investimento nos portos de Aveiro, Portimão, Faro, Figueira da Foz e Setúbal. Associado à actividade portuária, a construção naval conhece também um impulso nesta primeira fase do Estado Novo. Por um lado, a CUF, que já se iniciara na actividade nas suas instalações do Barreiro, concorre em 1936 ao arrendamento do Estaleiro Naval do Estado, passando a explorar as oficinas e as docas do Porto de Lisboa. Por decreto de 15 de Dezembro de 1936 Alfredo da Silva entrava no ramo da construção naval e no ano seguinte já estavam em construção no estaleiro naval da CUF os bacalhoeiros Creoula e Santa Maria 23 Lei nº 1914, de Reconstituição Económica, de 24 de Maio de 1935. Ana Bela Nunes e Nuno Valério, "A Lei de Reconstituição Económica e a sua execução - um exemplo dos projectos e realizações do Estado Novo" in Estudos de Economia, Vol. III, No. 3, Abril-Junho, 1983, p. 336. 13 24 Manuela25. Nos anos seguintes seriam levadas a cabo obras significativas de modernização nos estaleiros da Rocha Conde de Óbidos. Antes de 1936 os Estaleiros da Rocha estavam arrendados à Sociedade de Construções e Reparações Navais, a quem o Estado encomendou a construção de cinco contratorpedeiros. Concretizando o programa de reequipamento da sua Marinha de Guerra o Estado Novo encomendara também, mas ao Arsenal do Alfeite, um conjunto de vasos de guerra. Será mais tarde, e com a participação da CUF, já nos anos 60, que a actividade da reparação naval assumirá uma posição de maior destaque, na sequência da constituição da Lisnave, que concluirá a construção da maior doca seca do mundo nos seus estaleiros da Margueira em 1967, e da constituição da Setenave em Setúbal em 1971. Regressando aos anos 30 e às obras públicas, deve destacar-se a acção fundamental a desenvolvida pela Junta Autónoma das Estradas. Criada em 1927, viria renovar a rede viária do País e elevar a sua extensão, no expresso intuito de melhorar as acessibilidades internas e externas. Quando, em 1945, é aprovado o Plano Rodoviário Nacional, a rede de estradas nacionais atingia cerca de 17 000 km. O plano hierarquizava a rede nacional de estradas em três grandes classes (1ª, 2ª e 3ª classe; estradas municipais e caminhos públicos) e apontava para um aumento da extensão total da rede viária até que se atingissem cerca de 59 mil quilómetros. Cumpriu-se o plano no respeitante às estradas nacionais de 1ª e de 2ª. Ficando as restantes aquém do previsto em cerca de 20 a 30%. Em Lisboa, sob a égide de Duarte Pacheco, cumpriam-se entretanto algumas obras fundamentais nesse domínio sendo de nomear a Estrada Marginal (1937), a Auto-Estrada (1944) que ligava a cidade ao Estádio Nacional (cuja recente construção se integrava no programa de infraestruturas promovido pelo Estado Novo) e, claro, o Viaduto de Alcântara (1944) ou viaduto Duarte Pacheco, homenagem ao grande impulsionador destas obras que em 1943 morria num desastre de automóvel. Promovera-se, entretanto, com fausto, a celebração do regime, com a Grande Exposição do Mundo Português em 1940; aproximava-se o fecho deste ciclo das construções monumentais que a Exposição de Obras Públicas (comemorando 15 anos de obras públicas), realizada no IST em 1948 vinha consagrar. Será já noutro contexto e contando com novos desenvolvimentos na área dos materiais e das técnicas de construção, que em 1961 é aberto o troço Lisboa-Vila Franca de Xira, primeira conquista da auto-estrada que ligaria as duas principais cidades do País. Não passariam mais de dois anos para que no Porto (1963) se abrisse à circulação a Ponte da Arrábida, criação de Edgar Cardoso, incorporando um dos maiores arcos de betão do mundo. Edgar Cardoso foi, aliás, autor de centenas de pontes e de outras estruturas especiais, em Portugal e colónias e no estrangeiro, destacando-se pelo trabalho genial e ousado, parte resultante da introdução de inovações no estudo e cálculo de estruturas complexas e da aposta na investigação experimental e laboratorial como fundamentos da engenharia moderna. Em 1959-1960, Edgar Cardoso coordenou o grupo de especialistas portugueses reunido para a apreciação do concurso internacional para a travessia do Tejo entre Lisboa e Almada. A proposta vencedora, diferente da “solução nacional” preconizada por Edgar Cardoso26, foi a apresentada pela United States Steel Company - as obras 25 Cf. Maria Fernanda Rollo, «Le “Grand Industriel” …, arti. cit.. Vd. o catálogo da exposição Edgar Cardoso 1913-2000, editado por António de Carvalho Quintela e Jorge Miguel Proença, Fundação Edgar Cardoso – Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura, IST, 2001, p. 23. 14 26 começaram em 1962. Em 1966, numa cerimónia de pompa e circunstância, foi por fim inaugurada a Ponte Salazar – concretizava-se aquela que foi porventura a última grande obra do regime. Retomando as prioridades do Estado Novo nos anos 30 em termos de política de infraestruturas, e a Lei de Reconstituição Económica, deve ainda referir-se que a rubrica que absorveu mais verbas nos anos trinta, seguindo-se às acima enunciadas, foi a agricultura, tendo sobretudo a ver com os gastos nas obras de hidráulica agrícola. Na verdade, as preferências do Estado Novo em termos sectoriais ficam, também por esta via, visíveis na promoção dos trabalhos de hidráulica. Com a entrada de Rafael Duque27 para o Governo, sobraçando a pasta da Agricultura, é accionado um conjunto de medidas, procurando dar corpo às ideias ‘neofisiocráticas’ por ele perfilhadas e que encontravam a sua inspiração nas propostas que Oliveira Martins em tempos advogara e que acima referimos. É com esse enquadramento que em 1935 promove a reorganização da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola, cuja criação recuava a 1930. A Junta é incumbida de conceber um plano de trabalhos que, concluído, vem a ser integrado na lei de Reconstituição Económica. Mais tarde, o plano é revisto e transposto para diploma legal pela Lei nº 1949, promulgada em 15 de Fevereiro de 1937, que determina ser da competência do Estado estudar e realizar obras de fomento hidroagrícola. No ano seguinte é então instituído o Plano de Obras de Hidráulica Agrícola, compreendendo vinte projectos (dos quais oito já estavam em construção) e a rega de 106 mil hectares. Em consequência, são accionados vários empreendimentos, devendo realçar-se, nesta fase, as obras dos vales do Sado e do Sorraia e da Campina da Idanha. Será já nos anos 60 que é lançado um programa mais ambicioso, e controverso: o Plano de Rega do Alentejo, cuja primeira fase se inicia em 1963 com os aproveitamentos do Mira, Caia, Roxo, Dívor. Por junto o Plano previa a rega de 162 mil hectares através da realização de seis grandes obras (além das quatro referidas, Alto do Sado e Odivelas), para serviço dos quais se planeia, ainda no final da década de 60, a construção da barragem do Alqueva. 28 No âmbito do conjunto das iniciativas mais relevantes em que o Estado intervém nos anos trinta e que envolveram a participação mais evidente da engenharia nacional deve ainda referir-se o que teve a ver com o desenvolvimento do sector mineiro. De acordo com a lógica que regera a definição dos princípios mais gerais estabelecidos para a condução da economia nacional, o Estado Novo actua sobre a indústria mineira mediante a promulgação de legislação destinada a proteger a indústria mineira nacional e através da reformulação da organização da estrutura administrativa da actividade, com a concomitante preocupação de promover o conhecimento e aproveitamento dos recursos minerais existentes no País - uma etapa aquém da aspiração daqueles que vinham apontando o aproveitamento dos recursos naturais do País como constituindo, também, um passo na construção do almejado Portugal industrial. Entre a série dos diplomas legais que se sucederam neste período destinados a regular a indústria mineira, são de realçar o decreto-lei nº 18 713 de 1 de Agosto de 1930 – estabelecendo as disposições fundamentais sobre as minas da Metrópole (conhecida por Lei 27 Vd. Fernando Rosas, “Rafael Duque e a política agrária do Estado Novo (1934-1944), in Análise Social, vol. XXVI (nºs 112-113), 1991. 28 Vd. sobre o tema os trabalhos de Fernando Oliveira Baptista, nomeadamente, A Política Agrária do Estado Novo, "Colecção Textos, 22", Afrontamento, Porto, 1993 e “Hidráulica Agrícola” in Dicionário de História do Estado Novo, Círculo de Leitores, vol. I, pp. 423-425. 