GRH
Romances Históricos
Tradução/Pesquisa:GRH
Revisão Inicial:Maria Emilia
Revisão Final:Ana Julia
Formatação:Ana Paula G.
Nieves Hidalgo
Brumas
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Resumo
Clifford Ellis, duque de Ormond, vive marcado pela morte de sua esposa,
o que o converteu em um homem severo que não quer saber da
sociedade, e muito menos de um segundo matrimônio. Mas sua avó e a
Coroa exigem que encontre uma nova duquesa para Hallcombe House.
Cliff decide nesse instante, que se deve casar o fará com Eleanor
McKenna, a neta do homem mais odiado por sua avó.
Lea nunca se deixou intimidar por um homem, mas quando conhece
Ellis se sente ameaçada… e fascinada por ele. Quando Cliff pede sua mão,
Eleanor se vê obrigada a aceitar esse matrimônio. Entretanto, o mistério
que rodeia Hallcombe House, o perigo que se abate sobre ela e um
segredo que deseja revelar a seduzirão tanto quanto a atração que
começa a sentir pelo duque.
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Resenha Bibliográfica
Nieves Hidalgo
Nieves Hidalgo nasceu em Madrid há algum tempo.
Considera-se,
fundamentalmente,
uma
incansável
viajante, e também uma impenitente devoradora de
livros.
Escreve há mais de vinte anos, no princípio por simples hobby e distração, e
para o desfrute de suas amigas e colegas de trabalho, até que publicou sua
primeira novela, O que dure a eternidade, com a qual conseguiu fazer um lugar
no panorama do romance literário, algo que se consolidou com a seguinte,
Orgulho saxão. Em 2009 foi laureada com dois Prêmios Canto da Novela
Romântica como «Melhor autora» e «Melhor novela» por Orgulho saxão, e dois
Prêmios Dama, como «Melhor escritora nacional romântica» e «Melhor novela
romântica espanhola», por seu livro Amanheceres cativos. Outros títulos da
autora são Filhos de outro barro, Lua do Oriente e Noites de Karnak, incluídas
em 2010 no catálogo do Círculo de Leitores, convertendo-se assim na primeira
escritora espanhola de novela romântica publicada pelo Círculo. O anjo negro
tem recebido 20.000 visitas nos fóruns e outras tantas em seu blog. As leitoras a
pediam em papel e a editoria Essência decidiu publicá-la em 2011.
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Comentário Revisora Maria Emilia
Este livro começa como um “luvinha” normal (Desculpa Zel, não resisti!) a
mocinha é dada em casamento sem escolha para um duque TDB e reclama. Mas
ai as coisas começam a mudar! Ela não é uma mosca morta, sabe como a vida de
uma mulher funciona no sec. XIX e quer ser feliz. Ele é um TDB marcado pelo
passado, mas isso é normal nos livrinhos. E fora isso temos um suspense bem
construído que nos mantêm presos ao livro. Gostei. Foi mais um prêmio que
ganhei do GRH fazer esta revisão!
Comentário Revisora Ana Julia :
Um romance com intrigas, romance, um florzinha bem escrito que te prende
até o final... Boa Leitura
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Prólogo
Ficou ali, confrontando um silêncio que rompia o repicar monótono da chuva batendo
nas telhas, em um gotejamento gelado com o qual um céu cheio de nuvens escuras
castigava a terra e misturava com suas lágrimas amargas.
O horror de um corpo grotescamente retorcido que jazia em um atoleiro de sangue. Um
corpo que tinha sido esbelto e elegante em vida. Mas a morte o tingia de infâmia
convertendo-o em uma massa bizarra, nos restos de um corpo que repugnava.
Deixou cair à carta que a vítima escreveu antes de jogar-se no vazio para espatifar-se
fatalmente contra o chão. Nela contava que era impossível continuar vivendo, que suas
esperanças foram destruídas, que o homem pelo qual respirava se casou e esperava um
filho.
O papel voou e pousou no atoleiro de sangue que fluía de sua cabeça aberta. Empapouse de vermelho e as letras foram se diluindo sob a chuva incessante e desapareceram,
esfumaram-se como desbotou a risada da moça que agora jazia morta.
Mas seus olhos tinham lido e jamais poderia esquecer as palavras escritas. Como
tampouco esqueceria o causador daquela desgraça: Clifford Ellis, duque de Ormond.
E diante do corpo que cuidou e amou pelo qual teria dado até seu último fôlego, a
testemunha muda da tragédia elevou seu olhar para o céu tenebroso e jurou vingança.
—Sim — disse em voz alta, quebrada pelo pranto — O duque de Ormond pagará.
Dedicarei a isso minha vida inteira se for preciso.
Capítulo 1
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Ducado de Ormond. Inglaterra
A bruma se infiltrava através dos muros como uma mão úmida e sinistra disposta a
apanhá-la. O vento uivava no exterior e ela tampou os ouvidos para não ouvi-lo. Ela tremeu
de medo, cravando seu olhar na lenha da lareira, crepitantes línguas de fogo que
monopolizavam sua atenção.
As pupilas de Mariam, duquesa de Ormond, dilataram ao desviar sua atenção para o
canto do quarto onde em outras vezes tinha surgido àquela silhueta fantasmagórica. Onde
ouviu o tétrico sussurro de uma voz que parecia vir do além. Agora a rodeava o silêncio,
mas ela sabia que voltaria a procurá-la. A ela e ao filho que levava em seu ventre.
Fora do castelo, o vento aumentava em rajadas sibilantes que, como um presságio,
pareciam lhe indicar que naquela noite se cumpria seu prazo. Afogou um soluço e se cobriu
até o queixo com o lençol, mas não pôde afastar seu imprevisível olhar do canto. Aguardou
e rezou com toda a fé que pôde reunir para que o fantasma não voltasse, para que a
deixasse em paz. Seus dentes estavam batendo e era incapaz de controlar seus tremores.
O hálito gelado que castigava os muros parou subitamente e uma cortina de água
começou a golpear o imponente castelo. Estupidamente, Mariam se disse que talvez o
espectro não viesse com um tempo tão lamentável, e o insensato pensamento produziu
nela um acesso de risada histérica.
Fazia só alguns meses que se instalou em Hallcombe House e depois disso sua vida tinha
mudado por completo. Os muros cinza, os intermináveis passadiços, as galerias inferiores,
inclusive o grande salão onde se celebravam audiências e se administrava justiça em
tempos remotos, pareciam-lhe lúgubres e frios. Odiou o castelo assim que o viu. Como
odiou ao homem com o qual sua mãe a obrigou se casar.
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O clima daquela parte da Inglaterra também não ajudava. Nem o terreno escarpado e
áspero dos Montes de Cumberland. Ela estava acostumada aos pastos de sua amada Gales,
onde vivia, mas teve que deixar para trás sua casa e seus amigos. Tudo que amava. Era
ainda muito jovem, mal tinha completado dezessete, e com aquele matrimônio se
evaporaram seus sonhos de liberdade. Agora era a esposa de Clifford Ellis, duque de
Ormond. E esperava um filho.
Ela sentiu-se sozinha e amedrontada assim que o conheceu. Era muito alto e ela mal
chegava a seu ombro; sua aparência e seu olhar duro e cinza a faziam sentir-se
insignificante. Imediatamente soube que não combinariam. E não o fizeram. Por isso voltou
seu afeto para aquele criado de caráter fraco, como ela mesma, mas com o qual se sentia a
vontade. No princípio, Mariam tinha tentado pôr uma distância entre os dois, mas foi
impossível. Carregava sobre seus ombros um sobrenome ilustre, com um título que não lhe
permitia cometer enganos. Uma reputação que a afogava. Mas acabou tendo o moço como
confidente e dos segredos passaram a toques sutis. Eram almas gêmeas e embora os
separasse seu nível social, um carinho sincero acabou por uni-los, o que era proibido.
O aguaceiro açoitava com fúria o vidro e um gemido escapou de Mariam, que se
converteu em grito quando a janela abriu de repente, batendo contra a parede e lançando
rajadas de água gelada ao interior, apagando as luzes das velas do candelabro que tinha
deixado acesas para que lhe dessem coragem. Saltou da cama, e trancou de novo a janela.
A chuva empapou sua camisola e retornou ao leito tiritando. As sombras haviam se
aprofundado, mas não se atreveu a mover-se, o medo a paralisava. E seus pensamentos
voltaram para o homem com quem agora estava casada.
Clifford a tinha tratado bem. Com uma correção agradável. Era um indivíduo estranho a
quem todo mundo respeitava. Com ela se comportou de modo cavalheiresco e sempre
estava consciente de que alguém —nunca ele— atenderia todas e cada uma de suas
necessidades.
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Mariam assumiu desde o começo que era somente a vasilha onde se produziria um
herdeiro. Essa era sua função e não outra. Mas o amor não tinha lugar em um matrimônio
que não era mais que uma mera transação comercial para o duque. Por sorte, o tinha visto
pouco desde as bodas, porque suas obrigações ducais e seus compromissos com a Coroa
ocupavam todo seu tempo. E ela se encontrou deslocada, relegada como um objeto a mais
e tendo saudades de sua vida anterior.
Seu pai a mimou desde o berço. Um profundo suspiro escapou ao recordar como ele lhe
contava histórias até que o sono a vencesse e realizava todos os seus caprichos. Sua morte
repentina mudou tudo. Sua mãe era uma mulher fria e calculista, e a proposta do duque
significou para ela um trunfo para, por fim, alcançar a posição social que sempre tinha
desejado que não encontrou na vida com seu marido. Casá-la com um dos homens mais
ricos da Inglaterra lhe rendeu uma vitória pessoal.
Mariam não podia negar que seu marido, Clifford Ellis, tratava a todos com justiça. Os
criados e arrendatários se mostravam agradecidos com sua aplicação da lei. Mas ela não
estava satisfeita. O duque a amedrontava.
A chuva pareceu diminuir e Mariam se recostou nos almofadões se perguntando se não
seria mais sensato ir ao quarto de seu marido. Deveria ter sido honesta com ele depois da
terceira aparição. Com certeza, Ellis teria posto o espectro para correr. Sem dúvida ele o
teria feito. Era um homem valente que enfrentou inclusive às forças do inferno.
Agora, entretanto, parecia-lhe infantil o despertar a meia noite para adverti-lo de suas
visões. O que pensaria exceto que eram fantasias paranóicas? Como ia lhe explicar que
estava aterrorizada por uma sombra que a visitava do mundo dos mortos? E embora
estivesse convencida de que aquela noite devia temê-lo mais, como se fosse possível, suas
próprias dúvidas a paralisavam.
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Ouviu o que lhe pareceu uma roupa sendo rasgada. Como se arranhassem. Espionou na
escuridão, mas não viu nada. Tentou relaxar dizendo a si mesma que tudo era fruto de sua
imaginação e que a gravidez a tinha deixado muito tensa.
—Mariam…!
Ela levou a dobra do lençol até a boca, espantada. Estava ali outra vez! O cabelo de sua
nuca arrepiou e ela se afundou nos almofadões, com os olhos arregalados.
—Me deixe em paz — suplicou trêmula.
Uma risada gasta e neutra rompeu o silêncio, acompanhada por um arrastar de
correntes. Outro sussurro. E de novo a voz pastosa e quebrada que a enlouquecia.
—Chegou à hora, Mariam…!
Ela jogou as mantas para um lado e correu para a porta. Não podia ficar ali. O medo a
afogava, seu coração pulsava com força retumbando em seus ouvidos, ela tremia como
uma folha. Escorregou, caiu dolorosamente de joelhos e olhou para trás. Não via ninguém,
mas sabia que estava ali, espreitando-a, perseguindo-a, ameaçando-a. Ergueu-se
pesadamente porque o volume de seu ventre e suas pernas inchadas a entorpeciam. Tinha
que escapar porque o espectro queria acabar com ela e com seu filho. E amava ao ser que
estava gerando. Precisava ser forte por ele.
Com um impulso desesperado abriu a porta e saiu à galeria seguida do ruído das
correntes que deslizavam pelo chão ao ritmo de passos, e se lançou a uma corrida
enlouquecida. Desejava gritar, mas não podia o nó de pânico que rodeava sua garganta a
impedia.
Pegou a barra da camisola e correu como uma possessa para as acomodações de seu
marido, do outro lado do corredor. Amaldiçoava o fato de que estivessem tão afastadas da
sua porque agora, mais do que nunca, necessitava de sua ajuda e seu amparo. Mas o ser
infernal que a perseguia parecia estar em todas as partes e lhe topou de frente, lhe
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cortando seu caminho. Mariam regressou sobre seus passos e fugiu em sentido contrário,
afastando-se assim das dependências do duque.
Apavorada, os olhos saindo das órbitas, deslocava-se sobre os frios ladrilhos tão rápido
como era possível, tentando perder de vista o ser que seguia seus passos. E em sua
inconsciência, foi se dirigindo para a torre sul.
Seus pés descalços pisaram no primeiro degrau da estreita escada que subia à torre,
perdeu a estabilidade e caiu de bruços, golpeando o ventre. Afogou-se na dor, mas se
obrigou a levantar e, meio engatinhando, subiu a escada, já cheia de soluços histéricos. Seu
cabelo comprido cobriu o rosto, tropeçou uma vez mais, voltou a cair…
O espectro a seguia. Seguia-a. E alternadamente ria e a chamava.
Mariam conseguiu chegar ao final. Só pensava em escapar. Mas as pisadas daquela
essência infernal ganhavam degraus subindo atrás dela. O tinido das correntes a estava
deixando louca. Ao chegar à porta lembrou que sempre estava fechada e o terror a
paralisou. Desesperada, empurrou com todas as suas forças e, por algum motivo, a madeira
cedeu. Com seu próprio impulso, caiu de bruços. A chuva a golpeou sem piedade.
Arrastando-se, rasgando o fino tecido de sua camisola, afastou-se o quanto pôde. Os
trovões a ensurdeciam e os relâmpagos a cegavam. Frenética, virando sobre si mesma, sem
levantar-se, procurou o fantasma enquanto o aguaceiro caía sobre ela. Em seu delírio,
aproximou-se da beirada da torre.
Ofegando, prisioneira do delírio, muda de terror, apoiou-se no muro. Seus dedos gelados
agarraram a pedra escorregadia e coberta de liquens, conseguiu ficar em pé na segunda
tentativa. Então ouviu de novo aquele som que parecia saído de um túmulo. Voltou-se, com
os olhos dilatados pelo medo, sacudida pelo pranto e tremendo de frio.
Ali estava.
Aquela coisa mostrava sua silueta na escuridão.
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Uma massa disforme e aterradora. Onde deveria estar à cabeça só havia um capuz vazio.
E dentro dela…
O grito exasperado de Mariam se misturou com o estrondo de um trovão, sufocando-o.
Os olhos, se é que eram olhos, pareciam apenas dois pontos brilhantes e ferozes que a
obcecavam.
—Mariam…!
A jovem duquesa de Ormond deixou escapar um novo grito e retrocedeu um passo,
gesticulando com as mãos para afastar a infernal visão que ia se aproximando.
—Nãoooo!
Suas pernas bateram com algo, perdeu a estabilidade e seu corpo se inclinou
perigosamente. Seus pés escorregaram e caiu no fosso do castelo. Enquanto caía para as
trevas, repetiu-se aquela negação ao irrefutável, aquele grito desesperado, rouco e
dolorido, dilacerador.
Alguns meses depois…
Clifford despertou de repente, alterado e coberto de suor. Seus olhos se moveram de um
lado para o outro procurando situar-se no mar de escuridão que o rodeava.
Demorou uns segundos para perceber que tinha tido um pesadelo. Mais um. Apesar do
tempo transcorrido não desapareciam, repetiam-se uma e outra vez, o acossando com
insistência.
—O que aconteceu? —perguntou uma voz sonolenta ao seu lado.
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Piscou totalmente perdido e se levantou para acender uma vela. Uma mulher ocupava o
outro lado de sua cama. Aturdido, perguntou-se o que fazia ali, até que lembrou. Jogou de
um lado as cobertas e se levantou. Esfregou as pálpebras. Uma dor aguda nas orbitas dos
olhos lhe anunciava a impertinência de uma enxaqueca. Soltou uma maldição e acendeu
mais um par de velas. Na penumbra localizou seu robe enrugado no chão e se cobriu com
ele. Fixou os olhos em sua companheira e lhe deu de presente um sorriso lânguido.
—O que faz aqui?
O tom desanimado e brusco a avivou por completo. Se restava alguma esperança de
intimidade posterior com ele, desapareceu imediatamente. Saiu da cama, recolheu suas
roupas e tal como estava, sem sequer vestir-se, com uma desculpa nos lábios, encaminhouse à saída.
Cliff alisou o cabelo revolto jogando para trás as irritantes mechas que caíam no rosto. O
som da porta ao fechar-se estalou como um trovão em seu cérebro e outra grosseria veio
aos lábios. Deixou-se cair inteiro sobre o leito desordenado que ainda cheirava a sexo.
Permaneceu assim por muito tempo, como um abobalhado, concentrado na superfície
do teto. Sacudiu-lhe um calafrio, elo final de seu angustiante sonho. Sua defunta esposa
gritava e gritava, corria e corria, e tropeçava… Caía no vazio… As imagens de sua morte,
agonizantes e descarnadas, o perseguiam desde aquela noite como bater das asas negras
de uma ave de rapina. E a frustração retornava a ele com cada pesadelo, como em ondas,
espantosa e opressiva, deixando-o abatido e desconcertado. Porque, em cada sonho, ele
tentava alcançá-la, para evitar o inevitável, e salvá-la. E se sentia tão inútil na alucinação
como tinha sido na realidade. Não tinha chegado a tempo e ela se jogou no vazio da torre
mais alta.
Reviveu com uma sacudida o impacto seco de seu corpo ao estatelar-se contra o chão.
Ele recostou-se na cabeceira e esticou a mão para alcançar a jarra de vinho que tinha
deixado junto à cama na noite anterior. Bebeu com avidez e o líquido caiu como um murro
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no estômago, mas o fez recuperar a sanidade e deter seus lamentos. Ele levantou-se e se
aproximou da janela, acomodando-se no assento de pedra. O sol já começava a despontar
no horizonte e ele voltou a perguntar-se que sentido tinha sua vida.
Nunca considerou seu matrimônio com Mariam como algo mais que um trato. E nele,
nenhum dos dois ganhou nada e ambos perderam muito. Ela a vida e ele… Amaldiçoou o
instante de debilidade no qual uma cara bonita ganhou a batalha com a sua determinação
inicial de não casar-se. Porque foi sua luxúria que tinha matado Mariam. Se não tivesse
contraído matrimônio, e tivesse honrado seu juramento de celibato, ela continuaria vivendo
feliz em Gales e ele não teria se convertido em um ser taciturno, azedo e anti-social,
atormentado por um acontecimento dramático que não deixava de persegui-lo. Mariam
tinha sido uma mulher frágil, sempre receosa e mal resolvida a cumprir o papel que lhe foi
exigido. Sua morte lhe pesava como uma laje. E seu tormento era maior porque ela, em seu
delírio, tinha acabado com o que ele mais desejava: um herdeiro. Só o germe de uma
dúvida amainava sua dor. Que a semente daquele serviçal que ceifou sua existência
pendurando-se em uma viga da cozinha, dando origem a um boato que se espalhou como
pólvora. Realmente o filho que Mariam gerava era dele?
Golpes que devastaram sua alma e minaram seu orgulho.
Não podia evitar sentir raiva cada vez que pensava nisso. Porque era consciente de que
Oswald Trenan, o serviçal que sempre se comportou como o cachorrinho de sua defunta
esposa, poderia ter gerado o filho que teria chegado a ser seu herdeiro. Mas nunca saberia
a verdade e isso o encolerizava. Já não poderia tirar da cabeça a dúvida persistente de que
ela, a mulher a qual deu seu sobrenome, a qual converteu em sua duquesa, tivesse o
convertido em um corno.
Condenado fosse se aceitasse a voltar a passar pelo altar! O que menos desejava no
mundo era casar-se de novo, voltar a confiar em uma mulher. Ao inferno Ormond, sua
herança e sua maldita descendência!
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Primeiro sua mãe e depois Mariam tinham falhado com ele miseravelmente. E a traição
de ambas se entrincheirava em sua alma, inflamando-se a cada dia que passava. Quando
menino, perguntou-se um milhão de vezes se sua mãe o teria abandonado por sua culpa,
por algo que ele tinha feito. Sempre tinha a sensação de que as frequentes discussões com
seu pai não eram mais que o reflexo de seu ódio por ele, e marcaram aquela parte de sua
infância. Agora, quando já acreditava recuperada sua confiança, surgia de novo a traidora
suspeita do engano de Mariam.
Assim que o ressentimento para o belo sexo se prendeu a ele na noite em que ela
morreu, como uma marca da qual não podia, nem queria livrar-se. Melhor desconfiar delas
que aparecer de novo ante todos com a mancha de um infeliz.
Infelizmente, a Coroa não pensava o mesmo. E, o que era pior, tampouco sua condenada
avó. Era a mulher mais teimosa da Criação e parecia ter conspirado com Satanás para deixálo louco. Ele acabava de fazer trinta e um anos, já não era um adolescente e estava
capacitado para escolher uma esposa por si mesmo, de tê-la querido. Mas não queria.
Entretanto, tanto para sua avó como para o Estado isso não tinha importância. Por todas as
caldeiras do inferno! Mal tinham passado uns meses da morte de Mariam quando se via
acossado por distintas candidatas a ocupar o posto de duquesa de Ormond. E não
encontrava uma forma de livrar-se de tão desumana perseguição.
Por isso tinha decidido, por fim, dedicar-se à tarefa de procurar uma esposa. Por esse
mesmo motivo se embebedou na noite anterior e levou aquela mulher para sua cama. Sem
dúvida estava perdendo a estribeira. Mas era isso, casar-se de novo, ou acabar de baixo dos
pés dos cavalos nos padrões sociais. Não tinha mais remédio que ceder, iria se casar, teria
um herdeiro, e que o inferno levasse a todos!
Aproximou-se da cama e puxou o cordão de chamada aos servos. Não teve que esperar
para que seu valete aparecesse pela porta.
—Bom dia, milord — o saudou— Descansou bem?
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—Perfeitamente. Como se tivessem me chutado durante toda a noite.
—Se me permite dizê-lo, senhor, são as sequelas da bebida.
—Gostaria de seguir bêbado. Prepare-me o banho, por favor. E me consiga algo para a
dor de cabeça.
Seu ajudante de quarto assentiu e partiu e ele retornou ao fio de suas reflexões.
Odiava Londres. Não era mais que uma cidade onde a aristocracia se prostituía nos
corredores do poder e na pompa das festas. Vermes vestidos de seda e com rostos
empoados, insensíveis aos menos favorecidos e preocupados somente com sua própria
promoção. Nunca esteve cômodo entre eles. Nisso tinha saído ao seu pai. Além disso, seu
desinteresse era conhecido entre a alta sociedade. Claro que sua fortuna lhe dava entrada
imediata a qualquer evento. E não havia pai que não sonhasse em tê-lo como genro. Afinal,
o que importava sua fama de homem pouco acessível para casar à menina? Ele tinha
alimentado uma imagem de indiferença e não tinha intenções de modificá-la. Era o escudo
com qual se protegia de convites indesejados.
Então chegaram seus criados, e depois de saudá-lo começaram a preparar seu banho.
Capítulo 2
Londres estava satisfazendo as expectativas de Lea, embora de tempos em tempos o
remorso a atacasse por ter enganado sua família. Escapar de sua casa como tinha feito só
poderia lhe trazer consequências funestas se chegassem a saber.
Desprezou o incômodo arrependimento da culpa e se focou em tudo que a rodeava.
Tinha ido a aquela festa para divertir-se e era isso o que pretendia fazer. Olhou-se de
esguelha no reflexo da janela e enrugou o nariz. O vestido emprestado de sua amiga era
horroroso. E rosa. Não gostava daquela cor, mas não havia outro que servisse e Tina tinha
insistido em que ficou bem. Não era verdade, parecia uma boneca insossa e infantil. A
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chateava transmitir aquela imagem. Se não tivesse rasgado seu traje de festa com a
pressa…
—No que está pensando Eleanor?
Ela virou-se para sua amiga e se obrigou a sorrir. Tina… Clementina, nome que a moça
odiava e nunca utilizava, encontrava-se ao seu lado. Filha do conde de Bermont, elas
conheceram-se na escola e se converteram em inseparáveis. Agora viviam distanciadas, mas
sua amizade permanecia intacta, embora fossem muito diferentes. Lea era uma escocesa
teimosa com ideias próprias. Apreciava igualmente ir a uma festa ou sair para caçar na
montanha envolta em um tartan e com uma adaga no cinto. Tina, ao contrário, era como
uma borboleta: sempre imaculada, correta, sem nunca ignorar as normas. Talvez suas
diferenças fossem o que as mantinha unidas.
—No par que escolherei para a dança seguinte — Lea respondeu— E em quão horroroso
é este vestido.
—O vestido não tem nada de horroroso, querida, só você acha isso. Note quantos jovens
não param de te olhar. A julgar pela quantidade de pedidos de dança que lhe têm feito,
sinta-se bem. Acho que lhe darei de presente o vestido. E agora sério, no que estava
pensando?
Lea se rendeu. Tina parecia às vezes um pouco ingênua, mas tinha o olfato de um cão de
caça.
—Não posso te ocultar nada, não é? Pensava em meu pai. E em meus irmãos.
—Olhe que você é uma desmancha-prazeres.
—Esqueceremos que existem por esta noite.
—Se soubesse que ia cometer a loucura de se apresentar em Londres sem dizer nada em
sua casa, teria mordido minha língua e não teria a posto a par das festas.
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—Agradeço-o que não o fizesse, Tina. Edimburgo estava me aborrecendo e não podia
resistir em passar uns dias com você. Não tem culpa de minhas loucuras.
—Mas as alimento.
—Graças a Deus. —ela piscou um olho.
—Só espero que não descubram o ardil.
—Amanda me cobrirá, eu lhe escrevi antes de vir. Já sabe que é uma velha amiga da
família e certamente está tão louca quanto eu. Disse que ia para Aberdeen, assim ninguém
tem por que saber que não estou ali.
Tina enrugou comicamente seu nariz, sem consegui-lo.
—Qualquer dia achará um grande problema.
Lea assentiu e suspirou. Sabia, sim. Mas era impossível suportar o tédio e precisava fugir
de vez em quando da monotonia de sua casa. E o que era mais importante, do cansativo
amparo de seu pai, Neal McKenna, e seus três irmãos.
Os músicos retornaram após um curto descanso e um novo compasso convidou os casais
a ocupar a pista de dança. Imediatamente, as duas moças se viram rodeadas de cavalheiros.
Tina apertou o cotovelo de sua amiga em uma silenciosa mensagem de afeto e,
desprezando com um sorriso a quem a convidava, pegou pelo braço um admirador
abandonado de Leia ao invés dos seus.
Lea aceitou dançar com um jovem atraente e de aspecto melancólico. Mas tão logo
começaram se lamentou. Fez o possível por seguir os passos desajeitados de seu par
enquanto voltava a se fustigar pensando em sua fuga. Se a descobrissem estaria metida em
uma boa confusão.
Ninguém de sua família compartilhava de sua afeição por Londres. Suspeitavam dos
ingleses que durante séculos tinham os perseguido e que tinham feito um de seus irmãos
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sofrer. Assim sempre planejava ardis para poder visitar Tina e desfrutar do ambiente
relaxante da capital. Agora, o que a preocupava era um possível castigo. Os que recebeu até
então não passaram de uns dias encerrada na torre sem poder sair para cavalgar com seus
irmãos. Entretanto, desta vez, sua detenção domiciliar poderia chegar a durar uma década.
Ou duas. Isso se seu pai não a matasse depois de voltar a gritar pela milionésima vez que
estava farto de suas intrigas.
Seu companheiro de dança tropeçou, pisou em seu pé e parou de dançar. Lea o olhou
um tanto incomodada. Ele não dissimulava um ar de desagrado e ela seguiu a invisível linha
de seus olhos ao mesmo tempo em que os rumores se estendiam pela sala.
—Por Deus! —murmurou seu acompanhante— Nunca pensei que teria a coragem de
aparecer hoje aqui.
—O que aconteceu?
—Ormond — ele disse como explicação.
—Quem?
O insípido Adônis apontou com o queixo.
—Tem que ter muita coragem e muito pouca vergonha para vir à festa. Depois do que
aconteceu…
—Aconteceu? A quem?
O jovem a segurou pelo cotovelo e a conduziu para fora da pista.
—Lamento senhorita McKenna, devo partir.
Lea ficou perplexa ao ver se afastar aquele cretino. Os convidados cochichavam em
grupos e não deixavam de dar olhares para a entrada do salão. Lea levantou-se nas pontas
dos pés o quanto pôde para tentar averiguar o que tinha causado tanto rebuliço. Um
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indivíduo, junto ao anfitrião, parecia captar a atenção de todos. Alguém entrou em sua
frente e o perdeu de vista. Ela bateu levemente no ombro do cavalheiro e lhe disse:
—Você se importaria de ir para o lado?
O homem que acabava de chegar era alto, de ombros largos e cabelo escuro. O que tinha
de especial, além de um porte excelente? Lea perguntou-se. Por que todos pareciam tão
afetados?
—É incrível — ela ouviu que dizia Tina ao seu lado.
—Quem é?
—Ormond.
Lea aguardou para receber mais informação. Mas não a conseguiu. Era como se aquele
sobrenome, simplesmente, esclarecesse tudo.
—Quem diabos é esse tal Ormond, se posso perguntar?
—Cuidado com seu vocabulário, Eleanor!
—Vamos, vamos, vamos — ela a instigou— Meu parceiro de dança desapareceu como se
tivesse visto um fantasma, outros não podem dissimular seu desconforto e você não me
esclarece nada.
