Índice
Preâmbulo
Breve estudo sobre organização e simbólica castrense
1. Notas iniciais
I – ORGANIZAÇÃO
2. Hierarquias
3. Diferenciações funcionais
4. Armamento e equipamento
5. A táctica
6. As rotinas
II – RITUAIS E SÍMBOLOS DA CULTURA MILITAR
7. As grandes batalhas
8. As “honras militares”
João Freire
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9. As “Ordens” e as condecorações
10. Disciplina, justiça e ética militar
Glossário
Bibliografia
Elementos de Cultura Militar
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Preâmbulo
Este trabalho destina-se fundamentalmente a auxiliar os actuais
investigadores em ciências sociais, e também os estudantes dos ciclos
iniciais do ensino superior das mesmas áreas, a enfrentar a terminologia, conceitos e hábitos culturais próprios do universo castrense.
Mas também pode ser útil aos alunos das escolas superiores militares,
facilitando a sua compreensão dos processos de socialização acelerada
de que estão a ser alvo no interior dessas instituições.
O estudo introdutório aqui inserido versa dois temas diferenciados: o primeiro debruça-se sobre as grandes linhas da organização
dos exércitos de terra; o segundo aborda algumas facetas das simbólicas militares, comuns a todos os ramos das Forças Armadas.
O Glossário de termos linguísticos refere-se igualmente a estes
diversos ramos, embora com compreensível predominância para a
terminologia usada no Exército. As “entradas” estão ordenadas alfabeticamente. As maiúsculas no interior de uma frase correspondem geralmente a outras “entradas” existentes no glossário. Não foram considerados os nomes de batalhas e de personalidades, por corresponderam mais à vocação de um dicionário do que de um instrumento deste
tipo.
Agradeço a Bernardo Diniz de Ayala, Adelino Rodrigues da Costa,
J. M. Freire Nogueira e Manuel Barão da Cunha a revisão e correcções feitas
no meu original.
João Freire
(Sociólogo. Professor Emérito do ISCTE-IUL.
Investigador no CIES. Antigo oficial da Armada)
Breve estudo sobre organização
e simbólica castrense
1. Notas iniciais
Antes de entrarmos na explanação das questões que aqui nos
ocupam – designadamente, alguma elucidação sobre as estruturas
organizativas das instituições militares e sobre práticas culturais e
simbólicas típicas deste grupo social* – julgamos conveniente tecer
um certo número de considerações preliminares acerca deste universo
algo fechado e que cultiva uma forte identidade profissional.
Assim, em primeiro lugar, diríamos que as instituições castrenses
são bastante conservadoras – quero dizer: mudam e evoluem apenas
lentamente –, se tivermos como termo de comparação as instituições
económicas e sociais contemporâneas, ou mesmo uma certa classe de
organismos públicos da esfera estatal. Entre as causas desse conservadorismo inclui-se alguma transmissão patrimonial simbólica e afectiva
propiciada pelo elevado grau de reprodução social registado nas famílias dos militares profissionais, fenómeno que ainda não foi suficientemente estudado em termos científicos entre nós (Monteiro, 2003; Marques, 1999; Carrilho, 1985). Convém lembrar que os militares constituíam um universo absolutamente masculino até há alguns anos atrás,
sendo que a feminização dos seus efectivos representa a mudança social
mais forte, imposta do exterior, com que a instituição se estará actualmente a confrontar, juntamente com certos comportamentos sexuais,
afectivos e emocionais, cujos efeitos ainda estão por perceber-se em
toda a sua extensão (Carreiras, 2002). Por estas razões, o estudo e a
*
Este texto baseia-se nas exposições orais apresentadas em duas sessões realizadas no ISCTE-IUL no ano de 2010, destinadas a jovens investigadores em história e ciências sociais cujos objectos de estudo são os militares e as Forças Armadas.
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João Freire
compreensão dos elementos fundamentais da sua história assume um
papel mais relevante para uma análise científica do seu presente.