15 Geral de Minas)29, decreto-lei 22 788 de 29 de Junho de 1933 – criando o Instituto Português de Combustíveis30, e, em 28 de Junho de 1939, o decreto-Lei nº 29 725 – ‘Lei do Fomento Mineiro’31. Será, de facto, só depois da entrada em vigor da Lei do Fomento Mineiro que, criando o Fundo de Fomento Mineiro (adstrito à Direcção Geral de Minas), se dará início ao estudo das existências de minérios no País. A partir da criação deste Serviço promoveu-se o reconhecimento sistemático das disponibilidades e das possibilidades mineiras portuguesas, quer geral quer particularmente em relação a cada jazigo, abrindo-se neste campo novas possibilidades ao desenvolvimento da actividade da engenharia de minas e consequentemente a oferta de trabalho para muitos engenheiros formados nas duas escolas nacionais IST e FEUP. De resto, o sector mantinha-se fortemente dependente da instabilidade da procura internacional, tendo conhecido booms espectaculares nas conjunturas de guerra nalguns minérios específicos, sobretudo os destinados à exportação, como o volfrâmio. De referir que, praticamente até aos 50, eram poucas as minas que mantinham uma exploração constante e rentável; na verdade, a caracterização do sector passava mais pela multiplicidade de pequenas minas, sendo que muitas só eram exploradas em condições propícias de empolamento da procura, praticando técnicas tradicionais de extracção, contando com uma mão-de-obra numerosa mas sem qualificação, pautando-se em boa medida pela ausência de técnicos de geologia ou engenheiros de minas. A guerra e o pós-guerra vieram de certa forma alterar esta situação. Por um lado, assistimos a um crescente interesse pelas riquezas minerais, particularmente as das colónias (até por concorrência e pressão externa), a que acresce o esforço de desenvolvimento industrial do País a partir dos anos 50. Nesse quadro, o sector beneficia para a sua modernização dos estímulos propiciados pelo Plano Marshall e pelos planos de fomento, permitindo que engenheiros da especialidade atingissem uma reputação internacional, sobretudo na sequência das actividades promovidas nas colónias. A modernização e o aproveitamento industrial da produção do sector extractivo, derivou sobretudo da iniciativa dos agentes privados e das novas realidades emergentes no tecido industrial português no seio do qual a capacidade científica e tecnológica dos engenheiros ao nível do aproveitamento industrial dos minérios conheceu maior expressão. Neste universo, talvez o caso mais emblemático, no período anterior ao 25 de Abril, tenha tido a ver com a actividade da CUF. A viragem da Guerra Os anos da Guerra – e do imediato pós-Guerra – envolveram alterações profundas na sociedade e na economia portuguesas que encerrando, é certo, acentuados descontentamentos e desequilíbrios, permitiriam a possibilidade de o País encetar um processo de desenvolvimento económico e social, comungando do clima de prosperidade que marcou a conjuntura internacional nas duas décadas seguintes. Para Portugal iniciar-se-ia um ciclo de desenvolvimento, incorporando mudanças estruturais, não obstante os poderosos factores sociais e políticos de resistência que, subsistindo, acabariam por condicionar negativamente o ritmo e o alcance das transformações modernizadoras. Desde logo, a eclosão da II Guerra Mundial vinha alterar a situação em que se ia processando “o rumo e o ritmo” da política económica portuguesa: ou seja, o processo que vinha decorrendo nos anos 30 como que sofre uma interrupção onde numa primeira fase se 29 Decreto-lei nº 18 713, Diário do Governo, nº 177, I Série, de 1 de Agosto de 1930. Decreto-lei nº 22 788, Diário do Governo, nº 144, I Série, de 29 de Junho de 1933. 31 Decreto-lei nº 29 725, Diário do Governo, nº 149, I Série, de 28 de Junho de 1939. 30 16 nota prudência e contenção (o País deverá “manter na medida do possível a normalidade existente”32), para depois se traduzir num importante salto qualitativo – durante a Guerra e pela conquista do mercado interno por alguns sectores industriais até então com a expansão limitada pelo poder e interesses do lobi do comércio importador (alimentação, texteis, minerais não metálicos, metalurgia e metalomecâmica)33 e posteriormente pelo arranque formal processo de industrialização em grande parte devido à doutrinação e ao trabalho legislativo de Ferreira Dias (a quem se ficaram a dever as Leis nº 2002 e 2005, respectivamente, da Electrificação do País e do Fomento e Reorganização Industrial, aprovadas em 1944 e 1945). Na verdade, “a guerra constituiu a razão maior e propiciou a oportunidade para se procurar (...) obviar as fragilidades reveladas pela economia portuguesa, nomeadamente no que se refere ao seu aparelho produtivo industrial”34. E, na ocasião, até o Presidente do Conselho o reconhece: “Devo dizer em abono da verdade que as maiores dificuldades têm provindo da nossa insuficiência industrial ...”35. Claro que estas palavras perdidas no discurso do 7º aniversário da tomada de posse como ministro da Guerra, não significavam que a sua visão relativamente aos princípios e à conduta económica que vinham e deveriam continuar a presidir aos destinos económicos do País se tivesse alterado, mas, a verdade é que a realidade era superior a esse enunciado e, que, embora ainda de forma pouco convicta, aceita, num reconhecimento de necessidade, as propostas industrialistas que em breve serão aprovadas. Foi precisamente durante a II Guerra Mundial que a questão sucessivamente evocada da produção eléctrica encontrou finalmente um desfecho promissor que muito se deve ao então subsecretário de Estado do Comércio e Indústria, José Nascimento Ferreira Dias Júnior36, engenheiro electrotécnico e mecânico pelo Instituto Superior Técnico, que concebeu o que viria a ser a lei nº 2002, da Electrificação do País, promulgada em 26 de Dezembro de 194437. Na proposta de apresentação da lei38 estavam bem claros os propósitos que a orientavam, pressentindo-se quão amadurecidas estavam as ideias de Ferreira Dias nestas matérias. Saliente-se como a electrificação é apresentada como uma condição fundamental para o 32 António de Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas, vol. IV 1943-1950, Coimbra Editora, p. 6. 33 Cf. sobre a questão da Guerra e a sua influência na economia portuguesa Francisco Pereira de Moura, Por Onde Vai a Economia Portuguesa?, Lisboa, 1969; J. M. Brandão de Brito, A Industrialização… op. cit.; Fernando Rosas, Portugal entre a Paz e a Guerra. Estudo do Impacte da II Guerra Mundial na Economia e na Sociedade Portuguesas (1939-1945), Lisboa, Estampa, 1990. 34 Maria Fernanda Rollo em “A industrialização em Portugal no pós-guerra (1947-1973)” in J. M. Brandão de Brito e Maria Fernanda Rollo “Indústria / Industrialização”, Dicionário de História do Estado Novo, vol. I, Dir. Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito, Círculo de Leitores, 1996, p. 466. 35 António de Oliveira Salazar, op. cit., p. 6. 36 Vd. sobre Ferreira Dias e as suas principais publicações J. N. Ferreira Dias Jr., Linha de Rumo I e II e Outros Escritos Económicos, 1926-1962, 3 vols., Coord. J. M. Brandão de Brito, Banco de Portugal, 37 Lei nº 2002, da Electrificação do País, Diário do Governo, I Série, 26 de Dezembro de 1944. Vd. transcrição da lei na obra supra-citada. 38 “Proposta de lei acerca da electrificação do País”, in Diário das Sessões, nº 79, de 24 de Outubro de 1944. Vd. transcrição na obra supra-citada. 17 processo de modernização/industrialização do País e como se define o conceito de rede eléctrica nacional (que fora o tema, aliás, da comunicação apresentada ao I Congresso da Engenharia) partindo sempre do princípio de que a produção de electricidade “terá de ser de origem hidráulica devendo as centrais térmicas reservar-se para funções complementares, nomeadamente durante o Verão, para aproveitar os carvões pobres de origem nacional”39. Depois de longas sessões de discusão, a lei acabaria por ser aprovada e promulgada, estando já Ferreira Dias fora do Governo. Mas a electrificação do País estava em marcha, definido o seu quadro legal, que consagrava a centralização da produção de energia e a preferência pela hidroelectricidade, a obra era assumida inequivocamente como um empreendimento da responsabilidade do Estado. Sinteticamente, devemos referir que nos anos seguintes se constituem as empresas que assegurariam os futuros aproveitamentos hidroeléctricos: logo em 1945 a Companhia Hidro-Eléctrica do Cávado e a Companhia Hidro-Eléctrica do Zêzere e, um pouco mais tarde, em 1953, a Companhia Hidro-Eléctrica do Douro. Entretanto, em 1947, era constituída a Companhia Nacional de Electricidade40, cujo presidente era o próprio Ferreira Dias, e que tinha por objectivo “o estabelecimento e a exploração de linhas de transporte e subestações destinadas ao fornecimento de energia eléctrica aos concessionários da grande distribuição ou aos consumidores cujo abastecimento directo se justifique nos termos da base XIII da Lei nº 2002 [consideravam-se nomeadamente as indústrias electroquímicas, electrometalúrgicas, tracção eléctrica e grandes planos de rega41], bem como à interligação dos sistemas do Cávado e do Zêzere, entre si e com os sistemas existentes”42. Concretizava-se assim a realização de mais uma peça, e importante, da construção da Rede Eléctrica Nacional (REN), no quadro do definido e previsto na Lei nº 2002, da Electrificação do País43 e como corolário lógico das primeiras duas peças da REN, ou seja, dos aproveitamentos do hidroeléctricos do Zêzere e do Cávado. Significam estes eventos, que embora a primeira referência legal a uma rede eléctrica nacional remontasse já aos anos 20 só na década de 40 se vem, realmente, a constituir a Rede Eléctrica Nacional e surge a preocupação em falar de uma rede primária com o significado de electrificação nacional. Dez anos passados Ferreira Dias referir-se-ia neste termos à CNE: “Essa obra é porventura mais vasta do que o deixa perceber o seu conteúdo visível; para além dos postes, dos transformadores ou dos diagramas de carga, há uma tentativa de doutrina, que frutifica mal porque o vento a näo ajuda, mas que segue serenamente - täo serenamente quanto pode - o seu propósito de unidade, de civismo, de perfeiçäo e até, talvez, de desinteresse. A Companhia Nacional de Electricidade é o polícia sinaleiro da electricidade portuguesa. Mas é polícia em dia de chuva sem capa de borracha; é polícia a governar um trânsito que näo tem código da estrada; é polícia a braços com uma multidäo que ainda näo sabe exactamente se a luz encarnada é sinal de parar ou andar.”44 39 Vd. J.M. Brandão de Brito, “Lei nº 2002, da Electrificação do País, in Dicionário de História do Estado Novo, op. cit. p. 515-516. 