Tina a levou até a salinha onde se serviam os refrescos.
—É Clifford Ellis, o duque de Ormond.
—Nunca ouvi falar dele.
—Porque faz muito tempo que não vem me visitar. Não está em dia. É um indivíduo
estranho e rude que se mantém afastado da aristocracia. Vive isolado em Hallcombe House.
—Esse nome sim faz soar um sino.
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—Todo mundo o conhece como Castelo das Brumas.
—Bem… — Lea esticou o pescoço na direção do recém-chegado— Pois daqui não parece
tão estranho — murmurou fixando-se em sua elegante figura.
—Dizem que matou sua esposa grávida.
Lea prestou toda sua atenção em sua amiga, agora com certeza intrigada.
—Está de brincadeira?
—Não. — ela corou um pouco, como se fosse um segredo— Bem, todo mundo diz que a
matou. De qualquer maneira, não puderam prová-lo. Ela caiu de uma das torres do castelo
durante a noite. Não houve testemunhas.
As sobrancelhas desenhadas de Lea se arquearam.
—Se não houve testemunhas, como diz, então são apenas boatos.
—É um homem horrível.
—Por quê?
—Bem por que… Por que… —O rubor no bonito rosto de Tina se acentuava — Não
disfarça o que pensa. Diz que somos uns parasitas.
—Isso também o diz meu pai. Eu o ouvi dizer mil vezes que as pessoas devem fazer algo
produtivo em lugar de viver das rendas e borboletear entre salões de baile ou clubes de
cavalheiros. E não me atreveria a dizer que meu pai é um homem horrível. Teimoso, sim.
Recalcitrante, possivelmente. Mas nunca horrível.
—Já saiu sua veia de advogada das causas perdidas. Alguma vez se porá no lugar do resto
dos mortais? —irritou-se sua amiga— Ellis é um tipo… Intrigante, sombrio. Até se fala que
tem poderes.
—Poderes?
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—Já me entende… Poderes ocultos.
—Que tolice! As pessoas têm muita imaginação. —Centrou de novo toda sua atenção no
recém-chegado. Ela gostaria que ele se virasse para poder ver seu rosto— Eu apenas vejo
um corpo impressionante. Não o imagino falando com espíritos.
—Além disso, deitou-se com a metade das mulheres de Londres.
—Que potência! —brincou Lea. Imediatamente ficou séria ante o ar carrancudo de sua
amiga— Os libertinos não me assustam, Tina. Em todo caso, me desagradam.
—Você é impossível! Suponho que seja seu sangue escocês. Mas, por uma vez em sua
vida, deveria levar em conta o que digo, querida. Ormond é perigoso. Algumas vezes me
perguntei o que as mulheres veem nele. Parece tão ameaçador…
Tina partiu em um redemoinho de saias, movendo seu leque com rapidez, como um
escudo contra os maus presságios.
E Lea se propôs a observar mais de perto ao Satanás. Um demônio com uma aparência
excelente, vestido em um negro austero, muito contra as cores de moda. Emanava uma
áurea perturbadora que excitava sua curiosidade. Sim, por que não dizê-lo?… Era
ligeiramente enigmático. Ela perguntou-se se seu rosto faria honra ao seu corpo. E Tina não
entendia o que as mulheres viam naquele sujeito? Certamente estava perdendo a vista.
Aproximou-se o quanto pôde contornando os convidados. Fantasiou com a ideia de que
o apresentassem, mas o anfitrião deixou escapar um dissimulado suspiro de tranquilidade
quando o sujeito se despediu com uma ligeira inclinação e se dirigiu à saída.
Lea só conseguiu ver umas mechas de cabelo escuro que caíam sobre um rosto
bronzeado. Mas bem nesse instante, antes de cruzar a soleira, Ellis se virou para os
presentes, como se os desafiasse. E algo se agitou em Leia ante uns olhos de aço,
desconfiados e inteligentes. E um pouco ameaçadores. Olhos do diabo. Mas, isso sim, um
anjo do mal excitante e atraente.
22
Então, Ellis a olhou.
Para Lea o tempo parou enquanto se encararam a distância. Aquelas pupilas queimavam
e uma ansiedade incômoda subiu por sua coluna vertebral.
Mas o feitiço se rompeu: uma dama se aproximou de Ormond e posou a mão em seu
braço. Ellis pareceu perder seu interesse e trocou algumas palavras com ela.
Surgiu em Lea uma repentina e estúpida animosidade para com a mulher, que aumentou
ao levantar-se para sussurrar brevemente no ouvido dele, levantando murmúrios.
Ormond encolheu um ombro, deu seu braço para a mão da dama, percorreu uns passos
até o anfitrião e dirigiu seu olhar para Lea. O conde de Westtin esquadrinhou ao seu redor,
olhou-a diretamente e cochichou algo para o duque. Este assentiu, voltou-se ligeiramente
para vê-la uma vez mais, como o fez antes, e lhe veio à sensação de que a estava despindo
em público. Um leve rubor cobriu suas bochechas, embora nunca tivesse sido propensa às
manifestações de acanhamento. Mas, apesar do comichão, manteve-se firme, sem desviar
sua atenção dele. Propôs-se a tratá-lo com o mesmo descaramento e assim o fez.
Incomodava-a, sobretudo ser o centro da atenção, mas tirou forças da fraqueza e elevou o
queixo.
Ele parecia um lobo entre as ovelhas. Ou algo pior, disse-se Lea. Um anjo caído entre
devotos crentes.
Foi fruto de sua imaginação ou o duque lhe fez uma ligeira inclinação de cabeça?
Lea não reagiu quando ele se foi, mas sim quando Tina se pendurou em seu braço.
—Olhou-a! Oh, Deus, olhou-a, Eleanor!
—Você está me machucando.
—Me diga que não o conhece!
—É claro que não o conheço, Tina. Por que é que está tão nervosa?
23
—Oh, Senhor…!
—A propósito, quem era aquela mulher?
—Que mulher?
—A que estava falando com ele.
—Amélia Hossman. É viúva de um aristocrata austríaco, embora nunca voltou a utilizar o
título desde que morreu seu marido. Certamente é a única amiga de Ormond e há rumores
que mantiveram um romance. Ela parece estar louca o bastante para insistir em
reconquistá-lo.
Lea localizou a dama, que já se perdia entre os bailarinos que ocupavam de novo a pista.
O demônio se foi e os mortais retornavam à atividade, pensou.
Durante o resto da noite não houve outro tema de conversa que não fosse a curta e
inquietante visita, e Lea escutou tantas histórias desatinadas que acabou se cansando e
decidiu abandonar a festa.
Enquanto a carruagem que a devolvia a casa dos Bermont sacudia pelas escuras ruas
londrinas, não pôde deixar de pensar em Ellis. Realmente seria um assassino? Perguntavase. Lea não se deixava influenciar facilmente por comentários maliciosos. Para fazer um
julgamento de valor sempre tentava conhecer os dois lados. Entretanto, algo lhe dizia que
quanto mais longe estivesse de Ormond, melhor para sua tranquilidade.
24
Capítulo 3
—Não posso acreditar!
Clifford desviou sua atenção do jornal e a centrou em sua avó que, ao seu lado, firme
como um obelisco de granito esperava por algum comentário. Tirou o relógio de seu colete
e deu uma olhada na hora. Oito. Ele estranhou que ela estivesse acordada tão cedo.
—Não conseguia dormir?
Samantha Ellis, duquesa viúva de Ormond, deixou escapar um chiado zangado e sentou
ao seu lado, sem responder.
—Devo lhe servir um pouco de café da manhã, avó?
—Me confirme se for verdade o que Conrad me disse!
—Esse fofoqueiro… Como posso ter um valete que conspira com meus próprios
parentes?
—Cliff…
Abandonou definitivamente o jornal sobre a mesa e se recostou em sua cadeira. Mas não
respondeu.
—Este tipo de notícias deveria vir acompanhado de um frasco de sais, meu jovem protestou a dama— Ou com umas flores.
—Préferez-vous dê lis blancs ou peut-être dê lis?
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—Não fale em francês! — ela estourou batendo na mesa— Não quero açucenas nem
lírios! Nem cardos, que diabos! O que quero é uma explicação!
Cliff suspirou cansado e se serviu de outra xícara de café ao mesmo tempo em que dizia:
—É verdade, avó. Escrevi faz uns dias ao Laird McKenna pedindo a mão de sua filha.
—Uma escocesa, filha de um asno escocês!
—O que têm de errado?
—São escoceses!
—Evidentemente — ele disse muito sério, dissimulando o tanto que lhe divertia sua
irritação.
Para Samantha Ellis, entretanto, não passou despercebida a faísca de sarcasmo.
—Você o fez para me chatear, não é?
—Avó, por Deus...
—Sim. Para me chatear — ela afirmou categórica— Eu venho o aporrinhando faz tempo
para que procure outra esposa e você me paga pedindo a mão de uma escocesa. Nada
menos que a neta de McKenna, esse condenado filho do inferno que Deus já deveria ter
chamado ao seu lado.
Cliff acabou o café e se levantou.
—Não tem nada contra os escoceses, grand-mère. Nós dois sabemos. E a Coroa deu seu
consentimento. Por mais que o tente, não pode me fazer acreditar que segue indisposta
com Dauly McKenna. Isso é água passada. O que a irrita na realidade é que não tenha
contemplado a possibilidade de escolher a senhorita que me apresentou mês passado.
—É uma jovem educada. —Ela não cedia um palmo— Lisa Barrow é…
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—Insípida. Insossa. Estúpida. Desesperadora. Quer que continue avó?
—Não é necessário. Já deu de presente à pobrezinha suficientes apelidos desagradáveis.
—Se quer saber, aborreci-me como uma ostra durante a hora que passei com ela. Não vi
nada mais patético em minha vida.
—Mas é bonita.
—Também o é a neta de McKenna — disse, recordando de um rosto oval e um cabelo
acobreado com laivos de fogo.
—Conrad disse que a conheceu em uma festa. Não sabia que tinha mudado de ideia a
respeito de ir aos salões de Londres.
—E não o fiz. Fui escolher uma esposa, como você queria. Mas isso Conrad já lhe contou,
certo?
—Não erice as penas, jovenzinho. Seu valete só faz seu trabalho.
—Seu trabalho é servir a mim, não fofocar com a senhora.
—Ele faz ambas as coisas perfeitamente — ela sorriu encantada em tirá-lo do serio.
Cliff preferiu se calar para evitar dizer algo inapropriado. Abaixou-se e a beijou na testa.
—Se me perdoa… Tenho muito que fazer. Desejo-te boa viagem para York se não nos
virmos antes de sua partida.
—Poderia me acompanhar.
—Minhas ocupações me retêm aqui.
—Deveria dedicar um pouco mais de tempo a si mesmo em lugar de empregá-lo tudo
para o governo e em cuidar de suas terras.
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—Devo, casualmente, à Coroa. E meu pai nem sequer me deixou as terras, avó. Lembre
que a maioria estava hipotecada quando morreu. Não penso em voltar para essa situação. E
não me interessam as festas, se for a isso que se refere.
—Teria podido escolher uma moça que te tivesse desejado muito se só…
—Já a escolhi.
—Pelo amor de Deus, rapaz! Vê um rosto e decide pedir a jovem em casamento. A isso
você chama de escolher?
O duque passou a mão pelo cabelo. Aquela discussão começava a lhe exasperar.
—Deixemos uma coisa clara, avó. Eu não tinha intenção de procurar uma esposa. Você
era quem estava obcecada com o assunto. Que diferença há entre eu desposar uma das
casadoiras que esteve me pondo diante do nariz ou escolher uma ao azar? O matrimônio é
como um jogo, se ganha ou se perde em virtude das cartas que tem. Tanto faz que um
marquês reparta o baralho ou um bandido. Eu, aparentemente, levo sempre o baralho
errado, assim pouco importa a mulher escolhida. E sim, decidi-me por ela quando ouvi seu
sobrenome.
A duquesa viúva o olhou com irritação. Levantou-se, deu meia volta com essa elegância
inata nela e se dirigiu à porta. Antes de sair lhe disse:
—Só espero que prove de seu próprio remédio, Cliff. E que essa moça destroce seu
coração.
Cliff voltou a sentar-se ao ficar a sós e suspirou resignado.
—Já me destroçaram isso uma vez…
Lea estava encantada.
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Desde o baile, tinha recebido um sem-fim de convites para outras festas, buquês de
flores e caixas de bombons que, em sua maioria, deu de presente aos criados.
Fechou os olhos, saboreou um bombom e sorriu. Era sua perdição.
—Delicioso.
Tina entrou na saleta acompanhada por uma moça de cabelo escuro e encaracolado
comprido até a cintura.
—Eleanor quero lhe apresentar a uma boa amiga. Irish Durham.
—É um prazer.
—O prazer é meu, senhorita McKenna. Não pude ir à festa porque meu pai se encontrava
um pouco delicado, mas estou encantada em conhecê-la. Toda Londres fala de você.
Lea sentiu pulsar todos os seus alarmes porque não era nada bom estar na boca de
todos.
Tina pediu um chá e as três se sentaram. Durante um tempo conversaram de temas
triviais, até que trouxe ao assunto Will Trenton, o rapaz loiro que tinha deixado Lea
plantada no meio de uma dança.
—Ele encarregou-se de contar por cada canto — dizia Irish.
—A esse rapaz valeria mais manter a boca fechada.
—Seria mortal — determinou Lea— Já é aborrecido quando fala assim ficar calado deve
resultar num suplício.
—Sinto seriamente que Ormond aparecesse na festa. Se pudesse evitar levar seu mesmo
sangue, eu…
—São parentes? — Lea perguntou.
29
—Vamos, Irish. —Tina lhe deu uns ligeiros tapinhas no dorso da mão— Não tem nada
que se reprovar. A família é algo que não se escolhe.
Eleanor se fixou na moça, que se remexia incômoda. Não se pareciam em nada. Serviu
um pouco mais de chá para as três e em seguida comentou, de passagem:
—Assim é parente de Clifford Ellis.
—Somos primos. Mas não nos falamos faz tempo. E todos preferimos que continue
assim.
—É um pouco estranho, sendo família.
—O duque se negou a pagar uma dívida contraída por meu pai — Irish explicou,
elevando o queixo com um ar ofendido— Papai nunca o perdoou. E eu, tampouco.
—Talvez o duque não contasse com recursos naquele momento.
—Ormond é asquerosamente rico, Eleanor — a informou Tina— Asquerosamente rico.
—Não nos ajudou porque nos odeia — seguiu Irish— Tudo o que tenha a ver com sua
mãe, minha tia, é tabu para ele. Tivemos que recorrer a conhecidos, hipotecar nossa casa…
Foi horrível.
—Desculpem minha ignorância, mas não consegui entender. O que tem a ver a mãe do
duque com tudo isto?
Irish se entreteve um momento com as dobras de sua saia, imaculadamente bem
arrumadas, procurando as palavras adequadas.
—Você não conhece a história, claro — disse por fim— A mãe de Cliff o abandonou
quando ele mal tinha dez anos. Aquilo o destroçou. E é por causa disso que pensa que todos
nós que levamos o sobrenome Durham somos iguais. Por isso não quis assumir uma dívida
que teria sido uma miudeza para ele.
30
Lea saboreou seu chá lentamente, sem deixar de olhar à outra por cima da borda da
xícara. E começou a pensar que, se de fato, o que contavam era certo, Ellis merecia a fama
que ganhou. A família sempre é família e, se sua mãe tinha cometido uma afronta, nem o
pai de Irish nem a jovem tinham culpa.
A aparição do mordomo, um tipo duro como um tronco cortou a conversa.
—Senhorita McKenna, dois cavalheiros solicitam ser recebidos.
Tina lhe deu uns tapinhas de complacência.
—Já começamos com os pretendentes.
—Temo que não seja esse tipo de visita, milady.
—Não? —estranhou— Entregaram seus cartões?
—Não, milady.
—Seus nomes?
—Tampouco.
—Que absurdo! Diga então a esses cavalheiros que não podemos recebê-los.
—Sim, milady… Embora eles afirmassem que a senhorita McKenna os atenderia.
—Eu? Mas se não os conheço…
—Para ser sincero, seria melhor não nos conhecer, Lea — interrompeu uma voz gutural.
Eleanor sentiu que parou o pulso. Os dois intrusos irromperam na sala sem esperar ser
admitidos, afastando o criado. Dois exemplares impressionantes embelezados com típicos
trajes escoceses. Mas seu assombro durou um suspiro, porque se levantou imediatamente
e foi para eles para abraçá-los.
—Sean! Ian! O que fazem em Londres?
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—Não vai apresentar-nos?
—Cavalheiros… — interveio o mordomo.
—Não houve nada, Julius - lhe disse Lea— São meus irmãos. — Puxou-os pelas mãos e
insistiu para aproximarem-se de suas companheiras. —Clemen… Tina Mason, filha do conde
de Bermont — apresentou— Ouviram-me falar dela muitas vezes.
—Milady.
—Um prazer.
—Esta é a senhorita Irish Durham.
Ian lhe fez uma reverência; Sean, ao contrário, evitou Irish e ficou olhando fixamente
para Tina, até que Lea lhe deu uma cotovelada.
—Tomarão chá conosco? —permitiu-se fazer às vezes de proprietária da casa. Sem
esperar resposta pediu— Julius, por favor, mais duas xícaras.
Lea os animou a sentarem, um de cada lado dela, contente, mas um pouco intrigada por
sua repentina aparição em Londres.
—Jaimie veio com vocês? O que fazem aqui? Não podem imaginar quão bem estou
passando! Temos convites para tantas festas e… Acompanharão-me, imagino…
—Nosso pai quer que retorne imediatamente - a cortou Sean em tom seco.
A cor de seu rosto se foi. Seria tola…! É claro, disse-se, a visita não podia ser casual. Seu
pai tinha descoberto o ardil e eles tinham viajado com a única missão de levá-la para
Edimburgo. Trocou um rápido olhar com Tina e sorriu como se lhe estivessem cravando
alfinetes. Se seus dois irmãos rebeldes estivessem ali por acidente, ela teria sabido um
modo de conseguir seu silêncio. Mas não era o caso. Ela alisou a saia, cada vez mais
nervosa.
32
—Papai está muito zangado?
—O que te parece, garota?
—Oh, Sean!
—Não iria estranhar nada que te desse uma surra quando retornar a Ness Tower aventurou Ian.
Tina deixou escapar uma exclamação, mas Lea se manteve impassível.
—Não foi tão grave.
—Não. Certamente. Se tivesse retornado para casa sem mais, possivelmente com alguma
desculpa… Pai teria a perdoado, como em tantas outras ocasiões. O ruim é que se inteirou
de seu paradeiro através de uma carta, e quando saímos para cá não havia quem o
suportasse.
—Uma carta? De quem?
—Nem sequer nos mencionou o remetente — respondeu Ian— Parecia… assombrado.
—Lamentar-se não serve de nada, pequena, assim prepara seus baús, partimos.
—Mas… o conde de Bermont não está em casa. Devo me despedir dele, lhe agradecer
sua hospitalidade e…
—Tenho certeza que sua amiga saberá desculpar-se em seu nome.
—Sim. Sim, certamente — assentiu Clementina, sobressaltada— Não deve se preocupar
por isso, Lea. Papai compreenderá.
—Quanto tempo eu tenho? —perguntou Eleanor a contra gosto, vazia de argumentos.
—Partimos em uma hora — resolveu Sean.
—Uma hora! Condenado seja irmão! Nesse tempo não poderei guardar nem os chapéus.
33
—Esse não é meu problema — ele disse se levantando— Uma hora. Nem um minuto
mais. Voltaremos para te buscar. E procure não se atrasar ou lhe darei uma surra em lugar
de esperar a que papai o faça. Francamente, não é divertido ter que viajar a esta decrépita
cidade.
Irish conteve a respiração e Tina arregalou olhos, porque tomou o comentário como um
insulto. A preocupava o problema que sua amiga Eleanor enfrentava e saiu em sua defesa.
—É esta a educação que recebem os escoceses? Não acredito que sejam essas boas
maneiras, senhor, ainda que se trate de sua irmã. Deveria desculpar-se com ela. E conosco.
Sean ficou perplexo. Estava acostumado, como seu pai, a que sua palavra fosse lei. E eis
aqui que uma moça inglesa, muito magra e afetada para seu gosto, que se permitia o
advertir.
—Senhorita… Mayson?
—Mason — ela retificou muito rígida, sabedora de que conhecia perfeitamente seu
sobrenome e somente tentava irritá-la.
—Bem. Senhorita Mason — ele respondeu olhando-a de cima abaixo, com insolência,
fazendo com que ela se encrespasse ainda mais— Lamento se a incomodei. Pelo que vejo,
os ingleses seguem sendo bastante restringidos. E quanto a pedir desculpas a minha irmã…
Por favor, deixe por nossa conta e meta-se em seus assuntos.
Lea não acreditava. A insolência de Sean era completamente inadmissível. Nunca tinha
ousado comportar-se de um modo tão grosseiro. Muito menos, diante de uma dama. Tinha
um caráter forte, era um presunçoso e um arrogante, mas não indelicado com uma mulher.
Desgraçadamente, acabava de mostrar uma imagem de homem das cavernas. Inclusive Ian,
assombrado com seu procedimento, manteve silêncio cabisbaixo.
Sean nem se despediu. Simplesmente saiu. O mais novo, pelo contrário, desculpou-se,
abandonando depois a saleta.
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Lea estava chateada. Consternada, deixou-se cair em uma poltrona, vermelha de
indignação.
—Lamento Tina. Não sabe como o sinto.
—Não se desculpe por ele. Não merece. —Tina lhe apertou o braço carinhosamente.
Lea agradeceu sua compreensão que sabia ser sincera. Mas ela não ia perdoar Sean
facilmente. Era um bárbaro. Não lhe justificava sua aversão pelos ingleses por mais que o
tivessem retido na prisão durante meses, acusado de um delito que não cometeu. Embora
fosse bem verdade que ela entendia que certas cicatrizes demoravam muito tempo para
curar, seu comportamento não tinha desculpa: tinha sido indigno, abertamente
desrespeitoso. E o que era pior, tinha faltado ao respeito sua anfitriã que, além disso, era
sua amiga.
—Seu proceder foi lamentável — confessou a ambas— Eu sinto. Mas agora o obstáculo
vai ser meu pai. —Um nó apertava seu estômago imaginando o momento em que teria que
de enfrentá-lo— Agora sim que me meti em uma boa.
Capítulo 4
O sujeito depositou com cuidado a taça na mesa e se concentrou em seu interlocutor. O
tinha escutado com atenção, primeiro um pouco surpreso e depois preocupado.
—Pensou bem?
—Provavelmente não, mas é o que decidi — ele lhe respondeu com uma voz distante e
distraída.
35
—Cliff, é um erro.
—Possivelmente — concordou o duque— mas minha decisão é irrevogável.
Thomas Fergusson esvaziou a taça e se serviu de outra generosa dose, tentando mostrar
certa cautela na conversa.
—Vai se embebedar? — Ellis perguntou-lhe - Eu que deveria fazer isso.
—Vou me embebedar, sim. Tem alguma objeção?
—Não absolutamente. — o humor do duque se turvou, porque não queria agredir seu
amigo— Mas deveria se acalmar, você está nervoso.
—Maldito seja, Cliff! — Thomas estourou— Chama-me no meio da noite para me dizer
que vai casar com uma mulher que nem sequer conhece e quer que eu fique tranquilo? A
neta de McKenna, nada menos. Sua avó deve estar subindo pelas paredes.
—Está.
—Não há mais jovens casadoiras em Londres? Não podia ter escolhido entre uma
centena de moças bonitas e educadas e…?
—Não comece você também, Thomas. Estou mais do que farto. Sofri uma ladainha
implacável e cheguei ao limite. Minha condenada avó quer que assente a cabeça e tenha
um herdeiro para Ormond. É o que vou fazer! A senhorita McKenna me pareceu adequada,
atraente e manejável. Justo o que necessito. Tinha que tê-la visto na festa, com um vestido
rosa possivelmente um pouco insípido… Uma menina.
Fergusson deixou um juramento pela metade. Deu uma olhada ao redor e jogou com a
urgente necessidade de abandonar seu amigo e engrossar um dos muitos grupos de
cavalheiros reunidos aquela noite no clube. Escapar de Clifford e sua atitude era o mais
apropriado. Como escocês, sentia-se lisonjeado, mas gostava realmente de Ellis, e previa
36
que sua precipitada decisão só o conduziria a problemas com a duquesa viúva. Tentou
argumentar novamente.
—A escolha de uma esposa requer muito tato, meu amigo.
—Informei-me sobre ela. Recebeu uma boa educação.
—Claro que recebeu uma boa educação, é uma McKenna. Conheço sua família desde
que era menino. Meu avô foi amigo do velho Dauly.
—Então, onde está o inconveniente?
—Melhor diria os inconvenientes, no plural. Primeiro não conhece essa moça além de
seu nome e sua origem. Sem contar que devia pedir permissão ao pai dela para cortejá-la,
falar com ela…
—Não quero e nem posso perder tempo com essas bobagens, Tom.
—Segundo — continuou - sua avó. Sabe que odeia Dauly McKenna há uma eternidade.
—Essa é uma velha história.
—É para a duquesa viúva? —ironizou Fergusson— Ela não esquecerá nunca que a deixou
plantada no altar para fugir com aquela garota com a qual se casou apesar da oposição de
todo o clã.
Um sorriso apareceu em Cliff.
—Teve muita coragem o tipo, devo reconhecer. Mas minha avó foi à mulher mais feliz do
mundo ao casar-se com meu avô, assim tudo terminou bem.
—Humilhou-a. E ela jurou ante o altar vingar-se, conhece a história. Toda Londres a
conhece.
—Eu dou a mínima para Londres.
37
Fergusson se recostou e suspirou, cansado de batalhar. Discutir com Ellis era igual a
bater de cabeça contra um muro.
—Eu quebraria seus ossos se com isso criasse juízo.
—Evite isso. Eu te contei meus planos porque quero que me represente.
—Como disse?
—Necessito que vá em meu lugar — Cliff esclareceu— Tem que me fazer esse favor.
—Agora sim sei que ficou louco.
—Assim que receba a resposta do clã McKenna aceitando o casamento, eu quero que vá
a Edimburgo e celebre as bodas por procuração.
Thomas deixou a taça com mão ligeiramente trêmula. Nem se atrevia a olhar para seu
amigo. Em seu interior, enfrentavam-se sua fidelidade de amigo e a vontade de partir e o
deixar plantado, a sós com sua loucura.
—Acho que não ouvi bem.
—Ouviu perfeitamente. Não posso viajar agora para a Escócia, tenho um monte de
assuntos que não podem esperar.
—Nem sonhe que vou aceitar!
—Abaixe a voz — Ellis avisou, incomodado.
—Santa Mãe de Deus! É o cúmulo. Escolhe uma esposa quase por correspondência, quer
aparentar-se com um clã ao qual sua avó negaria até a existência, e nem sequer tem a
coragem de ir pessoalmente pela garota. Definitivamente, Cliff, é um imbecil.
Dois olhos de aço se cravaram em Thomas e o corpo do duque ficou rígido.
—Irá ou não?
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—Não. Claro que não.
O duque de Ormond manteve um silêncio breve. E em seguida, em tom muito baixo,
atacou sem piedade.
—Deve-me um favor.
Fergusson empalideceu. Era verdade, devia-lhe um favor. E um favor que nunca poderia
pagar o suficiente. Ellis o tinha salvado da bancarrota três anos atrás, quando uns péssimos
investimentos ameaçaram toda sua fortuna. De pouco tinha lhe servido seu bom nome ante
os credores. Todos se afastaram dele, conhecidos e familiares. Ninguém quis o afiançar. Foi
Ellis quem, arriscando uma substancial cifra, ajudou-o a sair da situação. Após isso, Thomas
só investia com a ajuda do advogado de Cliff, um verdadeiro leão das finanças. De um nada,
voltou a ser um homem rico. E, graças a isso, agora podia cortejar Melanie Jackson, uma
beleza loira e alta pela qual estava profundamente apaixonado. Sim, estava em dívida com
ele por quase toda a vida.
—Dói que me recorde isso neste momento.
—Sinto muito. Nunca te pedi nada em troca, mas não tenho a ninguém a quem recorrer.
A Fergusson não escapou o tom decididamente direto e simples de seu amigo. Ellis podia
ser um asno insuportável em um instante e, no seguinte, tornar-se um ser tão encantador
que poderia conseguir que uma freira renunciasse a seus votos.
—Bem, bem! —Uma voz fez que se voltassem. Thomas elevou seus olhos ao teto em
busca de ajuda divina. Cliff apertou os dentes e seu semblante escureceu.
—Durham. —Saudou áspero.
—Eu acreditei que o clube era um reduto para membros seletos. —Ele deslizou sua
ironia para o recém-chegado.
39
—Senhor Durham, se não se importa… — interveio Tom, conciliador— estávamos
tratando de um tema…
—Deixe Tom. Quer tomar uma taça conosco, tio?
O citado se ergueu, embora sua baixa estatura não fizesse muita diferença.
—Não — respondeu— Esperava mais tino na escolha de suas amizades, Fergusson. Com
toda segurança, o conde de Stanton se desagradaria em saber com quem se relaciona seu
futuro genro.
—Agradeceria que deixasse o conde à parte, Durham — disse Tom, sem dissimular seu
desagrado.
Durham se sacudiu com uma risada estridente, o que provocou que se paralisassem as
conversas nas mesas contíguas. Ninguém desconhecia a inimizade entre ambos. Mas Ellis
não desejava ser o centro da atenção, assim se levantou e fez gestos para um garçom que
se apresentou em seguida com seu chapéu e sua bengala, evitando a presença do outro.
—Me faça saber sua decisão esta noite, Tom — ele disse como despedida— Estarei no
hotel Central.