Num outro plano, porém, podemos sustentar que a chamada ‘história militar’, apesar do importante e insubstituível património bibliográfico, iconográfico e museológico amealhado, não constitui um tratamento científico do fenómeno da guerra nem dos corpos militares porque, essencialmente, é vista e orientada como um elemento de reforço
da coesão da instituição, esperando-se dela, portanto, uma contribuição
instrumental para que aquela possa cumprir melhor a sua missão. Atente-se neste pequeno exemplo da sua história institucional em Portugal,
assim equacionada em três tempos: 1º passo – o Exército e a Marinha
(porque a Aviação é nossa contemporânea) começam realmente como
organizações centralizadas do Estado entre os séculos XVI e XVII, no
quadro da independência do reino reencontrada em 1640 e da afirmação
geopolítica das nações no espaço europeu depois do tratado de Westfália (1649); 2º passo – assumem-se, realmente, como grandes instituições
nacionais com o constitucionalismo do século XIX (incluindo a garantia
do império colonial); e 3º passo – desempenham finalmente o seu papel
de garantes da nacionalidade (por vezes até de forma excessiva e perigosa, quando se substituem aos governos) já em pleno século XX. Conclusão: na realidade, elas não existem, como gostam de afirmar, “desde
a fundação da pátria”, onde havia já certamente forças militares (a mando do rei e da nobreza, fundamentalmente), mas não um “exército nacional”. Com efeito, não é uma casualidade que os historiadores e analistas actuais dos sistemas e processos bélicos tenham recorrido com frequência ao epíteto da ‘nova história militar’ (ver Barata & Teixeira,
2003) para se demarcarem daquela perspectiva, que dominou o campo
durante muitas décadas.
Em terceiro lugar, é importante afirmar que as instituições militares concentram, em si mesmas, uma grande experiência histórica acerca
dos comportamentos humanos e da psico-sociologia de indivíduos e
colectivos, em contextos de violência, perigo e angústia. Esse conhecimento, “de experiência feito”, tem pouco de especulativo e consubstancia-se sobretudo num conjunto de regras e concepções plasmadas progressivamente nas suas formas organizativas institucionais, nos modos
explícitos de combater e fazer a guerra (ver Santos, 2010) e, finalmente,
de maneira mais diluída, na cultura que vai sendo gerada por estas instituições e pelos grupos sociais que a habitam, ao longo do tempo. Afir-
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ma um historiador que: “Os soldados não são como os outros homens
[…]. A guerra é totalmente diferente da diplomacia ou da política porque deve ser travada por homens cujos valores e competências não são
os dos políticos ou diplomatas. São os de um mundo à parte, um mundo
muito antigo que existe em paralelo ao mundo do dia-a-dia mas que não
lhe pertence.” (Keegan, 2009, p. 17).
Por outro lado, deve-se reconhecer que as instituições militares
foram capazes de forjar doutrinas e orientações pragmáticas extremamente racionais e eficazes, na sua procura (quase obstinada) da obtenção de determinados fins (vencer!) com os meios (forças, armas, etc.)
de que puderam dispor e nas condições (geográficas, económicas,
políticas, etc.) existentes e que não lhes era dado modificar. Neste
aspecto, pode ser útil visitar o nosso exame analítico que procurou
identificar as homologias e parentescos que podem existir entre as
organizações militares e as empresariais (Freire, 2010a), e mesmo a
tentativa que também fizemos de compreender uma parte da lógica
das corporações militares a partir da literatura sedimentada da sociologia das profissões (Freire, 2003; Matos, 2004).
Dir-se-ia também que (num plano hipoteticamente psico-analítico), para compensar essa obsessão racionalizante da procura da
vitória e o elevado grau de risco de vida pessoal inerente à acção guerreira, os militares foram levados a forjar uma panóplia ampla e rebuscada de expressividades simbólicas, de honrarias e respeitos, que
aproveitaram de certas cortesias e elegâncias da antiga nobreza, congelando-as no tempo, enquanto lhes iam acrescentando outros gestos
(alguns mais do foro do embriagamento e da transgressão – vg o aproveitamento das “licenças” ou os festejos dos fins das guerras) ditados
pela sua própria experiência histórica, e a sua memória: lembremo-nos
do impacto do ‘napoleanismo’ em todo o mundo, ou das guerras mundiais do século XX (Nogueira, 2004; Valente, 2005; Teixeira, 1996;
Afonso & Matos, 2010; Arrifes, 2004; Chassin, 1951; Gilbert, 1989;
Duarte, 2010). Assim, teremos mais uma chave de interpretação para
encarar analiticamente as práticas militares, tão marcadas por claros
contrastes entre a paz e a guerra, o quartel e o “campo”, a rotina e a
acção bélica, o serviço e o “conhaque”.
