Os retratos da paixão em Sapato de Salto Vanessa Borella Da Ross (UNIOESTE) Profa. Dra. Clarice Lottermann (UNIOESTE) RESUMO: A proposta desse trabalho é analisar de que forma o tema da paixão é abordado no livro Sapato de Salto de Lygia Bojunga. A temática da paixão nas relações amorosas, e suas possíveis consequências, são recorrentes nas obras da referida autora. O estudo focalizará a forma como o tema paixão é apresentado ao público infanto-juvenil. Por ser importante e parte da vida das pessoas, a paixão é tema recorrente na história da literatura mundial. Este sentimento acomete aos seres humanos deixando-os por vezes sem o controle de suas emoções e também de suas vidas. A escritora Lygia Bojunga também trata desse tema, porém seu enfoque é o público infanto-juvenil. Desta forma, esse trabalho visa analisar a forma de apresentação e abordagem dessa temática para o referido público, pois a literatura pode ser um auxilio aos adolescentes que vivenciam de forma muito intensa a paixão nessa fase da vida. Para a realização deste trabalho serão utilizados como base teórica: Os sentidos da Paixão de Sérgio Cardoso; Ética a Nicômacode Aristóteles; Tratado Político de Spinoza; A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves de Luiza Eluf. PALAVRAS-CHAVE: Lygia Bojunga; paixão; Sapato de Salto. RESUMEN: La propuesta de este estudio es analizar de qué manera el tema de la pasión es presentado en el libro Sapato de Salto de Lygia Bojunga. . La temática de la pasión en los relacionamientos amorosos, y sus posibles consecuencias, son recurrentes en las obras de la referida autora. El estudio enfocará la forma como el tema pasión es presentado al público adolescente. Por ser importante y parte de la vida de las personas es tema recurrente en la historia de la literatura mundial. Este sentimiento surge en los seres humanos y los deja por veces sin control de sus emociones y también de sus vidas. La escritora Lygia Bojunga trata también de este tema, pero su foco es el público adolescente. De esta forma, el presente estudio buscará analizar la forma de presentación y abordaje de esta temática al referido público, pues, la literatura puede ser un auxilio a los adolescentes que viven de manera muy intensa la pasión durante este período de sus vidas. Para realizar este estudio serán utilizados como teoría: Os Sentidos da Paixão de Sérgio Cardoso; Ética a Nicómaco de Aristóteles; Tratado Político de Spinoza; A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves de LuizaEluf. PALABRAS-CLAVE: Lygia Bojunga; pasión; Sapato de Salto. CONSIDERAÇÕES INICIAIS A literatura é arte. A arte de lidar com as palavras de forma estética e lúdica. A arte feita de palavras e com palavras, que por vezes, causam sensações. Através de seus vastos conteúdos e temáticas é possível ter contato com um acumulado de experiências, vivências, sentimentos existentes desde os primórdios da humanidade. Estes sentimentos podem ser vivenciados através do texto literário, que proporciona esse tipo de sensação, e é capaz de proporcionar maior entendimento sobre si mesmo, e sobre os outros, sem necessariamente passar pelos acontecimentos na vida real. Ela nos instrui, pode ser um tipo de guia, bússola para orientações existenciais. Pode trazer à tona problemas e questões que se encontram no inconsciente para que sejam refletidos, e em alguns casos solucionados. Ou seja, literatura além do seu alto poder de fruição pode auxiliar de forma positiva no processo de autoconhecimento, desvelamento do mundo e um maior conhecimento do outro da alteridade. Dessa forma, ler é também apreender a valorizar o que nos faz seres humanos. Os nossos sem fim de sentimentos, emoções, sensações, dúvidas, alegrias, tristezas. Pela literatura consigo vivenciá-los, experimentá-los sem efetivamente sofrer as consequências reais de tais vivências. A ciência não dá conta de expressar todas as possibilidades do mundo, para isto precisamos