Afastou-se sem mais, deixando Durham com uma palavra na boca, seu rosto vermelho
pela insolência, e a Thomas com um gosto de satisfação lutando para se exteriorizar.
40
Capítulo 5
Lea andava de um lado para o outro como um leão enjaulado.
A irritação e a ansiedade mal a tinham deixado descansar. Desde que retornou de
Londres acompanhada… Melhor seria dizer custodiada como uma sentenciada, por seus
dois irmãos, e que enfrentou à ira de seu pai, não tinha fechado os olhos. Claro que sua ira
não era menor do que a de seu progenitor. Nisso se pareciam muito, nenhum cedia. Estava
tão desanimada que nem sequer tinha aberto o último livro adquirido, de J. Preston, pelo
qual sentia idolatria.
Os livros eram uma fonte inesgotável de entretenimento e sua principal via de escape.
Os da escritora em questão, a qual ninguém conhecia a não ser pela inicial de seu nome,
tinham lhe dado momentos maravilhosos, dada sua afeição pela leitura de mistério e
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fenômenos estranhos. A narrativa audaz e intrigante de J. Preston, uma verdadeira
professora em matéria de esoterismo, arrastava-a sempre a um mundo surpreendente e
escuro onde podia deixar voar sua fantasia.
Desde pequena tinha a convicção de que Ness Tower abrigava ainda ao fantasma de um
antepassado, Fiorel McKenna: bucanero, contrabandista e assassino que levou sua
inclinação pelos poderes ocultos até o último grau. Dizia à lenda que seu tataravô contava
com um pequeno grupo de seguidores, sendo que a alguns dos quais ensinou o verdadeiro
segredo do além, lhes prometendo voltar depois de mortos. Entretanto, seguia a lenda,
Fiorel se esforçou por fim em uma obra de caridade. Mas a parte escura do personagem
sempre atraiu Eleanor muito mais.
—Maldita seja — amaldiçoou para si mesma e continuou andando.
Com os anos foi perdendo o louco costume de procurar o tataravô pelas ameias e as
masmorras de Ness Tower embora, às vezes, uma presença estranha parecia que a
observava. Estava convencida de que era ele. O McKenna. Longe de assustar-se, isso a
tranquilizava, como se o espectro a protegesse. E embora provocasse a brincadeira de seus
irmãos, não se importava nada. Por isso, quando caiu em suas mãos um dos livros de J.
Preston entusiasmou-se. Adorava seu modo de escrever e seus relatos de mistério e seres
imateriais a cativaram. Pouco a pouco foi comprando com cada um de seus livros,
entesourando-os junto a suas amadas novelas românticas. Os tinha lido tantas vezes que
alguns mostravam as bordas desgastadas. E estava acostumada a refugiar-se na leitura
quando estava angustiada. Como era o caso agora.
Seus pensamentos retornaram a seu pai. Nunca antes o tinha visto tão furioso.
—Pai — tinha argumentado— concordo que a viagem a Londres não…
—Quer dizer sua escapada — ele tinha cortado.
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—Admito. Fazê-lo acreditar que estava em Aberdeen merece um castigo. Mas também
não aconteceu nada. Somente queria me divertir uns dias e estive acompanhada todo o
tempo por Clementina.
Seu pai a tinha convocado em seu escritório, onde estava acostumado a aplicar suas
regras, e lhe passou diante do nariz uma carta que não lhe permitiu ler. Além disso, tinha
gritado com ela, o que não era seu costume. Teimoso, sim era, mas não estava acostumado
a perder a paciência. Inclusive seus três irmãos, convocados também porque os acusava de
não havê-la vigiado suficientemente, surpreenderam-se ante sua explosão. E ela suportou,
no meio da sala, igual a um réu ao qual se estivesse julgando, uma bronca sem precedentes.
Depois de lhe jogar na cara tudo e mais, pareceu acalmar-se um pouco. Mas foi só para
lhe atirar a punhalada final:
—A pediu em matrimônio.
Lea teve que usar todo seu controle para falar, porque não podia atinar.
—Matrimônio?
—Sim.
—Depois de me delatar? —Jurou vingar-se do desgraçado que tinha feito chegar à carta
a seu pai, fosse quem fosse.
—Ele não a delatou, moça! —Voltou a retumbar a voz de seu pai— Pensou que estava
em Londres de visita. Está procurando esposa e a escolheu.
—Como se escolhe frutas em um mercado. Ou vacas.
—Trata-se de um homem importante. Um duque. Que Deus me proteja se entendo suas
razões para se fixar em uma insolente como você.
Sean amava sua irmã. Como os outros. Para ele, era a única mulher que valia a pena,
exceto quando seu gênio escocês saía à tona e o criticava. Lamentava tão incômoda cena,
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mas a pequena havia merecido um castigo. Entretanto, casá-la com um desconhecido lhe
parecia muito. Ele notou sua expressão abatida e pensou que gostaria de ajudá-la. Lea não
era uma menina, mas todos a viam como tal. Sobre tudo, não acreditava que estivesse
pronta para o matrimônio. Ao menos, não estava pronta para dedicar sua vida a um
desconhecido. Era uma alma livre, independente e muito audaz. Quando fez doze anos
tinha decidido que se casaria só quando se apaixonasse. O mal é que ali, quem mandava era
seu pai.
—Pai — ele interveio conciliador— não é justo que Lea não possa escolher o homem que
tem que se converter em seu marido. Podemos saber, ao menos, o nome desse indivíduo?
McKenna dirigiu um olhar a seu filho mais velho que poderia derreter um iceberg.
—Eu não disse? Clifford Ellis, duque de Ormond.
Lea sentiu subir a bílis à garganta. Procurou apoiou no encosto de uma poltrona e ali ficou
com o olhar fixo em seu pai, sem poder articular uma palavra.
—Respondi-lhe aceitando o casamento — ele continuou deixando cair com desprezo à
carta que revoou no vazio e acabou sobre o tapete— De maneira que pode ir preparando o
enxoval, moça. Não poupe gastos. Ormond deseja que as bodas se celebrem no final deste
mês.
Lea conseguiu endireitar-se, embora tremessem seus joelhos. Seu rosto era uma máscara
pálida. Recordou todas e cada uma das histórias que agasalhavam a personalidade do
duque. E seu porte elegante, orgulhoso e sinistro. Sobre tudo, seu olhar gelado. Retorceu as
mãos e se atreveu a perguntar:
—Sabe algo sobre ele, papai?
—É uma das grandes fortunas da Inglaterra além de conselheiro da Coroa.
—Isso é… tudo?
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—Que mais preciso saber? Não a entrego a um mendigo e às mulheres ficam felizes com
dinheiro.
—Não me importa sua fortuna.
—Acabou com minha paciência, Eleanor. —Somente a chamava assim quando estava
francamente zangado— Estou farto de suas escapadas, de suas aventuras e de suas
astúcias. Reconheço que a culpa é minha, por não ter te controlado desde que sua mãe
faleceu — ele confessou com pesar— Necessita alguém que a dome, filha, porque me sinto
velho para brigar com você. E tem idade para estar casada. De fato, deveria ter já um par de
pirralhos que alegrassem a vida deste pobre velho.
—Mas, papai…
—Casará. É minha última palavra.
—Pai — disse Sean, adiantando-se— Talvez devesse pensá-lo com mais calma— É um
Ellis.
—Ainda não me converti em um velho caduco, filho. Sei muito bem a quem pertence
esse sobrenome. Mas é água passada.
—O avô não achará nenhuma graça… — se atreveu a comentar Jaimie, o mais novo dos
irmãos.
—Seu avô nunca odiou essa família. Só decidiu não casar-se com uma mulher que não o
amava.
—Ela jurou vingar-se, pai.
—Tolice! Depois de tantos anos, vai apagando um equívoco da juventude. Além disso,
Samantha Ellis foi feliz e se converteu em duquesa. Que mais pode pedir uma mulher?
—Casar-se com um homem pelo qual esteja apaixonada - protestou Lea.
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—E você poderia havê-lo feito se não tivesse rechaçado meia Escócia, jovenzinha. Ness
Tower foi um desfile de pretendentes desde que completou dezessete anos, mas rejeitou a
todos. Eu queria ter uma filha moderada, mas me saiu algo mais parecido a um cão de caça.
Assim que se acabou, moça! Casará no fim do mês.
Sean se aproximou e passou um braço sobre os ombros de sua irmã, que parecia a ponto
de desmaiar. Nesse momento teria dado tudo para ter finalizado as obras de Farland Tower,
o velho castelo à beira do lago que tinha recebido de herança do velho Corel McFarland, um
louco solitário e sem família ao qual tinha salvado a vida e que anos depois, ao morrer,
tinha lhe legado seu castelo, assim como uma escassa fortuna. Por desgraça, Farland Tower
estava necessitando de muitas reformas. Se fosse outra a situação, teria enfrentado seu pai
e levado Lea dali, lhe evitando um futuro nada auspicioso.
—Casá-la com um Ellis não é um castigo proporcional a sua travessura, senhor aventurou Ian.
—Eu só tenho uma palavra, filhos. E já a dei. Nada do que digam modificará o texto da
carta com a qual respondi ao duque de Ormond.
Lea acirrou uma raiva surda. Não estava na melhor situação, apesar disto, exteriorizando
o gênio forte herdado de seu pai, opôs-se a este com determinação.
—Como pode aceitá-lo sem me consultar? —Sua voz se elevou e seus olhos se encheram
em lágrimas de humilhação— Não conhece nada desse sujeito, papai.
—Nem preciso.
—Contam coisas horríveis dele. Matou sua esposa grávida!
McKenna lamentava mais que sua filha tudo aquilo. E também lhe entristecia perdê-la
tão cedo, embora fosse verdade que lhe desesperava cada vez que transgredia as normas.
Era tão parecida com sua mãe, a qual amou profundamente…! Desconfortável sob a áspera
pressão latente de seus filhos, sem dúvida em desacordo com ele, caminhou para a porta.
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—É viúvo, sim — ele aceitou antes de sair, sem atrever-se a olhá-los— Sua esposa,
transtornada pela gravidez, lançou-se de uma das torres.
A porta se fechou e Lea explodiu em soluços que nenhum de seus irmãos pôde acalmar.
Capítulo 6
Enquanto Cliff Ellis calculava as vantagens de um hipotético tratado com a Áustria,
Thomas Fergusson atravessava o portão de Ness Tower com uma coceira desagradável nos
intestinos.
Deixou-se convencer por Ellis, mas não estava muito seguro de poder sair dali com os
ossos intactos. Para Cliff não parecia ter muita importância não ir a suas próprias bodas,
mas ele temia que os McKenna tomassem como uma humilhação e ele pagasse.
Fizeram-lhe aguardar em um salão por uma eternidade, o que acentuou seus temores.
Durante a espera, certamente inquieto, caminhou de um lado para o outro observando
detalhes da sala em que se encontrava. As paredes, toscas e frias, estavam cobertas,
entretanto por belas tapeçarias finamente trabalhadas, escudos e armas, móveis escuros e
maciços, estátuas e alguns quadros certamente de antepassados. «Acolhedor» era uma
palavra muito adequada para descrevê-la. Em certo modo, recordava-lhe a torre na qual
cresceu e da qual escapou logo que completou quatorze anos.
Absorto pelo delicado bordado de uma tapeçaria, nem sequer ouviu o ruído da porta que
se abria. E tampouco os suaves passos da jovem que parou a uma curta distância, como
uma ave de rapina à espera.
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—É você o ser mais desprezível que…! — ela começou a dizer.
Thomas se virou sobressaltado. E ela engasgou e emudeceu: não se tratava do homem
que esperava encontrar. Sua altura e aparência a tinham confundido, mas o indivíduo em
questão tinha o cabelo mais claro e um olhar azul e limpo. Avermelhou até a raiz do cabelo.
—O si-sinto, senhor. Pe-pensei que…
Fergusson se aproximou e a saudou com uma inclinação de cabeça no momento que
Neal McKenna entrava. Ele o olhou com firmeza e um ar severo, mas avançou com a mão
estendida.
—Lorde Ellis — ele disse, apertando a mão de Fergusson— É uma honra o receber em
minha casa. Espero que sua viagem tenha sido tranquila.
Lea continuava muda e não conseguiu avisar seu pai da confusão. Thomas, por sua parte,
pigarreou, olhou de viés à beleza de cabelo de fogo que espremia as mãos, tentou sorrir e
só conseguiu uma careta.
—Lorde McKenna, eu agradeço sua hospitalidade, mas não sou o duque de Ormond.
Meu nome é Thomas Fergusson.
—Fergusson? —as sobrancelhas do escocês se arquearam — Dos Fergusson de
Aberdeen?
—Sim, senhor.
—Que demônio faz aqui? Quero dizer… — ele retificou imediatamente— Eu lamento.
Esperava outra pessoa… Sente-se, por favor, e me diga como se encontra sua família e no
que posso lhe ajudar.
—Minha família está bem pelo que sei laird, embora faça tempo que não nos vemos. —
Sentou-se uma vez que Eleanor o fez— Quanto a minha presença em Ness Tower… Venho
representando Clifford Ellis, senhor.
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Lea se remexeu, sem encontrar uma postura, e Neal McKenna esperou sem
compreender.
—Pediu-me que lhe entregasse uma carta. —Tirou-a dentre as dobras de sua capa e a
estendeu— Nela explica isso tudo.
O escocês rasgou o envelope e se levantou em busca de seus óculos.
—Ele arrependeu-se de seu pedido? — ele perguntou enquanto colocava os óculos.
—Não, laird. Não é isso. Assuntos importantes do governo o retiveram em Londres e não
deseja postergar a cerimônia.
McKenna leu com rapidez, fez uma pausa e em seguida se sentou em frente de seu
convidado.
—Você veio representá-lo?
—Se estiver de acordo. Trago todos os documentos que me creditam. Sou amigo do
duque. Ele me pediu o favor, dado minha origem escocesa e o fato de nossas famílias
estarem unidas por uma antiga amizade.
—Não é o que esperava, certamente, mas… parece-lhe bom amanhã? Tenho que avisar
ao sacerdote.
—O que lhe convenha.
McKenna assentiu e guardou a carta. Como se sua filha não existisse, porque tinha se
negado a falar com ela desde sua discussão, interessou-se pela família de Fergusson e
ficaram falando um tempo. Lea furiosa queria desaparecer, mas permaneceu calada e
quieta até que seu pai acreditou oportuno mudar o tema e lhe ordenar:
—Prepare suas coisas, Eleanor. Amanhã se casa. Desculpe-me, senhor.
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Lea piscou um tanto aturdida, mais pela severidade de seu pai do que pelo fato de casála por poderes, até que a porta se fechou. Então procurou nervosa pelos olhos do sujeito
com ao que ia desposar no dia seguinte.
—Imagino que a frase que me deu de presente ao entrar nesta sala não era exatamente
para mim — ele disse para romper o gelo.
Lea negou e se recuperou. E, com isso, retornou sua irritação que demonstrou elevando
seu queixo altivo.
—Certamente, senhor, a saudação não era para você.
Thomas a achou muito bonita. Alta, magra, com as curvas justas para amoldar-se a uns
braços varonis. Cabelo acobreado com mechas flamejantes, olhos verdes e diretos, nariz um
pouco arrebitado, lábios cheios… Uma preciosidade em todo o sentido da palavra. E, pelo
que tinha deixado transparecer, com bastante temperamento. Ele se perguntou se Cliff
estava bêbado para ver naquela megera uma moça medrosa.
—Desculpo-me por minha inoportuna entrada, cavalheiro — ela continuou, embora sem
um vestígio de remorso— E lamento que tenha sido o alvo de meu mau humor.
—Então, o insulto era para Ellis?
—Como ele se atreveu?! — Lea estourou sem se conter. Para Thomas pareceu uma
pantera, o que o divertia de verdade. Bonita e perigosa como somente podia ser uma
escocesa, disse-se— Como teve o descaramento?! Quem lhe disse que escrevesse a meu
pai? Que diabo importava a esse tolo inglês se eu estava em Londres para ficar ou brincar
com um trabalhador do porto?
Fergusson começava a ter um grande momento. Cliff ia colocar uma fera em sua casa e
não merecia outra coisa, o teimoso. Prudentemente, permaneceu em silêncio esperando
que ela se desafogasse a vontade. Afinal de contas, tinha todo o direito do mundo.
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—Acredito que lhe arrancarei os olhos assim que aparecer em minha frente. Isso eu
farei, juro pelo sangue de todos os clãs escoceses!
Depois de trazer a tona tudo o que pensava de Ellis, foi se acalmando tão subitamente
como tinha se entusiasmado.
—Assim ele é seu amigo — se dispôs a conversar.
—Até agora era — admitiu Thomas— Mas, francamente, estou pensando em lhe retirar
minha simpatia, lhe cortejar e me casar com você, senhora. Juro que jamais em minha vida
vi mulher mais bonita e começo a me achar como um estúpido acessando ao casamento
para entregá-la depois para ele.
A rápida, gentil e graciosa cantada derrubou as defesas da moça, que se pôs a rir.
Agora, Thomas conheceu a outra Eleanor McKenna: uma jovem divertida, de rosto
sereno e cativante sorriso, um espelho que refletia uma imagem diametralmente oposta à
exibida até então.
—Ainda podemos driblá-lo. —Continuou com sua brincadeira, piscando um olho.
No momento que seus irmãos irromperam no salão, Lea ainda gargalhava.
Assim que ficou séria, fez as apresentações e depois se colocou em frente à Fergusson e
lhe disse:
—Eu goste ou não, odeie a esse maldito Ormond ou não, tenho que cumprir a palavra
dada por meu pai. Casaremo-nos amanhã. Mas lhe asseguro senhor, que Clifford Ellis
realizou uma péssima compra, porque tenho toda a intenção de lhe fazer a vida impossível.
Thomas se limitou a abaixar a cabeça para não rir abertamente. Estava certo de que
assim seria. Claro que Cliff só teria o que merecia.
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Na manhã seguinte, quando pronunciaram os votos na pequena capela de New Tower,
Tom não podia deixar de observar à moça. Embelezada pelo brocado branco e lhe dando de
presente o melhor de seus sorrisos, era como um sonho. Cliff não tinha ideia do que tinha
ganhado… nem do que se estava perdendo. Por não estivesse interessado por outra
mulher, teria realmente brincado com a ideia de deixar seu amigo plantado lhe arrebatando
semelhante preciosidade.
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Capítulo 7
Hallcombe House podia ser algo exceto uma casa normal. Algo. Inclusive a porta do
inferno.
Enquanto a carruagem se aproximava, Eleanor ia absorvendo com atenção os perfis da
sóbria construção que ia ser seu novo lar. Parecia ter sido edificado lá pelo século IX. Talvez
no X. Exceto pelas janelas bicudas, de nascimento posterior. Ao ver as torres, em uma das
quais ondeava a bandeira ducal, cercadas por uma espessa bruma, algo gelado lhe
percorreu as costas e a fez estremecer.
—É muito antigo, não é?
Thomas deu uma olhada pelo guichê, concordou e deixou que a cortininha voltasse para
seu lugar.
—Possivelmente nem sequer a família sabe com certeza. Há quem afirma, inclusive, que
a obra foi iniciada pelo próprio Guilherme o Bastardo. Faz um pouco menos de um século
que fizeram as últimas remodelações. Digamos que tem a magia do passado e a
modernidade de nossos dias.
—Já vejo.
—Não deve ficar obcecada com Hallcombe House, milady.
—Por favor, me chame Eleanor –lhe falou— Nós nos casamos, lembra-se? —ironizou.
Fergusson não pôde reprimir uma onda de satisfação.
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—Acredito que vai ser a rajada de ar fresco que este mausoléu está necessitando.
—Thomas… que pessoa vou encontrar?
—Ormond? —Ela assentiu e ele se reanimou no assento, em busca de uma palavra
adequada— Cliff é, acima de tudo, um homem de honra.
Lea aguardou mais informação, mas ele parecia haver dito tudo que devia.
—Um homem de honra? Só isso?
—Suponho que pergunta sobre ele e sua forma de ser, não a respeito de seu físico, que
já teve oportunidade de ver.
—Eu o vi um momento, de longe. Não me recordo muito bem - mentiu deliberadamente,
lembrando de seus olhos cravados nela— Ele partiu da festa logo que chegou.
—Assim é Ellis. Para ele, as reuniões sociais são uma perda de tempo.
—Entendo.
—Não é que seja esquivo. É vitima de suas ocupações. Deverá convencê-lo para que
mude ou do contrário passará a vida encerrada em Hallcombe House. No pior dos casos, eu
poderia exercer de cicerone e a acompanhar a alguma festa, não acredito que se oponha.
A Lea aquele oferecimento foi um choque.
—Se tiver que ser sincera, e embora estas bodas não sejam de meu agrado, desejaria ir
aos eventos no braço de meu marido. Por favor, não se ofenda.
—E não o faço — ele afirmou— Mas Cliff está preso aos assuntos de Estado, suas terras e
as reuniões de negócios. Ah! E seu escasso tempo dedica a seu entretenimento favorito: o
grego.
—Grego?
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—Devora tudo que cai em suas mãos. Sua coleção de livros é impressionante e dedica a
eles qualquer espaço disponível — contou. Mas guardou um segredo que somente ele, seu
editor e um par de pessoas mais conheciam: que Ellis escrevia em seus momentos livres
novelas de mistério utilizando um pseudônimo.
—Que interessante — ela comentou, puxando outra vez a cortininha e contemplando de
novo o bloco do castelo cada vez mais próximo— Eu tinha entendido que praticava um
passatempo mais… dissoluto.
—A que se refere?
—Às mulheres.
Fergusson limpou a garganta e mediu cuidadosamente suas palavras.
—Não vou dizer que seu marido tenha sido um monge, mas as pessoas fofocam muito.
Eu lhe asseguro que será um marido digno.
—E aborrecido.
—Sensato.
—E aborrecido — ela repetiu.
—Desde muito jovem teve que carregar a responsabilidade de recuperar a fortuna
familiar. Seu pai fez o que pôde, mas foi mal aconselhado e, a sua morte, ele se deparou
com uns terrenos abandonados, propriedades hipotecadas até os alicerces, muitas famílias
a seu cargo, um castelo que necessitava melhoras urgentes e umas arcas tão vazias como o
bolso de um mendigo — lhe explicou— Não é que tenha tido muitas oportunidades para
dedicar-se à vida contemplativa.
Lea mordeu a língua, ainda que a réplica lhe viesse à boca. O que podia argumentar
contra uma defesa tão intransigente? Seu marido podia ter muitas obrigações, mas a ela
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não vinha à cabeça a fama de caveira que o acompanhava. Claro que neste ponto seu amigo
o defendia. Os homens afinal, sempre encobriam suas fraquezas.
A escura silhueta do castelo ficava cada vez mais ameaçadora, mas as terras que
atravessavam lhe pareceram prósperas e tinha observado casas bem cuidadas.
—Com as mulheres… — retomou Thomas ao assunto para surpresa de Lea.
—Sim?
—Cliff não teve muito êxito com elas. Não me refiro aos flertes, que parece que até você
chegaram rumores. É um tipo com aparência agradável, não vou lhe desvendar nada. Mas
as pessoas aumentam a realidade.
—Então, a que se refere?
—Ao tema familiar. Bom, imagino que em algum momento lhe falará disso se achar
oportuno.
—Quer dizer que me contará que sua mãe o abandonou quando era um menino?
Lea engoliu a curiosidade. Era isso ou Thomas tentava insinuar algo sobre a misteriosa
morte da anterior esposa do duque? Não ia negar que lhe fascinavam os mistérios das
histórias pessoais, quanto mais tétricos melhor, e queria saber tudo sobre seu marido antes
de enfrentá-lo, entretanto, seu interlocutor recostou a cabeça no encosto, fechou os olhos
e só murmurou:
—Isso é o que queria dizer, sim.
Não ia tirar mais dele, apesar disso, Thomas lhe caía bem. Era um homem bonito e
simpático. Ao menos não tinha lhe enviado um advogadinho empertigado para formalizar
seu matrimônio por procuração. Para falar a verdade, Fergusson tinha sido um
acompanhante agradável que com seu bate-papo e suas maneiras converteu a viagem em
uma jornada suportável. Além disso, a companhia de Bethia, sua aia, que viajava na outra
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carruagem junto com a bagagem, tranquilizava-a porque, pelo menos, teria alguém querido
junto a ela. E seus irmãos prometeram ao despedir-se que a visitariam assim que possível.
Eles a teriam acompanhado, mas seu pai, para evitar demoras dolorosas, os proibiu. Lea
sabia, porque o conhecia bem, que era outra forma de castigo. Não ignorava o velho
resmungão o quão unido eram os quatro, e isso era outro modo de obrigá-la a se confrontar
com um destino que tinha que viver sozinha.
As carruagens atravessaram a ponte sobre o antigo fosso e entraram na esplanada que
se abria frente ao castelo. Eleanor conteve o fôlego, porque, se a distância impactava sua
arquitetura poderosa, de dentro impunha ainda mais. Parecia tirado de uma novela de
cavalaria. Ou de uma de J. Preston. Pequenas edificações que imediatamente associou com
capela, ferraria, cavalariças, armazém e garagens se encostavam à construção principal, a
qual se chegava após um passeio cercado de alfenas e bem cuidados canteiros floridos.
—As flores são o passatempo preferido da duquesa viúva — comentou Thomas, como se
adivinhasse seus pensamentos.
A carruagem se deteve e Fergusson desceu. Um criado de libré se aproximou deles com
urgência. Imediatamente, duas mãos solícitas se estenderam para ajudá-la a descer, mas
Lea não aceitou nenhuma e, seguindo seu costume, desceu por seus próprios meios, o que
certamente não foi bem interpretado. Era simplesmente um gesto de independência, um
modo de reclamar o mesmo tratamento do qual gozava qualquer varão. Mal tocou o chão,
precaveu-se de sua falta de tato, porque Thomas só tentava cumprir com seu papel de
cavalheiro e o criado o encargo atribuído. Conseguiu esboçar um de seus encantadores
sorrisos para suavizar sua falta e disse:
—Muito obrigado. —Apesar de sua aparente soltura, não estava tão firme como
aparentava porque agora realmente se encontrava na guarida de Ormond, como dissera
Irish — Estou um pouco cansada — murmurou. Não era certo, o que estava era à defensiva,
mais ainda vendo que um número indeterminável de criados estava alinhado na entrada.
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Mas também estava intrigada. Indevidamente, seus olhos se elevaram procurando as
torres. De qual delas tinha caído à duquesa anterior?— Eu gostaria de descansar um pouco
antes de…
—Muito tarde — murmurou o escocês assinalando com a vista o portão de entrada.
Como se alguém lhe tivesse jogado um sopro gelado em sua nuca, Lea dirigiu para ali o
olhar. No final da escada, erguido e severo, estava ele. Vestido totalmente de negro e seu
cabelo um pouco despenteado, caía sobre um rosto moreno e uns olhos vivos que pareciam
impelir fogo.
Imponente. Atraente.
E com certo ar perverso.
As adagas cinza do duque de Ormond se cravaram nela. Ele quase pôde cheirar sua
apreensão, mas mal lhe deu importância, acostumado como já estava a que o olhassem
como se encontrassem com o Diabo. Preocupava-lhe um nada a opinião da mulher que
acabava de converter-se em sua esposa.
Lea subiu as escadas com um passo inseguro enquanto os criados por sua vez lhe faziam
uma reverência.
E ele não pôde deixar de admitir que fosse bonita. Pareceu-lhe ao vê-la na festa, embora
também tivesse afirmado que era simples e um pouco insípida. Agora tinha ante ele uma
beleza de olhos de gata, com umas graciosas e diminutas manchinhas na ponte de seu
arrebitado nariz salpicando um rosto sem maquiagem. Agradaram-lhe as sardas. E ela.
Teria lhe encantado passar um dedo por elas. Para não exteriorizar suas emoções com
certa veemência pigarreou, o que provocou que Lea tropeçasse em um degrau. A mão de
Thomas evitou que caísse, mas não que perdesse nenhuma pincelada de seu caráter.
—Maldita seja! —resmungou, puxando a barra da saia que tinha pisado.
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Cliff piscou. Uma vez. Lea, consciente de seu desatino, ruborizou-se, mas não desviou seu
olhar.
—Milady — ele disse com voz profunda.
Ofereceu-lhe a mão e uns dedos longos e fortes aprisionaram os seus. Uma corrente lhe
percorreu o braço.
Ellis se inclinou ligeiramente e aquela se converteu em uma seta ardente que se
expandiu por seu corpo.
—Bem-vinda a Hallcombe House — murmurou, sem soltá-la.
—Permita que eu os apresente formalmente — se adiantou Thomas— O duque de
Ormond, milady. Seu marido. Ellis, ela é Eleanor McKenna.
Cliff centrou sua atenção no par de gemas verdes que eram seus olhos. E seu apetite se
afiou. Mas não era um homem que se atordoasse por um rosto bonito. Já não. Assim, como
se recebe um convidado, soltou aqueles dedos frios e trêmulos e a segurou pelo cotovelo.
—Imagino que foi uma viagem pesada, senhora. A acompanharão ao seu quarto para
que se refresque e se instale. Arthur! —chamou um dos criados— mostre suas
dependências a minha esposa. Veremo-nos na hora de…
—Vamos, vamos, vamos! —ecoou a urgência de uma voz de mulher que fez todos se
virarem— Pelo amor de Deus, o serviço de Ness Tower já teria movido todos os baús!
A gordinha figura que provocava seus criados como um sargento foi objeto de uma
pergunta muda a Lea.
—Ela é a senhora Fallen, milord. Cuidou de mim desde que era pequena.
Ellis assentiu. Não tinha contado com que sua esposa trouxesse seus próprios criados,
algo do qual Hallcombe House estava bem servido, mas parecia que teria que ficar com
aquela velha rabugenta que dava ordens como o guia de uma junta de bois.