40 Vd. Maria Fernanda Rollo e J. M. Brandão de Brito, “Ferreira Dias e a constituição da Companhia Nacional de Electricidade”, Análise Social, nº 136/137, 1996, pp. 343-354. 41 Companhia Nacional de Electricidade, Lisboa, 1957. 42 Decreto nº 36.286, de 17 de Maio de 1947. 43 Lei nº 2002, da Electrificação do País, Diário do Governo, I Série, 26 de Dezembro de 1944. 44 Arquivo Ferreira Dias Júnior, Discurso no almoço oferecido pelo pessoal da CNE em 4-5-1957, p.1. 18 A actividade dos anos vindouros demonstra bem o empenho que é conferido ao propósito de produzir energia hidroeléctrica. Os nossos rios passam a estar pontuados por barragens, expressão da excelência de uma engenharia nacional que se especializa e leva a cabo obras de importância e relevo internacional. Ao esforço e obras desenvolvidas não foram certamente estranhos a participação e o apoio que o entretanto criado, e já mencionado, Laboratório Nacional de Engenharia Civil propiciava e a segurança garantida pelo trabalho científico de ensaio de estruturas aí levado a cabo. É pertinente recordar o desempenho e o protagonismo que o engenheiro Manuel Rocha assumiu nesse contexto. Engenheiro civil pelo Instituto Superior Técnico do qual foi professor catedrático a ele se ficou a dever a fundação do Centro de Estudos de Engenharia Civil (IST) que vem a ser integrado no Laboratório de Engenharia Civil (posteriormente LNEC), do qual vem a ser director entre 1954 e 1974. Ao dinamismo e competência que imprimiu ao LNEC se ficou a dever em boa medida o prestígio de que a instituição passou a deter a nível internacional. Estava consagrada a intervenção directa do Estado no sector. Por um lado, os anos do pósguerra assistem à conclusão de importantes barragens especialmente dedicadas ao regadio, por outro, surge um conjunto de grandes barragens destinadas a alimentar centrais de grande potência, concluídas logo na primeira metade dos anos 50 (como Castelo do Bode e Venda Nova, em 1951 e Cabril, em 1954). Em breve, ampliava-se o aproveitamento do sistema Cávado-Rabagão e dava-se início ao aproveitamento do Douro, onde as barragens do Picote (1958) e Miranda e Bemposta, já na primeira metade da década de 60, viriam alimentar centrais subterrâneas de elevada potência, numa altura em que já estava em curso o Plano de Rega do Alentejo que dava origem à construção de mais um conjunto significativo de barragens. O ritmo da construção de barragens prolonga-se por onde os recursos hídricos o justifique, a última que ficou a espensas do Estado Novo foi a do Carrapatelo, inaugurada em 1972. Embora em poucos anos a produção hidroeléctrica tivesse passado a abastecer uma fatia considerável do consumo nacional, estima-se em cerca de 90% no final da década de 60, em breve o aumento da procura exigiria a participação de energia de origem térmica, considerando porém que às centrais térmicas estavam reservadas funções complementares como já foi referido. É nesse contexto que assistimos à constituição, em 1954, da Empresa Termoeléctrica Portuguesa, contado também ela com a participação activa de Ferreira Dias. A Central Termoeléctrica da Tapada do Outeiro foi a primeira a ser inaugurada (1960) queimava carvão das minas de S. Pedro da Cova e do Pejão. Em 1968 é concluída a Central do Carregado, a fuelóleo, embora sendo de produção térmica "base", devia laborar em conjugação com a hidráulica. Formatada a Rede Eléctrica Primária é então constituído, em 1951, para a sua coordenação e interligação com o sector privado, o Repartidor Nacional de Cargas, que geria cerca de 90% da produção energética nacional. Em 1969, é ainda criada a Companhia Portuguesa de Electricidade (incluindo as diversas empresas que constituíam a Rede Eléctrica Primária) com o encargo de prosseguir os programas de construção das hidroeléctricas em curso e das termoeléctricas de "base", quer a fuelóleo (Carregado e Setúbal - a última grande central construída para queimar fuel-óleo; embora o primeiro grupo só tenha entrado em funcionamento em 1979, o início da construção remonta a 1973), quer a carvão importado, cumprindo a estratégia de diversificação de fontes energéticas (onde se destaca Sines, uma central térmica convencional que queima carvões importados) e, claro, a promover o desenvolvimento da interligação e a rede de transporte de electricidade. 19 A montante da construção das barragens e das centrais existia um vastíssimo campo de conhecimentos e desenvolvimentos que envolvia diversas especialidades da engenharia portuguesa e que contava com a participação de diversas actividades que ganham impulso e notariedade. Destaque-se a importância que ganha neste âmbito, e não só, o sector da indústria metalomecânica pesada em Portugal e das especialidades da engenharia que lhe estão associadas. Protagonizado por empresas como a Sorefame, Mague, a Sepsa, entre outras, o sector experimenta um crescimento notável no período do pós-guerra, participando no processo de industrialização em curso. Desenvolvem engenharias próprias e levam a cabo a construção de equipamentos diversos, nomeadamente os de apoio à realização das centrais e das barragens. A sua produção é diversificada e cruza-se com diversas realidades da actividade nacional. Notáveis, entre outras realizações como os guindastes e toda uma gama de aparelhos de elevação, os célebres pórticos que a Mague constrói para os estaleiros da Lisnave e da Setenave. Enquanto a Sorefame orienta parte das suas actividades para o fabrico de carruagens e restante material ferroviário. Estava em curso um verdadeiro programa de modernização e industrialização da actividade económica nacional que, em parte derivava da outra peça fundamental cuja autoria pertencera a Ferreira Dias: a lei nº 2005, do Fomento e Reorganização Industrial. Retomemos por isso o curso dos acontecimentos e os efeitos da II Guerra Mundial na economia portuguesa. Muito embora Portugal se tivesse mantido neutral, a forte dependência da economia nacional relativamente ao comércio europeu, aliado às novas condições e exigências criadas pela guerra, tinha conduzido a que o País sofresse por reflexo os efeitos económicos propagados pela situação de beligerância vivida na Europa, tendo assim sido obrigado a adoptar, como então lhe chamou Costa Leite (Lumbrales), uma verdadeira “economia de guerra"45. Esta situação e o tipo de soluções que se procuraram impor à economia portuguesa não impediram que o período da Guerra tivesse constituído um espaço de prosperidade relativa e um período de enriquecimento de muitos agentes económicos, incluindo o Estado. A Guerra representou, efectivamente, um importante ponto de viragem na política económica portuguesa; o rumo não era ainda certo, pelo contrário, detectam-se então hesitações e incertezas, mas foi ela a grande responsável pelas inovações introduzidas. É que, se após a cessação das hostilidades ainda subsistia uma forte corrente "conservadora", incluindo o próprio Oliveira Salazar, que pretendia retomar o curso interrompido em 1939, não pode deixar de referir-se a importância que a Guerra teve quer na conquista do mercado interno por alguns dos mais importantes sectores industriais (alimentação, têxteis, minerais não metálicos, metalurgia, metalomecânica) que até então tinham visto as suas possibilidades de expansão coarctadas pelo poder dos interesses ligados ao comércio externo quer, sobretudo, pelo que representou na preparação das condições propícias para a ofensiva industrialista que encontra a sua concretização no trabalho legislativo e na doutrinação de Ferreira Dias46. Durante os anos da Guerra, Portugal viu aumentar de forma até então desconhecida o saldo da sua balança comercial, devido, sobretudo, à exportação de produtos anormalmente 45 João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), Economia de Guerra, Livraria Tavares Martins, Porto, 1943. 46 Cf. J. M. Brandão de Brito, A Industrialização…, op. cit., pp. 161 e seguintes. 