da arte. A arte vai onde a ciência não consegue. Também através dela, podemos ter a oportunidade de conhecer o que certo artista ou autor pensa sobre o mundo, pois, é necessário recordar que esta também é produto da sociedade em que vivemos, é uma espécie de fruto de determinada época em que o modo de funcionamento da sociedade se encontra retratado, criticado ou problematizado. Convém acrescentar neste artigo, que a arte literária e a literatura por meio de sua estética e trabalho com a linguagem podem ser também uma espécie de fuga da excruciante realidade. Realidade que algumas vezes, não cria condições ou tempo disponível para as reflexões de ordem existencial. Por isso, o universo em que vivem os personagens dos livros pode representar o individuo que o lê. Pelo mundo da leitura posso utilizar minha capacidade imaginativa e afetiva, encontrando um certo conforto e empatia em relação a certas questões existenciais e problemas. Isso, pode se dar com os sujeitos durante a fase adulta, tornando a literatura, também uma conselheira. Se, como adultos possuímos inúmeras dúvidas, ânsias e questionamentos sobre a vida, são na fase da adolescência que estes, se encontram elevados em uma maior potência. Durante a adolescência não possuímos mais a leveza e graça da infância e tampouco a pretensa segurança do mundo adulto. Então, quem somos? Como lidar com todos os sentimentos conflitantes e por vezes, extenuantes que nos afloram rápida e intensamente? Como não se deixar levar pelo ímpeto da paixão quando está parece ser o único sentido de nossas jovens vidas? O sentimento da paixão na adolescência é por vezes carregado de tamanha intensidade que os adolescentes possuem certas dificuldades para lidar com ele. Se, tomados inteiramente pela paixão podem vir a realizar atos que tragam consequências não muito profícuas para suas vidas futura. Faz-se necessário recordar que esse texto, não tem a pretensão de ser moralista ou levantar juízos de valores acerca das atitudes dos adolescentes. Possui apenas, como proposta analisar como esses sujeitos adolescentes lidam com o sentimento da paixão e de que forma a literatura de Lygia Bojunga pode ser uma voz cuidadosa, onde a experiência pessoal e literária dessa autora, pede uma certa atenção para os “vários lobos maus” que se podem se esconder nas labirínticas florestas das paixões. Então, como já foi exposto nesse texto, a literatura pode ser um auxilio, amigo, companheiro do adolescente na busca de uma melhor forma de manejo de tantos sentimentos conflitantes. O livro proporciona uma reflexão sobre a condição de ser humano, suas agruras e felicidades. É também um tipo de alerta para aqueles sem muita experiência na vida prática, pois se respalda na próxima experiência pessoal da escritora, para indicar o que algumas atitudes tomadas por impulsos advindos de alguns sentimentos que estão mais aflorados na adolescência podem acarretar. Uma espécie de exploração das possibilidades íntimas e humanas sem o contra das vivências dos problemas encontrados na vida real. O tema paixão é tratado na literatura desde seus mais distantes começos. Por ser importante e parte da vida das pessoas, esse tema é recorrente na história da literatura mundial. Este sentimento que acomete aos seres humanos deixando-os por vezes sem o controle de suas emoções e também de suas vidas. Um sentimento poderoso. A escritora Lygia Bojunga também trata desse tema, porém seu enfoque é o público infanto-juvenil. Nelly Coelho descreve brevemente a referida escritora: [...] uma das vozes mais ricas da literatura questionadora de mundo que caracteriza o novo na criação literária, Lygia, em cada livro, enfoca um problema específico da existência humana, através das relações fundamentais que estabelece entre o eu e o outro. Em todos eles, a imaginação criadora (lúdico-crítica) é o motor-geratriz da fabulação. A consciência da palavra como construtora do real é a pedra angular