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—Veremo-nos no jantar — decidiu.
Quando ele desapareceu no interior, Eleanor soltou um bufo muito pouco feminino.
Tinha lhe valido um troféu manter-se impassível ante a aparição do próprio Satanás em
forma de iceberg, mas o desapego com qual foi recebida lhe devolveu uma parte de seu
aprumo habitual e, recordando que os criados estavam atentos a ela, obsequiou-lhes com
um sorriso.
—É pior do que imaginava — murmurou baixo.
—Sim, não é? —conveio Fergusson dissimulando sua diversão— Sempre dá essa
impressão a primeira vez. Pergunto-me por que será.
—Por quê? Em minha casa não se atende a ninguém como se fosse uma mercadoria.
Claro que, na Escócia, somos assim.
Bethia, escutando-a, revirou os olhos.
Capítulo 8
Ellis deixou a carta de seu sogro, que Thomas tinha entregado uma vez que estiveram a
sós, sobre uma pilha de páginas que constituíam o rascunho de sua última novela de
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mistério e em que tinha ocupado todo seu tempo nos últimos dias. Recolheu tudo e fechou
a gaveta do escritório. O laird se desculpava por sua ausência citando a precária saúde do
ancião do clã, Dauly McKenna. Mas algo lhe dizia que não era essa a verdadeira causa. Mas
tubo bem, estava lhe pagando na mesma moeda.
Subiu a seu quarto, onde já lhe aguardava seu criado pessoal, Conrad Ferdinand, que o
ajudou a se trocar.
—Algo novo em relação à duquesa?
—Milady mal chegou e já decidiu visitar o castelo.
—Me refiro a minha avó.
—Ah! Sim, milord. Desculpe. Pensei que…
—A culpa é minha. Eu me esqueci que agora as coisas mudaram.
—Sim, milord. —Abanou um invisível grão de pó na lapela da jaqueta— A duquesa viúva
não deu sinais de vida, milord. Suponho que segue com sua teimosia.
—Eu diria que muito aborrecida, Conrad.
—Pode ser senhor. —Pigarreou— Permite-me lhe dizer que sua esposa é muito bonita?
—Você acha?
Ferdinand servia ao jovem duque de Ormond desde que este fez quinze anos. Inclusive
quando passou privações permaneceu ao seu lado, admirando sua energia e o modo em
que recuperava pouco a pouco seu legado, aplicando-se com firmeza e sem desanimar.
Permitia-se, portanto, de vez em quando, certas familiaridades que o duque não só admitia,
mas também incentivava.
—Sigo estando muito bem da vista, milord.
Cliff se voltou de costas para ocultar seu sorriso.
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—Bom — aceitou— Parece bonita.
—É. E uma verdadeira dama, senhor. Embora eu dissesse que um pouco…
Ormond se voltou e deu um tapinha com afeto no ombro de seu valete.
—Um tanto indômita, sim. Se a tivesse ouvido amaldiçoar tropeçando nas escadas…
quase sem nos conhecer.
—Verdade, milord. Seriamente fez isso?
—Posso jurá-lo. Pareceu-me uma moça recatada quando a conheci, mas… Espero não
haver me enganado com ela.
—E eu espero que não seja um costume, milord. Refiro-me ao de amaldiçoar diante de
qualquer um.
—Pois eu gostaria que não mudasse nesse sentido, Conrad.
—Perdão, milord?
—Imagine minha avó diante uma exclamação fora de tom?
Ao criado não lhe escapou um sorriso divertido cruzando pelos olhos do duque.
—Imagino excelência, imagino.
—E já não digo o mesmo de sua acompanhante.
—Posso supor que milord se refere à senhora Fallen?
—Acredito que se chama assim. O que lhe pareceu?
—Bom milord… Não sei se devo…
Conrad notou que o duque esfregava as mãos só de pensar. E lhe agradou. Fazia muito
tempo que não via seu senhor de tão bom humor. Claro que desde pequeno tinha tido
poucas ocasiões para ser feliz. Conhecia sua história por havê-la vivido ao seu lado. Não
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tinha tido uma infância feliz, seu primeiro matrimônio foi um fiasco e depois sua avó o tinha
estado fustigando com novas candidatas a duquesa. As discussões entre ambos chegaram a
transpassar as paredes do escritório. Compreendeu, portanto, que o repentino e acelerado
matrimônio com uma McKenna não era a não ser uma vingança contra a anciã.
Eleanor se adaptava a qualquer lugar com rapidez, tanto se fosse um palacete quanto
uma cabana de lenhadores. Agradava-lhe conversar com as pessoas, conhecer suas
experiências e suas opiniões; para ela não existia ninguém inferior e as classes sociais lhe
importavam um nada. Portanto, imediatamente foi se acomodando ao castelo como a sua
própria casa.
Além disso, cada vez se assombrava mais com Hallcombe House.
Mal tomou posse de suas acomodações no lado leste, a uns cinquenta metros da
antecâmara do lorde, conforme lhe informou Bethia, empreendeu uma visita rápida para
situar-se. Seu receio inicial aumentou, mas também o fez sua intriga. Aquele conjunto de
pedras se apresentava tão sinistro como o tinha imaginado, e isso a entusiasmava. As salas
eram espaçosas, luxuosamente decoradas, fazendo honra à riqueza de seu marido, embora
semelhante desdobramento de ostentação não conseguisse transmitir sensações
acolhedoras.
—São frias — disse a Bethia— Falta luz e colorido e parecem impregnadas de uma
auréola de tristeza.
—Eu não gosto deste castelo, menina. Deixa-me de cabelo em pé.
—A mim, pelo contrário, seduz. —Não podia explicar à excitante e estranha sensação
que a embargava, mas era verdade. Ali se cheirava o mistério e os enigmas, algo ao qual ela
nunca pôde resistir.
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—Tampouco compreendo por que a instalou ao outro lado da galeria — comentou de
repente Bethia, mudando de tema.
—Quanto mais longe, melhor.
Tranquilizava a criada que Ormond não tivesse a colocado nas antigas dependências da
defunta duquesa. E sabia que Eleanor pensava o mesmo.
—Não há muito que compreender Bethia: meu marido não me incomodará muito. É para
se agradecer, ao menos até que nos conheçamos um pouco mais.
Ninguém que não estivesse familiarizado conseguiria não se perder no labirinto de
galerias e salas, pensava enquanto percorriam salas e quartos. Distribuídos em três níveis,
um sem-fim de corredores se abriam a escadas que os enlaçavam dando lugar a quartos e
escritórios, muito com os móveis cobertos por tecidos. Um verdadeiro labirinto. Como se
cada duque que no passado habitasse entre os vastos muros tivesse tentado personalizar
uma parte do castelo.
Uma criada com a qual cruzaram afirmou que existiam cerca de setenta quartos. Outra,
setenta e cinco. Nem sequer o pessoal de serviço tinha certeza do tamanho real que seria
seu lar.
—Não se pode negar que se respira uma atmosfera de riqueza — sussurrou Bethia, um
tanto incômoda pelo silêncio que reinava.
—Acredito que vai bem das finanças - brincou a jovem— Se, como se diz, seu pai perdeu
sua fortuna, conseguiu não só recuperar suas posses, mas também as aumentar, o que
demonstra firmeza e habilidade. —Virtudes que, por outro lado, ela valoriza muito—
Certamente, não é um parasita.
—Ou tem a sorte de quem pactuou com Lúcifer — resmungou sua criada.
Mas Lea não acreditava em pactos satânicos e ignorou as insinuações tão ásperas.
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Refez o percurso, prometendo-se aprofundar nas curvas de sua nova casa. Embora
denominá-la assim possivelmente fosse incongruente. Já era tarde e devia trocar-se para o
jantar.
Bethia escolheu para ela um vestido branco de decote quadrado. Um dos melhores e
parcos que possuía, porque nunca se preocupou em encher seu armário de trapos, como
ela dizia muitas vezes. O dinheiro se utilizava em assuntos mais práticos e muito menos
frívolos que armazenar filas de sapatos ou chapéus. Preferia ir caçar envolta em um tartan.
—Este vestido me faz parecer muito jovem — reclamou.
—E também mais feminina menina.
—Já viu meu marido. O que te pareceu? Um homem alegre?
—Se tivesse que defini-lo diria que severo. Ou amargurado.
—Isso me pareceu. Não quero me apresentar ante ele como uma boneca de porcelana.
Quando o vi em Londres usava um vestido insípido e juvenil que Tina me emprestou e
prefiro que não guarde essa imagem.
—Mas este vestido é bonito.
—Eu porei o negro, que combina com seu humor.
—O negro é de festa. E te faz parecer mais velha.
—Precisamente por isso, quero que me veja mais velha.
—Está errada, menina e, além disso…
Uma chamada a porta interrompeu os reparos de Bethia. Entrou uma moça alta,
desajeitada e morena com um uniforme escuro, um avental e o cabelo preso sob uma touca
imaculada. Inclinou-se perante ela e sem levantar os olhos do chão se apresentou:
— O senhor Simpson envia-me para ajudá-la, excelência. Meu nome é Sonia.
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—A senhora já tem ajuda — antecipou Bethia— Eu mesma.
A moça, sobressaltada, esperou a confirmação da nova duquesa em silêncio.
—Diga ao tal senhor Simpson que não necessitamos de ninguém - insistiu a escocesa.
Lea não se alterou ante o mau humor de sua aia e se aproximou da jovem.
—Não lhe dê muita atenção. É a senhora Fallen. Ladra, mas não morde. Tenho certeza
que acabará se entendendo bem com ela. Veremos o que pode ir fazendo.
Bethia sabia muito bem até onde podia chegar. Tinha que colaborar com a criada de
Ormond, assim aceitou sua ajuda.
—Está bem. Pode ir guardando o resto da bagagem. —Imediatamente, a garota se
aproximou dos baús— Cuidado com essa roupa! Se rasgar um só objeto eu deixarei seu
traseiro inglês lanhado a açoites.
A Sonia arregalou os olhos e sua mão ficou a centímetros de uns punhos de pele. Mas
Bethia seguiu com a sua. Pegou de novo o vestido branco e o estendeu para Lea.
—O negro — ela insistiu.
—É muito decotado.
—Não é.
—Sim é, menina. Por que sempre tem que me contrariar?
—Já me comportei como uma caipira ao chegar. Até deve ter visto como tremiam meus
joelhos. Se me apresentar no jantar com esse vestido… Definitivamente, não, Bethia. Não
quero que me veja como uma moça amedrontada.
—Vai me dizer agora que tem medo dele? Você?
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—Sua aparência não me tranquiliza especialmente. — ela virou-se para que a
desabotoasse por trás— Você o viu assim como eu. Quem não se sentiria um pouco
intimidado?
—Uma McKenna.
Lea fez uma careta, moveu os ombros e deixou que seu vestido deslizasse até o chão.
Asseou-se com rapidez. Bethia lhe entregou o outro e o pôs. Depois se olhou criticamente
no espelho. Sim, a deixava mais velha. Era verdade. Mas também decidida, com maior
integridade. Justo a imagem que necessitava para enfrentar a ele.
—Exato, amiga minha — disse, retomando a conversa e afofando seu cabelo para
facilitar que Bethia fechasse a interminável fileira de botões— Uma McKenna, isso.
Quase não escutaram a voz da Sonia que se atreveu a dizer:
—É um bom amo, milady. Não deve se deixar influenciar pelos falatórios.
Eleanor elevou as sobrancelhas, surpreendida. Era a segunda pessoa do ambiente de
Ormond que pensava assim. Algo que devia anotar a favor do duque, pensou. Mas ela não
as tinha todas consigo.
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Capítulo 9
Chegou atrasada ao jantar.
Foi culpa de uma porta entreaberta que tinha visto ao dirigir-se a sala de jantar,
precedida por Simpson. E de sua insaciável curiosidade. E já se sabe que a curiosidade
matou o gato. Prateleiras repletas de livros lhe chamaram poderosamente a atenção. Para
ela, a sala em questão foi como o canto das sereias para Ulisses, e esqueceu todo o resto.
Nunca tinha visto uma biblioteca tão bem sortida. Estavam-na esperando, sim, Simpson a
recordava estando parado na soleira e aguardando. Mas o que podia perder dando uma
olhada? Era uma sala grande, de móveis maciços e altas janelas pelas quais se filtrava a luz
das tochas do jardim. Cheirava a couro, a pergaminho, a antigo. Acariciou o lombo de
alguns livros e se prometeu passar ali muitas horas.
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O pigarro do mordomo e o som de um relógio de parede dando à hora romperam o
encantamento e saiu atrás do criado.
Acelerada como ia, teve que frear em seco. Simpson parou de repente ante uma porta e
a abriu. Olhou de esguelha à nova duquesa e não lhe escapou o rubor de suas bochechas, o
brilho de seus olhos e os cachos rebeldes que fugiam de seu penteado. Enrugou o cenho:
não parecia a mulher adequada ao título. Ele se afastou com uma reverência e ela passou
junto a ele exalando um agradável aroma floral.
Ellis e Fergusson a estavam esperando, conversando junto às janelas. O escocês vestia
casaca, calças de cor creme com colete mais escuro e gravata ligeiramente torcida, o que
lhe dava certo ar despreocupado. Mas estava muito bonito.
Percebendo a presença de Eleanor, adiantou-se para lhe oferecer seu braço e a
acompanhar à mesa.
—Lamento o atraso, cavalheiros — se desculpou.
—Valeu à pena esperar — elogiou Thomas— Está encantadora.
Ellis observou Lea com atenção e ela duvidou então da sabedoria na escolha de seu
vestido, mas se manteve serena embora lhe subisse um sufoco sob o atento escrutínio de
seu marido, cujos olhos pareciam ter ficado presos em seu decote. Não quis aceitá-lo, mas
tinha que dar razão a Bethia: estava muito atrevido. Mas estava feito. Não se deixou
amedrontar e se fixou nele com audácia. Infelizmente, achou-o extremamente atraente.
Clifford Ellis podia ser mesmo Satanás feito homem, o tipo mais anti-social da Inglaterra,
inclusive dando suporte a fábrica de rumores, o psicopata assassino de sua esposa anterior
com fama de destruir a reputação de algumas jovens, embora Lea não acreditasse nem na
metade. Mas, certamente, era um homem para se lembrar. Ele também estava vestido de
negro e agora lhe pareceu mais alto. Sim, era atraente, não podia negar. Ombros largos,
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pernas longas, mãos bem cuidadas e magro. Não se percebia um grama de gordura
embaixo da casaca.
Ele inclinou ligeiramente a cabeça depois de contemplá-la e se viu correspondido de
igual modo. Um infeliz sentido de posse o confundiu. Era na realidade a mesma mulher que
viu na festa? A insignificante moça apagada em seu vestido rosa? A que agora o desafiava
em silêncio? Uma e outra pareciam estar a anos luz e admitiu que gostava muito mais
desta.
Deixou que fosse Fergusson quem lhe puxasse a cadeira e ele se acomodou na cabeceira
da mesa.
Lea estava tensa. Esse era o recebimento de um marido? Mal trocaram umas palavras
quando chegou ao castelo e agora guardava uma atitude reservada que começava a pô-la
nervosa. Não se conheciam, era verdade, mas teriam que levar uma vida em comum, não?
Neste ponto tomou consciência real de que não lhe cabia outra opção que permitir seus
desejos carnais. Ela sufocou com o ar na garganta. Centrou a vista na imaculada toalha,
muito enrijecida, e inspirou fundo para compassar sua respiração.
A Cliff não escapou o movimento agitado de seu peito. Remexeu-se no assento e só falou
uma vez após ser servido o primeiro prato. Aparentando concentrar-se em colocar o
guardanapo sobre seu joelho, perguntou:
—Teve algum contratempo, senhora?
—De que tipo, milord? — ela disse surpresa.
—A esperávamos faz quinze minutos.
Era um ataque indireto, mas ela não o acusou.
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—Na realidade, foi um atraso imputável a você, senhor. —Ellis deteve a colher a meio
caminho capturando no ato sua atenção— Sua biblioteca. A porta estava aberta e não pude
resistir à contemplação de alguns volumes.
—Alegra-me que a satisfaça — ele respondeu suavemente, um tanto deslocado pela
resposta.
—Imagino que haverá algum espaço para meus livros, milord. Os trouxe comigo.
—Sempre haverá espaço para dois ou três exemplares mais.
Lea sentiu ser perfurada por um golpe de rebeldia. Um par de livros? Certamente ele se
somava ao clichê comum de outorgar às mulheres o qualificativo de pouco menos que
ignorantes. Mordeu a língua para não lhe responder com uma das frases preferidas de seu
irmão Sean, porque teria sido fora de hora. Mas, sobre tudo, por consideração a Fergusson
e aos criados, postados junto à porta, esperando para servir mais pratos.
—São quatro baús, meu senhor.
Ormond se engasgou e Fergusson provavelmente se surpreendeu também embora de
um modo muito agradável pelo sorriso que esboçou.
—Quatro baús?
Ela tinha a expressão de uma noviça a ponto de tomar o hábito. Mas Ellis não se deixava
enganar. Não estaria o provocando? Quatro baús, pelo amor de Deus!
Sua flamejante esposa cravava nele os olhos muito digna e séria, mas não podia
dissimular o júbilo em suas pupilas. Pedia guerra. Devia estar ficando velho por ter a
estimado tão levianamente.
—Ordenarei que habilitem alguma sala, assim disporá de sua própria sala de leitura,
senhora. Em Hallcombe House o que sobra é acomodações.
—Preferiria a biblioteca, milord. Ela está envolta de um aspecto tão… ancestral.
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—Ancestral?
—Acredito que quer dizer que cheira a velho — interveio Fergusson, encantado de tão
fleumático diálogo.
—É velha — resolveu o duque, sem desviar a atenção de Lea— Foi uma das primeiras
peças que se levantou em Hallcombe House. E eu gosto assim. Velha. Ancestral, se o
preferirem.
Certo! Era possível que ao ogro restasse uma diminuta veia de humor? Ela perguntou-se.
—Têm razão — ela lhe concedeu— É mais acolhedora. Estou convencida de que saberão
colocar meus livros junto aos seus.
Ellis amaldiçoou mentalmente. A biblioteca era seu mundo privado, seu retiro, onde dava
forma a seus manuscritos…
Trocou o rumo da conversa porque acreditava que entrava em terreno pantanoso.
—As acomodações que lhe atribuíram merecem sua aprovação?
Eleanor assentiu e ele se concentrou de novo na comida.
Aquele era o homem com o qual se casou, pensou Lea o olhando de viés. Perguntou-se
quanto de verdade haveria nos falatórios. De algo não tinha dúvida: era um sujeito frio e
distante que parecia ter gelo nas veias. E, entretanto, em cada um de seus movimentos, em
cada olhar, recordava a um felino à espreita. Era esquivo, reservado e enigmático.
Possivelmente por isso a atraía.
—Se houver algo que não seja de seu agrado, faça-me saber; darei instruções para
amoldá-lo a seu gosto. Ou, melhor ainda, dê as instruções você mesma.
—Agradeço-lhe isso, milord. Porque algumas salas, se me permite isso, embora sejam
espaçosas, são sombrias e tristes. Devo imaginar que a decoração é tão homogênea em
toda a casa?
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—Minha esposa não tem por que imaginar, senhora. Como nova duquesa que é, pode
inspecionar o castelo de ponta a ponta. Simpson ficará a sua disposição amanhã e lhe
mostrará a propriedade. —Deixou o garfo ao lado do prato— Você disse triste?
—Sombrias e tristes — ela apontou.
—Está pensando em redecorá-las, talvez?
—Não quero causar incômodos nem a você nem aos seus criados, milord. Muito menos,
fazer desperdício de seu dinheiro.
Ellis lhe deu de presente uma careta divertida e seu rosto se iluminou. Por que não sorria
com mais frequência, quando ficava tão bonito?
—Pago bons salários, senhora. Nossos criados perderão umas horas de seu tempo com
gosto para atender a sua duquesa no que demande. Quanto ao dinheiro… Não me importa
se levam todos e cada um dos móveis e tragam outros. A verdade é que, no que a mim
concerne você pode pintar todas as paredes de vermelho.
—Sei…!
—Thomas seria também um perfeito anfitrião, se preferir sua companhia.
—Obrigado — disse o escocês— mas os fantasmas de Hallcombe House e eu não nos
damos muito bem.
—Fantasmas?
Lea fez a pergunta com muito interesse. Tanto, que Cliff voltou a centrar-se nela e, por
outro lado, lançou uma recriminação lateral a seu amigo.
—Espero que Fergusson não tenha metido ideias estranhas em sua cabeça, senhora.
—Eu não disse nada! — ele protestou.
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A possibilidade de que ali existisse algum fenômeno estranho enchia Lea de alegria e
ansiedade de uma vez.
—Sempre estive interessada nos temas sobrenaturais — ela disse— Para falar a verdade,
se em Hallcombe House existir um espírito, eu adoraria me encontrar com ele e lhe
perguntar como vai no além.
—Pois lamento lhe decepcionar, senhora, mas aqui nunca houve fantasmas.
Eleanor captou um toque de ironia. Percebeu que agora ele pensaria que estava um
pouco louca.
—É uma lástima.
Fergusson encontrou no tema a oportunidade de fazer-se ouvir e se dedicou a amenizar
a noite narrando lendas de assombrações escocesas, muitas das quais Lea conhecia desde
menina. Ela se divertia com suas graças, mas Cliff manteve o resto do jantar um ar antisocial.
Acabando as sobremesas, Thomas servia copos de vinho para Cliff e para ele e Ellis
perguntou:
—O jantar foi que de seu agrado, senhora?
Apesar de sua ousadia, Lea seguia em guarda. A proximidade de seu marido a deixava
tensa, mesmo que ela não fosse propensa a se deixar intimidar. Ormond, entretanto,
alterava-a, porque seus olhos cinza pareciam poder ler seus mais íntimos pensamentos.
—Excelente — lhe respondeu.
—A senhora Fellini, minha cozinheira, agradecerá seus elogios. Esmerou-se muito para
que tudo fosse perfeito.
—E assim foi. Obrigado. Milord… — ela disse de repente, elevando o queixo como uma
imperatriz— acredito que deveríamos falar de nós.
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Cliff permaneceu um segundo suspenso em seu movimento. Aquela mulher era das que
iam direto ao ponto. Claro que iriam ter uma conversa! E a poria a par de suas obrigações
como duquesa. Tinha pretendido lhe dar tempo para habituar-se à ideia de sua nova
condição de senhora de Hallcombe House. Entretanto, ela ia de frente e sem escudo e lhe
desconcertava porque, até então, ele sempre estava acostumado tomar a iniciativa.
—É obvio senhora — pôde articular por fim— Quando quiser. Hoje já é um pouco tarde e
está cansada pela viagem. Além disso, tenho assuntos que despachar com Thomas. Iria lhe
agradar sair amanhã para cavalgar?
Passar as próximas horas em branco sem saber o que esperar não era sua noite ideal.
Quanto antes soubesse o que esperava dela, muito melhor. Mas tampouco podia
comportar-se grosseiramente e abaixou as velas.
—Amanhã então.
—Às… onze?
—As onze? —exclamou— Há essa hora, milord, eu gostaria de já estar de volta e ir me
pondo em dia a respeito do castelo. É muito cedo para você às oito da manhã?
—Então já fará uma hora que me terei levantado senhora.
—Perfeito. Eu gosto de gente madrugadora. Veremo-nos no café da manhã, as sete,
milord. E agora, devem me desculpar cavalheiros. —levantou-se antes que Fergusson
pudesse afastar sua cadeira— Retiro-me e lhes deixo com seus assuntos.
Um longo tempo depois de que ela partiu, Cliff seguia sem assimilar a nova situação.
Desde quando ele recebia ordens de alguém?
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Capítulo 10
O dia amanheceu um pouco nublado, mas a temperatura era excelente. Bethia tirou um
traje de amazona da mesma cor que seus olhos e um chapéu bonito com uma pluma verde
que realçava mais, se possível, a luminosidade de seu cabelo.
Ao olhar-se lhe escapou uma careta de descontentamento.
—O penteado.
—O que acontece com o penteado? —perguntou Bethia, dissimulando um bocejo.
Lea se observou criticamente. O cabelo preso na nuca lhe ficava bem, mas não era
cômodo. Ela gostava de cavalgar sem restrições.
Deixou o chapéu sobre a cômoda, tirou os grampos e passou os dedos pelo cabelo.
—Não pensa em sair assim?
—Não me repreenda mulher. Eu não gosto de levá-lo preso.
—Assim não parece uma duquesa.
—E como são as duquesas? Até agora só fui filha de Neal McKenna, Bethia. Não vejo o
que mudou.
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—Mudou que se casou com o duque de Ormond. Assim simples. Deve ir esquecendo
seus costumes selvagens e se amoldar ao presente, menina.
Lea moveu o pescoço de um lado ao outro.
—Pois eu não tenho a mínima intenção.
—Além disso, deveria cuidar de seu vocabulário — recriminou sua aia— Acha que
ninguém a ouviu quando tropeçou? Eu ouvi e também o fez o duque, e seu rosto disse tudo.
—Mamãe dizia que o melhor para manter um homem preso as suas saias é não deixar de
chocá-lo.
—Ea, ea, ea! Quantas tolices tão cedo! Por certo, por que não as cita mais tarde? Nem as
galinhas despertaram ainda.
Lea lhe deu um beijo na bochecha e a beliscou.
—Ele disse que se levantava às sete.
—Não conheço nenhum aristocrata que se levante antes das doze.
—Meu marido não parece dado a tresnoitar.
—Não se diz que o Diabo e as bruxas atuam sempre a meia-noite?
—Bethia!
Bethia reparou em Sonia, que já abria as persianas das janelas, deu-se conta de seu
deslize e alisou o cabelo.
—Me desculpe.
—Está incomodada por ter tido que deixar a Escócia.
—Estou incomodada porque não agiu como um cavalheiro. Não ao menos como os
cavalheiros que conheço. — voltou-se para Sonia que parada na porta carregando as
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toalhas usadas, olhava-a com os olhos muito abertos— O que olha garota? Pode ir fofocar
com seu senhor o que penso dele, pra mim tanto faz. —Sonia abaixou a cabeça e partiu e
Bethia voltou a carga— Deveria te haver cortejado e solicitado sua mão como Deus manda.
E celebrar as bodas corretamente, em vez de enviar um intermediário — e deu por
resolvido o assunto— Estou incomodada, sim, porque sei que seu maior sonho era se
apaixonar e se casar em uma bonita cerimônia com convidados e flores.
Assim poderia ter sido não lhe faltava razão, mas já não havia mais do que virar a página.
—Pode ser que seja o pagamento por minhas maldades. Se não tivesse zangado tanto a
papai…
—E como vai confrontar o momento em que milord diga que é hora de cumprir com seus
deveres conjugais? Porque chegará a esse ponto.
—Acredito que sei o necessário desse assunto — Lea respondeu muito rígida— E não
acredito que agora devamos falar dessas coisas.
—O necessário, o necessário… — ruminou sua aia— Até a uns dias nem sequer tinha
pensamento em se casar.
Lea não desejava se aprofundar em um tema que certamente a deixava muito nervosa.
Quando chegasse a hora, cumpriria com seu dever e ponto. Bethia lhe havia dito em mais
de uma ocasião que era o marido quem tomava a iniciativa, não a mulher. Era o que se
esperava de uma dama. E embora lhe arrepiasse só de pensar, tampouco devia ser tão
difícil agir de forma passiva e deixar que seu marido se desafogasse. No máximo, uns
minutos e a coisa ruim teria terminado.
Mas imaginar Cliff Ellis em sua cama a alterou mais do que acreditava, de modo que se
recusou a pensar mais nisso. Já haveria o momento para enfrentar o problema. Ao final,
duque ou não, ele era um homem como os outros.
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Entretanto, já na sala de jantar e encontrando-se de novo na presença dele, sua
imaginação disparou.
Seu marido, de negro para variar, usava um traje que parecia ter sido confeccionado
diretamente sobre sua maciça figura. Por alguma razão lhe transpôs uma visão de estar
acariciando seus ombros e os poderosos músculos que se prenunciavam sob sua casaca.
Ellis lhe deu bom dia, afastou sua cadeira e serviu ele mesmo. Tomaram o café da manhã
a sós e quase sem conversar. A fruta grudava na garganta de Lea, atenta como estava a
cada movimento de suas elegantes mãos.
—Café?
—Sim, por favor.
—Me desculpe estou pouco acordado a esta hora, senhora.
—Tudo está perfeito.
Lea procurou não levantar a vista da borda da xícara. Cada vez que levantava o olhar,
descobria-o observando-a. Ela sentia-se fora do lugar, perturbada. À hora do café da manhã
estava acostumada a ser um ritual dos melhores do dia em Ness Tower. Um interlúdio para
brincar com seus irmãos, fazer planos para o dia e ler os convites que chegavam. Mas agora,
o silêncio que os rodeava a intranquilizava. Agradeceu por dar finalizado o café da manhã e
sair ao ar livre.
As cavalariças de Hallcombe House eram impressionantes. Numerosas baias —calculou
umas trinta— estavam ocupadas. Alguns tratadores transitavam por lá, limpando e
distribuindo água e alimento para os animais.
Eleanor entendia de cavalos. Eles eram a paixão de seu irmão Sean e ela tinha recebido
uma boa educação nesse campo. De fato, tinha aprendido a montar antes de caminhar.
—Magníficos exemplares, milord — ela elogiou, aproximando-se de um baio.
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—Eu tento me rodear do melhor, senhora… Seja o que for.
As costas de Lea ficaram rígidas e sua mão se deteve no ar. Ele estava se referindo aos
cavalos ou a ela?
Aproximou-se um moço muito jovem que parecia um diabinho dos bosques. Seus olhos,
de uma intensa cor azul, tinham de viseira um cabelo escuro, curto e cacheado.