20 valorizados em consequência das necessidades dos países beligerantes. Desta situação resultou que, no fim da guerra, Portugal dispusesse de uma reserva excepcional de ouro e divisas no Banco de Portugal, de consideráveis disponibilidades na conta do Tesouro e registasse aumentos substanciais nos depósitos bancários. Em resumo, uma situação financeira desafogada quer a nível das contas do Estado, quer a nível das entidades privadas, não obstante os sintomas inflacionistas daí resultantes se apresentarem desde logo como uma das preocupações principais da política económica e financeira do governo. Tudo parecia indicar, no entanto, que a prosperidade sentida no fim da Guerra seria mais aparente que real, basicamente porque a Guerra gerou riqueza e não fontes permanentes e auto-sustentadas de produção de rendimentos. A prosperidade ocasionada pela guerra não foi acompanhada de um processo de modernização nos sectores de actividade, o que naturalmente vulnerabilizaria a economia portuguesa do pós-Guerra. De resto, foi nesse quadro que se pretendeu lançar a acima referida ofensiva industrialista, consubstanciada na aprovação da acima mencionada Lei nº 2005, de Fomento e Reorganização Industrial47. “Quando o Governo aceitou e promoveu a sua execução, decidiu-se, afinal, edificar, através de um processo de industrialização, as fontes permanentes de criação de rendimentos de que o país carecia.”48 Parece pertinente retermo-nos um pouco neste ponto e tentar perceber que conceito de industrialização era defendido por Ferreira Dias e a maioria dos chamados industrialistas da época. Quanto ao conceito, podemos sintetizá-lo na formulação seguinte: a industrialização traduz-se num processo global de transformação das estruturas produtivas de um País, para o qual, num quadro de progresso material, não existe alternativa. Constitui, por isso, uma etapa por onde terão de passar as sociedades de todos os países na sua marcha para o desenvolvimento.49 É, no fundo, este o conceito que se encontra inscrito na apresentação da proposta que daria origem à Lei nº 2005 e que atravessa todo o seu articulado. Nela se postula o carácter vital da industrialização e a sua imprescindibilidade; se defende a ilegitimidade da especialização do País na produção de um número restrito de produtos e muito menos quando se pretende confinar essa especialização à agricultura; se propõem como objectivos fundamentais, a absorção de mão-de-obra, o aproveitamento dos recursos naturais; o aproveitamento e alargamento do mercado interno; a promoção do equilíbrio da balança comercial; a criação de um tecido industrial interdependente; a promoção da instalação de um conjunto de novas indústrias-base (metalurgia do ferro, metalurgia do cobre, sulfato de amónio, nitratos e cianamida, celulose e, acrescentada posteriormente, álcool carburante) 50. 47 Lei nº 2005, Diário do Governo, I Série, nº 54, 14 de Março de 1945. Vd. J.M. Brandão de Brito, “Lei nº 2005, do Fomento e Reorganização Indsutrial”, in Dicionário de História do Estado Novo, op. cit. p. 516-517. 48 Maria Fernanda Rollo em “A industrialização ...”, art. cit., p. 466. 49 Cf. Brandão de Brito, A Industrialização … op. cit., p. 79. 50 Vd. quadro publicado na Linha de Rumo, op. cit., p. 296; inserindo a indústria de álcool carburante que não se encontrava ainda incluída no quadro apresentado na “Proposta de lei de fomento e reorganização industrial, Diário das Sessões, nº 85, de 2 de Novembro de 1944” publicado em J. N. Ferreira Dias Jr., Linha de Rumo I e II e Outros Escritos Económicos, 19261962, 3 vols., Coord. J. M. Brandão de Brito, Banco de Portugal, Tomo III, p. 119. 21 Em suma, “tratava-se de lançar uma política de substituição de importações, comportando uma dupla componente, criação de novas indústrias e reorganização das existentes, no quadro de uma política económica nacionalista e autárcica”51. Estamos assim perante um processo concebido para ser concretizado no médio e longo prazos, que aposta numa política de diversificação industrial assente num conjunto de indústrias-base (no qual a siderurgia, referida logo à cabeça, desempenha um papel de relevo) e que prefigura um modelo de substituição de importações. Entretanto Ferreira Dias saía do Governo…não tendo sequer a oportunidade de ver aprovada qualquer uma das suas duas leis fundamentais. Era tempo de celebrar o fim da Guerra, também em Portugal. Mas, advinham-se os complexos tempos de paz. Politicamente, o poder instituído abria brechas e via-se defrontado como uma viva e séria contestação, que deixaria marcas para os anos vindouros. Sem dúvida, a II Guerra Mundial provocou alguns dissabores e sérias dificuldades às autoridades portuguesas. A verdade é que, depois do confronto mundial já nada voltaria a ser como antes. Esta, uma realidade insofismável, não obstante o próprio Estado Novo tudo ter feito no sentido de a ignorar – pelo menos em parte. Todavia, sempre que as circunstâncias se alteravam o Governo foi dando mostras de usar da flexibilidade necessária para se readaptar aos novos condicionalismos. Logo o cessar do conflito militar colocaria numa posição difícil o comércio externo português. A 'fonte de rendimento' dos anos da Guerra, os 'negócios de guerra', não podiam continuar a sustentar a economia portuguesa. A segurança que as substanciais reservas em ouro e divisas ofereciam ver-se-ia rapidamente confrontada com a diminuição das exportações que a guerra favorecera e as necessidades impostas pela execução do programa industrial. O regresso à 'normalidade', tão caro às autoridades portuguesas, tornou ainda mais evidente a vulnerabilidade da situação económica nacional, sobretudo do seu aparelho produtivo, colocando de novo as dificuldades de exportação dos produtos tradicionalmente produzidos em Portugal e afirmando a dependência do País das importações do exterior, sobretudo dos seus tradicionais parceiros europeus. Na verdade, a estratégia de industrialização propugnada por Ferreira Dias não teve nem a realização nem um sucedâneo paralelo nos anos que se lhe seguiram. De resto, o conservadorismo económico do Presidente do Conselho foi, como noutros casos, moldando e determinando as grandes opções de política económica, apesar de ter sido neste pósGuerra que as suas certezas parecem ter sido mais abaladas. De qualquer forma, uma vez posto em marcha, acreditou-se que o desenvolvimento industrial seria não só capaz de arrastar outros sectores mais lentos no "arranque" - seria o caso da generalidade das actividades primárias, agricultura incluída - como que, rapidamente começaria a dar frutos. Mas nenhum daqueles pressupostos se efectivou satisfatoriamente e a expectativa falhada teve efeitos em cadeia na conjuntura económica portuguesa dos anos 40 e 50: a política "liberalizadora" do comércio externo (sobretudo em primeira fase no que toca à importação de bens de consumo), protagonizada por Daniel Barbosa, enquanto ministro da Economia, a necessidade crescente de comprar no exterior 51 Maria Fernanda Rollo, “Industrialização…” art. cit. p. 466. 22 bens de equipamento e matérias-primas industriais, o tradicional défice português em combustíveis e cereais, em suma, tudo o que se mostrava imprescindível para pôr o País a funcionar, teve reflexos acentuadamente negativos nas balança comercial e de pagamentos, gerando uma crise que resistia às terapêuticas e controles habituais. A conjuntura económica e financeira do País que já vinha revelando sintomas de precariedade desde 1947 e, já nessa altura, tudo indicava que a situação se viesse a agravar, confrontou-se em 1948 com a sua deterioração acentuada. Afinal, Portugal, embora mais tardiamente e com contornos ligeiramente diferentes, comungava de uma crise internacional que afligia a generalidade dos países europeus e que estivera na origem do discurso que o general Marshall proferira em Junho de 1947 e na consequente elaboração do Plano que recebeu o seu nome e no qual Portugal participou activa e plenamente desde o início. No seu conjunto, e além do auxílio indirecto, Portugal beneficiou no quadro da vigência do Plano Marshall de um montante que ultrapassou os 50 milhões de dólares, interessando uma parte significativa dos agentes económicos do País, incluindo o próprio Estado52. A verba não é muito elevada, especialmente se comparada com a atribuída a outros países beneficiários. Todavia, foi conjunturalmente importante para a contenção da crise multifacetada que na altura afectava a economia e a sociedade portuguesas, e para debelar o déficit da nossa balança de pagamentos. Além disso, o auxílio americano contribuiu para o desenvolvimento técnico e o investimento nos diversos sectores de actividade integrados no programa de desenvolvimento económico em curso (incluíndo as colónias), particularmente no respeitante à edificação de algumas novas indústrias e ao prosseguimento da construção de algumas infra-estruturas, nomeadamente barragens produtoras de energia eléctrica. Noutra vertente, o envolvimento de Portugal no Plano Marshall constituiu um dos primeiros passos no sentido da sua abertura ao exterior e, mais do que isso, da internacionalização da sua economia, permitindo desenvolver em muitos casos novas formas de encarar a política económica através da política de planeamento posteriormente materializada nos sucessivos planos de fomento que orientariam a actividade económica portuguesa até ao fim do Estado Novo. Por outro lado, através das diversas iniciativas promovidas no âmbito do intercâmbio de experiências e dos programas de assistência técnica entre os países europeus e os Estados Unidos da América propiciou desenvolvimentos em diversas áreas na actividade económica portuguesa (onde, meramente, a título de exemplo podemos enunciar a introdução dos milhos híbridos na esfera da agricultura e o aprofundamento dos estudos de aproveitamento do rio Douro). Vale a pena referir que algumas dessas iniciativas se traduziram na promoção de missões de estudo e acções de formação realizadas quer nos Estados Unidos quer nos países participantes do Plano, incluindo Portugal, envolvendo a participação de técnicos de diversas nacionalidades e em que participaram engenheiros portugueses. Anos 50 e 60: os caminhos da modernização Resolvidas algumas hesitações e ultrapassados diversos impasses, o País do pós-Guerra acabaria por encetar um processo de desenvolvimento económico e social, acompanhando de longe, é certo - o clima de prosperidade que acabaria por vir a caracterizar a economia e a sociedade do conjunto dos países europeus nas duas décadas seguintes. É certo que o regresso à ‘normalidade’, a crise, internacional e nacional, a mudança dos responsáveis pelos assuntos económicos provocou o refrear do entusiasmo e da euforia dos anos da Guerra, implicando o abrandamento do ardor voluntarista