que sustenta o seu mundo de ficção. (COELHO, 2006, p. 496). Esse trabalho visa analisar a forma de apresentação e abordagem dessa temática para o público alvo da escritora, pois a literatura pode ser um auxilio aos adolescentes que passam por problemas por vezes, ou questionamentos recorrentes dessa faixa-etária ou período da vida. A PAIXÃO E SEUS CONCEITOS O conceito de paixão é tradicionalmente visto na sociedade como o oposto ao pensamento objetivo. Se visto somente dessa forma, pode ficar reduzido a uma tendência ou mera subjetividade. Na obra Os Sentidos da Paixão, lê-se que a paixão é “(...) afirmação da liberdade” (p. 12, 1987). Nesse sentido, a paixão pode se apresentar de diferentes maneiras como: a glória, a inveja, o medo, o ciúmes, a ideologia, a amizade, a liberdade. É importante se refletir sobre o tema da paixão, visto que “(...) com a paixão, pode-se realizar uma reflexão por inteiro, uma vez que ‘espírito e corpo são uma só e mesma coisa’.” (p. 12, 1987). Os filósofos desde a Grécia antiga buscavam respostas ou definições sobre o que seria esse sentimento avassalador, pelo qual os seres humanos são afetados a ponto de realizarem atos que poderia prejudicá-los. Recorrendo a tradição filosófica, percebe-se que Aristóteles em Ética a Nicômaco procura uma definição para o tema da paixão. O filósofo a define como o que se move e impulsiona o homem para uma ação: “Por paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em geral os sentimentos que são acompanhados de prazer ou dor; (...)” (1979,1105 b 22-24). Prosseguindo com Aristóteles, este define que o homem virtuoso é aquele que consegue vencer suas paixões: “(...) a virtude diz respeito às paixões e às ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvado são características da virtude (1979, II, 6, 1106b 25-29). O filósofo grego atribui valor ao homem que consegue acertar suas paixões, que não as vive em excesso, ou seja, onde a razão logra vencê-la. Esse homem que consegue dominar suas paixões é chamado de virtuoso: o homem virtuoso aristotélico. Assim, pode-se inferir que um homem adepto de suas paixões não seria virtuoso ou não possuiria virtude. Essa afirmação denota o claro louvor ao uso da razão em contraposição às paixões. O homem para este filósofo, precisa ser apto no controle de suas emoções para que dessa forma construa sua vida longe de excessos. A vivências das paixões seria considerado uma espécie de erro, pois, para o pensador helênico, viver de forma acertada é usar a razão para que ela, apenas ela, guie as ações dos homens. As paixões prejudicariam a vida dos homens, visto que, não os deixava possuir virtude, ou seja, o sentimento dominador chamado paixão, não consente um espaço para que a razão pudesse operar. Segundo o dicionário Aurélio paixão é: s.f. Movimento violento, impetuoso, do ser para o que ele deseja. / Atração muito viva que se sente por alguma coisa. / Objeto dessa afeição. / Predisposição para ou contra. / Arrebatamento, cólera. / Amor, afeição muito forte. (…) (2013). A partir dessa definição, pode-se inferir que o dicionarista e intelectual brasileiro consente até certo ponto com concepção aristotélica de paixão, porquanto que considera esse sentimento arrebatador, violento, impetuoso, isto é, características que evidenciam aspectos negativos desse sentimento. Aspectos que teriam a força necessária para conduzir os sujeitos se, cegados pela paixão a realizarem atos impulsivos com efeitos trágicos. A própria noção de estar “cego pela paixão” atesta esse caráter avassalador e egoísta atribuído a esse sentimento. Pois, se “estamos cegos” ou nos encontramos temporariamente sem visão por interferência dela, é porque se somos acometidos de paixão; a razão é afastada de suas funções, e os sujeitos estão a esmo guiados pelo sentimento violento da paixão. Não se encontram com as “rédeas” que comandam suas ações e suas atitudes. Invocando a história da filosofia, por ora, Baruch