—Bom dia, milord. Milady.
—Monty. Que demônio faz de pé? Disse que descansasse até que estivesse recuperado.
—Não sei vadiar, excelência, já sabe. Tenho que estar com eles — apontou aos potros—
são meus companheiros. Meu avô dizia que tenho sangue de cavalo nas veias.
Ellis revolveu seu cabelo, um gesto de camaradagem que Lea não passou por cima em
uma personalidade tão sombria como a de seu marido.
—Monty, ela é minha esposa.
—Estou ao seu serviço, milady. —Executou com graça uma reverência— Posso dizer que
é você a duquesa mais bonita que conheci minha senhora?
Cliff pigarreou sem dissimular um sorriso satisfeito e Lea se disse uma vez mais que
ficava um sedutor quando suavizava seus traços severos.
—É a única duquesa que conhece — apontou Ellis.
—Mas estou certo de que é a mais bela, milord.
—Sim, verdade? —E seus longos dedos posaram na cintura feminina, como por descuido.
O ligeiro contato provocou uma reação imediata em Eleanor. Aquela mão grande e
elegante pareceu queimá-la inclusive através da roupa. Acima de tudo porque, embora
aparentasse ser uma carícia, passava um ar de posse que a irritou.
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—Acabarei por me envergonhar entre os dois - murmurou, dissimulando sua
contrariedade.
—Traga os cavalos, Monty. Sele Dream para a senhora. Um nome muito apropriado para
você. Não lhe parece, milady? —Perguntou tão perto dela que seu fôlego formigou em sua
pele.
Eleanor agradeceu mentalmente a Monty que lhes proporcionasse as montarias em um
abrir e fechar de olhos. Precisava afastar-se de seu marido se quisesse manter a
compostura. À medida que passava mais tempo com ele se achava mais insegura.
Adivinhou imediatamente qual era Dream. O cavalo de Ellis era como seu amo: escuro,
de olhar penetrante, de figura imbatível. Não era fácil imaginá-lo montado um equino com
menos superioridade. Mas o outro, o que montaria, a conquistou ao primeiro olhar. De uma
preciosa cor de canela, seus olhos travessos combinavam com um pescoço esbelto e uma
crina rebelde. Aproximou-se, acariciou sua testa e o cavalo lhe devolveu a saudação com
um pequeno relincho e apoiando o focinho em seu ombro.
—É uma preciosidade!
—Foi comprado especialmente para você, senhora. Monty o domou e tem feito um
excelente trabalho, embora ainda devam lhe doer as costelas.
—Não foi culpa do cavalo, milady — o jovenzinho se apressou a explicar antecipando-se
a Lea— Tudo se deve a minha própria estupidez, que não soube desmontar a tempo. Dream
não lhe dará problemas, excelência.
Em Lea despertou o instinto maternal ante a agitação do menino e, como sempre,
exteriorizou seus sentimentos tal como lhe chegaram, o beijando na bochecha.
—Obrigado, Monty.
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O moço corou e abaixou a cabeça. Balbuciou algo que nenhum dos dois chegou a
entender e saiu das cavalariças a toda pressa.
—Eu o ofendi? — ela perguntou desorientada.
—Não. O surpreendeu. Não está acostumado a essas amostras de carinho, ainda menos
a um beijo. É pouco mais que um pirralho.
Ela acreditou perceber um toque de experiência em tais eventos e ficou imediatamente
em guarda.
—Você o está, milord?
Tão logo o disse se arrependeu. Lamentou imediatamente ter feito uso de uma retórica
mal entendida. É claro que devia estar acostumado a receber favores das mulheres! Valente
tolice acabava de cometer! Tão somente obteve um seco:
—É possível.
Ellis a ajudou a montar e depois o fez ele, instigou o cavalo e deixaram as cavalariças. Ela
o seguiu controlando o inquieto Dream. Trotando atrás dele, foi complicado deixar de fixarse no porte orgulhoso de seu brilhante marido. Mas seguia sem ter ideia do que ele
pensava dela. Na realidade, não lhe importava muito, mas não desejava receber censura
alguma por parte de seu pai se lhe transmitisse uma queixa. De qualquer modo, já tinha
ficado muito claro que Ellis não era alguém predisposto ao bate-papo, ao contrário dela,
assim não teria mais remédio que esperar para saber sua opinião.
Já fora das muralhas, Ellis se dirigiu para o bosque de coníferas próximo sem preocuparse muito se ela o seguia ou não. Lea não gostava de andar em grupo, mas a manhã se
apresentava esplêndida, a paisagem era de um verde espetacular e não ia permitir que seu
rude marido lhe amargurasse o dia. As cores lhe recordavam a sua amada Escócia e, ao
longe, fachos de luzes multicoloridas rasgavam as nuvens projetando-se sobre as copas das
árvores. Mais à frente, a sua direita, serpenteava um riacho que punha um contraponto
82
prateado. Era uma imagem bucólica, quase uma pintura e, embora sentisse falta de suas
terras, Lea pressentiu que esta acabaria por abrir caminho até seu coração.
—No meio do bosque há uma pequena clareira onde poderemos descansar — ela o
ouviu disser— Há ali uma lagoa que se mantém de uma cascata que desce da montanha.
Não o respondeu. Começava a zangá-la de verdade que ele mantivesse seu cavalo vários
metros adiante, como se fosse acompanhado por um criado. Também a chateou que não se
dignasse virar-se quando falava. Não fez nada para acompanhá-la. Se ele desejava mostrarse como um senhor feudal, ela não pensava em rebaixar-se. Nunca o tinha feito, exceto
ante seu pai e em raras ocasiões. Certamente, não tinha intenção de fazê-lo ante uma mula
presunçosa.
Ao não obter resposta, Cliff reforçou a mão na sela e se virou ligeiramente para trás,
justo no instante em que ela desviada seus olhos para as copas mais altas. Altiva e soberba,
pensou, vendo-a cavalgar muito rígida, como uma soberana. Deu-lhe de novo as costas e
refreou o trote de seu cavalo até que não ficou mais remédio que ficar lado a lado.
—Se lhe agradar o lugar, milady… devo esperar um pagamento similar ao que deu a
Monty?
Lea não pôde evitar um acesso de tosse. Ele, cavalheirescamente, deu um par de
tapinhas em suas costas, como se lhe preocupasse, mas por dentro estava se divertindo
com sua situação. Não esperava uma resposta afirmativa, mas perceber em seus olhos
feiticeiros um toque de medo ativou ainda mais seu humor. Só tinha tentado brincar para
romper o gelo, mas, na realidade, estava gostando porque lhe percorreu um arrepio de
antecipação e se imaginou beijando aquela boca, agora franzida. Ele estreitou os olhos,
cravando-os em seus lábios.
Lea, pelo contrário, era vítima de um estremecimento. Se até então não tinha podido
olhar ao Diabo na cara, agora o estava fazendo.
83
Capítulo 11
84
Em realidade, não era uma lagoa, e sim um lago, embora lhe parecesse profundo o
suficientemente para poder nadar nele. Um local romântico e até parecia que encantado.
Os raios de sol mal se infiltravam na clareira e uma ligeira neblina se expandia do chão
formando redemoinhos nas patas dos cavalos à medida que avançavam. O silêncio era
total, somente interrompido pelo canto de algum pássaro no mato e o som da água da
cascata. Como se a qualquer momento pudessem aparecer fadas ou elfos.
Seu devaneio evaporou ao ver que Ellis desmontava e lançava as bridas sobre um ramo
baixo, com um movimento ágil e compassado de seu corpo alto e musculoso. Movia-se com
uma graça animal que atraía seu olhar constantemente. Era como um gato. Ou como uma
pantera.
Cliff era consciente do olhar apreciativo da moça. Em qualquer outra circunstância, teria
sido um incentivo para ele. Entretanto ali e nesse momento, esforçando-se para manter sua
excitação sob controle, duvidava da oportunidade e ansiava por uma aproximação. A
indecisão era algo ao qual não estava acostumado e o receio de não ter acertado com
aquele matrimônio o preocupava. Sua dama escocesa nada tinha a ver com sua esposa
anterior, eram como o dia e a noite e não sabia o que esperar. Por um lado, ela se mostrava
distante e empertigada. Por outro, o observava como se fosse um troféu. Seu dissimulado
interesse endurecia seu corpo imaginando o momento em que selassem sua união.
Como sempre, Lea desmontou sozinha, quanto mais longe o deixasse melhor. Ou pelo
menos tentou, porque ele foi mais rápido e se encontrou rodeada pela cintura.
Com o coração bombeando no peito, adivinhou que até chegar ao chão ia demorar uma
eternidade. Não se equivocou. Ele a manteve uns segundos no ar, seus rostos tão próximos
que os olhos de Lea ficaram pendurados nos dele, da cor do aço. Depois, como se
depositasse um objeto precioso, abaixou-a muito devagar, roçando seus corpos, cortando o
fôlego de Lea que aspirava com um ar opressivo.
—Obrigado — murmurou, embora não soasse muito feminino.
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Já garantida sobre a grama, Ellis não a soltou ainda. Suas mãos, como duas braçadeiras
de aço, seguiam abrangendo sua cintura. É que para Cliff era impossível liberá-la: cheirava a
flores, a hortelã, a mulher. O controle do qual sempre se gabou desmoronava como um
castelo de cartas e se acrescentava uma necessidade urgente de acariciar sua pele.
Desejava envolvê-la em seus braços, beijar sua boca, aderir o corpo dela ao dele. Maldito
fosse! O que realmente queria era rolar com ela sobre a grama e fazê-la sua de uma vez.
Lea não separava os olhos de seu amplo peito. O sangue circulava por suas veias como
uma corrente ardente que a transtornava. Não soube se passavam segundos ou horas, cada
terminação nervosa lhe enviava impulsos de excitação ao aspirar seu leve perfume de couro
e sândalo. Uma mistura de escrúpulo e fascinação a mantinha muda e anulada.
—Você é linda.
A repentina afirmação aumentou sua ansiedade lhe provocando uma pontada no
estômago.
Se o tivessem baleado, Cliff não teria se sentido tão mal. Porque foi uma chama de
rechaço o que viu em seus olhos. Claro. O que esperava? Sua condenada fama o precedia e
ela devia ter escutado mil histórias. Por acaso não diziam que tinha assassinado a duquesa
anterior? Ele obrigou-se a controlar a parte de seu corpo que tinha adquirido vida própria
ante a proximidade da moça e a soltou. Reprimiu o desejo, afastou-se e caminhou para a
água, lamentando sua estupidez. Era sua esposa e não tinha que prestar contas a ninguém.
Lea despertava nele sentimentos quase esquecidos. As mulheres não davam mais que
problemas e jurou que, mesmo que ela o fascinasse, não se deixaria apanhar de novo.
Casou-se porque a Coroa e sua maldita avó o tinham obrigado, mas uma coisa era conviver
de novo com uma mulher e outra, bem diferente, cair em suas redes.
—Bem. O que acha deste lugar?
Jogando mão de todo seu controle, Lea se aproximou.
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—É como estar dentro de um conto. Vêm aqui frequentemente?
—Minhas obrigações não me deixam muito tempo livre, mas escapo do castelo quando
posso. Aqui posso respirar e falar sem que tenha ouvidos enxeridos.
—Por isso me trouxe aqui?
Ellis assentiu com um seco movimento de cabeça.
—Vai me explicar o porquê da humilhação de um casamento por procuração?
Ele se voltou como se houvessem lhe dado um murro em pleno tórax. Explicar? E que
demônios ele tinha que explicar a ela? Tinha-a convertido em duquesa, tinha lhe dado seu
sobrenome e agora podia gozar de toda sua fortuna. Nada tinha a esclarecer, ainda que a
tivesse levado ali, ao seu local privado, para falar de seu futuro em comum. Tinha lhe
parecido mais idôneo afastar-se de tudo e de todos e conversar calmamente evitando
interrupções inoportunas.
—Ao pão, pão e ao vinho, vinho, certo?
Ela viu que ele tirava sua jaqueta com mau humor, esticava-a sobre a grama e com uma
irônica reverência a convidava a sentar-se. As coisas começavam mal. Ou melhor, mal
continuava, ela pensou. O coquetel de atração e antipatia entre ambos começava a tomar
ares de confrontação. Mas se sentou, recompôs sua saia e cobrindo seus tornozelos
esperou.
Ele se acomodou sobre uma pequena rocha, na borda da água. Arrancou um raminho da
borda e riscou círculos na superfície.
—Vejo que não a informaram dos motivos pelos quais não pude me apresentar na
Escócia, senhora.
—Pelo contrário, milord. O cavalheiro com o qual me casei por procuração, deixou-o
muito claro. O duque de Ormond estava muito ocupado para ir a seu próprio casamento.
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Cliff manteve um apertado silêncio como se estivesse mais interessado nos aros que
formavam as ondas que em sua recriminação incisiva, e ela aproveitou a ocasião para
observar seu corpo, agora coberto só por uma fina camisa que se ajustava a suas costas,
ombros e braços como uma segunda pele. Por todos os Santos! Era irreverente que um
homem tivesse um corpo tão magnífico! Ela teria adorado contemplá-lo sem a maldita
camisa porque seu marido desprendia um magnetismo do qual não parecia dar-se conta.
Merda! Ela se lamentou em seu coração. Ia ser muito difícil mantê-lo afastado quando ele
se propusesse a referendar seu matrimônio.
Foi instintivamente para trás quando ele lançou o raminho na água e se virou para olhála fixamente.
—É algo com o qual terá que se acostumar — ele disse— Minhas obrigações com a Coroa
são prioritárias.
—Isso quer dizer que sua esposa fica em segundo lugar.
—Não. Esse lugar minhas terras ocupam, milady.
Ela se enervou e seus olhos lançaram fogo.
—Em que lugar pensou em me colocar então, meu senhor? Por cima ou por debaixo de
seus cavalos?
—Estará no lugar que lhe corresponde. Não vou lhe exigir nada no momento — ele
respondeu, voltando sua atenção à margem onde alguns peixinhos formavam redemoinhos
surdos a sua sátira— Acabará por se acostumar. Eu compreendo que a obrigaram a contrair
matrimônio e que se casou com um perfeito desconhecido. Mas não posso lhe dar mais
satisfação, se for o que procura. Eu lhe darei isso sim, o tempo que necessita para se
acostumar à ideia de haver se casado com um monstro.
—Ninguém disse… — Lea se engasgou.
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—Senhora. — Ele cortou qualquer desculpa com um movimento brusco de sua mão—
Sei o que dizem de mim. Londres não é mais que uma imensa estrumeira na qual uns se
dedicam a desprezar os outros e, embora não passe muito tempo na cidade, tenho meus
informantes.
—Mas…
—Referem-se a mim como o Diabo, ou coisas piores. Eu a vi em uma dessas entretidas
reuniões de sociedade. - contra-atacou— Vai negar que alguém fez menção a que assassinei
minha primeira esposa?
Um arrepio de inquietação novamente passou por Lea. Lembrava muito bem da maldita
reunião a qual nunca deveria ter ido, sua presença e o que lhe contaram. Como ia
desmentir o que ele afirmava com certeza? Naquela ocasião não deu crédito aos falatórios
e agora se negava a admitir que a houvesse desposado um criminoso.
—Não faço caso das fofocas, milord. —Ela acreditou perceber um brilho agradecido em
seus olhos que voltavam a lhe prestar atenção— As acusações devem ser fundamentadas,
excelência — continuou incômoda pelo rumo da conversa e um tanto envergonhada
porque, embora fosse certo que ela nunca dava valor a calúnias gratuitas, tanto Tina como
Irish, a própria prima de seu marido, tinham semeado a dúvida.
—Em Londres não se tem que provar nada, milady — ele realçou— Simplesmente
apenas colocam uma etiqueta em alguém, deixam cair um comentário em uma festa e o
desgraçado é condenado sem mais.
Ele falava como se nada daquilo o importasse, mas Eleanor captava, sob sua fria couraça,
o sofrimento e a solidão. Era o momento de lhe proporcionar um pouco de compreensão,
sua consciência o pedia, mas receava decidir-se.
—Estou certa de que é inocente de tão terrível acusação. Mas deveria esclarecê-lo.
Um olhar glacial e impenetrável a transpassou antes de perguntar:
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—Você tem certeza de que não sou culpado, senhora?
As palmas das mãos de Lea começaram a suar. Inalou ar, cruzou os dedos e pensou que
talvez não tivesse outra oportunidade para aproximar-se da verdade. E ela precisava sabêlo.
—Pôde ter sido um acidente?
Cliff demorou a responder como se estivesse avaliando sua resposta. Suspirou e deu de
ombros. Por um instante, seu olhar se nublou, recordando tudo.
—Um acidente? Realmente nunca soube se foi. Cheguei a acreditar que ela se lançou ao
vazio, que desejava saltar e acabar.
—Se não deseja falar disso…
Ellis ficou tenso e fechou a expressão. Por todos os demônios do inferno! Ela tentava
consolá-lo? Retornou dolorosamente ao mundo real. A última coisa da qual precisava agora
era de uma babá. Se abrisse seu coração a aquela mulher, sua própria mulher, o que viria a
seguir?
—Não — ele respondeu em um tom sério— Não desejo falar disso. Pouco me importa o
que digam de mim. Mas sim, espero que minha esposa não acredite em tudo o que ouça
sobre mim.
Lea manteve um prudente silêncio. Por um momento acreditou que poderia aproximarse, mas ele quis pôr distância entre eles. Voltava a ser um iceberg e a assustava. Em um
segundo se mostrava sensível e no seguinte se endurecia. Ela tinha vivido a afinidade que
sempre existiu entre seus pais: eles contavam tudo, até as coisas mais mínimas. Estar
casada com alguém que não confiava nela, que a evitava e se isolava em seu próprio
mundo, aterrava-a.
—Em um matrimônio é fundamental a confiança, milord… além de outras coisas.
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—Confiança? — o inferno congelaria antes que voltar a confiar em uma mulher— E a que
mais se refere?
—Ao carinho.
—Já vejo.
—Sim. O carinho pode chegar com o tempo, com a convivência. Eu teria preferido
contrair matrimônio com alguém que amasse, é obvio, mas me casei por obrigação. —Era
um fato inegável que Cliff teve que aceitar— Poderei superá-lo. Mas se meu marido não
confia em mim ou eu nele, o que fica?
Falou tão séria, tão direta, com as mãos cruzadas sobre a saia e um ar de decência
ultrajada que Ellis não pôde reprimir uma gargalhada seca.
—Não acredito no amor, Eleanor. Como se pode acreditar em algo que não existe? Está
bem como tema de conversa entre mocinhas, mas não para a vida real. Prefiro não
depositar minha confiança em ninguém, senhora. O que fica? A fortuna do marido ou a
esposa depende de cada caso. —Gotejava sarcasmo e amargura.
Um ponto de vista tão negativo de um assunto tão fundamental em um homem jovem
fez com que se eriçasse, e o enfrentou com as mãos na cintura.
—Não precisava seu dinheiro! E preferia escolher meu próprio marido!
—Que marido? Holandês? — ele zombou, admirando seu busto apertado pelo tecido
que subia e descia ao compasso da respiração acelerada e que impulsionava tensão ao
tecido de sua calça— Italiano? Russo? Inglês, irlandês, escocês das Terras Altas talvez?
—Mas o que…!
—Se não estiver mal informado, minha senhora, e não estou acostumado a estar, a
metade da população masculina de Escócia passou por Ness Tower. E fez correr a cada um
de seus pretendentes. Duvido muito que reste muito onde escolher já que repeliu a tantos.
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—Quem lhe disse semelhante coisa? — ela se afrontou.
Curvou os lábios masculinos em um meio sorriso enigmático.
—Não sabe que sou o Diabo… ou, pelo menos, que tenho um pacto com ele?
—Eu… eu…
—Se tranquilize — ele respondeu levantando— Não possuo dotes de adivinho e Satanás
deve estar muito ocupado para prestar atenção em mim. Simplesmente tenho bons
informantes, já lhe disse isso.
—Informantes! —enrijeceu-se ela, desconfiada— Que tipo de informantes? Pombos
correio? Que eu saiba ninguém rondou pelos arredores de minha casa…
—Um cocheiro.
—Como?
—O cocheiro. O que veio com Thomas. Asseguro-lhe que é imbatível. Dois dias foram
suficientes para averiguar tudo o que queria saber a respeito de você. Por exemplo: que é
temperamental, mimada, que não a agrada muito o doce, que a chateia a cor negra… - Se
divertia na mesma proporção que ela se surpreendia— Eu lamento senhora, mas é minha
cor preferida. Que coisas mais? Ah, sim! Você gosta de dançar, domina o piano e a harpa,
algum idioma…
—É suficiente! Até onde chegou?
—Sente-se.
—Como disse milord, sou uma mimada, portanto não penso em fazer nada além do que
tenha vontade.
—Sente-se eu disse!
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Não esperava dele uma mudança de tom. Apertou os dentes e mordeu a língua, evitando
soltar uma série de impropérios que merecia por ser soberbo e presunçoso e lhe dizer o
que pensava de seu dinheiro, sua posição e seu maldito título. A contra gosto se deixou cair
sobre a jaqueta estendida e se remexeu, enrugando-a de propósito. Cliff mordeu uma
bochecha, reprimindo a diversão que lhe produziu sua infantil vingança.
—Não lhe peço confiança. —ele acomodou-se sobre a rocha para ficar em seu nível— É
impossível, quando um não conhece o outro e você não me conhece definitivamente. Eu
me conformarei com sua obediência.
Lea abriu muito os olhos.
—Obediência?
—Uma esposa deve obedecer seu marido — ele conveio— Não vou ser muito exigente,
exceto no que se refere a horários, saídas, visitas e perguntas. Eu me explicarei. Os jantares,
sempre às sete. Espero que não se repita o atraso de ontem. Devo saber sempre quando vai
sair, aonde e com quem. Londres é uma cidade perigosa e quero que minha esposa esteja
sempre fácil de localizar e protegida. Também não gosto de receber visitas em Hallcombe
House, embora não vá lhe impedir de visitar suas amigas… desde que vá devidamente
acompanhada. —Lea o olhava com o assombro refletido no rosto, sem conseguir digerir
tamanha fileira de ordens, porque não era outra coisa— Desagrada-me que se questione o
que faço ou que me interrogue sobre minhas idas e vindas. —Fez uma pausa e cravou seus
olhos nela— É claro que, em algum momento deveremos cumprir com o papel que o
matrimônio nos exige. —Percebeu que se enrijecia e se felicitou por inquietá-la.
Aparentemente, Eleanor McKenna… Não, Eleanor Ellis, retificou-se, também tinha suas
debilidades— Ormond necessita um herdeiro, suponho que o compreende. Fui claro o
suficientemente para você, senhora?
Eleanor demorou um momento para recuperar-se. Depois se afastou a passos largos e
pouco femininos rodeando a margem da lagoa e contando mentalmente para acalmar-se.
93
Agachou-se para recolher um pequeno cascalho e brincou com ele entre os dedos. Contar
quase nunca lhe servia para nada, e desta vez tampouco. Voltou-se para olhar seu marido e
lançou a pedrinha sem prévio aviso, obrigando Cliff a desviar do projétil, que o acertou na
bochecha, salvando por milímetros seu olho direito. Depois lhe disse em voz alta:
—Tão claro como um pântano cheio de esterco, milord!
Ellis enrugou o cenho e passou a ponta dos dedos pelo rosto para descobrir um fio de
sangue.
—Pinta um panorama pouco lisonjeiro para mim, excelência. Em Ness Tower saía e
entrava quando tinha vontade e só devia prestar contas a meu pai… quando escapava. E
pensa que vou admitir viver como uma prisioneira?
—Agora está casada. Comigo! — ele levantou-se— Não me agradam as escapadas.
—Casada, sim! Casada com um maldito carcereiro! — ela gritou— De modo que devo lhe
informar de todas minhas saídas, a quem vejo ou com quem falo? Também quer saber se
for ao toalete, excelência? —continuou sem intimidar-se— Não poderei receber visitas
porque o desagradam. Espera que me converta em uma freira? E quanto às perguntas isso é
o mais gracioso! Assim que você questionará o que eu faço, mas eu não poderei contradizer
o que você fizer. É isso?
—Mais ou menos — grunhiu Cliff.
—Ha!! —Chutou a grama e se afastou para onde pastavam os cavalos.
Nem sequer chegou a aproximar-se. Escapou-lhe um grito ao ser apanhada pelos ombros
por umas mãos masculinas que a obrigaram a dar a volta. Encontrou-se embutida em um
peito de granito e a saliva secou na garganta frente a um par de olhos cinza cravados nos
seus. Se o demônio existia, realmente o tinha diante de si. Os branquíssimos dentes de Ellis
chiaram antes de dizer:
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—Prefiro às mulheres que falam pouco, senhora, mas essa resposta foi muito parca,
inclusive para mim.
Lea quis evaporar-se, estar em outro lugar e em outro tempo. Fez um esforço para que
ele não notasse que tremia e para que sua voz não delatasse o pânico que a dominava.
—«Ha!!» quer dizer que você tem a mulher errada, milord.
—Quer dizer que não acatará minhas ordens?
—Só as que sejam sensatas.
—Só as sensatas, não é?
—As restantes teremos que discutir. Meu pai o fazia com minha mãe e na maioria dos
casos ficavam de acordo. Os escoceses são assim.
—Eu não sou escocês!
—Nem eu inglesa, meu senhor!
No fundo, admirava a veemência com qual defendia seus argumentos, o que liberou Ellis
da tensão e em um gesto espontâneo a apertou contra si, e seu fôlego e sua voz, como um
sussurro, chegou a ela em ondas que a excitaram.
—Teremos que discutir também no referente à nossa intimidade?
Lea corou, abaixou a cabeça e a escondeu em seu ombro.
—Também, milord — disse — embora me educassem para respeitar os acordos. E
mesmo que não me dessem opção para este matrimônio, não envergonharei ao meu pai. —
Custou-lhe dizê-lo e ele soube— Sei que seu título precisa de um herdeiro. Cumprirei com
minha parte, senhor, mas deverá me dar tempo. Não o conheço e é de sentido comum que
tenha certos… cuidados com minha primeira vez.
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Cliff a soltou tão de repente como a tinha apanhado e Lea cambaleou. De repente, o
contato o queimava. Ardia como uma madeira no fogo. Tinha-a irritado de propósito,
porque já se deu conta de que gostava dela batalhadora, mas sua resposta total e sincera o
deixou sem fôlego e endurecido como uma pedra. Deus! Só de imaginar que teria que
deitar com uma virgem o paralisava, mas também o excitava, avivava-o.
—Claro que lhe darei tempo para que se acostume com seus deveres de mulher casada,
Eleanor — ele disse com uma voz rouca— Deus sabe que eu gostaria de não lhe pôr limite,
mas… não sou muito paciente.
—Poderíamos estabelecer umas normas prévias.
—Normas?
—Uma espécie de… — Se ruborizou— Uma espécie de… namoro antes de…
—De consumar o matrimônio.
—Isso. — ela atreveu-se a levantar a cabeça e olhá-lo, rezando para que aceitasse tão
atrevida oferta.
Lea não teve que esperar e, inclusive antes que ele mesmo soubesse o que fazia,
envolveu-a em seus braços e se apoderou de sua boca.
As defesas de Lea se arruinaram. Os lábios masculinos abrasavam, a língua de Cliff
investiu na sua, saboreou sua boca, provocou uma labareda de desejo que fez fraquejar
suas pernas e teve que segurar-se em seus ombros.
Enquanto rodeava o seu corpo, Cliff acariciou seu braço riscando círculos, subiu até o
ombro, continuou para a nuca… Enredou seus dedos na suavidade daquele cabelo
acobreado, puxando-o para alcançar melhor sua garganta…
Eleanor nunca se viu abordada de um modo tão direto e se mantinha absorvida por sua
força, presa de seu sabor, de seu aroma. Algum jovem tinha lhe roubado um beijo, é claro.
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Pouco mais que uma carícia fraternal em comparação com este ardor provocado pelo
duque. O beijo de seu marido foi uma viagem ao seu interior tão prazeroso que converteu
seus joelhos em gelatina. Acelerava-lhe a respiração, perturbava-a, mas não queria que
parasse. Ellis a devorava, a derretia com seu corpo vigoroso, roubava sua alma. Sentiu uma
vertigem e se apertou mais nele, gemendo fracamente. Aquele som tão leve, mal esboçado,
fez com que Cliff perdesse o controle. Sua mão se ajustou ao seio de Lea, acariciou o botão
duro que brigava entre a roupa e a palma de sua mão. Depois se aplicou em levantar
metros de tecido de saia procurando o calor de sua pele.
O contato da mão quente em sua coxa foi como um alvo que atinasse no centro da
loucura que a afastava da sensatez: Clifford Ellis estava a ponto de seduzi-la. Refez-se,
rearmou-se e o empurrou.
Com seu rechaço ele deu um passo atrás. Uma veia pulsava em sua bochecha, tinha a
respiração agitada e lhe custou sobrepor-se à pressão que ferroava seu sob ventre.
Entendeu, entretanto, que estava indo muito depressa.
—Por favor… — ela rogou, arrumando sua saia.
Um golpe traiçoeiro não teria sido mais efetivo para esfriar sua excitação. Que estranha
febre o tinha atacado? Acabava de comportar-se como um mesquinho, preso de seu
descontrole. Tinha estado a ponto de deitar-se com ela no meio do bosque!
Escapou-lhe uma imprecação e se afastou, mexendo no cabelo. Que diabos aquela
mulher estava fazendo com ele? Tinha-o submetido a algum tipo de feitiço? Serenou-se e
falou a distância.
—Normas, diz. Não é isso?
Lea dançava em um mar de sensações desconhecidas, navegava entre o desejo de sair
correndo e de voltar a abraçá-lo, e mal entendeu. Mas sua própria autodefesa disse a que
se referia. Concordou.