desempenhado e 52 Cf. Maria Fernanda Rollo, Portugal e o Plano Marshall …, op. cit. 23 promovido por Ferreira Dias - a preocupação de estabilizar economicamente o sistema sobrepôs-se ao ímpeto desenvolvimentista do "fomento e reorganização industrial". Até porque entretanto surgiram novas condicionantes como as acima referidas. De qualquer forma estava definida a inexorabilidade de que o País teria que prosseguir um esforço de modernização das suas actividades económicas. E a verdade é que a década de 50 ficou marcada pelo arranque sistemático do planeamento económico (I Plano de Fomento – 1953/58) e pelo triunfo definitivo da ideia de industrialização, cujo conceito e desenho surgem consagrados e redefinidos no II Congresso dos Economistas53 e da Indústria Portuguesa54 em 1957. Na verdade, a nova estratégia político-económica do Estado, procurando enquadrar coerentemente os seus grandes objectivos nos chamados "planos de fomento", constituiu um elemento essencial na significativa evolução da economia portuguesa, promovendo, em obediência às tendências gerais do capitalismo europeu, as condições que viriam proporcionar um acentuado crescimento do sector industrial nacional. Será neste contexto que se irá desenvolver em Portugal um conjunto de sectores incorporando uma visível componente de engenharia de várias especialidades, provando e desafiando a indispensabilidade do ensino, da formação e da investigação para o desenvolvimento da actividade económica. Refira-se, aliás, que o desafio teve resposta positiva, por mérito exclusivamente nacional ou por capacidade de absorver transferências de tecnologia do exterior, tendo os sectores mais recentes e modernos incorporado tecnologias mais sofisticadas, nomeadamente os associados às designadas indústrias de processo, os que registaram um melhor comportamento, experimentado um crescimento até então sem paralelo, nomeadamente no âmbito das indústrias constantes da carteira de actividades dos principais grupos económicos e financeiros cuja expansão e consolidação se tornam evidentes ao longo do período. Entre outras razões, a oportunidade do I Plano de Fomento colocava-se como a sucessão da Lei de Reconstituição Económica, que chegava ao termo previsto da sua execução. Claro que o Plano beneficiava da experiência adquirida na realização dos planos de desenvolvimento económico anuais e de médio/longo prazo que foram elaborados, obedecendo a directrizes rigorosas, para sustentar o pedido de auxílio financeiro americano no contexto da ajuda Marshall. De resto, esta experiência que decorreu simultaneamente em Lisboa e Paris, nos anos de 1947-1951, viabilizou técnica e politicamente a abertura para novas formas de encarar o planeamento económico não só em Portugal como em muitos dos países que constituíram a OECE55. Em qualquer caso, este I Plano de Fomento (aprovado pela Lei nº 2058, de 29 de Dezembro de 1952) pouco mais representou que um programa organizado de investimentos públicos sem que nele se encontrem metas e objectivos precisos de desenvolvimento económico e social56, reflectindo, aliás, a ambiguidade da política económica portuguesa do pós-Guerra. 53 II Congresso dos Economistas Portugueses, INE, Centro de Estudos Económicos, Lisboa, 1957. II Congresso da Indústria Portuguesa (Programa, Discursos, Comunicações), Ed. Centro de Estudos Económicos/Comissao Organizadora e Executiva, Lisboa, 1957; II Congresso da Indústria Portuguesa, Vol. I a IX, Associação Industrial Portuguesa, Lisboa, 1957. 55 Cf. Relatório Final da Execução do I Plano de Fomento (1953-1958), Presidência do Conselho, Inspecção Superior do Plano de Fomento, Lisboa, Imprensa Nacional, 1959, p. 11. 56 Cf. Manuela Silva, "O planeamento em Portugal: lições da experiência e perspectivas de futuro", p. 18 e MURTEIRA, Aurora - "A experiência de planeamento industrial", p. 82 in AAVV - O 24 54 Com a finalidade de elevar o nível de vida e aliviar as pressões demográficas da população portuguesa (melhorando a produtividade do trabalho e reduzindo o desemprego), o I Plano de Fomento apontava como principais objectivos: o fomento da agricultura, o aumento da produção da energia hidráulica, a conclusão das indústrias de base já em curso, a instalação da siderurgia, o desenvolvimento das vias de comunicação e meios de transporte, o incentivo ao desenvolvimento da refinação do petróleo, da produção de adubos e da marinha mercante. O próprio Plano permitiu integrar alguns outros planos parcelares já em curso e que se referem nomeadamente à construção de infraestruturas e a algumas indústrias de base entretanto lançadas ao abrigo da Lei nº 2005. Apontavam-se os sectores prioritários, mas as acções que se preconizavam não eram ainda integradas numa política dirigida à obtenção de finalidades mais gerais. Concediam-se certos estímulos à iniciativa privada, de modo a procurar conduzi-la à efectivação dos investimentos que o plano lhe atribuía; o Governo encarregava-se de assegurar a assistência técnica e financeira às empresas a quem cabia a execução dos empreendimentos previstos pelo Plano. As realizações efectivas ficaram muito aquém das propostas, até porque os investimentos eram canalizados sobretudo para realizações infraestruturais, não imediatamente rentáveis, que não obtiveram resposta adequada em termos de desenvolvimento económico que as aproveitasse.Mas a verdadeira opção que conduziu à eleição do sector secundário como prioritário para o arranque desenvolvimentista só ocorreu durante a vigência do II Plano de Fomento, isto é, nos finais da década de 50 e após a realização do já referido II Congresso da Indústria. Note-se, porém, “o I Plano não deixa contudo de reflectir, no simples facto de existir, a inadiável necessidade desta industrialização, que a conjuntura do pós-guerra não permitia continuar a iludir”57. Para trás, irremediavelmente, ficava a agricultura, apesar do Governo postular que o desenvolvimento industrial havia de se subordinar ao desenvolvimento agrícola. No quadro de uma evolução que já tem antecedentes, a “lavoura nacional” como que desiste do seu próprio processo de crescimento e modernização, mantendo-se renitentemente agarrada a fórmulas de exploração da terra obsoletas e a tecnologia arcaizantes geradoras de uma estagnação que perdurou praticamente até à actualidade. Compreende-se, portanto, que tenha sido precisamente na primeira metade da década de 50 que a estrutura relativa dos dois grandes sectores de actividade se alterou profundamente, passando a indústria a constituir o sector mais dinâmico e de maior peso na economia. De par com a industrialização, a urbanização e a terciarização vinham gerar novas realidades e tensões na sociedade portuguesa. A década de 60 ficou, entre outras coisas, inexoravelmente marcada em Portugal pelos elevados surtos migratórios e de emigração verificados. Embora se registe uma melhoria global das condições de vida, a fuga dos campos, aumentou, afectando sobretudo o interior do País e os meios rurais ou pouco urbanizados, dirigindo-se para as cidades ou, então, para o exterior. Em resultado, a explosão urbana, especialmente visível na década de 60, registou-se sobretudo ao nível dos centros intermédios (10 a 20 mil habitantes) e maiores Planeamento Económico em Portugal: lições da experiência, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1984. 57 Alfredo Marques, Política Económica e Desenvolvimento em Portugal (1926-1959), Livros Horizonte, Lisboa, 1988, p. 116. 25 (mais de 20 mil habitantes)58. A tendência evoluiu no sentido de minorar o peso percentual dos dois principais aglomerados Lisboa e Porto, explicável pela própria terciarização dos centros tradicionais, que expulsa parte da população residente para os concelhos periféricos, onde, tende também a fixar-se o grosso da população migrante à procura de trabalho na cidade ou nas suas periferias e que não tem capacidade de suportar os preços praticados no centro urbano. Este crescimento espectacular dos «cogumelos» suburbanos nos concelhos periféricos de Lisboa e do Porto, dando textura às designações Grande Lisboa e Grande Porto, ocorreu de forma desordenada, sem apoio em termos de infraestruturas habitacionais, sanitárias ou de transportes, dando aso à proliferação de construções clandestinas, ao aglomerar de bairros de barracas implantados num cenário onde proliferavam crescentes problemas sociais e se acentuava uma escalada de degradação de condições de vida. Nesse contexto de engrossamento rápido das cidades desenvolveram-se profundas mudanças sociais. “A proletarização nas indústrias de grande parte da população rural chegada às cidades, o nascimento e expansão de um moderno sector de serviços, a alfabetização progressiva, o maior acesso à educação, à cultura e aos meios de informação, as novas formas de sociabilidade fariam da população urbana e suburbana nas principais cidades e nas áreas metropolitanas, particularmente em Lisboa e nas margens norte e sul do Tejo, um agente de intervenção social e política de importância crescente”59. O rápido afluxo de gente às cidades, em particular Lisboa e Porto, vinha colocar novas dificuldades àqueles que tinham a seu cargo a gestão dos espaços urbanos. Típico o caso de Lisboa, que continuava a expandir-se, tendo há muito ultrapassado as históricas sete colinas. O seu alargamento em todas as direcções, como uma mancha de óleo, absorvia concelhos circunvizinhos e cada vez mais população que a crise endémica da agricultura ou simplesmente