Sexta nota. O (quase-)monopólio do uso de meios de violência
atribuído às Forças Armadas e a grande escala humana dos seus efectivos levaram a uma codificação muito rigorosa de regras específicas a
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estas instituições, normalmente concretizadas em regulamentos. Citamos quatro, em particular: 1ª – a constitucionalização de uma ‘obrigação militar’ que incumbe a todos os cidadãos (paralela, por exemplo, à
obrigatoriedade do pagamento de impostos), mesmo quando não existe serviço militar obrigatório (SMO) em tempo de paz; 2ª – o domínio
da disciplina (que organiza os comportamentos e relações dos indivíduos dentro da organização): 3ª – a taxativa separação entre a acção
profissional dos militares (a partir das directivas ditadas pelo governo)
e a acção política (que lhes está interdita, com maior ou menor extensão – ver Matos, 2008); e 4ª – a evolução histórica da orientação da
intervenção das Forças Armadas para a defesa externa do país, deixando o domínio da segurança interna para forças policiais profissionalizadas (questão que, de novo, está a ser problematizada e que poderá ter alguma involução – ver Nogueira, 2005; Vaz, 2002; Carreiras,
2002; Clark, 2004; Rodrigues, 2004; Santos, 2006).
Finalmente, como em qualquer outro grupo social estruturado, os
membros permanentes das instituições castrenses forjam os seus interesses próprios – interesses pecuniários e materiais, mas também morais e simbólicos – os quais, por vezes, entram em conflito com os
objectivos directores daquelas mesmas instituições. Várias suspeições
deste tipo, mais ou menos plausíveis, têm tido curso nas opiniões públicas, ao longo do tempo: a de que os militares seriam os principais
fautores das guerras (quer pelo apetite de vitórias dos altos-comandos,
quer pelo espírito belicista e nacionalista dos oficiais e quadros de
base); os benefícios e privilégios usufruídos pelos militares, que sustentariam os regimes políticos ditatoriais modernos; os supostos
“complexos militar-industriais” que lucrariam com a ocorrência de
conflitos armados; ou, em “Estados falhados”, o uso indevido das
armas para exercer violência por conta própria; além de outros. Mas, a
cada uma destas suspeições se podem opor exemplos de sentido contrário, o que nos deve levar a reconhecer apenas um ponto, analiticamente relevante: o de que existe uma diferença, que é necessário identificar e definir em cada situação concreta, entre os comportamentos
proclamados oficialmente pela instituição e os comportamentos realmente tidos por cada um dos ‘grupos de interesse’ que existem no seu
interior. Foi o que fizemos, por exemplo, quando analisámos os desa-
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justamentos ocorridos no século XX na Marinha portuguesa entre a
“instituição” e a “corporação” (Freire, 2003 e 2010).
É tendo em conta estes sete pressupostos que aqui vamos tratar de
dois objectos de estudo, embora numa forma apenas esboçada e elementar: a organização das estruturas militares contemporâneas; e alguns aspectos simbólicos da cultura castrense.
No que respeita à organização, focar-nos-emos sobre o caso do
Exército. A sua maior escala social e um mais importante papel histórico desempenhado no país nos últimos duzentos anos justificam esta
opção. Pela especificidade do meio em que actua, pela sua dimensão
humana mais reduzida e pela combinação original da sua dupla identidade, marinheira e militar, a Armada exigiria toda uma outra diferente
análise, aliás já em parte coberta por bibliografia recente (Telo, 1999;
Freire, 2003). E a Força Aérea, que tem um tamanho ainda menor,
uma história que data apenas dos nossos dias e formas organizativas
quase inteiramente ditadas por critérios racionais contemporâneos,
terá que esperar por outra oportunidade para ver estudada e divulgada
a sua própria morfologia e identidade.
Já quanto à apresentação – neste caso meramente exemplificativa
e bastante lacunar – dos aspectos culturais e simbólicos, ela tenderá a
estender-se a todos os ramos e corpos que possuem a mesma natureza
castrense (incluindo a Guarda Nacional Republicana), embora também
se possa dizer que o Exército sai de novo mais privilegiado nos casos
e exemplos escolhidos. Aqui, o meu ponto de vista será sobretudo
sócio-antropológico, uma vez que o objecto científico em causa será a
“sócio-cultura” dos militares. Mas o que abrange este conceito? Simplificadamente, pode pensar-se que, para os historiadores, serão sobretudo as mentalidades e modos de vida; mas para os sociólogos (que eu
sou), será antes um complexo interpretativo característico de um grupo social, integrando diversas dimensões de análise, a saber: – interesses (ou seja, lógicas de acção auto-centradas); – valores (que orientam,
em profundidade, a acção dos sujeitos, individuais e colectivos); –
atitudes (estrutura estável de opiniões e comportamentos); – normas
(prescrições detalhadas de procedimentos); – práticas (desempenhos,
experiências e sua racionalização); – rituais (liturgia, gestos e expressões verbais, habitus estilizados); – e símbolos (referências evocativas). Serão sobretudo estes dois últimos pontos – rituais e símbolos –
que serão aqui apresentados.
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