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—De acordo. Estabeleçamos normas. Prometi-lhe tempo e acabo de me comportar como
um rufião. Não se repetirá senhora. Digamos… uma carícia por dia.
—Como?
—Se vamos viver com elas teremos que as desenvolver. Uma carícia por dia, até que se
acostume comigo. Não acredito estar pedindo muito.
Simplesmente, Lea não podia acreditar. Uma carícia diária? E como se supunha que seria
cada uma? Porque se fossem situações como a que acabavam de viver, dificilmente
resistiriam. Sobre tudo ele. Mesmo assim, era impossível negar-se a uma trégua recém
obtida.
—Não está, milord.
Ellis desatou os cavalos e a ajudou a montar. Ela notou que tentava não tocá-la e, longe
de lhe agradar, desgostou-lhe, porque no fundo seu corpo clamava por um novo contato.
Lea não deixou de refletir durante o trajeto de volta. Seu marido era um homem
estranho, preso no limite de sua honra e em uns padrões de conduta férreos. Como podia
ser um assassino se era a amostra viva do controle? Agradecia ao céu ter conseguido mais
tempo para assumir seus deveres de esposa, mas, pelo contrário, a desapontou que ele não
tivesse insistido em seduzi-la. «Moça estúpida! — ela recriminou-se — quanto mais
afastada esteja do príncipe dos infernos, melhor para você».
98
Capítulo 12
Seu marido conduziu suas montarias por um atalho lateral ladeado por altos álamos, em
direção oeste. Não era o caminho de volta e Eleanor perguntou:
—Aonde vamos?
—Pensei que lhe agradaria mais conhecer a aldeia de Barning, que pertence ao ducado,
que ficar encerrada entre os muros do castelo. —Nem sequer se voltou para lhe falar.
—Pertence ao ducado?
—Sim. Arrendamos as terras e eles as trabalham há séculos, sempre foi assim.
—E é responsável por eles.
—Encarrego-me de seu bem-estar, é obvio.
—Como um senhor feudal. —Ela já estava zangada há um tempo por ter que manter
uma conversa com suas costas erguida.
99
—Mais ou menos. Até agora ninguém se queixou.
Queixar-se? Ela perguntou-se com ironia. Quem se atreveria a protestar ante ele? Com
apenas olhar o gelado de seus olhos cinza, renunciariam.
Um esquilo vermelho atravessou o caminho, subiu pelo tronco de uma árvore e se
encarapitou em um galho alto. De sua fortaleza, enrugou seu focinho como fosse
amedrontar aos dois intrusos que invadiam seus domínios. Lea se deixou levar pela simpatia
que despertava o animalzinho, esticou a mão diante de seu nariz e moveu os dedos como
uma parodia ao mesmo tempo em que mostrava a língua. O esquilo se perdeu entre os
ramos e ela, sem perder o sorriso, controlou o nervosismo de sua montaria que corcoveava.
Não se deu conta que os olhos de seu marido ficaram presos nela.
Se Lea esperava encontrar a camponeses calados que evitassem cruzar com o patrão,
estava enganada. Ao entrar no povoado pelo que era a rua principal, foi recebida por um
conjunto de casas baixas e bem cuidadas, com tetos de ardósia negra e janelas adornadas
com vasos transbordando de flores. Algumas cestas de vime repletas de prímulas em forma
de estrela estavam penduradas junto aos batentes das portas pintadas de vermelho,
amarelo, rosa ou branco nas entradas das moradias.
Ellis conduziu seu cavalo até o centro da aldeia e ela o seguiu sem perder de vista
nenhum detalhe. De um e outro lado da pracinha apareciam pequenos jardins cuidados
com esmero, lojas, um botequim. Algumas crianças brincavam de correr, jogando pegapega, sob o atento olhar de uns anciões. Ao longo do caminho, percebeu que aquelas
pessoas saudavam seu marido com inclinações de cabeça e rostos francos.
Cliff freou junto à fonte, mas ela, encantada com o povoado que tanto recordava aos de
suas amadas terras do norte da Escócia, não reagiu. Os aldeãos os foram rodeando,
agrupando-se em torno deles e cercando o duque tão logo desmontou. Assombrada, viu
que os menores lhe solicitavam uma guloseima puxando as abas da casaca. Ellis revolveu o
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cabelo de um par de moleques, procurou algumas moedas e as entregou provocando a
gritaria dos meninos que se afastaram gritando de alegria. Depois se aproximou dela.
Ela piscou ante seus braços estendidos, esperando que decidisse descer de Dream. Um
assassino? Ela voltou a perguntar-se. Era aquele homem o mesmo que há um momento
tinha lhe ordenado total submissão? Algo não casava. Tão absorta estava que não captou
tudo o que Ellis lhe dizia.
—O que?
—Perguntava-lhe se deseja se refrescar um pouco na cantina. A cidra aqui é excelente.
Totalmente confusa Lea ia de surpresa em surpresa. Passou a perna por cima da sela e se
deixou escorregar pelo lado permitindo que as mãos de seu marido a segurassem até deixála no chão. Olhou a seu redor: todos a observavam em completo silêncio.
—O que houve? — ela perguntou-lhe muito baixinho.
—Certamente estão impressionados por sua beleza, milady — ele respondeu no mesmo
tom confidencial, sem se afastar um milímetro dela.
—Que tolice!
Ellis a segurou ao seu lado e ela permitiu aquela amostra de posse, embora se
enrijecesse.
—Apresento-lhes à nova duquesa de Ormond.
Lea se encolheu quando as pessoas da aldeia estouraram de júbilo e aclamaram a boa
nova. Respeitosamente, alguns se aproximaram e apertaram a mão de seu marido, dando a
ela humildes reverências. Não restou outro remédio que contagiar-se da alegria geral e
sorriu satisfeita, lhes devolvendo suas amostras de afeto.
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As pessoas foram se afastando para retornar a seus afazeres, em grupos murmurando, e
eles se encaminharam à taberna, um estabelecimento não muito grande, mas limpo e
arrumado.
—São ótimas pessoas — dizia Ellis— E confiáveis. Muito mais sensatos e trabalhadores
que os aristocratas que vivem essencialmente para se mostrar entre fofocas e festas;
suponho que é o mundo ao qual está acostumada.
Ele parecia encontrar-se mais confortável ali, mais que entre os indivíduos de sua própria
classe social. Desconcertada, se sobressaltou em consequência de uma voz potente e
grosseira que rompeu o silêncio.
—Ora, ora! O demônio em pessoa nos faz a honra de uma visita.
Lea centrou sua atenção no homenzarrão que tinha deslizado tão grosseiro comentário.
Era um tipo que devia medir quase dois metros, de cabelo castanho e cacheado, comprido
até os ombros e braços como troncos. Uma barba curta e bem recortada lhe cobria um
rosto sério, mas atraente. Estava refestelado em um banco junto à lareira com as pernas
sobre a mesa, com as gastas botas como mastro.
Ela temeu o confronto: Ellis a pôs de lado e atravessou o local a grandes passadas. Ao
chegar à altura do outro varreu com o braço as pernas de quem o repreendeu, expulsandoas da mesa.
—Porco suíno do inferno! —Escutou, com o coração apertado— Ainda te devo um murro
e acredito que é momento de saldar as contas.
Lea retrocedeu, os olhos arregalados, muda como o resto dos paroquianos que,
curiosamente, não pareciam dar importância à rixa. Pelo contrário, os observavam com
interesse e seguiam o diálogo, aparentemente, divertidos.
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—Da última vez saiu de Hallcombe House com um olho roxo, menino — respondeu o
homenzarrão— Qual foi? O direito? É que quer que deixe o outro igual? —E rompeu em
gargalhadas enquanto se levantava.
Lea empalideceu. Se parecia grande sentado, de pé intimidava. Era mais de uma cabeça
mais alto que o duque, com ombros ao menos um quarto mais largo que os de seu marido.
—Se o fizer, contarei a Alice e dormirá no galpão por toda uma semana.
Ela não entendia nada.
—E você seria capaz… — ouviu do outro.
—Eu juro-o por todos os duendes do bosque — assegurou Ellis.
O personagem parou no meio e um segundo depois ambos se estreitavam em um
abraço, batendo-se nas costas e trocando alguns vocábulos típicos dos varões. Ellis se
voltou para ela e a chamou. Lea aproximou-se com certo receio, perguntando-se quem era
aquele sujeito que a observava com indisfarçável atrevimento.
—Milady, quero que conheça um bom amigo: Owen Bridges. Ela é minha esposa.
Por seus olhos claros passou um relâmpago de assombro. Lea o saudou com uma
inclinação de cabeça e ele respondeu com uma reverência digna de um aristocrata. De
repente, encontrou-se sorrindo para aquele gigante.
—Duquesa — trovejou sua voz de barítono— é uma honra.
—Eu digo o mesmo, senhor Bridges.
—Por Deus, milady! —protestou— Ninguém me chama assim desde que tenho uso da
razão. Owen é mais que o suficiente para mim.
Eles sentaram-se à mesa e no momento o taberneiro deixou sobre ela uma garrafa de
cidra e três copos. Owen serviu e elevou o seu em um brinde.
103
—Pela nova duquesa de Ormond. Pela Duquesa Vermelha. —Ela arqueou suas
sobrancelhas e Owen pôs-se a rir— É por seu cabelo, senhora. Jamais se viu por aqui um
cabelo tão parecido ao fogo.
Lea gostou do apelido. Sim, era muito mais divertido que o autêntico.
—Eu gosto Owen. A Duquesa Vermelha. — ela pôs-se a rir— Meu avô teria um ataque se
soubesse.
Para Cliff era impossível deixar de olhá-la. Seu rosto irradiava frescor, seu cabelo solto
eram chamas dançando em torno de sua cabeça e escorrendo ombros abaixo. Certamente,
o apelido com o qual Owen acabava de batizá-la era completamente apropriado.
—Senhora — disse Bridges— estou completamente apaixonado por minha esposa, mas
você é a mulher mais bonita que já vi alguma vez. Seriamente não é uma fada?
Lea lhe brindou com um sedutor piscar de olhos que levantou um exagerado suspiro nele
e ela voltou a rir desinibida.
—Vocês terão que vir comer em minha casa. Alice e os pirralhos se alegrarão em vê-lo e
vão querer conhecer sua esposa. —Bastou fazer o oferecimento, continuou muito sério—
Se a sua excelência não se importar de entrar em uma casa humilde.
Se importar? Lea se recordou das vezes que tinha passado a noite fora de Ness Tower,
compartilhando uma noite agradável e descontraída com alguma família dos arredores.
—Tem queijo e pão, Owen?
—É claro, milady.
—Então aceito. Mas a cidra será nosso assunto, não é assim, milord? — ela disse
dirigindo-se ao seu marido. Ela em seguida se levantou— Vamos? Ah! Você se importaria de
enviar alguém para avisar Bethia? Ela irá se preocupar se não aparecer. —Sem esperar
resposta, porque não era um pedido, a não ser uma ordem mal sugerida, dirigiu-se à saída.
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Cliff reagiu um pouco mais lento do que cabia esperar. Trocou um rápido olhar com seu
amigo e encarregou ao hospedeiro algumas garrafas de cidra, surpreso ainda pela facilidade
com qual ela demolia suas defesas.
Embora não fossem exatamente queijo e pão o que degustaram na casa de Owen,
Eleanor poucas vezes havia se sentido tão livre. Os Bridges eram agricultores e ele, além
disso, encarregavam-se do moinho.
Ao chegar, Lea encontrou a uma mulher magra, não muito alta e em estado avançado de
gestação, que se movia pela cozinha. Os vendo entrar, limpou as mãos no avental e se
lançou nos braços de Cliff, que a recolheu no ar e girou com ela. Quando a deixou no chão,
a moça esperou que a apresentassem à desconhecida, um pouco sobressaltada por seu
comportamento infantil, tratando-se de uma dama. Foi só por um instante porque
imediatamente uma corrente de simpatia começou a fluir entre elas. Como se o vozeirão de
Owen tivesse sido o tangido de um sino, duas crianças, menino e menina, vieram correndo
do quintal. Owen agarrou ambos e os colocou sobre seus quadris, beijando-os na cabeça.
Ao soltá-los, correram para Ellis, que não lhes negou umas quantas voltas no ar levantando
sua excitação.
Para Lea foi outro descobrimento: brincava com os pequenos como qualquer pai, e
desfrutou da cena até que Alice pôs um pouco de ordem. Ela os apresentou orgulhosa:
—Estes são Jonathan e Carrie.
A comida era simples, mas deliciosa: pão assado naquela mesma manhã, peixe salgado,
carne com cebolas e bolo de maçã. Consumiram as três garrafas de cidra e outra adicional
com a qual Owen contribuiu para celebrar sua visita.
Na sobremesa, enquanto os meninos brincavam fora, Alice e Lea conversaram sobre a
Escócia.
105
—Vivi durante seis anos em Edimburgo — ela contou, com a ilusão pintada em seu rosto
— Eu gostaria de voltar alguma vez.
—Se decidir fazê-lo, eu adoraria que se alojasse em Ness Tower.
Alice falou do bebê que esperavam e Lea se apressou em lhe oferecer sua ajuda
incondicional. Enquanto isso, não perdia um detalhe da conversa que Owen e Cliff
mantinham: como melhorar a colheita do ano seguinte, a roda nova para o moinho, o
conserto do telhado da pequena capela do povoado… Seu marido se revelava como um
patrão preocupado pelo bom funcionamento de suas terras e o bem-estar de seus
arrendatários.
Alice era uma jovem brincalhona e divertida, e a única capaz de manter o limite em seu
par de diabinhos, e em seu marido e o duque. Todos acatavam de boa vontade suas ordens
e, apesar de sua pequena estatura e sua frágil aparência — seu cabelo dourado preso em
duas longas tranças que deixavam mais infantil seu aspecto— suas instruções não se
discutiam. Owen não dissimulava a adoração que sentia por ela. E Cliff tampouco.
Finalizado o bate-papo, todos contribuíram para tirar a mesa e lavar os pratos. Lea não
saía de seu assombro: seu marido secava os pratos enquanto brincava com Owen, que se
encarregava de enxaguá-los. Ela, por sua parte, entretinha as crianças.
Depois, passearam pelas imediações e chegaram até o rio. Eleanor estava se divertindo
maravilhosamente, e aceitou ao pedido dos pequenos que a puxavam para a margem.
Passou as saias por entre as pernas e as prendeu na frente na cintura. E assim, com aquele
aspecto tão distante do de uma duquesa, tentaram apanhar uma truta entre os três,
enchendo o lugar de risadas, gritos e salpicos.
Owen, com sua esposa apoiada em seu ombro, meio adormecida, não perdia um
detalhe, recostado em um álamo.
—É um achado.
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—Aham! —assentiu Ellis— Um achado muito insolente.
—A que se refere?
—Olha de frente, diz as coisas em sua cara e não morde a língua.
—Notei. E eu gosto. Já era hora de que encontrasse uma mulher que não te dissesse sim
a tudo. —Ellis grunhiu baixo— E me diga, o que pareceu à duquesa viúva a união com os
McKenna?
—Você pode imaginar. Ela gritou aos céus e partiu para York.
O grande corpo de Owen vibrou ao compasso de uma risada profunda ao ver Lea
afundar-se no rio por efeito de um ataque de seus filhos ao mesmo tempo, saindo depois
cuspindo água.
—Alice terá que lhe emprestar alguma roupa — disse— Ela se dará bem com a velha
resmungona, tenho certeza.
—Não aposte nada, já conhece minha avó.
—Essa garota é capaz de conquistar qualquer um. —Olhou de esguelha ao seu amigo,
que tinha o cenho franzido concordando com o que acabava de dizer.
Chegou o momento de partir e ter que abandonar tão grata companhia. Lea e os
meninos, pingando, adiantaram-se com Alice até a casa. Uma vez ali, secou o cabelo e esta
lhe emprestou roupas e um par de sapatos.
—Voltarão? — Owen perguntou— Os meninos costumam perguntar por Cliff e agora
sentirão falta de você.
—Vou tentar… — duvidou Lea, que tinha em conta as exigências de seu marido.
—Melhor ainda. Por que vocês não passam uns dias em casa? —interveio Cliff, pegando
Alice pela cintura e beijando-a no pescoço.
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—Deixe essas mãos quietas. — ela o golpeou— O que vai pensar sua esposa destas
confianças?
—O mesmo que Owen, se for a metade inteligente do que imagino — ele disse, atento à
reação de Eleanor— Só que eu te amo.
—Clifford Ellis!
O duque estourou em risadas que fizeram coro com Owen e a própria jovem, um tanto
sobressaltada, dando olhadas de soslaio à duquesa. Mas Lea também sorria gratamente
impressionada por tão curioso trio, onde a camaradagem agasalhava uma amizade que se
mostrava antiga.
—Digo-o de verdade — Ellis insistiu— Jonathan e Carrie desfrutariam do castelo.
—Não estou em condições para ir a qualquer parte, Cliff - negou Alice— Estou gorda
como uma vaca.
—Quanto falta?
—Para meu gosto, muito ainda.
—Me avisem. Enviarei ao doutor…
—Não se preocupe. É o terceiro e será fácil. Além disso, Dolls está a mais de trinta anos
atendendo nossa aldeia.
Trocaram promessas de uma futura reunião. Se o casal não ia a Hallcombe House, seriam
Lea e Cliff os que viriam quando chegasse o novo bebê.
108
Capítulo 13
—Conhece os Bridges há muito tempo, milord?
A pergunta de Lea, no caminho de volta, tirou Cliff de suas reflexões. Não tinha deixado
de olhar sua recente esposa. Não podia, porque estava se dando conta que, tanto usando
um elegante traje de amazona ou vestida como estava, como uma camponesa, excitava-o
de igual modo. Pigarreou e se concentrou no caminho.
—Owen e eu crescemos juntos. Sempre nos reuníamos quando eu retornava do colégio
para bolar travessuras. E juntos estivemos no front. Quando necessitei um ombro sobre o
qual chorar, ali estava Owen. Sempre. Nunca tive um amigo melhor que ele.
Lea manteve silêncio. Depois de um dia tão maravilhoso, era difícil voltar para a
escuridão dos muros de Hallcombe House.
—Eles a agradaram? —ouviu que ele perguntava.
—É uma família encantadora. Obrigado por me apresentá-los.
Observou seu perfil, de novo sério, e não pôde deixar de se perguntar por que se
evaporou a jovialidade que ele demonstrou durante toda a visita. Era como se ele também
lamentasse retornar, e no coração de Lea abriu caminho, de novo, a estranha e fria
sensação de que seu marido carregava algum segredo. Mas também se recordou do apelido
que Owen Bridges lhe tinha dado: a Duquesa Vermelha. Gostava. Sim, gostava muito.
—Quanto tempo permanecerão na Inglaterra?
Assim, de supetão, no meio do jantar, a pergunta soou muito direta e pouco delicada.
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Norton Fleming e Alexander Brite se apresentaram naquela mesma tarde no castelo lhe
mostrando suas credenciais e Simpson se encarregou de acomodá-los. Eleanor acreditou
entender que eram enviados de tal Alphonse Tayler, de Gales, embora não conseguisse
saber o motivo pelo qual estavam ali, já que imediatamente entraram no escritório privado
do duque.
Não se iludia por exercer o papel de anfitriã, mas as inesperadas visitas representavam
para ela um alívio após a precipitada saída de Fergusson, que tinha partido sem esperar sua
volta deixando apenas uma direta nota de despedida.
Um tanto à defensiva, Norton replicou:
—Se nossa presença lhe causar desconfortos, excelência…
Ellis desviou sua atenção para ele.
—Não sou dado à amabilidade, Fleming. Se me incomodasse, tenha certeza de que o
faria saber disso. E mais, os convidaria a abandonar minha casa. Lamento que tenham
interpretado mal minhas palavras, só pretendia saber com que prazo conta.
—Bem…
—Imagino — cortou Ellis— que deseja resolver seus assuntos com urgência. A carta de
Tyler denota certa urgência.
Lea se flagelou mentalmente por ter julgado suas palavras tão estupidamente.
—Sinto muito, excelência — se retratou Fleming— Sei perfeitamente quando falo de
mais e lhe peço desculpas. Precisaríamos completar o assunto o antes possível.
—Então, tentaremos que seja assim.
Ele parecia relutante em insistir em sua ajuda, mas seu companheiro, mais conversador e
precavido, tomou a palavra.
110
—Nosso tutor está convencido da bondade do negócio, milord: produtos de cosmética
em troca de trigo, de qual estamos insuficientes pela má colheita. Um acordo que resultaria
satisfatório para ambas as partes. E pensou em Joseph Coryton.
—Esperava mais cérebro dos galeses — comentou o duque, fazendo uma careta—
Coryton não é mais que um rato asqueroso.
—Sabemos milord — Fleming conveio— Mas não há outro com maior rede de contatos.
—Eu não confiaria nele.
—Se chegarmos a um acordo…
—É um agiota e não seria o primeiro acordo que romperia — negou Cliff— Embora
sempre haja fórmulas para fazê-lo respeitar este.
—Devemos entender que cooperará conosco, excelência? —Lea captou uma nota de
esperança na voz de Brite.
Cliff se virou para trás, suspirou e assentiu.
—Alphonse segue tendo-os em bons lugares, não é?
Lea se sentiu corar, mas seus convidados estavam muito ocupados rindo da graça de seu
marido para notá-lo. Não como este, cujos olhos, fixos nela, eram acompanhados de um
esgar irônico de sua boca.
—Amanhã estará bem para vocês? —perguntou Cliff aos dois jovens. Eles assentiram—
Só espero que não se surpreendam com meus métodos, porque podem chegar a ser menos
ortodoxos do que os do próprio Coryton.
Terminaram o jantar e Lea se desculpou os deixando para que finalizassem seus
assuntos.
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Ao sair, esteve a ponto de chocar-se com a pessoa que entrava. Esta respeitosamente
cedeu espaço a Leia com um seco:
—Desculpe.
Ellis interrompeu a conversa, fixou-se nela e disse:
—Entre senhora Dumond.
—Não queria incomodá-lo, excelência — antecipou erguida como um poste e com as
mãos cruzadas sobre o estômago.
Ele se aproximou dela e Eleanor viu o ar afetuoso com qual a escutava pondo a mão em
seu braço. Perguntando-se pela personalidade da recém chegada, permaneceu um
momento mais em vez de sair enquanto eles trocavam algumas palavras confidenciais.
Ainda assim, conseguiu ouvir:
—É seu irmão, milord. Está o esperando na biblioteca.
O rosto de seu marido se escureceu, mas não duvidou em ordenar:
—Tenho convidados. Diga-lhe que espere.
—Sim, excelência.
Ela se dispunha a partir quando Ellis a deteve.
—Senhora Dumond, quero que conheça minha esposa, a duquesa — ele disse indo até
ela e a segurando pela cintura— Floresce Dumond é nossa governanta, Eleanor.
Alta, loira e excessivamente magra, Lea detectou nela uma distância enrijecida que
afiava seus olhos claros e frios. Dobrou o joelho executando uma oportuna reverência.
—Senhora — saudou e imediatamente se esqueceu dela e se dirigiu a Ellis— Se me
desculpar, milord.
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Ela se afastou perdendo-se na penumbra da galeria. Lea nem se moveu. Por que seus
sentidos se alertaram na presença ela? Reagiu à pressão em sua cintura que a aproximava
mais de seu marido.
—Não sabia que tinha uma governanta.
—Flora tinha tirado uns dias de folga. Está há tempo conosco. Ainda não conhece todo o
pessoal, mas o remediaremos amanhã. Tenho uma má memória para os nomes — ele disse.
Ela duvidou que fosse verdade— de modo que a senhora Dumond fará as apresentações.
—Do que se encarrega essa mulher exatamente?
—De tudo.
—Acreditei que esse seria meu encargo.
—É possível que encontre deficiências na decoração, senhora, mas não no serviço.
Hallcombe House necessita de uma governanta e não vejo porque você deva estar a par de
que se tenha que comprar toalhas de mesa ou velas. Alguma explicação a mais?
Lea teria respondido como merecia, mas decidiu que não era momento nem lugar para
um confronto porque os convidados aguardavam.
—Não lhe pedi nenhuma.
—Pensava que sim.
—Pois pensou errado. Mas acaba de me deixar claro que já tem quem cuide de sua casa.
Eu estou de mais.
—Para isso tenho criados.
—Eu entendi perfeitamente. Serei o adorno de suas aparições.
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Ellis mordeu o lábio inferior e ela também o teria feito depois de beijar sua boca. Sem
dúvida estava se transtornando ali. Não era lógico que o detestasse e pouco depois ele lhe
provocasse um apetite que não sentiu antes.
—Você vai fazê-lo muito bem, não tenho dúvida.
—O melhor que possa — ela respondeu no mesmo tom confidencial no qual lhe falava—
Mas permanecer ociosa não vai comigo, milord, assim, dado que não me permitirá
demonstrar meus dotes de anfitriã, já que rechaça as festas e as visitas, talvez pudesse
matar o tempo lavando seus lençóis, por exemplo.
—Eleanor…
—Nunca questionarei a quem lhe dá de comer, milord — ela o cortou ofuscada—
Também não acredito que pudesse governar este mausoléu sem a colaboração de uma
pessoa competente. Mas saiba que sou capaz de algo mais que posar como uma das
estátuas que adornam estas dependências. As mulheres McKenna nunca foram objetos,
excelência.
Sem lhe dar tempo para responder se soltou de seu braço e lhe deu as costas. Seu cabelo
golpeou o rosto de Cliff e a bainha de seu vestido, suas calças. Observando o suave
rebolado de seus quadris enquanto se afastava vigorosa, o duque admirou sua coragem. Era
uma verdadeira amazona. Teimosa e altiva como só podia sê-lo uma escocesa. Uma
Valquíria de cabelo de fogo a quem lhe ia encantar domar. E o faria. Porque ele tinha
planejado sua vida de acordo a uns cânones e não permitiria que nenhuma mulher a virasse
de cabeça pra baixo. Em sua casa, era ele quem impunha as regras e aquela moça rebelde
às acataria, gostasse ou não. Isso de enfrentá-lo a cada momento teria que acabar!
Sacudiu a cabeça e retornou para junto de seus convidados tentando afastar de sua
mente os arranques de harpia de sua mulher e, sobre tudo, a chegada de seu irmão. Meioirmão, na verdade. Seu pai o gerou com uma criada de taberna depois do abandono de sua
mãe. Claro, teve a decência de lhe dar seu sobrenome e lhe dar um legado insignificante
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cheio de dívidas, como a ele mesmo. Robert e ele nunca tiveram muito apego e, entretanto,
ele se fez responsável por seu meio-irmão e foi aumentando sua fortuna em segredo, passo
a passo. Claro que daí a o ver frequentemente ia um mundo.
Capítulo 14
115
Eleanor se levantou ao amanhecer, como de costume.
Mas não desceu para a sala de almoço. Não gostaria de outra cena com seu recente
marido.
Tinha passado uma noite inquieta, recordando uma e outra vez de Ellis beijando-a,
acariciando seu seio, sua coxa… Mal pôde dormir e estava cansada e irritável. Certamente,
naquela manhã não era boa companhia para ninguém. Assumir que Clifford a atraía
derrubava suas defesas, porque, até o conhecer, desejo era só uma palavra para ela. Agora,
não. Agora se tratava de algo tangível, uma sensação que a atordoava e para a qual não
queria se render.
Não esperou por Bethia e se vestiu sozinha, escolhendo um vestido fácil de abotoar e um
xale. Saiu de seu quarto e desceu ao andar inferior. Tinha um nó no estômago, assim
saltaria o café da manhã e aproveitaria para perambular pelo castelo a sós e conhecê-lo um
pouco mais.
Hallcombe House continuava parecendo um labirinto. Depois de dar algumas voltas sem
encontrar uma alma, abrindo e fechando portas atrás das quais não encontrou mais que
salas vazias e escuras, saiu para o jardim. Ao menos ali podia respirar e liberar parte do
esgotamento que a oprimia dentro das paredes.
Passeou embalada pelo canto dos pássaros e o som longínquo de alguma queda d’água,
talvez uma fonte, acariciando canteiros de flores muito cuidadas que ladeavam os atalhos,
aspirando ao aroma da grama fresca, o que a fez esquecer seu mau humor.
—Muito bonita, realmente.
Lea estremeceu.
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A suas costas, meio recostado no tronco de uma árvore, um jovem alto, musculoso, com
os cabelos curtos da cor do bronze, percorria Lea da cabeça até a ponta dos sapatos. Sua
boca, cheia, distendia-se num sorriso zombador de um rosto atraente.
—Bom dia — ela saudou.
—E pode falar bom Deus! —exclamou ele revirando os olhos e levando teatralmente a
mão ao coração— Como eu gostaria de capturar essa beleza em uma tela!
Um intelectual, definiu-o imediatamente Eleanor.
—Quem é você? Um artista da pintura a óleo?
O moço abandonou sua pose de abandono e se aproximou. Sem responder, estendeu a
mão e pegou um cacho do cabelo de Lea, apalpando sua textura.
—Ontem à noite não acreditei o que me assegurou esse beduíno do Ferdinand, mas
reconheço que foi curto em elogios.
—Ferdinand?
—Conrad Ferdinand, o valete de meu irmão.
—De seu…
—Robert Ellis. —inclinou-se diante dela em uma reverência tão exagerada que sua franja
quase tocou o chão— Um amante dos grandes professores da pintura aos seus pés, doçura.
Talvez fosse um libertino ou um palhaço, mas, ao menos, com sua audácia, sabia como
alegrar uma manhã que ela previa desgraçada.
—Esse condenado tem sorte — ele lamentou artificialmente magoado— É sério que se
casou com você? Por procuração?
—Se está se referindo ao duque, sim. Thomas Fergusson o representou.