a miragem da procura de melhores condições de vida atraia à metrópole. Sabemos como nem sempre ou quase nunca esse crescimento se fez de forma planeada, procurando o equilíbrio entre novas zonas urbanas e a ligação com a grande cidade. Mas quer em Lisboa, quer no Porto, eram patentes os esforços de planificação dos respectivos espaços urbanos, orientados pelos respectivos planos directores, concebidos em bases modernas. Em Lisboa, os anos de 40 tinham produzido reflexões e realizações interessantes nessa matéria. De Groer, no Plano Director de 1948, que orientara, manifestara preocupações de diversa natureza no sentido de prover a cidade em termos de equipamentos, infraestruturas essenciais e eixos viários, sem esquecer a expansão da cidade e as novas áreas residenciais. Aparecem planos parcelares para orientar o crescimento da cidade, como o de Faria da Costa para a zona de Alvalade, ou mais tarde, o Plano de Olivais Norte, em sistema de habitação social. No Porto, por sua vez, o Plano regulador de 1952, procurava orientar e ordenar o crescimento urbano da cidade. Em Lisboa, e naturalmente em articulação com o plano director da cidade, emergia uma nova realidade - expressão da modernidade e do desenvolvimento da engenharia em Portugal - com a inauguração do metropolitano em Dezembro de 1959. Assinale-se que a aceitação da construção de um metro na Cidade se fez num contexto de intensa polémica. Desencaderam-se debates, envolvendo paixões entre aqueles que, no quadro de um evidente voluntarismo, defendiam a sua implantação e os que se opunham – aduzindo argumentos vários que compreendiam a sua hipotética irracionalidade económica 58 Cf. Fernando Martins, “Uma Sociedade em Mutação”, in Fernando Rosas, O Estado Novo…, op. cit., pp. 419-426. 59 Idem, p. 426. 26 numa cidade com as dimensões de Lisboa ou que se situavam numa oposição de interesses que envolvia os concessionários de transportes públicos já instalados na cidade60. Naturalmente, a construção do metropolitano só poderia ser levada a cabo com a cumplicidade activa do poder público – que entendeu a pertinência da sua implantação procurando a concertação do novo meio de transporte subterrâneo com os de superfície. Assim, o poder central permitiu que a administração da cidade desse o passo decisivo para a constituição da sociedade à qual entregaria a concessão num envolvimento inequívoco mas que desde logo foi faltando no cumprimento da satisfação dos enormes encargos financeiros exigidos por uma realização dessa natureza e dimensão e na definição de um enquadramento que garantisse a conciliação eficaz entre as diversas modalidades de transportes urbanos evitando sobreposições de serviços no contexto de uma difícil arbitragem de interesses. Foi assim que, embora remontando aos finais do século XIX a questão da implementação de um metropolitano na cidade de Lisboa envolveu uma polémica que só se definiu nos finais da década de 40 do século XX, abrindo-se então uma outra complexa e conturbada história que tem acompanhado a sua construção. Refira-se, mais a título de curiosidade, que foi precisamente Ferreira Dias, o homem que foi chamado a resolver essa questão e que viria a ser o primeiro presidente do conselho de administração do Metropolitano de Lisboa. Os sucessivos adiamentos, num primeiro tempo na decisão da construção de um metro na cidade de Lisboa e depois no seu processo de construção e de expansão, naturalmente que condicionaram e comprometeram temporariamente quer a sua própria eficácia quer as suas possibilidades de complementaridade com os outros meios de transporte. Situação ainda mais complexa de ultrapassar se tivermos presente a expansão muito rápida e não controlada que tem caracterizado o próprio crescimento da cidade de Lisboa nas últimas décadas. De qualquer forma é de sublinhar o desafio que a construção deste transporte subterrâneo na época, e desde então até aos nossos dias, tem representado para a engenharia nacional, incorporando competências diversas, desde a construção civil (onde se têm ultrapassado dificuldades de monta suscitadas pela própria natureza do sub-solo da cidade), até à construção de equipamento circulante. Recorde-se, aliás, como a Sorefame vocacionou a sua actividade nesse sentido, construíndo equipamento não só para o metropolitano mas também para os caminhos de ferro – outra área, onde, dentro das aplicações ferroviárias, ocorriam entretanto, alterações importantes. Pondo termo à multiplicidade de empresas públicas e privadas, concessionárias envolvidas na construção da rede de caminhos-de-ferro no século XIX e na primeira metade do século XX, surge, em 1951, a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. No ano seguinte a CP propunha-se levar a cabo um Plano de Transformação e Reapetrechamento da Rede, numa altura que estava em curso o propósito de “dieselizar” o material circulante (cuja aquisição contou com o apoio das verbas provenientes do Plano Marshall e do Fundo Especial de Transportes Terrestres). Simultaneamente ganhava expressão a vontade de promover a electrificação dos caminhos de ferro, até porque se entendeu ser importante a contribuição da CP para o aumento do consumo de energia eléctrica na sequência do programa de electrificação em curso, iniciativa à qual não era uma vez mais estranha a intervenção de Ferreira Dias. Incrível como encontramos recorrente e persistentemente o engenheiro Ferreira Dias um pouco por todo o lado. Não obstante, em 1962, no discurso de transmissão de poderes da pasta da Economia que então profere Ferreira Dias, ministro desde 1958, refere-se à sua 60 Ver sobre o assunto, Maria Fernanda Rollo, Um Metro e Uma Cidade. História do Metropolitano de Lisboa, 1947-1998, 2 vols, Metropolitano de Lisboa, 1999 e 2001. 27 obra de forma amargurada e limitadora: “Quanto a mim, só a recordação de um passado longínquo me ensombra o futuro. Quando, há 18 anos, deixei o cargo de Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria, assisti, ao longo de alguns meses ou anos, à demolição sistemática de tudo que deixei em fase de arranque e não tinha ainda consistência para resistir por si. Das coisas nascentes, apontadas à melhoria da produção, salvaram-se duas: uma, grande, a electrificação; outra, pequena, a Cortadoria Nacional do Pêlo, em S. João da Madeira. O resto, terra queimada”61. Talvez tenha ficado um pouco mais… Aliás, estava já lançada em Portugal uma das indústrias-base que Ferreira Dias tinha apontado na lei 2005: a celulose. Antes de mais, uma nota relativamente à presença, também, da engenharia no âmbito da gestão dos recursos florestais e do difícil equilíbrio entre a preservação da floresta e objectivo produtivista, que deu origem a um conflito histórico entre ruralistas e industrialistas e em que se inscreve a execução do Plano de Povoamento Florestal de 193862 e que não se esgota, naturalmente na questão da produção da pasta de papel. Mas, retomando a questão inicial, é no pós-guerra que o sector da celulose vê florescer duas fábricas de referência: a fábrica de Cacia, que em 1954 produzia pasta de papel a partir do eucalipto, e a Caima Pulp que desenvolve a partir de 1961 uma nova fábrica em Constância. Não é assim de estranhar que o livro que a Companhia Portuguesa de Celulose, a de Cacia, publicou em 1958, abra com palavras de Ferreira Dias, então vice-presidente do Conselho Superior da Indústria, poucos meses antes de ser nomeado ministro da Economia: “Em 1940, o Estado tinha, ou passou a ter, o propósito bem definido de montar em grande a indústria da celulose e do papel, actividade indiscutível num país de índole florestal; mas, não desconhecendo as dificuldades técnicas do empreendimento nem desejando sobrepor-se, em fácil gloríola, a iniciativas particulares nascentes, já formuladas mas ainda incompletamente definidas, não as arquivou nem indeferiu. Escolheu as que tinham mérito (…) chamou-as, propôs-lhes colaboração, ajudouas, estimulou-as, forçou-as à concentração (…). Assim nasceu a Celulose de Cacia. (…) A Companhia Portuguesa de Celulose tornou-se uma grande realidade, um grande valor da economia nacional – como previram os que a sonharam. (…) Prouvera a Deus que o mesmo pudesse dizer-se da generalidade da indústria portuguesa.”63 Na verdade, se atentarmos nos dados que Francisco Pereira de Moura em tempos apresentou sobre crescimento da produção industrial relativos aos anos 50, constatamos que esta foi mais acentuada nos subsectores mais novos do tecido industrial - com nítida preferência pelas actividades consideradas motoras do desenvolvimento económico (metalúrgicas de base, produtos metálicos, metalomecânicas, material eléctrico e de transporte, papel e químicos e petróleos), nas quais foi possível atingir elevados níveis de rentabilidade e para cujos produtos já existia uma aceitação razoável no mercado nacional64. Segundo os índices de produção industrial, apresentados por João Pires Chaves e Rui Ferreira Leite, verifica-se que foram os subsectores das Metalúrgicas, metalomecânicas e material eléctrico e das Químicas e petróleos os que mais cresceram. Ao carácter mais dinâmico e inovador dessas indústrias transformadoras opôs-se uma estagnação relativa de algumas indústrias tradicionais (especialmente as extractivas, mas também alimentação e bebidas, têxteis, 61 Arquivo Ferreira Dias, Museu da Electricidade, J. N. Ferreira Dias Jr., Discurso proferido no acto de transmissão de poderes de Ministro da Economia, em 4 de Dezembro de 1962. 