Spinoza filósofo holandês, que se preocupou em investigar a natureza dos afetos humanos em Tratado Político (2009): Os filósofos concebem os afetos com que nos debatemos como vícios em que os homens incorrem por culpa própria. Por esse motivo, costumam rir-se deles, chorá-los, censurá-los ou (os que querem parecer os mais santos) detestá-los. Crêem, assim, fazer uma coisa divina e atingir o cume da sabedoria quando aprendem a louvar de múltiplos modos uma natureza humana que não existe em parte alguma e a fustigar com sentenças aquela que realmente existe. Com efeito, concebem os homens não como são, mas como gostariam que eles fossem. [...] Tive todo o cuidado em não ridicularizar as paixões humanas, nem lamentá-las ou detestá-las, mas compreendê-las.”(p. 5). Para este pensador, os afetos e paixões humanas não devem ser ridicularizadas, repreendidas e extirpadas da vida das pessoas, como a tradição filosófica até então postulava. Deve-se analisar a forma de ser e agir dos indivíduos com base no que realmente são, no que apresentam ou seja, seres que sentem uma infinidade de sentimentos e afetos. Os sentimentos são inerentes aos sujeitos. Spinoza propõe a desconstrução do que a tradição filosófica até então considerava como dogma; os seres humanos superiores devem ser semelhantes a Deus, ou seja, extirpar os sentimentos de sua existência para que se possa utilizar a razão sem interferências, agir somente guiado pela racionalidade. Esses sujeitos, como o filósofo argumenta, estão longe de existir dessa maneira, não são deuses, por isso são constituídos também dos sentimentos. E, que para se iniciar a compreensão da natureza humana em sua complexidade e completude, os sentimentos são necessários, já que contemplam de forma verdadeira parte importante do que somos. A partir do momento em que consideramos os sentimentos como inerente aos seres humanos, se torna possível a reflexão da forma de ser e funcionamento dessa natureza. Os sujeitos estão formados e são transformados pelas paixões que sentem e vivenciam assim como pelo uso da racionalidade. Para a da filosofia contemporânea (cronologicamente) o filósofo alemão Friedrich Nietzsche discute dentre outros temas de sua vasta obra, sobre os sentidos em que paixão pode assumir entre os sujeitos, e também a caracteriza: “A moral como contra natureza Todas as paixões têm uma época em que são meramente nefastas, durante a qual, com o peso da estupidez, arrastam as suas vítimas para uma depressão...”(1985, p. 29). Neste caso, o pensador alemão critica a paixão no sentido amoroso. Esse tipo de paixão, o filósofo considera de aspecto negativo, visto que seu fim é levar os sujeitos a uma depressão, sofrimento grande a uma dependência de outros que não ele mesmo para ser feliz ou sentir-se bem. O sentimento considerado como um fator positivo é o tipo de paixão que faz o ser humano elevar-se em si mesmo, bastar-se em si. Aquele em que o homem não precisa emocionalmente de outros para sentir-se bem. Não no sentido espiritual do termo, ser semelhante a Deus; elevar-se para tornar-se forte e utilizar toda essa potencialidade que a paixão proporciona, todo o impulso como um meio para tornar-se dono de si mesmo e senhor dos seus atos. O alemão discorre sobre o sentido positivo que a paixão pode possuir se utilizada como meio para elevar-se: O fim da tragédia não é desembaraçar-se do medo e da piedade, nem purificar-se duma paixão perigosa, mediante sua descarga impetuosa — como o entendeu Aristóteles — mas realizar-se em si mesmo, acima do medo e da piedade, é a eterna alegria que leva em si o júbilo do aniquilamento (1985, p. 101, grifos do autor). Nietzsche defende o caráter positivo que uma paixão pode assumir se, esta for direcionada como um trampolim para que o homem (sujeito) consiga revivescer mais apto e forte para a vida, pois, como assinala o filósofo: “Destruir as paixões e os desejos unicamente por sua brutalidade e para