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—Sempre achei que Cliff era idiota; agora estou completamente convencido. —Arrancou
uma rosa branca e a entregou.
Lea aceitou o presente com uma inclinação de cabeça e a colocou em seu decote. Tendo
encontrado tão grata companhia, reatou seu passeio no qual ele a acompanhou ficando ao
seu lado.
—Vive aqui, senhor Ellis?
—Por favor, me chame Robert, afinal agora somos parentes. Acaso me acha um tolo para
viver aqui? Tenho um apartamento em Londres, perto de Carnaby Street. Se alguma vez
quiser, estarei encantado em convidá-la.
—O que eu gostaria é de tomar o café da manhã — ela respondeu com mais bom humor
— De repente, sinto-me esfomeada.
—Que pouco romântico senhora!
Brincando, entraram e foram à sala de jantar. Cliff estava terminando seu café da manhã
e franziu o cenho quando apareceram juntos.
—Encontrei uma fada no jardim — anunciou Robert como saudação, puxando uma
cadeira para ela.
Ellis foi sacudido por uma de onda de ciúmes e sua saudação não passou de uma
formalidade fria.
—Acreditei que já teria partido.
—E o teria feito se não tivesse descoberto esta sereia passeando pelo jardim - respondeu
o mais jovem, enquanto se servia de um prato de salsichas, bacon e ovos mexidos, que
colocou em frente à Lea. Depois serviu a si mesmo e se acomodou ao seu lado, afastado de
seu irmão— Não pude resistir e desci para procurá-la.
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Lea mordeu os lábios e fiou um pouco confusa procurando não olhar para seu marido.
Aparentemente, ele também não levantou com o pé direito.
—Parte agora?
—Demônios! Realmente tem vontade de me ver longe.
—Não disse…
—Não necessito de explicações. — Retirou seu prato com pouco tato e se levantou—
Você está louco para que eu vá e eu desejando fazê-lo. Só vim a seu covil para te avisar
sobre Morgan. Se não fosse porque me acreditava em dívida com você, nem teria me
disposto pisar em Hallcombe House.
Cliff não mediu suas palavras.
—Sente-se e cala-se — ele lhe ordenou— Costuma ficar mais bonito quando o faz.
—Condenado…!
—Sente-se, maldito seja! —irritou-se Ellis.
Eleanor começou a se achar deslocada em meio do confronto. Não compreendia o que
acontecia com seu marido. Acostumada à boa convivência com seus irmãos, as faíscas entre
estes dois eram de autêntica hostilidade. Robert tinha lhe parecido um moço agradável,
mas reconhecia que não sabia nada dele. Claro que tampouco sabia algo de seu recente
marido.
Robert não se sentou. Mal-humorado deixou o guardanapo sobre a mesa e se foi.
—Desculpe-me que não fique, milady, mas perdi o apetite. Foi um prazer.
Fechou a porta atrás dele com muita força e Lea viu que seu marido apertava os punhos.
Mas instantes depois a amostra de cólera contida desapareceu dando lugar a sua habitual
indiferença. Ostentando seu controle habitual.
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—Lamento a cena desagradável, senhora — ele se desculpou— Não estou acostumado a
perder a paciência, mas esse jovem o consegue com facilidade.
—Me pareceu encantador — ela disse, sem olhá-lo— E você, muito grosseiro.
Ellis arqueou suas escuras sobrancelhas e dissimulou atrás de um pigarro quão bem
encaixava sua resposta.
—É a imagem que dá — assentiu— E a que dou eu.
—A cada qual o seu, milord.
Ellis não quis iniciar uma guerra dialética com ela e se serviu de uma segunda xícara de
café enquanto ela dava conta do café da manhã.
—Saio para Londres — ele informou— É um assunto de negócios, por isso não a convido
a me acompanhar.
Lea limpou os lábios e deu de ombros.
—Hallcombe House é muito grande e acredito que necessitarei de alguns dias para me
inteirar dele, de modo que não deve se preocupar, não me aborrecerei.
—A senhora Dumond lhe apresentará aos serviçais — ele comentou, dissimulando com
sua indiferença o tinha ferido— São boas pessoas.
Pelo amor de Deus, era um cínico! Ela se disse. Nem sequer devia saber quantas pessoas
compunham o serviço. Se até havia lhe dito que desconhecia o nome da maioria… ela
mordeu a língua para não dizer algo que em seguida poderia lamentar. Não desejava uma
guerra. Além disso, se partia… não poderia cobrar sua carícia diária, pensou com uma
mistura de alívio e derrota.
—Ficará ausente por vários dias?
Ormond pôs-se a rir, algo que, somado ao que disse a seguir, encontrou-a despreparada.
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—Senhora é como um livro aberto. — Seu rosto bronzeado se suavizava— Pode ser que
fique um par de dias em Londres, sim. Mas isso não faz mais que postergar nosso acordo,
minha esquiva Duquesa Vermelha. Porque, quando retornar, cobrarei todo o pagamento de
uma vez.
—Esse não… — Lea se engasgou.
—O trato foi uma carícia por dia, esposa minha. Não se falou nada de cobrar isso junto
ou por separado.
Como se a tivesse colocado em uma armadilha, sentiu-se terrivelmente mortificada, e o
café da manhã se converteu em uma bola em seu estômago. Atacaram-na impulsos de
lançar um prato na cabeça dele, mas se controlou. Não, não conseguiria que parecesse uma
menina estúpida e malcriada. Se tivesse que engolir bílis, iria fazê-lo.
—Eu adorarei conhecê-los, milord.
—A quem? — ele perguntou desorientado.
—Aos criados, excelência.
Não lhe coube dúvida que sabia zombar dele, apesar de que uma onda de calor o
embargou. Estava muito bonita com seu simples vestido que se ajustava aos seus seios
monopolizando toda sua atenção. Como tinha desejado embriagar-se nele!
Arrastou a cadeira para trás e se levantou. Precisava pôr distância entre eles ou sairia dos
eixos, porque estar ao lado de sua escocesa respondona e permanecer impassível estavam
exaurindo sua prudência. Despediu-se e alcançou a porta. Com a mão na maçaneta, ficou
parado. Algo invisível o puxou, voltou-se e cortou a distância que os separava.
Lea afogou uma exclamação quando a puxou pelos ombros e a fez se levantar.
Encontrou-se com uns olhos que brilhavam e ela não soube se era de irritação ou de desejo.
121
Sem opção para opor-se Cliff aprisionou sua boca e a beijou apaixonadamente, tanto que o
corpo dela reagiu sem reservas e se apertou a ele.
—O pagamento de hoje, senhora.
Ele partiu. Lea ouviu o barulho da carruagem que o levava e a agitação inevitável dos
criados recolhendo o serviço… Mas ela continuou ali, sem mover-se, presa de um comichão
que aumentava impulsionado pelas apostas amorosas de seu marido.
O duque, por sua parte, ia pensando que aquela manhã tinha perdido a compostura duas
vezes. Era muito. Tanto tempo de celibato estava cobrando fatura.
Capítulo 15
Floresce Dumond era eficiente.
E estranha.
122
Sonia comentou que tinha entrado em seu posto fazia um ano. Trazia boas referências e
substituiu a anterior governanta, falecida em um acidente.
Para Lea começavam a lhe parecer muitos acidentes, mas guardou sua opinião.
Ia ser apresentada a um sem-fim de criados, por isso se reuniu com a senhora Dumond
no vestíbulo. Ser examinada por rostos que a aguardavam ansiosamente, fez com que
sentisse falta da serenidade de seu marido, mas felizmente Bethia se fazia de guarda-costas,
como sempre, e esta apertou ligeiramente seu braço lhe dando ânimo.
Em Ness Tower haviam poucos criados e ela sabia seus nomes, conhecia suas famílias,
seus filhos… Calculou que no vestíbulo devia haver umas trinta pessoas e diminuiu o passo.
—Santo Deus…! —murmurou.
Todos, sem exceção, se vestiam de escuro, como coroinhas de um velório. Até os
aventais e as toucas eram negros, exceção feita por umas fitas brancas nas moças mais
jovens. Lea sentiu que crescia seriamente sua aversão pelo negro.
A governanta se adiantou à ordenada fila de criados e começou sua apresentação pelo
senhor Simpson. Lea tentou gravar cada um dos nomes e seu cargo enquanto respondia
com uma inclinação de cabeça a cada reverência. Já conhecia Monty, o mordomo e Sonia.
Mal reteve alguns sobrenomes, embora acreditasse ter arquivado muitos mais nomes. Já
era algo.
—Não são muitos? —ela perguntou à senhora Dumond em voz baixa, uma vez finalizado
o protocolo.
—Hallcombe House é grande, excelência — ela a respondeu com sua voz áspera e
condescendente. Ela sabia disso muito bem porque, naquela mesma manhã, depois da
partida do duque, perdeu-se duas vezes.
—Não sei se serei capaz de memorizar tantos nomes.
123
—Quem disse que teria que fazê-lo, menina? — interveio Bethia, como sempre tão
prática.
Tratadores de cavalos, jardineiros, empregadas, mordomo, cozinheira, ajudantes de
cozinha, cocheiros, vigilantes… Lea se desanimava.
Ansiosos, todos esperavam suas palavras. Olhou para frente, cruzou as mãos às costas
para que não vissem que tremiam, e esclareceu a garganta, especialmente ressecada agora.
—É um prazer conhecer a todos. Irei aprendendo seus nomes e suas ocupações com o
tempo. Desculpem-me e não levem a mal se o perguntar em alguma ocasião porque não
será por falta de consideração. E não hesitem em fazer chegar a mim suas preocupações.
Simpson deu um passo à frente se destacando do resto.
—Esperamos que sua excelência ache satisfatório nosso serviço. Faremos tudo o que
esteja em nossas mãos para que sua estadia em Hallcombe House seja de seu agrado.
—Eu agradeço senhor Simpson. Muito obrigado a todos.
—Podem seguir com suas ocupações — Flora ordenou um passo atrás.
Os serviçais executaram uma reverência conjunta e foram dispersando-se
ordenadamente. Eleanor não ficou desatenta ao olhar crispado de uma das criadas, que não
dissimulava seu desdém. Fixou-se nela. Uns olhos escuros desafiaram aos seus fugazmente
e depois seguiram os outros.
Lea se perguntou por que, mas se esqueceu dela para dirigir-se à cozinheira antes que
voltasse para seu trabalho.
—Pode me conceder um instante, senhora Fellini?
A mulher, uma roliça e morena matrona, assentiu e cruzou as mãos sobre o colo.
—Você diz milady.
124
—É você italiana, não é?
—Sim excelência.
—Sei que a cozinha é seu território, mas… seria possível que eu pudesse entrar de vez
em quando? —Ela arqueou esta umas sobrancelhas escuras e cheias— Eu gosto de cozinhar
e talvez ponha em prática algumas receitas que conheço, mas estou convencida de que com
você aprenderei muito.
Giana Fellini mostrou em seu rosto o prazer de tais palavras e perdeu a rigidez sorrindo
com bom humor. Lea soube imediatamente que acabava de ganhar uma amiga. E Deus
sabia que ia precisar naquele gigantesco lugar.
—A cozinha, como toda Hallcombe House, é sua, milady. Eu me sentirei muito honrada
de aprender alguns de seus pratos escoceses.
Lea expressou seu agrado apertando as mãos da cozinheira.
—É você um amor. Obrigada.
A senhora Fellini partiu, corada e feliz, e só então Eleanor se deu conta de ter cometido
uma imprudência. Mas já era tarde para remediá-lo.
—Eu tornei a fazê-lo — ela suspirou pesarosa.
—Não é habitual dispensar um tratamento tão próximo aos criados, milady — a senhora
Dumond a repreendeu com um esgar de permanente desagrado.
—Lamento não ter acertado senhora Dumond, mas sou duquesa há somente uns poucos
dias — ela respondeu com uma voz suave, mas sem dissimular uma veia de rebeldia—
Levarei um tempo para aprender.
Não modificou em nada o ar desanimado da governanta. Inclusive se acentuou.
—É possível que não o faça nunca, milady. Se não desejar mais nada…
125
Viu-a perder-se pela galeria sem saber muito bem se aquele azedo comentário era uma
recriminação ou uma lisonja, mas voltou a percorrê-la um calafrio, como quando foi
apresentada. Bethia confirmou o que ela estava pensando:
—Eu não gosto dessa mulher. Parece um corvo.
—Você reparou na última criada que saiu? —perguntou a jovem sem prestar atenção em
sua opinião— Acredito que a senhora Dumond disse que se chama Sugar.
—E?
—Descubra qual é seu cargo. Deu-me a sensação de ter algo contra mim e quero saber o
que é.
Era um cubículo fedorento.
Nenhuma das pessoas que faziam negócios com Joseph Coryton podia supor que
despachasse em um lugar tão decrépito.
Entretanto, Coryton, filho de um mineiro e uma prostituta de Leeds, dirigia-se a suas
pretensões na mediocridade apesar de ter acumulado uma fortuna com seus negócios
sujos.
Tinha começado sua carreira de crimes aos quinze anos, roubando carvão da mina na
qual seu pai tinha trabalhado, antes de adoecer e morrer. Vendia-o em pequenas
quantidades e isso lhe proporcionava umas moedas extras. Algum tempo depois os roubos
ficaram maiores e empregou seus lucros em alugar um pequeno e pernicioso local no
subúrbio de Londres, onde conseguiu a colaboração de duas velhas prostitutas,
companheiras de sua mãe, e se iniciou no negócio mais antigo do mundo. Quando já não
lhe serviam se desfez das pobres desgraçadas e contratou outras mais jovens com as quais
obtinha margens para ampliar sua atividade e alugar outros locais.
126
Ao completar vinte anos já era dono de três prostíbulos que lhe proporcionavam
abundantes benefícios. Era o momento de ampliar suas intenções, o que o dirigiu aos salões
de jogo e pouco depois a comercializar com mercadorias, já no limite da legalidade, mas
sem renegar aos negócios sujos e a agiotagem.
Clifford o conhecia. Muito bem. Embora nunca tivesse tratado diretamente com ele e era
a primeira vez que se viam cara a cara, em mais de uma ocasião teve de jogar mão dos
múltiplos contatos do sujeito, que abrangiam todos os âmbitos sociais, através de um
intermediário. Dava na mesma se buscava um assassino ou a colaboração de algum
personagem da elite. Coryton tinha agarrados pelas bolas a mais de um aristocrata ao qual
tinha emprestado dinheiro ou chantageava com suas garotas.
Ellis detestava ter algo a ver com aquela escória, mas era inevitável mergulhar nos baixos
recursos quando a Coroa exigia.
Coryton analisou atentamente a oferta dos jovens e depois de um longo silêncio disse:
—Setenta para mim e trinta para vocês.
—Isso é um roubo, cavalheiro! —protestou Fleming.
—Pegam ou deixam.
Ellis tinha permanecido à margem. Ele tinha conseguido o encontro, o que não era fácil,
e estava interessado em como fechavam o negócio. Entretanto, a escandalosa proposta
avivou nele a necessidade de baixar a soberba do indivíduo. Na verdade, sempre desejou
partir a cara de um bode que traficava com mulheres, roubava nas mesas de jogo e tinha
afrontado alguns conhecidos. Mas sabia que uma denúncia serviria de pouco, não era em
vão que entre seus devedores se encontrassem membros da magistratura.
Uma rajada de ar balançou a capa de Ellis chamando a atenção de Coryton. A imponente
figura vestida de escuro remexeu-se na cadeira, repentinamente incômodo. Desde que
entraram em seu escritório, o sujeito em questão se manteve a margem da conversa, em
127
um canto, nas sombras, e sem abrir a boca. O chapéu, um pouco inclinado, e a luz escassa
que projetava o único abajur que iluminava o lugar, mal lhe permitiam ver algo mais que
um queixo férreo e um esgar sério. Mas algo em sua atitude longínqua e fria lhe punha em
guarda. Mesmo assim repetiu:
—Setenta e trinta cavalheiros. É minha oferta.
Fleming se levantou visivelmente aborrecido e Brite fez o mesmo.
—Encontraremos alguém mais honrado que você - disse o primeiro.
Já punha a mão na maçaneta da porta. A voz de Ellis o deteve.
—Oitenta para nós e vinte para você — ele contra ofertou.
Coryton lhe prestou atenção instantaneamente. O fulano não olhava para ninguém, mas
sim parecia mais interessado na agitação do porto. Logo que deslizou as cifras, o agiota
sentiu no estômago um aviso de precaução. Os galeses ficaram imóveis.
—Sou o homem adequado para colocar sua mercadoria, cavalheiros — se defendeu
Coryton— Não encontrarão em toda Londres alguém que o faça em uma semana. E sua
proposta é inaceitável, senhor. Eu trabalho com minha margem.
Uma risada apenas perceptível, mas cruel ressonou na sala ruinosa. Ellis se moveu saindo
das sombras e sem ruído algum, cortou o espaço até que suas longas pernas roçaram a
borda da mesa roída. Ao inclinar-se sobre ela, Coryton recuou instintivamente para trás.
—Acredito que não me entendeu bem, Joseph — Cliff explicou com um tom gelado que
não dava opção à discussão— Oitenta e vinte. Essa é minha oferta.
—Não é possível… — ele resistia já não tão seguro.
O braço direito de Ellis se moveu com tal rapidez que não pôde evitá-lo e se encontrou
preso pelo pescoço e frente a um olhar que gotejava perigo.
128
—Não é possível?
Coryton o reconheceu então. O duque de Ormond. Nunca tinham tido entendimentos,
mas o que sabia dele o alertava ao máximo. Seus olhos se dilataram e seu pomo de adão se
moveu em espasmos.
—E-e-excelência…
—Oitenta e vinte — Cliff insistiu monotonamente sem soltá-lo— Se decida, meu amigo,
ou baixarei a percentagem ainda mais.
Coryton não encontrou outro modo de livrar-se daquela mão que o afogava, exceto
assentindo várias vezes.
Ellis o soltou como se o repugnasse e ele caiu desajeitado entre a mesa e a parede.
Concedeu-lhe um escasso minuto para recuperar o fôlego e, enquanto isso pôs diante ele
umas folhas em branco e uma pena. Coryton rabiscou com pressa, repetiu o texto em outro
papel e assinou ambos, estendendo-os ao duque com uma mão insegura.
—Se tiverem a bo-bo-bondade de assinar, cavalheiros…
O duque pegou os documentos e os revisou. A caligrafia era horrível, pouco
compreensível entre a pressa e a agitação de quem o tinha redigido, mas dizia o que queria
e era disso que se tratava.
—Deveria contratar uma professora — comentou, zombando— Um homem como você,
com seus negócios…
—Eu assinei o contrato, não? —gritou Coryton, pondo toda a distância que o pequeno
quarto lhe permitia— O assinei pelo amor de Deus! Que mais quer Ormond?
Brite quase teve pena do sujeito. Via-se que estava apavorado. Mas não era para menos.
Inclusive ele se mantinha tenso, como se o duque pudesse voltar-se contra eles também.
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Sua frieza arrepiava o cabelo. Assinou os dois papéis e os cedeu a seu companheiro para
que estampasse sua rubrica. Atirou um para o agiota e guardou o outro na jaqueta.
Antes de sair do escritório, Ellis se voltou para Coryton e sorriu sinistramente.
—Não volte mais por aqui, excelência — este lhe suplicou.
—Espero não ter que fazê-lo. As pocilgas, para os porcos. Mas se alguma vez voltar a ver
seu rosto feio ou se cruzar meu caminho… — Deixou em suspense uma frase que era uma
muito clara ameaça.
Coryton se abateu assim que se foram. Com os nervos a flor de pele secou o suor do
rosto, revisou o documento que acabava de assinar e o enrugou entre os dedos soltando
uma fileira de blasfêmias.
—Eu me vingarei de você, Ormond — disse em voz alta, para dar-se coragem— Juro que
vai pagar por isso.
E em sua cabeça se perfilou o rosto e o nome de uma pessoa. Embora tivesse que aliar-se
com o próprio rei dos infernos, o maldito duque pagaria.
Abriu uma das gavetas da mesa, tirou uma garrafa e bebeu ansiosamente. Passou o
punho de sua camisa pelos lábios recuperando pouco a pouco a serenidade à medida que o
álcool esquentava suas tripas. Pegou papel e, ainda com a mão trêmula, começou a
escrever.
Brite não conseguia encontrar a posição dentro da carruagem e mal se atrevia a olhar
para Ellis, mas murmurou:
—Achei que meu tutor era um negociador duro.
Cliff sorriu levemente embora não o refletiam em seus olhos.
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—E é.
—Nunca vi a um homem tão assustado — comentou Fleming.
—Isso acontece quando se faz negócios com o Diabo, cavalheiros.
Capítulo 16
Tampouco Leia encontrava uma postura. Sentada em uma das amplas poltronas da
biblioteca, tentava ler. Algo intangível a mantinha alerta com a desagradável sensação de
estar sendo observada. Entretanto, encontrava-se a sós, com a única companhia de
centenas de livros.
Fora, o vento ululava expandindo um lamento lúgubre que arranhava as copas das
árvores. Ouviu um ruído e desviou os olhos da leitura, sobressaltada, para as janelas. Varreu
a biblioteca com o olhar, mas não viu nada fora do normal. Se é que podia se chamar de
normal o lugar onde se encontrava. Não era que lhe desagradasse o que parecia ter sido até
então o reduto particular de seu brilhante marido, justamente o contrário. Mas seguia
percebendo um efeito flutuando, indescritível, mas latente.
Sacudiu a cabeça tentando raciocinar com claridade e não embarcar em uma estúpida
caça as bruxas. O castelo era um edifício antigo e os ruídos da madeira ao ranger ou o
assobio do ar entre os muros não eram a não ser outro elemento a mais.
Apesar de tudo foi impossível concentrar-se, mesmo que se tratasse de uma novela de J.
Preston. Deixou o livro de lado e deu uma olhada nos exemplares que trouxe com ela de
Ness Tower. Recordou com prazer o grau de estupor com que seu marido recebeu a notícia
131
de que a acompanhavam quatro baús repletos de livros. Amparada em sua ausência e com
a ajuda de um par de criados, tinha tirado o pó de algumas estantes, as dispondo depois a
seu gosto, colocando seus livros e abandonando alguns dos exemplares mais antigos de seu
marido nas mais altas.
Pensar em Cliff não só a distraiu, mas também lhe provocou um sufoco incompreensível
que coloriu suas bochechas. O que ele faria em sua volta? Seriamente cobraria suas carícias
de uma por dia juntas? Por que demônio se prestou a esse jogo? A evocação de suas mãos
acariciando-a, de seus lábios sobre os seus, a arrastava a fantasia.
Ellis tinha partido três dias atrás. Assim lhe devia três dias. Até onde ia exigir seu
pagamento? Qual era o limite? Um nó se formou em sua garganta.
Deu-se conta que ele e a intimidade que comportava não cabiam em sua cabeça.
Atravessou a sala e chegou até a maciça mesa situada em um canto, de costas para as
janelas. Puxou uma gaveta e a encontrou fechada. Franziu o cenho e ficou parada. Por uma
fração de segundo se perguntou o que poderia haver dentro, mas se convenceu de que não
seriam mais que documentos. A segunda gaveta se abriu. Pegou algumas páginas e se
sentou à mesa. Tinha que escrever para sua família e pô-los em dia. Sem dúvida esperavam
notícias suas, e ela já tinha se atrasado mais do que devia.
Pouco depois atendeu a uma chamada à porta e a silhueta alta e magra de Floresce
Dumond se recortou sob o batente. Completamente vestida de negro, o cabelo preso em
um coque severo e a com a luz dos abajures da galeria as suas costas, parecia uma aparição.
—Deseja algo, senhora Dumond?
—Devemos confeccionar o cardápio da semana, excelência.
Lea esperou que continuasse, mas a governanta não disse mais nada.
—E? — ela insistiu.
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—Supus que milady gostaria de me indicar suas preferências.
—Eu gosto de tudo — respondeu, molhando a pena no tinteiro— Que a senhora Fellini
prepare o que achar conveniente.
Escreveu duas linhas, mas não continuou. A governanta seguia ali, rígida como uma
vassoura, com as mãos cruzadas sobre o colo.
—Quer algo mais, senhora Dumond?
—Até agora, senhora, era eu quem selecionava o cardápio da semana. —Se era um
protesto, não parecia, embora o tom de sua voz seguisse sendo seco — Mas se milady tiver
outro critério…
—Lamento a confusão — a moça se desculpou— Não pretendia afastá-la de suas
obrigações. Você se encarregue de tudo, por favor, tenho certeza que sua escolha será
excelente.
Flora a saudou com uma inclinação e partiu.
Eleanor ficou com o olhar cravado na porta. O que se ocorria? Não a tinha visto sorrir
desde que Ellis a tinha apresentado. Seu aspecto e gestos associavam sua figura com um
corvo. E isso a incomodava. Não podia dizer que não fosse eficiente, mas era fria e distante
em sua submissão.
Esqueceu-se dela e escreveu uma longa carta descrevendo o castelo e seu redor, mas
evitando ilustrar sua aparência sombria e as persistentes brumas que o abraçavam, e
insistindo na abundância de salas e nos jardins. Duvidou um momento e depois, dando de
ombros, transmitiu-lhes o desejo de seu marido de conhecê-los logo. Clifford não tinha
comentado nada, é claro. E isso era estranho. O lógico teria sido que o marido quisesse
conhecer a família de sua mulher, já que eram parentes. Mas o duque nem sequer tinha
trazido o tema a tona. Nada em sua relação se parecia com qualquer outra.
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Deixou a pena no tinteiro e soprou a carta, sacudindo-a depois no ar. Apoiou-se no
encosto e suspirou. Clifford Ellis necessitava de uma nova duquesa, a tinha conseguido e aí
acabava tudo. Acaso ele pensava que ia renunciar aos seus? Que ia se enterrar em um
panteão afastado e sem ver seu pai, seu avô e seus irmãos?
—Claudicará, duque, claudicará.
Acrescentou algumas coisas mais de caráter pessoal, derrubou um pouco de pó secante
e a dobrou.
Bethia estava costurando em uma salinha anexa à cozinha, onde Lea a encontrou. Ainda
era de dia, mas sua aia tinha acendido um par de abajures porque mal entrava luz e havia se
provido com um pequeno braseiro para esquentar o ambiente. Lea se aproximou da janela
e espiou o exterior. A maldita bruma seguia rodeando os muros como uma mortalha.
Esfregou os braços e ajeitou o xale sobre seus ombros.
—Que tempo tão desagradável — murmurou.
—Como se a capa de Satanás cobrisse o castelo — deslizou Bethia.
—O que está fazendo?
—Subindo os decotes.
—O que?
Bethia deixou a peça sobre o colo e enfatizou:
—Digo menina, que estou subindo os decotes.
—Mas… mas… por quê? — ela apanhou o vestido.
—Porque são indecentes. — pegou de novo o tecido— Agora, é uma duquesa. E uma
duquesa deve se vestir com recato.
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—Está obcecada. Suponho que não terá sido ideia desse demônio, não é?
—A que demônio te refere?
—A Ormond!
Bethia voltou para a costura com uma careta de desgosto.
—Não. Foi à senhora Dumond quem me fez ver isso. Em um par de dias terei arrumado
isso.
—Flora? —Lea congelou. Não sabia se começava a chorar ou rir— Flora lhe insinuou
isso? Até aí podia chegar!
—Estou de acordo com ela.
Eleanor ia confrontar o assunto, mas a outra a deteve.
—Menina, não enfrente essa mulher. Não o faça. Não busque complicações.
—Não é mais que a governanta. E eu, a duquesa de Ormond. Não é isso o que leva
repetindo insuportavelmente desde que me casei?
—Dela eu não gosto.
—Não me importa nada se você gosta ou não, Bethia! —estourou— Posso admitir que
ela se parece com uma gralha, mas que não pretenda que eu tenha o mesmo aspecto.
Deixou sua aia com a palavra na boca e saiu dali com o ânimo instigado. Flora ia se
inteirar do que era o mau gênio escocês!
Não encontrou Floresce Dumond por nenhuma parte. Perguntou aos criados, percorreu
as dependências de serviço, mas foi incapaz de dar com ela. Era como se esfumaçasse entre
a bruma.
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Assim Bethia temia enfrentar à altiva governanta? Não era próprio dela, com o gênio que
tinha e estranhou que se rendesse assim. Subir os decotes, pelo amor de Deus! Era o
cúmulo da presunção! Compreendia que como governanta, Flora exigisse um controle
quase absoluto sobre tudo o que acontecia entre aqueles muros, mas tinha se excedido em
suas competências e ela pensava em deixar-lhe muito claro.
E, é claro, trataria a questão com seu marido quando se dignasse retornar de Londres.
Depois de quase meia hora de busca desistiu de seguir, lhe passou pela cabeça em pedir
um cabriolé e ir visitar Alice e Owen, mas o desprezou no ato. E se retornasse à biblioteca?
Também o desprezou. Estava muito tensa para centrar-se na leitura e embora fugisse desse
mundo entre as páginas das novelas, seguindo as lógicas deduções de J. Preston guiando o
leitor para a resolução do crime planejado ou a aparição de alguma alma perdida, optou por
uma ideia que, de repente, chamava-lhe poderosamente a atenção: voltar a farejar entre as
velhas paredes do castelo.
«Talvez me apareça algum fantasma e afaste meu aborrecimento», disse-se. Seus passos
levantaram ecos à medida que cruzava uma galeria.
Havia ali também um mistério? Que castelo não o tinha? Para ela deveria ser um
mecanismo de fuga que aliviasse sua rotina de paredes lúgubres. Lembrou da última novela
de sua autora preferida. Nela, descrevia essas sombras estranhas que alguém parece intuir
mais que ver, sobre tudo de noite, em algumas ocasiões. Todo mundo o atribuía sempre a
visões, a encontrar-se próximo ao sonho, a truques da mente. Mas acertava ao explicar com
suficiente clareza que, embora a maioria das vezes fosse essas as causas, outras eram muito
reais. Sempre havia alguém do outro Lado.