62 Lei nº 1971, de 15 de Junho de 1938. 63 Companhia Portuguesa de Celulose, 1958, s.p. 64 Francisco Pereira de Moura, Por Onde Vai a Economia Portuguesa?, Seara Nova, 4ª ed., 1973, p. 155. 28 madeira, cortiça e mobiliário), que mantiveram taxas anuais de crescimento incapazes de acompanhar o ritmo das primeiras65. Refira-se, na generalidade, o bom comportamento das indústrias de processos químicos, que em parte beneficiou dos desenvolvimentos promovidos ao abrigo da lei 2002. Para além das já mencionadas inovações na área da celulose, o sector, entre as diversas realizações que regista, vê surgir duas importantes novas unidades: o Amoníaco Português, em Estarreja e a União Fabril do Azoto, em Alferrarede, ambas arrancam em 1952. Na área dos petróleos, a Sacor a quem pertencia a primeira refinaria de petróleo instalada em Cabo Ruivo (1940), conclui a ampliação das suas instalações em 195566. Qualquer destas áreas, e ainda, a do vidro e a do cimento, conhecerão desenvolvimentos importantes na década seguinte,. Globalmente, porém, a estratégia dos anos 50, que confiava o crescimento económico à expansão industrial (assente, no fundo, em dois estímulos: a reserva de mercados e o baixo preço dos factores produtivos - mão-de-obra e capital) e a própria estrutura do modelo criado para sustentar esse mesmo 'arranque', vieram a revelar-se insuficientes e incapazes acabando por se repercutir negativamente no próprio desenvolvimento do País - o que permite concluir que a concepção do projecto assentava em pressupostos cuja viabilidade era duvidosa e, duvidoso também, o próprio princípio desenvolvimentista em que a nova estratégia se baseava. Apesar de se ter verificado que o crescimento económico português, experimentado no decurso da década de 50, resultou em grande medida da vitalidade do seu sector secundário, o seu sucesso e real alcance, em relação ao progresso económico e social do País, ficaram muito aquém do esperado. Uma vez alteradas, logo na década seguinte, as frágeis condicionantes de base que permitiam a sua existência, a nova estratégia de desenvolvimento revelou-se inadaptada e desarticulada face à realidade económica e social portuguesa. Embora se tenham tentado desenvolver indústrias consideradas motoras, dado o seu carácter progressista, propulsivo e multiplicador, foram negligenciadas as condições que assegurariam a manutenção dessas condições. Preferiu-se intensificar o trabalho, aproveitando a existência de uma mão-de-obra barata e abundante, em vez de se incrementar uma melhoria de produtividade; ignorou-se a necessidade de constituir um sector de produção de bens de equipamento que, aliás, nunca passou de uma fase incipiente, e, por fim, desdenhou-se o apoio à investigação científica (teórica e aplicada) resultante deste conjunto de omissões numa indústria rotineira onde raramente surgiam inovações. Oscilantes entre a necessidade do desenvolvimento tecnológico conducente a uma produtividade acrescida e a atracção pelo trabalho barato e não qualificado e pelo investimento canalizado para os sectores de resultados mais rápidos, as nossas indústrias tornaram-se cada vez mais dependentes de tecnologia e de bens de equipamento estrangeiros e cada vez menos capazes de competirem no mercado externo. Tudo isto está patente nos valores atingidos: mesmo melhorados, os nossos ritmos de desenvolvimento mantiveram-se muito aquém dos indíces do restante mundo ocidental industrializado.67 65 João Pires Chaves e Rui Ferreira leite, A Medida da Produção Industrial Portuguesa, Associação Industrial Portuguesa, Lisboa, 1962, p. 38. 66 Vd. Cronologia desenvolvida relativa ao desenvolvimento das principais empresas associadas à indústria química em Portugal em Rodrigo Guedes de Carvalho, “Alguns casos típicos da evolução da engenharia química em Portugal”, in Ingenium, nº 2, Julho/Agosto, 1986, pp. 57-63. 67 Cf. Francisco Pereira de Moura, Por Onde Vai... op. cit., p. 140 e seguintes. 29 Sobre as vulnerabilidades que decorriam do processo industrial em curso, reflectiu-se ampla e profundamente naquele que foi, provavelmente, o mais relevante acontecimento da segunda metade dos anos 50 e cujas repercussões se prolongaram por grande parte da década seguinte: o II Congresso dos Economistas e da Indústria Portuguesa que em 1957 reuniu em Lisboa a nossa elite política e económica. Efectivamente foi a partir da realização deste Congresso que os agentes económicos privados portuguesas com interesses ligados à indústria e ao sistema financeiro impuseram em larga escala os seus pontos de vista. Este facto e o que resultou e ficou inscrito nas conclusões do II Congresso dos Economistas e da Indústria Portuguesa, teve apesar de tudo um magro acolhimento na concepção e forma final que foi dada ao II Plano de Fomento aprovado pela Lei nº 2094 de 25 de Novembro de 1958. Embora no II Plano de Fomento surja já um programa de política económica com alguma coerência, é ainda a continuidade em relação a comportamentos e concepções passadas o que sobressai. Mantém-se a natureza de plano parcial, embora este II Plano de Fomento não só inclua já (a título indicativo) alguns grandes projectos [a concretizar pelo] sector privado como explicita quatro objectivos fundamentais: a) aceleração do ritmo de crescimento do produto nacional; b) melhoria do nível de vida; c) ajuda à resolução dos problemas de emprego, e d) melhoria da balança de pagamentos.68 O II Plano de Fomento nasceu e desenvolveu-se em parte ultrapassado pelos acontecimentos; complexo e instante, o problema dos mercados, significando abertura, vaise impondo e naquele passo hesitante de quem tem de satisfazer interesses nem sempre fáceis de conciliar os governantes portugueses procuraram não perder completamente o que de mais importante se passava nos termos da integração europeia. Após alguns anos de negociações Portugal integra formalmente a EFTA em 4 de Janeiro de 1960, data que fica a constituir simbolicamente o primeiro elemento de expressão de um processo de abertura que, no fundo, significou a vitória da ideia e daqueles para quem a estratégia do desenvolvimento já não passavam só, nem sobretudo, pelo mercado interno metropolitano: a política de substituição de importações, um tanto à revelia do próprio Plano, vai dando lugar a procedimentos que dão primazia à exportação. Assinale-se que os anos 60 vêm encontrar Ferreira Dias como Ministro da Economia (195862). Defensor estrénuo da industrialização e guardião da independência nacional, apesar de manifestar algum fascínio pelas Comunidades Europeias, tinha em pouca consideração a questão dos mercados externos e, por isso, acabou por passar ao lado de ambos os processos integracionistas: o do mercado único português e o da integração europeia. No que diz respeito à indústria, Ferreira Dias mantém-se fiel ao seu ideário próprio, consubstanciado num punhado de aspectos importantes do seu pensamento e da sua forma de agir: incentivar o aparecimento de novas indústrias, reorganizar as tradicionais, prosseguir a construção da rede eléctrica nacional, reequacionar as relações da agricultura com o processo de industrialização. Contando com alguns êxitos menores e excepcionais que apenas confirmam a regra, Ferreira Dias não foi feliz como governante em praticamente nenhuma das quatro frentes em que mais uma vez se empenhou. 68 Américo Ramos dos Santos, "Abertura e bloqueamento da economia portuguesa" in Portugal Contemporâneo, Vol. V, Alfa, Lisboa, 1989, p. 111. 30 Mas quis a sorte que tivesse sido enquanto Ferreira Dias esteve à frente da Economia que se inaugurou em Portugal a Siderurgia Nacional…questão antiga, velha de quase um século mas nunca adormecida, que encontra, por fim, o seu desenlace. Depois de ultrapassadas vicissitudes diversas a Siderurgia Nacional foi constituída em 23 de Dezembro de 1954, liderada por António Champalimaud, a quem o então ministro da economia, Ulisses Cortês, atribuiria o alvará em Fevereiro do ano seguinte69. Até 1961 ainda muitas atribulações ocorreram em torno da montagem da siderurgia em Portugal. Acabou por ser Ferreira Dias quem pronunciou o discurso mais sentido quando da inauguração oficial das instalações do Seixal da Siderurgia Nacional, em 24 de Agosto de 1961, e que com regozijado orgulho proferiu tranquilamente a afirmação exaustivamente citada que “País sem siderurgia, não é um país, é uma horta”70. Os dois engenheiros, Ferreira Dias e ainda Ezequiel de Campos, entre tantos, assistiam, por fim, à materialização do seu sonho siderúrgico. No decénio de 60, abalados os fundamentos que haviam permitido a industrialização da década anterior, e sofrendo-se os males de uma estratégia que, privilegiando a indústria deixou negligenciar o desenvolvimento paralelo do sector primário, verificou-se, afinal, que o crescimento da produção industrial conseguido estava longe de garantir ao País um desenvolvimento económico sustentado e minimamente equilibrado. Por outro lado, o final dos anos 50 e especialmente os inícios dos 60 vieram também colocar novos desafios a Portugal no que dizia respeito ao seu envolvimento nos movimentos de cooperação económica europeia, implicando importantes decisões e definindo estratégias consequentes. Já se fez menção à adesão de Portugal à EFTA assumindo compromissos de natureza estritamente económica e comercial; não se levantavam (como na CEE) questões de regime ou de sistema político e muito menos problemas derivados da existência das colónias