evitar as consequências nocivas que esta produz, nos parece hoje uma fórmula particular da estupidez”. (1985, p. 28). A PAIXÃO EM SAPATO DE SALTO O livro Sapato de Salto de Lygia Bojunga, (2006) narra a historia da menina Sabrina, de 11 anos, que sai de um orfanato para trabalhar de babá em uma casa de família, a família Gonçalves. A dona da casa, chamada Matilde, é quem manda e desmanda na menina e também decide que Sabrina não recebera salário, pois viverá em sua casa. O esposo de dona Matilde abusa sexualmente da menina, fazendo com que ela passe por terríveis sofrimentos. Sabrina também apanha muito de Dona Matilde. Um dia aparece a tia de menina, chamada Inês, levando Sabrina para viver com ela e sua avó dona Gracinha. Então, Sabrina começa descobrir suas origens. Sua mãe Maristela engravidou aos 14 anos de um homem casado que não quis assumir a criança. Dona Gracinha ficou muito desapontada com Maristela, pois desejava um futuro melhor para sua filha. Então, Maristela deixa sua filha em um orfanato, amarra uma pedra em si mesma e se joga no rio. A outra filha de dona Gracinha, Inês decide sair de casa. Após, o fim do relacionamento de Inês, ela volta buscando sua mãe do hospício e a sobrinha do orfanato. Inês ganha à vida dando aulas de danças, por isso seus vizinhos acreditam que ela seja uma prostituta. Um garoto de 13 anos, Andrea Doria começa a ter aulas com Inês, fazendo também parte da história. A mãe, de Andrea Doria é Paloma, muito gentil e dedicada, casada com Rodolfo, homem com traços severos e patriarcais. Paloma tem um irmão gêmeo chamado Leo, eles são grandes amigos. Tia Inês é assassinada por seu antigo namorado, deixando assim, Sabrina e dona Gracinha desamparadas economicamente. A temática da paixão permeia todo o livro Sapato de Salto. A personagem Maristela, mãe de Sabrina engravida aos 14 anos. Quando a mãe de Maristela Dona Gracinha descobre que a filha estava grávida se desespera, pois sonhava para a filha um futuro diferente. Maristela responde: - “É que eu me apaixonei, mãe1.” (S.S. p. 96). A paixão que sentia Maristela adolescente pelo homem ocasionou sua entrega a ele. E após ver o desespero de sua mãe ao saber de sua gravidez e a recusa em assumir a paternidade da criança por parte do homem, ela sai de casa e procura trabalho. Não consegue trabalho e então começa a se prostituir para conseguir se alimentar. Quando a criança nasce Maristela não suporta mais a vida que leva, deixa a criança em um orfanato, amarra uma pedra em volta de sua cintura e se joga no rio, suicidando-se. Neste primeiro caso de paixão apresentado pelo livro, as suas consequências desembocam em suicídio: Tia Inês quando indagada por Sabrina sobre o que havia acontecido com sua irmã, responde: “- Se afogou?? (...) Abraçada com uma pedrona.” (S. S. p. 40). 1 Todas as citações do LivroSapato de Salto referem-se a BOJUNGA, Lygia. Sapato de Salto. Rio de Janeira: Casa Lygia Bojunga, 2006. BOJUNGA, Lygia. Sapato de Salto. Rio de Janeira: Casa Lygia Bojunga, 2006 e, no presente trabalho, para o livro se usará a abreviatura S.S., seguida do número da página. Em outro momento do livro a personagem Tia Inês diz para Sabrina que Maristela: “… tava numa paixão medonha.” (S.S. p. 106.). Bojunga expõe ao leitor através da personagem Inês, o caráter medonho que a paixão pode atingir. Foi por essa paixão fulminante sentida por Maristela que a transformou em presa ingênua nas mãos de um homem mais velho e experiente na vida, que ao ser informado sobre a gravidez da adolescente: “... não quis mais saber dela e mandou ela se virar”. (S.S. p. 106) Maristela obnubilada por seus sentimentos não é capaz de inferir que talvez seu parceiro não sinta por ela o mesmo, a adolescente ingênua, não conhece ainda a armadilhas da vida e as possíveis intenções camufladas das pessoas. É abandona pelo pai da criança, sua mãe se frustra, ela foge de casa e no limite do desespero comete suicídio. Não pensa no