Prefácio
O texto que vos apresento tem um nome estranho, Fita do Tempo. Não é uma
metáfora poética sobre o passar do tempo. É o nome militar do registo de operações. Tal
como na Marinha há o diário de bordo, no Exército há a Fita do Tempo. Trata-se do
registo das operações que na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 derrubaram a ditadura
e abriram o país à democracia. Naquela noite, entre as nove e as dez e meia, chegaram
ao Quartel da Pontinha em Lisboa seis homens com idades compreendidas entre os trinta
e três e os quarenta e quatro anos com patentes entre major, capitão-tenente e tenentecoronel, e oriundos dos três ramos das Forças Armadas. Eram eles Amadeu Garcia dos
Santos, Hugo dos Santos, José Eduardo Sanches Osório, Nuno Fisher Lopes Pires, Otelo
Saraiva de Carvalho e Vítor Crespo. Tinham-se despedido das famílias com alguma
angústia. Estavam certos da missão de que tinham sido incumbidos pelos seus
camaradas, mas não sabiam se a poderiam cumprir. Eram os operacionais do 25 de Abril,
coordenados por Otelo Saraiva de Carvalho por decisão do Movimento das Forças
Armadas.
Os resultados das operações que se desenrolaram naquela noite e nos dias
seguintes são hoje bem conhecidos. Fazem parte da história contemporânea do nosso
país. O que não sabemos é como decorreram as operações antes delas entrarem para a
história, nas longas horas em que o futuro estava vazio e indiferente à espera de ser
preenchido pela aurora da democracia ou por mais uma tentativa falhada para derrubar a
ditadura. Dessas horas temos relatos individuais, por vezes discrepantes entre si. Mas não
tínhamos até agora um relato cotejado dos protagonistas daquela noite febril, tão decisiva
quanto incerta, enquanto o país e os seus governantes dormiam o sono dos justos ou dos
injustos consoante o seu merecimento.
Os homens que naquela noite se encerraram numa sala de operações improvisada,
com cobertores militares a tapar as janelas, não queriam fazer história. Queriam cumprir
uma missão: derrubar a ditadura, oferecer ao país a democracia. Era uma missão difícil.
Tinha havido várias tentativas falhadas, a última pouco mais de um mês antes. Que
razões havia para acreditar no êxito daquela noite? Tinham aprendido a lição dos
fracassos? Estavam confiantes que sim. Tinham decidido seguir uma estratégia diferente,
um plano operacional novo. Mas teriam êxito? Era uma estratégia arriscada porque, ao
contrário das tentativas anteriores, não assentava na revolta de uma unidade militar na
esperança que outras a seguissem, o que, como se vira no passado recente, nunca
ocorrera. Consistia antes na revolta de um vasto conjunto de unidades militares do Norte
ao Sul do país. Isto exigia um esforço de coordenação enorme e um plano operacional tão
complexo quanto preciso. Seria possível num país de timoratos e de bufos? Sem internet,
telemóvel ou sequer fax? Estaríamos perante uma ousadia realista ou uma aventura
irresponsável? Estariam os próprios protagonistas cem por cento certos da resposta a
esta pergunta?
A Fita do Tempo teve um destino cheio de percalços até chegar ao Centro de
Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra em 1996, pela mão do Coronel
Nuno Fisher Lopes Pires. A capa de cartolina que o protegia, e muitas folhas do texto,
apresentavam já algumas marcas do tempo, vinte e um anos de esquecimento, passados
em caves e sótãos nem sempre nas melhores condições de conservação, esperando a
oportunidade de ser resgatado para a memória. Trata-se de um documento valioso tanto
pelas circunstâncias históricas em que foi redigido como pela riqueza de informação que
contém. Foi elaborado ao longo de toda a madrugada e parte do dia 25 de Abril de 1974
até às 21 horas, pelos militares do Posto de Comando do Movimento instalado no
Regimento de Engenharia Nº 1.
No ano em que celebramos o trigésimo aniversário da Revolução dos Cravos,
decidimos dar a conhecer ao público a Fita do Tempo. Acontece que uma fita do tempo
trinta anos depois está literalmente velha. Felizmente para nós, os seis operacionais da
Pontinha estão vivos e isso permitiu-nos realizar um sonho: devolver à vida a fita do
tempo, revisitá-la enquanto estava a ser escrita por aqueles que a iam escrevendo ou por
aqueles que iam ditando os acontecimentos a quem os registava. Como estavam
distribuídas as tarefas? Havia tensões entre eles? Passaram por momentos de dúvida?
Confrontaram-se com a possibilidade de estarem a desencadear uma guerra civil com
eventual derramamento de sangue? Que riscos correram? Quais foram os momentos
decisivos? O que correu segundo o previsto e o que teve de ser cancelado ou
improvisado? Quando tiveram a certeza que tinham tido êxito? Como aguentaram tantas
horas sem dormir?
Em suma, pretendemos realizar a partir da Fita do Tempo mais uma história oral a
juntar às muitas que o nosso Centro tem posto à disposição dos investigadores. Para isso,
convidámos os seis operacionais da noite da Pontinha para uma conversa sobre os
acontecimentos narrados na Fita, suas horas e minutos. Todos aceitaram o nosso convite,
excepto o General Hugo dos Santos que recusou de uma maneira gentil e tendo a
amabilidade de me informar sobre as razões da sua recusa. A conversa teve lugar na
sede da Associação 25 de Abril e durou o dia todo. A transcrição constitui a segunda parte
deste texto.
Foram horas de um instigante recuo no tempo. Revelador da dificuldade em
regressar à origem dos actos fundadores antes deles serem fundadores e do fascínio de
captar a total indeterminação da história enquanto ocorre. Se em Portugal houvesse uma
tradição cinematográfica de filmes de suspense, este seria um guião apetecido. Mas o seu
mérito não reside apenas em transportar-nos a 1974. Reside igualmente em resituar-nos
em 2004. O que diz tudo aquilo que se passou naquela noite e o modo como se passou,
não sobre a sociedade que éramos em 1974, mas sobre a sociedade que somos em
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2004? Temos hoje tudo o que lhes faltava: democracia, internet, telemóveis, faxes. O que
nos falta para termos o projecto de país que eles, apesar de todas as faltas, tinham e pelo
qual lutavam?
Na preparação deste documento – cuja primeira parte é constituída pelo fascimile da
Fita do Tempo e sua transcrição comentada – contei com o apoio dedicado de todo o
pessoal do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, com
especial destaque para a Natércia Coimbra, a Manuela Cruzeiro e o José Carlos Patrício.
Tive ainda o privilégio de contar com a preciosa colaboração de um dedicado amigo do
Centro de Documentação 25 de Abril, o General Augusto Monteiro Valente que, entre
muitas outras coisas, ajudou a decifrar os enigmas da Fita do Tempo para leigos em
linguagem e técnica militares.
Em nome do Reitor da Universidade de Coimbra e de todo o pessoal do Centro de
Documentação, o meu agradecimento muito especial vai obviamente para os operacionais
da Pontinha. Sem eles, a fita do tempo não teria cor.
Boaventura de Sousa Santos
Director do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra
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