africanas, dada a prevista autonomia aduaneira nas relações com terceiros países; o relativo subdesenvolvimento industrial português face às outras potências integrantes foi salvaguardado através da aceitação do «famoso» Anexo G, através do qual se permitia a Portugal um muito mais lento desarmamento pautal (que no nosso caso se podia prolongar por 20 anos - o dobro do que era concedido aos outros membros) e, sobretudo, autorizava expressamente o nosso País a erguer barreiras alfandegárias quando estivesse em causa a protecção de novas indústrias. Refira-se que foi no mesmo ano de 1960, que se impulsionou o estudo da unificação do espaço económico português. A nova arquitectura que era dada ao problema colonial surgiria no ano seguinte com a institucionalização do Espaço Económico Português – havia já começado a guerra em Angola. Entretanto, o início das guerras coloniais, a aceleração da emigração, a prossecução do projecto da criação do mercado comum português, marcaram um novo período de hesitações, desviaram as atenções do rumo demarcado e adiaram soluções. É neste quadro de atrasos e de movimentos de certa forma contraditórios que surge como solução de recurso o Plano Intercalar de Fomento (1965-67), representando a primeira tentativa de 69 Vd. “Despachos Ministeriais de 18 de Fevereiro de 1955. Siderurgia. Alvará nº 13”, Boletim da Direcção Geral dos Serviços Industriais, Ano VII, nº322, de 2 de Março de 1955, pp. 125-126. 70 Arquivo Ferreira Dias, Museu da Electricidade, J. N. Ferreira Dias Jr., “Discurso na inauguração da Siderurgia Nacional”, 24 de Agosto de 1961, p. 1. 31 planeamento global ensaiada no País, atribuindo carácter prioritário ao sector industrial e, na prática, relegando a agricultura para um papel secundário. Assumindo que o papel preponderante há-de caber à iniciativa privada (eventualmente apoiada por capitais estrangeiros, cuja legislação de enquadramento é prometida para breve), as prioridades em termos sectoriais vão para as indústrias que, em príncipio consubstanciavam a modernização e a possibilidade de recurso aos mercados externos, objectivos sempre reiterados, ou que permitissem completar as bases do tecido industrial português. Segundo o texto do Plano cumpririam esta condição as indústrias metalúrgicas, as metalomecânicas e a de material eléctrico, as químicas e do petróleo e, globalmente, as dos minerais não metálicos (com destaque para o cimento, base imprescindível do importante sector da construção civil e obras públicas). Consagrando a política industrial possível, o Plano Intercalar, se apresentou inovações em termos das concepções adoptadas e das soluções perconizadas, correspondeu efectivamente ao encerramento de uma época e coincidiu com o fim do grande ciclo político do salazarismo. Daí que o III Plano de Fomento, destinado a cobrir os anos 1968-1973, preparado durante a vigência do Plano Intercalar, quando entrou em vigor estivesse de certa forma ultrapassado pela conjuntura externa mas sobretudo pelas alterações política verificadas no interior do País. Já com Marcello Caetano no poder e no quadro da "renovação na continuidade", os grandes objectivos mantinham-se, mas os novos termos em que se punha o prosseguimento da modernização da economia e indústria portuguesas, foram efectivamente (ainda que transitoriamente em sem grande êxito) alteradas. No princípio, e sob o impulso de Rogério Martins, secretário de Estado da Indústria (27 de Março de 1969 a 11 de Setembro de 1972), foi um tempo de grandes debates; tudo (ou quase tudo) podia ser discutido e posto em causa, tudo podia ser reequacionado, todas as soluções puderam ser apresentadas. A culminar este curto período (a "primavera marcelista" também se fez sentir ao nível da indústria e da política económica) a realização do Colóquio Sobre Política Industrial em Lisboa, em Fevereiro de 1970. No discurso de encerramento, Rogério Martins não decepcionou e, se na aparência retoma uma oratória tão cara ao regime, empreende uma corajosa denuncia do passado recente e afirma a premência de se ter que, “e rapidamente, que mudar de via para nos industrializarmos a fundo”71. Em suma, a proposta de Rogério Martins traduz-se na recusa da autarcia e na defesa da abertura ao exterior, numa proposta de modernização do tecido industrial e na redefinição de um elenco de sectores industriais a partir dos quais o País se industrializaria a fundo. Apesar de ter conseguido passar para letra de lei grande parte das suas propostas (Lei nº 3/72 - do Fomento Industrial), não teve nem tempo nem oportunidade para as concretizar: historicamente os novos projectos anunciados quase não ficaram a constituir mais do que um sobressalto e um avivar da memória do muito que faltava fazer para que Portugal pudesse ombrear com as potências industrializadas. Anote-se que é ainda por iniciativa de Rogério martins que é decidida a implantação e se iniciam os estudos que haviam de conduzir ao lançamento do Pólo de Desenvolvimento de Sines, ao qual, refira-se desde já, está indissociavelmente ligado outro engenheiro, António Martins, que num primeiro momento liderou o grupo de trabalho designado pelo Governo 71 Rogério Martins, Caminho de País Novo, Lisboa, 1970, p. 89. 32 para estudar a localização e o conteúdo conreto do Pólo e que, posteriomente, veio a ser nomeado primeiro director do Gabinete da Área de Sines. Verdadeiro microcosmo, tendencialmente agregador de um conjunto vasto de “indústrias de base” e de um leque variado de especialidades de engenharia que lhes estão associadas, a construção do Pólo de Sines envolveu desde início, a construção portuária, planos urbanísticos e de reordenamento do território, infraestruturas de saneamento, uma rede viária, logística de transportes e o projecto de implantação das actividades industriais previstas: refinação de petróleos, petroquímica de olefinas, exploração das pirites alentejanas, implantação de uma central termoeléctrica e um conjunto de outras indústrias derivadas, designadamente metalomecânicas. Constituindo o maior projecto, concebido de raiz, da história da indústria portuguesa, esteve envolvido em polémica desde as suas origens. Aliás, sobre ele caiu como que uma tripla maldição: a crise petrolífera de 1973, a mudança do regime operada em 1974 e os temporais que destruíram o molhe do porto no Inverno de 1978/79, acontecimentos que condicionaram, de forma decisiva, o ritmo e o conteúdo efectivo das diferentes fases por que foi passando. Por muitos considerado um enorme “elefante branco”, perfilhando o juízo recentemente expresso por José Torres Campos, poder-se-á afirmar que “a análise desapaixonada que hoje +e possível fazer reconhecerá que Sines é uma infraestrutura portuária básica e indispensável ao País”72. De certa forma a "época de ouro" do capitalismo mundial também teve a sua expressão nos anos 60 portugueses. Este período, assistiu a um reforço da concentração e consolidação dos grandes grupos económicos-financeiros que em geral cumpriram a sua quota-parte nas estratégias definidas, embora, a sua própria estratégia, nem sempre fosse coincidente com a das autoridades.73 De resto, o objectivo de adensar a malha do tecido industrial abriu condições para o aparecimento de alguns novos sectores (como se têm referido, entre outros, a siderurgia, a construção e reparação naval, a electrónica) e para o alargamento e modernização significativa de outros já implantados (alimentares, texteis e confecções, pasta para papel, produtos farmacêuticos). Uma evolução apesar de tudo positiva, mas que se processou num quadro de restrições que pesam duramente no balanço a fazer desta quase década e meia. O insucesso da constituição do "mercado único português" concebido pelo ministro Correia de Oliveira, a guerra colonial, o aumento dos salários alimentado pela aceleração da emigração, a lentidão com que se processavam as reformas "urgentes", o próprio enfraquecimento da EFTA (com a adesão à CEE da Grã-Bretanha - nosso principal parceiro comercial - Dinamarca e Irlanda) e por fim, o "choque petrolífero de Outubro de 1973 e o consequente aumento dos preços internacionais das matérias-primas energéticas, vieram tornar ineficazes os esforços feitos e desarticular, votando ao fracasso, os sucessivos modelos de política económica e industrial que foram sendo construídos. Em 1972 e 1973 a situação deteriorou-se dramaticamente e, na prática cessaram as condições de crescimento: as contas externas apresentavam-se fortemente negativas, a 72 José Torres Campos, “Pólo de Desenvolvimento de Sines”, in Dicionário de História do Estado Novo, Círculo de Leitores, vol. II, pp. 783-785. 73 Para uma análise mais detalhada da organização, consolidação, estruturação e forma de funcionamento destes grupos económico-financeiros ver os trabalhos de Américo Ramos dos Santos "Desenvolvimento monopolista em Portugal: 1968/73", Análise Social, vol. XIII, 1977, 1º, pp. 69-95 e Américo Ramos dos Santos, "Abertura e bloqueamento da economia portuguesa" in Portugal Contemporâneo, Vol. V, Alfa, Lisboa, 1989, pp. 111-150. 33 inflação atingiu os dois dígitos, o mercado de capitais, artificialmente desenvolvido sossobra na queda da Bolsa de Valores (Outubro/Novembro de 1973). No fundo, quebrada a confiança, praticamente paralizado o investimento produtivo, o sistema perdeu condições de funcionamento porque tinham sido, finalmente, postos em causa os equilíbrios que durante décadas foram sendo laboriosamente tecidos e arbitrados. 34