futuro e não reflete o que poderia acontecer a partir de sua entrega ao homem sem a devida precaução, engravida. Gravidez na adolescência não é mais tabu, no entanto, a jovem menina pode vir a sofrer em sua vida futura por não haver planejado um bebê. Uma adolescente não se encontra preparada física e emocionalmente para ter um filho. Bojunga alerta nesse livro pela primeira vez, que o preço a pagar pela prática de uma paixão desenfreada pode ser a gravidez. A autora adverte que durante a adolescência, com todos os problemas, percalços e dúvidas causados pela mesma, talvez os jovens ainda não possuam discernimento necessário para tornarem-se conscientes e responsáveis sobre os frutos de uma vivência arrastada pela paixão. A escritora não faz uso de julgamentos de valor quanto aos atos da personagem, expõe de maneira lúcida e com voz experiente o que poderia acontecer com uma jovem se não alertada sobre possíveis efeitos, causas ou consequências de uma total entrega em uma paixão amorosa. Lebrun em Os sentidos da Paixão ocupa-se com o conceito da paixão amorosa, que induz o ser humano cego por esse sentimento ser submisso a outro ser, pois a paixão “(...) é o sinal de que eu vivo na dependência permanente do outro.” (1989, p.18). Essa dependência pode ser de ordem emocional fazendo com que o sujeito viva unicamente para o outro e esqueça mesmo que temporariamente de si próprio. Como já foi exposto por meio de apresentação da personagem Maristela, Bojunga reflete no livro Sapato de Salto sobre possíveis problemas desencadeados quando a paixão é vivida de forma desenfreada e sem o mínimo de racionalidade necessária. Como se a autora nos alertasse a pensar, refletir antes de nos deixarmos levar pelos impulsos latentes desse sentimento. É uma espécie de alerta de que fatos trágicos podem suceder como se ecoasse uma voz: “Tem lobo mau ai chapeuzinho, cuidado!” Esse lobo já não é o animal falante das histórias infantis, visto que, o público da autora não busca mais livros com histórias de lobos falantes, e seres irreais, suas necessidades mudaram. Esse “lobo” pode estar travestido de ser humano e causar inúmeros danos da vida desse adolescente. Esse leitor que está na adolescência e sente-se angustiado por problemas e conflitos surgidos nessa fase da vida. As descobertas sexuais, hormônios, sentimentos contraditórios, paixões em doses gigantescas, pressão para escolha de uma profissão, etc. O leitor nessa idade é despertado a iniciar uma reflexão sobre os efeitos por vezes devastadores que a paixão pode ocasionar. A personagem, a Tia Inês do referido livro, igualmente é acometida por paixão assoladora confessada pela mesma: “... me adoidei de paixão”. (S.S. p. 107) durante o período de sua adolescência que, consequentemente transforma sua vida de forma negativa. Tia Inês apaixona-se por um homem “...dez anos mais velho...” (S.S. p. 122) que conhece em Copacabana no Rio de Janeiro, por isso abandona sua mãe Dona Gracinha, bradando: “- Dona Gracinha, vê se entende, vê se entende! Tô indo m’embora pra Copacabana e vou pra morar! Tenho que acompanhar o homem que é a paixão da minha vida...” (S.S. p. 122, grifo nosso). Não sabia Inês, que o homem tampouco sentia o mesmo por ela, a adolescente: “... não detectava a vigarice quem não tinha experiência da vida...” (S.S. p. 122). Mais tarde ela descobre que o homem na realidade trata-se de um cafetão. O cafetão vicia Inês em drogas e a obriga prostituir-se para que o pagamento seja seu. Com o passar do tempo e grande sofrimento Inês consegue livrar-se das drogas e vai à procura de sua mãe, Dona Gracinha. Observa-se nesse caso, que a entrega total a uma paixão, causou consequências inúmeras negativas. Inês é explorada sexualmente pelo homem que está apaixonada e também é iniciada no vício das drogas, para que a dependência em relação ao homem fosse maior ainda. Bojunga apresenta de forma contundente e clara o que pode acontecer com uma adolescente que não possui muito conhecimento sobre a vida prática, e que se deixa arrastar pela paixão. A passagem do livro que mais representa uma espécie de alerta sobre os possíveis efeitos negativos de uma paixão, é quando Inês diz a Sabrina: “Atenção, Sabrina, atenção. (...) – Paixão, não! Paixão desgraça a gente; a gente vira cachorrinho mesmo: sempre olhando pro dono pra adivinhar o que que ele quer que a gente faça; rabinho sempre abanando quando adivinha e faz. Atenção!” (S.S. p. 107). A escritora exterioriza um alerta específico aos seus leitores e leitoras, a paixão pode tornar os sujeitos submissos e dependentes a outros. Cuidado com o que esse sentimento pode causar. A personagem Inês atentou-se aos perigos desse sentimento, após padecer as consequências. Algumas delas, porque seu fim será o mais trágico de toda a obra. Após Inês livrar-se das drogas recorrendo até ao artifício da fé, pois, seu desespero era imenso: ... antes de você morrer, quer dizer, antes de você sumir e dizerem que ‘cê tinha morrido, eu rezei demais pra São Jorge me dar garra. Cansei de dizer pra ele que eu precisava de garra. Garra pra me livrar de você e da droga. E fiz promessa pra ele, sabia? Jurei que ele me dando garra eu ia buscar minha mãe e a minha sobrinha pra ser o arrimo delas; eu ia ter uma família; ia ser outra Inês! Expliquei pra ele que esse xodó maluco que eu sentia por você me deixava sem força pra te dizer não-vou-não-faço-não-me-pico-não-quero; que adiantava eu querer dar a volta por cima se ele não me ajudasse a ter garra pra te dizer não-vou-não-faço-não-cheiro-não-quero! (S.S. p, 134). O cafetão de Inês vai a sua busca. No livro é apresentado como “Assassino”; ao encontrá-la ordena que volte com ele, no entanto, Inês afirma: “- Durante sete anos você tirou de mim tudo que uma puta apaixonada pode dar, já tirou que chega!” (S.S. p. 138). Inês não aceita retornar com seu antigo modo de vida: ser prostituta explorada pelo cafetão. A reação desse personagem é de raiva e tenta levá-la à força, não conseguindo acaba por: “Num gesto rápido, o Assassino agarrou a mão que segurava a arma, desviou ela pra Tia Inês e, de dedo comandando o gatilho, disparou uma, duas, três vezes. (...) Foi o corpo cair que o Assassino correu pra porta. Sumiu lá fora.”(S.S. p. 140). O final trágico de Tia Inês: ser assassinada por sua antiga paixão. Bojunga apresenta a morte da personagem como a consequência última de não se ter domínio racional das paixões. Na obra A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves, Eluf analisa casos em que assassinatos passionais ocorreram. Para a autora: O criminoso passional raramente se arrepende. Em alguns casos, perante o juiz, o acusado se diz arrependido, mas visando apenas a diminuição da pena ou a compaixão dos julgadores. Para seus advogados eles dizem a verdade: acharam-se no pleno direito de matar. — Ninguém mata por amor. Os sentimentos que dominam o espírito do criminoso passional são o ódio, a vingança, o rancor, a egolatria, a autoafirmação, a prepotência, a intolerância, a preocupação com a imagem social, a necessidade de exercer o poder. (2007 p., 262). O antigo parceiro e cafetão de Inês a matou demonstrando que a última palavra ainda era a sua. Ou seja, que ainda a dominava, mesmo que abandonado. Recorreu à violência. No artigo Crime passional ou homicídio conjugal Lucienne Borges analisa com o viés da psicologia como se caracteriza o assassinato dito passional: “O homicídio conjugal é uma das categorias da classificação dos homicídios, representado por um gesto violento, a saber, um ato agressivo que se inscreve no âmbito de uma relação conjugal, independentemente de os parceiros estarem juntos ou separados.”(2001). É fato que Bojunga mostra nessa obra algumas consequências negativas e em alguns casos trágicas advindas da paixão. O pedido para que seu leitor ligue seu “alerta” interno e não se deixe arrastar por esse sentimento foi emitido. Alguns aspectos do caráter negativo da paixão foram expostos. No entanto, a autora nos apresenta ainda que de forma incipiente o que a paixão teria de positivo se canalizada para outras vias. Paloma casou-se apaixonada com Rodolfo. Ela tinha alguns sonhos, mas, como seu marido não compartilhava dos mesmos desejos, acabou deixando-os de lado. Com o passar do tempo, Paloma arrepende-se: Quem mandou esquecer de ser uma profissional que nem o Léo? ter uma carreira que nem ele? viajar feito ela sempre quis? Não ter nunca que dizer,tô sem dinheiro pras compras da casa. Quem mandou esquecer isso tudo e botar toda a energia no grande sonho de criar uma família feliz ...(S.S. p. 151). A personagem entendeu que o abandono de alguns de seus sonhos e objetivos para concentrar toda sua energia ou canalizar toda a sua paixão que era a de formar família com Rodolfo não a fazia feliz. Rodolfo a tratava mal e o peso de não ter uma profissão tornava sua vida muito difícil. Paloma declara: “Eu não fui criada para me tornar tão dependente. Mas me adaptei. Fui sempre tão apaixonada por você que fiz de mim gato-sapato pra me adaptar à dependência de você”. (S.S. p.245). Dessa forma decide após muito sofrimento deixar de comandada por Rodolfo e utilizar sua energia e paixão de uma forma mais positiva, pois se sentia esgotada em servir apenas manejar a casa, estava ...”resolvida a administrar.” (S.S. p. 245, grifos da autora). Através da canalização da paixão dessa vez imbuída na forma de solidariedade, Paloma adota Sabrina e Dona Gracinha. Utiliza a paixão de forma positiva transformando a sua vida e a das outras personagens. Bojunga parece nos sinalizar com uma ponta de esperança. Apesar de todo o potencial destrutivo e negativo da paixão se, esta for dirigida para um fim que neste caso é o da solidariedade, o ajudar a outros sujeitos, produz frutos saudáveis. Esse sentimento deixa então de conduzir a submissão a outros. No entanto, é capaz de ser solidário e somar com outros para a construção de uma vida mais digna, sem tragédias passionais. E dito de forma muito lúcida através da personagem Paloma: “... as paixões esfriam com o tempo. A minha não foi exceção.” (S.S. p, 245). CONSIDERAÇÕES FINAIS O propósito deste trabalho foi o de analisar de que forma o tema da paixão é abordado no livro Sapato de Salto de Lygia Bojunga. O livro é destinado ao público infanto juvenil dessa forma, buscou-se estudar como a temática é exposta para essa determinada idade. Para isso recorreu-se a tentativa de conceituação do sentimento paixão através da história da filosofia e teorias que tratassem do tema em estudo. Constatou-se após analise da obra, que a escritora expõe o sentimento de paixão no sentido de relacionamento amoroso como algo que possa trazer consequências negativas se vividos sem nenhum tipo de apelo racional. E, que se a energia da paixão for canalizada para outro fim que não o relacionamento amoroso, pode proporcionar a construção de uma vida mais digna e sem tantos problemas consequentes de uma paixão vivida de forma negativa. Bojunga parece cuidar de seu leitor. Salientar sobre alguns perigos em que pode vir a ser exposto se a paixão o dominar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Aristóteles. Col. “Os Pensadores”. Trad. L. Vallandro e G. Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1979. BORGES, Lucienne Martins. Crime passional ou homicídio conjugal? Psicologia em revista. Belo Horizonte. vol.17 no.3. dez. 2011. BOJUNGA, Lygia. Sapato de Salto. Rio de Janeira: Casa Lygia Bojunga, 2006. CARDOSO, Sérgio et al. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Critico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006. ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, oucomo se filosofa à marteladas. Lisboa: GuimarãesEditores, Ltda, 1985. SPINOZA, Baruch de. Tratado Político. Tradução, introdução e notas Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.