Lea tinha convivido com estranhas presenças desde que era uma menina. Estava
convencida de que um fantasma em particular a protegia, o de Fiorel McKenna. A escritora
argumentava que esse tipo de presenças imateriais não era a não ser o espírito de alguém
que velava pelo vivo.
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Levou em conta que, precisamente, tinha fechado aquela novela no capítulo em que J.
Preston narrava com precisão a singular impressão de encontrar-se com alguém que se
sentou na borda da cama de um de seus personagens. Curiosamente, não tinha retomado a
leitura desde esse capítulo, atarefada como tinha estado em organizar os preparativos para
a viagem. Tinha que procurá-la e acabá-la. Porque ela acreditava com convicção nesses
seres. Tinha-os notado mais de uma vez na eminência do sono.
O vento aumentava no exterior. Soube dominar o sobressalto que lhe produziu um galho
golpeando o vidro da janela ao lado de onde passava.
—Um mistério — se repetiu se auto-sugestionando— E penso em decifrá-lo.
As luzes amareladas das lamparinas desapareciam em tons cinza sobre os tapetes e as
paredes. Um golpe de medo fez com que estremecesse: um trovão potente, estrondoso,
pavoroso, penetrou entre os muros que pareciam retumbar. Escapou-lhe um assobio nada
feminino e acelerou o passo.
—A resposta dos fantasmas — ela murmurou para si mesma, dirigindo-se para a ala sul.
Capítulo 17
Hallcombe House era enorme, sim, mas além de galerias sombrias, adegas frias, salas em
toda parte, despensas e escadas que subiam e desciam até agoniar, não tinha nada
especial. Claro que não cruzou com nada que fosse muito interessante no percurso. Sim, a
137
sensação de que alguém a vigiava não a abandonava. Finalmente atribuiu-a aos criados que,
embora apenas se deixassem ver, estavam por todos os lados. Era normal que sentissem
curiosidade pela nova esposa do duque.
Como aventura, seu passeio resultou em um completo fiasco.
Comeu na biblioteca, folheando os livros de seu marido, um emaranhado de volumes de
todo tipo: grego, história, poesia, viagem, agricultura, caça e pesca… Encontrou um estudo
sobre o funcionamento dos moinhos que lhe pareceu interessante e outro sobre a criação
de cavalos que separou para lê-lo mais tarde.
Ao anoitecer, o céu se cobriu de nuvens negras e felpudas que ocultaram a lua e
começou a chover.
Lea adorava as tormentas, assim, encostada na janela de seu dormitório, deixou que a
chuva a açoitasse até empapar sua camisola enquanto o rugido dos trovões retumbava na
campina e os relâmpagos borravam o bosque.
Sacudindo-se como um cão encharcado, fechou a janela e começou a trocar a camisola
por outra seca antes de deitar-se.
Então o ouviu.
Um chiado que a deixou arrepiada.
Entreabriu os olhos e espiou perseguida por uma coceira desagradável na nuca.
Certamente tinha sido o vento que castigava os muros e se filtrava pelas ranhuras fazendo
piscar as velas do único candelabro que Bethia tinha deixado aceso antes de lhe desejar boa
noite, pensou. Isso indicava a lógica, mas não a tranquilizou. Muito ao contrário,
aprofundou sua apreensão com um som contínuo, como se algo se arrastasse pelo chão.
Não era medrosa. Para seu pesar, seus irmãos a criticavam por ser excessivamente
decidida sem avaliar os riscos. Fiel a isso, pegou o candelabro e começou a revisar a
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antecâmara. Podia ser um rato? Perguntou-se. Odiava os ratos, e imaginar que algum
pudesse ter entrado arrepiou o pêlo de sua nuca.
—Não penso em me deitar até te encontrar, belezinha — ela avisou ao suposto intruso.
Depois de um bom tempo de busca se deu por vencida. Se algo tinha entrado ali devia
ter escapado, porque não encontrou nem rastro dele.
Outro trovão de evidente potência desdobrou toda sua energia sonora trazendo consigo
o furor deslumbrante de um relâmpago. A janela se escancarou e a chuva penetrou furiosa,
sem restrições. Enfrentando a investida do vento conseguiu fechar a janela, mas então ficou
de novo encharcada da cabeça aos pés. Tiritando, tirou a camisola pela cabeça e se
aproximou da cômoda para mudar sua roupa interior. Puxou a gaveta e um rangido súbito a
suas costas a fez estremecer e virar-se, com os olhos arregalados. Retrocedeu até que seu
corpo tocou o móvel. O estalo se repetiu. E retornou o horripilante rumor metálico que,
compassando ao chiado da chuva e do vento, aumentava sua solidão e seu temor.
Com a respiração entrecortada e o coração descontrolado, clamou:
—Quem está aí?
Pareceu que tinham tentado responder por que surgiu do chão um roce enviesado como
se arrastassem correntes. Lea caiu em si cruzando os braços sobre seus seios e então se deu
conta que estava nua. Na pressa, tateando, sem deixar de olhar para todos os lados,
colocou em cima a primeira coisa que encontrou, brigando com uma manga que não
acertava em vestir.
Pegou de novo o candelabro, mas desta vez como uma arma defensiva. Esqueceu-se do
estúpido pudor e percorreu o quarto de lado a lado. Os móveis pesados se assemelhavam
com figuras fantasmagóricas que os relâmpagos desenhavam salpicando de luz os espaços
das sombras.
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Veio-lhe uma oração aos lábios que se prolongou em grito ao ouvir uma risada rápida
que traiu sua valentia. Soltou o candelabro que se estalou contra os ladrilhos e rodou
provocando mil ecos que soavam como marteladas. As velas se apagaram e de repente se
achou perdida em uma escuridão espantosa. Em um silêncio sepulcral.
A tormenta cessou com a mesma incomum rapidez com a qual tinha começado. Nem
sequer pôde contar mais com a lúgubre luminosidade dos relâmpagos. O mundo se
escureceu, não havia nada ao seu redor. O coração de Eleanor retumbava descontrolado,
quase saindo do peito e trovejando em seus ouvidos.
Ficou petrificada, imóvel, na mais completa escuridão. Nunca tinha sofrido tanto medo,
nem sequer quando acreditou ser perseguida pelo fantasma de Fiorel.
Tentou se acalmar, pensar com sensatez. Ficou de joelhos e tateou com as mãos
trêmulas os frios ladrilhos, anestesiada pelo frio que tomou todo seu corpo. Seus dedos
toparam com o candelabro, apalpou até encontrar uma vela e se levantou. Como uma cega,
esticando o braço direito para evitar se chocar com algo chegou até a cama e ao criado
mudo. Localizou os fósforos em cima deste com a alegria de quem acha um tesouro.
Acendeu um, mas seus tremores foram mais fortes e este escapou dentre os dedos.
Amaldiçoou com o nome mais desprezível que conhecia e acendeu outro. Ela acendeu a
chama da única vela que tinha encontrado, colocou-a no candelabro e saltou sobre a cama,
segurando-o sobre o colo, como se a leve cintilação pudesse defendê-la da presença que
rondava em seu quarto.
A vela já tinha quase sido consumida quando recuperou a serenidade. Ali não havia
ninguém. Ao menos, já não se ouvia nada, nem chiados, nem correntes arrastadas, nem as
risadas cavernosas que a tinham arrastado ao pânico.
Mordendo os lábios se levantou, completou o resto das velas e as acendeu uma a uma.
Seguia com o pulso alterado, mas ao menos já era capaz de reagir com lógica.
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—Se isto foi uma brincadeira, ao seu autor vai faltar caminho para correr — disse ao
vazio.
Revisou todo o perímetro uma vez mais, comprovou que a porta estava fechada,
encaixou uma pesada cadeira sob o trinco e retornou à cama deixando à mão o candelabro
que nem lhe ocorreu apagar. Colocou os almofadões como um encosto e se recostou na
cabeceira, cobrindo-se até o queixo. Se ocorria a alguém voltar não ia encontrá-la
despreparada.
Despertaram-na um tamborilar insistente e a voz de Bethia ao outro lado da porta.
—Eleanor! Eleanor!
Bocejou e esticou os braços por cima da cabeça. As costas se queixaram mandando uma
espetada ao cérebro que a recordou da incômoda maneira na qual adormeceu. Levantouse, retirou a cadeira que travava a porta e a abriu.
—Por que não podia abrir? —Bethia entrou como um furacão e em seguida viu a cadeira
a um lado— Desde quando você se tranca? O que houve?
—Não dormi bem, isso é tudo.
Sua criada arqueou as sobrancelhas, mas não perguntou mais nada e se dedicou a
preparar o banho. Se estranhou o par de camisolas no chão, não comentou e se limitou a
recolhê-las.
Eleanor se deu conta então das gotas de cera que tinham formado pilhas sobre a
superfície da mesinha até consumir as velas. Tinha sido uma insensata por dormir sem as
apagar confrontando um perigo certo! Queria justificar-se com Bethia, mas era difícil. Já
tinha recebido muitas reprimendas dela sobre suas imprevisíveis buscas em Ness Tower
para lhe dizer agora que estava decidida a revirar o castelo, pedra a pedra se fosse preciso,
141
até achar o indesejável que a tinha aterrorizado na noite anterior. Assim que se banhou,
deixou que lhe prendesse o cabelo em um coque sobre a cabeça, colocou o vestido que
Bethia escolheu sem um protesto e desceu para tomar o café da manhã.
A sala de jantar lhe pareceu mais solitária que nunca e se perguntou quando retornaria
seu marido. Temia enfrentá-lo, mas recordava, cada vez mais vividamente, seu tato, o calor
que emanava de seu corpo quando a abraçou e o sabor de sua boca. Tendo em conta que
cedo ou tarde deveriam ter intimidades, e evocando a noite passada, qualquer coisa era
melhor que estar sozinha entre as velhas paredes silenciosas.
Bethia entrou e parou a seu lado, quase cochichando embora estivessem a sós.
—Sugar Bryton não era outra coisa que o entretenimento de seu marido até que você
chegasse.
Eleanor virou a cabeça para sua preceptora e se esqueceu definitivamente do café da
manhã.
—Podia ser mais delicada, não?
—Menina, você me pediu que abrisse os ouvidos e eu só a informo.
—Oh, Bethia…!
—Não vai me dizer que está com ciúmes dessa garota? Olhe o que digo. Não está
apaixonada pelo duque, a casaram à força, ele não é um monge e ficou viúvo faz tempo.
—Eu sei.
—Nem sequer os homens casados deixam às vezes suas amantes, assim…
—O que você está tentando me fazer ver? Eu não disse nada e, entretanto, parece ter
tomado partido.
142
Bethia pensou brevemente. Ela estava fazendo isso? Se ela tinha algo claro é que lhe
faltavam motivos para estimar Ormond, mas sim, nesta ocasião estava decidida em
defendê-lo.
—Já está outra vez lendo esse tipo de novelas? Qualquer dia acabará tendo visões. —
Suspirou, notando o livro que Lea tinha ao lado— Seria melhor que se preocupasse com os
vivos, porque me parece que seus inimigos estão aqui. Eu me refiro a tal Sugar. Conforme
soube, não gostou nada de ter que abandonar a cama do duque. —dirigiu-se a suas
obrigações não sem antes recalcar— Nem você nem eu desejávamos estas bodas, Eleanor,
mas assim estão as coisas. E se quiser uma vida sem complicações deverá amarrar seu
marido. Não estranharei que essa moça tente lhe apanhar com o jogo.
—Não me importa.
—Os homens, se não encontrarem o que querem na cama de sua esposa, buscam-no em
outra parte. E você, que eu saiba, continua sendo virgem.
Eleanor o encarava com naturalidade, tinha passado pouco tempo, mal tinham estado
juntos, eram dois completos desconhecidos. Ellis tinha lhe concedido tempo e ela estava
agradecida, porque precisava habituar-se a sua nova vida, acostumar-se com sua realidade
de mulher casada. Unida para sempre a um homem charmoso e enigmático de uma vez, ao
qual acompanhava uma lenda, pelo menos, um ponto sinistro.
—Tudo se arrumará quando o duque retornar — Eleanor assegurou.
Sim, estava segura. Não era uma dissimulada e já não havia volta atrás. Por ela mesma,
pelo bem de sua família e agora, pelo ducado de Ormond, deveria pôr as coisas em seu
lugar. Esperava-se dela que cumprisse com seu papel, sobre tudo que desse um herdeiro ao
duque. Tremia imaginando-se em uma união íntima com ele, mas reconhecia que sua
apreensão se formava a partir das incríveis e desconhecidas sensações que ele tinha
despertado em seu corpo.
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—Faria bem em se distrair um pouco — sua aia aconselhou— em vez de passar o dia
lendo. Eu ouvi que uma égua está a ponto de parir.
Capítulo 18
No relógio que repousava no suporte da lareira se abriu uma pequena porta lavrada e o
cuco anunciou à uma da madrugada.
—Outra taça?
Cliff desviou o olhar do artefato e centrou sua atenção na mulher que tinha frente a ele.
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Toda uma mulher.
Alta e elegante. De porte distinto, resultado de uma dura aprendizagem, cabelo escuro,
enormes olhos e bons modos que soube usar até triunfar em sociedade, embora ele
soubesse que provinha de uma família humilde. Mas se casou com Andreas Maier, conde de
Leisser, um austríaco radicado na Inglaterra há anos.
Ela tinha chegado a Londres em uma carruagem carregada de baús repletos dos últimos
modelos confeccionados em Paris — nos quais tinha gasto todo seu dinheiro— e disposta a
arrasar. E o conseguiu!
—Por favor — pediu Ellis.
Amélia o serviu, roçando seu ombro como por descuido e voltou a sentar-se. Ela era
capaz de misturar-se com o pior da sociedade se na ocasião o precisava. Nisso, eram almas
gêmeas. Seu trabalho o exigia às vezes, e não tinha asco de visitar, inclusive, a Nicole
Dafont, a cortesã mais conhecida de Londres e proprietária de um dos locais mais caros da
cidade. Uma casa de jogo clandestino com classe chamada Nirvana, casa de relaxamento.
Para os cavalheiros era um paraíso; para as damas, um prostíbulo e uma sala de perdição.
O chamasse como o chamasse, Cliff tinha sido cliente em algumas ocasiões, antes de
casar-se com Mariam. E foi ali onde conheceu Amélia Hossman, a quem tirou de um apuro.
Ela tentava reunir provas contra um sujeito desprezível, casado com uma amiga, para
facilitar a separação desta. Ficaram íntimos e se converteram em amantes durante um
curto período, mas agora eram somente amigos. Bons amigos. De outro modo, Amélia já o
teria posto na rua há tempo.
Cliff tinha chegado a sua casa pouco depois das nove e meia da noite. Ela não estava
assim se encerrou na saleta que ocupavam agora, pediu ao seu mordomo uma garrafa de
champanha, e esperou sua volta.
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A condessa de Leisser apareceu quase à meia-noite e assim que soube de sua presença
foi vê-lo. Adivinhou que se encontrava com um humor de cão e se serviu de uma taça,
sentou-se em frente a ele e esperou que falasse. Isso tinha se convertido quase em uma
tradição; quando Ellis tinha problemas ia ali e ela desempenhava o papel de confessora.
Não era o caso essa noite.
—Abro outra garrafa?
—Não — respondeu Cliff, reclinando a cabeça no encosto— Acho que já é suficiente por
hoje. Encontro-me um pouco enjoado.
—Talvez goste de um café.
Voltou a negar e fechou os olhos para ver se conseguia diminuir a revoada de centenas
de mariposas em seu estômago.
—Bom… vai dizer-me o que aconteceu ou tenho que passar toda a noite aqui? Não parei
de dançar nem um minuto na festa de lady Periwinkle e tenho os pés destroçados.
Ele abriu os olhos para contemplar um rosto nacarado e perfeito, sem mácula. Ellis sabia
que podia lhe contar o que fosse. Desde que a salvou do bode licencioso que tentou cortar
seu pescoço, tinha surgido entre eles um laço de amizade duradouro, reforçado com o
passar do tempo. Mais ainda, recrutou-a para algumas pesquisas da Coroa. Era muito útil, e
muito hábil, indagando aqui e ali, e ele se valia disso e de sua amizade. A única pessoa em
toda a maldita Inglaterra que sabia de seus temores, de suas noites de insônia, de seus
pesadelos. A única que o tinha visto chorar afligido pelo desespero de não ter chegado a
tempo de salvar Mariam.
—Sabe que voltei a me casar?
Amélia assentiu e se serviu de um pouco mais de champanha. Para ela, era a melhor
bebida, a única que podia consumir a qualquer hora.
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—Como não saberia? A notícia circula por toda Londres, Cliff. O que faz ou deixa de fazer
o duque de Ormond sempre é um acontecimento.
—Suponho que sim.
—Londres não é mais que um circo de fofocas, você sabe. E você deu a grande badalada
se casando com sua escocesa. Ninguém ignora o assunto de sua avó com a família
McKenna.
—Uma história velha.
—Que todo mundo se apressou a trazer a tona. Dizem que sua nova duquesa é muito
bonita.
—Dizem isso?
—Sim, dizem.
—E o que mais se fala?
—Clementina Mason se encarregou em espalhar a historia. Também ouvi que Irish, sua
prima, vai contando a quem quiser escutá-la que é uma moça encantadora e com energia.
Ideal para uma duquesa, segundo ela. E os criados não são mudos. Diz-se… — ela fez uma
pausa que captou a total atenção dele— Diz-se que é um anjo nos domínios de Satanás.
Ellis soltou uma gargalhada que nada tinha de divertida.
—Não estão equivocados. Um anjo habitando na mesma guarida do monstro que
assassinou sua duquesa anterior.
—Por que se despreza desse modo? — ela o recriminou— Por que segue se torturando?
O que pode importar a você o que o mundo inteiro diga? Não a matou!
Cliff massageou a cabeça. Começava a doer, como cada vez que tocavam no tema.
—Se tiver tido alguma vez uma amiga, essa é você. Obrigado.
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—Agora tem uma esposa com a qual compartilhar suas inseguranças. Você gosta dela de
verdade ou o casamento foi uma mera formalidade?
Ao não obter resposta, aproximou-se, apoiando seus antebraços nos joelhos de Ellis.
Seus olhos, um pouco felinos, escrutinaram o rosto severo.
—Onde está o problema?
Ele a afastou com delicadeza e se levantou. Mil e uma imagens fervilhavam em sua
mente compondo um quebra-cabeça que não conseguia ordenar. Qual era o problema?
Como se tivesse a menor ideia! Mas precisava justificar-se com alguém, confessar-se.
—Prometi lhe dar tempo para que vá se acostumando com sua nova situação de esposa
e duquesa.
A condessa escrutinou as distintas emoções que passavam por seu rosto. Suspirou e se
levantou. Brincou com o cabelo escuro e acariciou sua nuca, tão tensa quanto ele mesmo.
—Ai está. Sua nova duquesa o envolveu.
Ele não gostou do que ouviu. Afastou-se e recolheu sua jaqueta e sua capa.
—Vou embora. Já a incomodei muito.
—Pode guardar seus segredos de mim — ela resmungou ante sua fuga— E sim, parta.
Suportar um homem cozido por sua própria estupidez não é a melhor companhia.
Os olhos masculinos se turvaram um segundo para ceder depois em um gesto de
rendição.
—Suponho que eu mereço isso.
—Merece — ela conveio, pegando seu rosto bronzeado entre as mãos e desenhando
seus lábios com os polegares— Cliff, você sabe que pode confiar em mim. Ambos estivemos
148
casados, convivemos com a traição, mas o amor existe. E me parece que você está
apaixonando como um provinciano.
—Mas é claro que não! O que a faz pensar isso? Além disso, eu mal a conheço.
—Mas vem a minha casa e passa horas bebendo. O que quer que pense?
Amélia era muito intuitiva e Cliff era um livro aberto para ela. Ela lhe sugeria que Eleanor
McKenna estava convertendo-se em algo mais que uma esposa de compromisso. Não
gostava da aparência que tomava a conversa. Não gostava absolutamente. Colocou a capa
um tanto de qualquer jeito. Tinha que ir.
—Exceto minha avó e você, todas as mulheres me falharam, minha mãe primeiro e
depois Mariam. Tenho dúvidas de que Lea vá ser diferente, e eu me prometi que não
voltaria a me apaixonar.
Já na porta, a voz suave da condessa lhe deixou uma mensagem carregada de razões.
—Se você for um idiota! Como se o coração entendesse de promessas.
Amélia o viu descer as escadas depressa, cruzou o quarto e foi à janela para contemplar
como ele se afastava rua abaixo e montava na carruagem estacionada na esquina do
parque. Respirou fundo e moveu a cabeça com pesar. Por que a maioria dos homens
mostrava as garras quando se sentiam apanhados nas redes do amor?
Do outro lado da rua, alguém mais seguia com interesse o andar felino de Ormond.
Alguém escondido entre as sombras, afastado da luz dos lampiões, que em setores,
iluminavam a rua solitária.
Amélia não reparou no personagem.
Ellis, afligido por seus próprios demônios, tampouco o fez.
Mas essa pessoa memorizou o lugar e seu redor, uma zona elegante e afastada. Um
ponto excelente para tramar uma armadilha.
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Aquela noite, Ellis também não retornou ao castelo.
Eleanor jantou em sua antecâmara, em companhia de Bethia. Era um tanto intimidante e
desalentador fazê-lo a sós na ampla sala de jantar rodeada de pompa e cuidados de criados
erguidos e calados como estátuas. Sentia falta das animadas conversas em Ness Tower ao
redor da mesa. Desanimada e abatida, mal provou um bocado.
Bethia acabava de sair, não sem antes deixá-la agasalhada como a uma criatura de pouca
idade, quando Sonia chamou, que entrou levando uma bandeja que depositou sobre o
criado mudo.
—A senhora Dumond achou que lhe agradaria um copo de ponche antes de dormir,
milady. Preparou-o ela mesma. Aproxima-se uma tormenta e parece que vai ser forte.
—Obrigado. O certo é que o tempo está desagradável.
Sonia avivou o fogo da lareira antes de sair. Como se a tivessem fechado numa cela,
Eleanor se encontrou realmente sozinha, deixou-se escorregar entre os lençóis e se cobriu
até o queixo. Permaneceu assim, sem mover-se, olhando as chamas e pensando se não
seria infantil pedir a Bethia que passasse a noite com ela.
Havia uma movimentação ameaçadora no castelo. Notava-o nos ossos. Era
indeterminável e intangível, mas ela a percebia latente, viscosa e fria. Conseguia enervá-la
e, por outro lado, alimentar sua curiosidade. Certamente J. Preston poderia recriar o
ambiente opressor que descrevia em seus livros se passasse uns dias ali.
Levantou-se um pouco e tomou o copo de ponche. Mais tranquila, disse-se que era uma
consumada estúpida dando tanto voo a sua imaginação. Mas não podia remediá-lo. Nunca
tinha resistido a um mistério e não ia fazê-lo agora.
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—Parece mentira, Lea McKenna — ela ouviu sua própria voz— que seja a mesma pessoa
que perseguia o fantasma de Fionel.
Deixou o copo, voltou a meter-se entre as mantas e tremeu acompanhando a luz de um
relâmpago ao qual se seguiu o ensurdecedor som do trovão.
Por um instante, só por um instante, desejou que seu marido já tivesse retornado. Junto
a Ellis, o castelo parecia menos sinistro. Claro que não deixava de ser uma tolice pretender
ter um demônio por perto para afugentar outros.
Outro trovão sucedeu ao anterior. Encolheu-se um pouco mais porque tinha a convicção
de que ia ser muito difícil dormir essa noite. Soltou uma maldição, soprou as velas e subiu
as mantas por cima da cabeça.
Fora, na galeria, uns olhos inquietos observaram que empalidecia a luz que se projetava
por debaixo da porta.
Capítulo 19
Satisfeito e prevenido, o escuro personagem abandonou seu esconderijo uma vez que a
carruagem de Ellis se afastou, caminhou um lance e montou em uma carruagem negra e
fechada, estacionada longe das luzes. Entretanto, não começou a andar. Dentro, não havia
luz alguma, assim que, ao subir, não pôde ver o rosto de quem já ocupava o veículo.
—Eu disse que é um lugar perfeito.
—Com certeza — assentiu, tentando adivinhar as feições da outra pessoa no lúgubre
interior— Quando agiremos?
—Não quero que nos precipitemos.
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—Há muito dinheiro em jogo. Quero tirá-lo do caminho o quanto antes.
—Mas eu necessito de tempo.
—Para que?
—Tenho meus próprios planos.
—O que têm é uma dívida comigo…
—O dinheiro — deixou escapar uma risada gutural— é o pagamento por seu favor. No
geral, o que teve que fazer? Acabar com a mulher deve ter sido muito fácil.
—Fácil ou não, fui eu quem deu o pescoço cometendo o assassinato e mereço um
pagamento que já está demorando. Por outro lado, quero acabar com o duque.
—Tudo ao seu tempo. Já lhe dei um adiantamento.
—Que não cobre o que acertamos. De onde vai tirar o resto do dinheiro que me deve?
—Sei onde guardam as joias da família e não acredito que seja difícil pegá-las. No castelo,
além disso, há obras de arte; algumas das quais, sem muita proteção. Creio que saberá
colocar a mercadoria, embora não me importe.
—Está falando com um homem de negócios. Você me traz as quinquilharias e eu me
encarregarei de convertê-las em dinheiro.
—Faça-o fora de Londres. Aqui seria mais fácil que alguém reconhecesse as joias.
—Não se preocupe com ninharias. Mas eu repito… eu ajudei a estar onde queria e ainda
não vi os benefícios. Eu cobro sempre a meus devedores.
—É uma ameaça? Já lhe disse que pagarei! Você me lembra a uma velha chorona,
Coryton. Com as joias terá mais que o suficiente para saldar nossa dívida, mas tem que
esperar um pouco mais.
152
—Por quê? Poderia matar o duque na próxima vez que venha aqui e me esquecer de
nosso trato. O que você ganha neste assunto?
Uma voz opaca e ressentida levantou ecos na carruagem.
—Vingança, meu amigo — respondeu— Pura e simples vingança.
Lea abriu os olhos pouco a pouco, cheia de um estranho torpor, e deu uma olhada à
antecâmara.
—Bethia?
Ninguém respondeu e ela voltou a encolher-se nos cobertores ouvindo ao fundo o
ressoar incessante dos trovões.
—Eleanor…!
Aturdida, removeu-se no leito e tampou a cabeça. Desejava dormir. Profundamente. Seu
cérebro se debatia entre a consciência e o torpor, mas o sussurro apagado se repetiu.
—Eleanor…!
Sonolenta, sentou-se e piscou repetidamente para afastar as teias da sonolência. Tinha a
visão imprecisa. Esfregou as pálpebras e espiou além dos contornos dos móveis. Pensou
que podia ter sido um sonho e quando estava decidida a retornar aos braços do Morfeo,
voltou a escutar.
—Eleanor…!
Sua pele arrepiou e um estremecimento a percorreu dos pés a cabeça. Arregalando os
olhos e lutando contra a letargia, prestou toda atenção. Algo não ia bem. Ela estava
acostumada a ter tudo claro ao abrir os olhos e, entretanto, nesse momento, não era capaz
de reagir, seu pensamento nublava e suas pálpebras se fechavam.
153
—Sonia… é você?
Também não obteve resposta. Lea se beliscou para confirmar se sonhava. Ela apertou os
olhos. O fogo tinha apagado. O pálido resplendor de um relâmpago longínquo lhe permitiu
ver o quarto por um segundo.
—Ellis?
Nada. Somente o silêncio que era rompido, pelo cada vez mais longínquo, estrondo da
tormenta. Tinha-lhe parecido ouvir um ligeiro chiado metálico?
Esbofeteou-se para acordar. Com um peso estranho nos membros, jogou as mantas de
lado e pôs os pés sobre o tapete macio.
—Se for você, Bethia, cabeça de minhoca, juro por todas as almas dos McKenna que…
Uma gargalhada espasmódica a paralisou e lhe deu um nó no estômago. Piscando
repetidamente para evitar cair de novo no torpor, avançou um passo.
—Eleanor…!
Ofegante e horrível se assemelhava a um chiado de túmulo.
Lea engoliu em seco e avançou um passo mais.
—A brincadeira já foi longe demais — ela disse com a firmeza que pôde reunir.
Como resposta, outro trovão rasgou a noite e um relâmpago atravessou a antecâmara de
lado a lado lhe permitindo ver, ou talvez imaginar, uma sombra que se movia, confundindose logo na escuridão. Teria jurado que se tratava de uma figura humana e então sentiu
medo de verdade.
—Está condenada, Eleanor…!
Afogou um grito. A sombra se deslocou com rapidez e ela reagiu voltando-se em busca
do candelabro. Pareceu-lhe ouvir a porta e, quando pôde acender uma vela e iluminar seu
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redor, encontrou-se sozinha. Verificou a habitação como o fez na ocasião anterior, mas não
havia ninguém.
Ela recitou em silêncio todos os palavrões que aprendeu com seus irmãos e saiu à
galeria. O comprido corredor estava completamente às escuras. Tinham apagado as
lamparinas que ficavam acesas durante toda a noite. Fechou e trancou a porta, agitando-se
nela um temor apoiado na realidade: duas vezes não podia ser um sonho.
Foi até a pia e lavou o rosto. Completamente lúcida, acendeu todas as velas e se dedicou
a checar as paredes para o caso de haver alguma mola. Inclusive atrás dos móveis. Não
encontrou nada nem ninguém. Só ela e a inquietação que lhe tinham semeado. Por onde
tinha saído então seu macabro visitante noturno?
Deixou o candelabro e se sentou na beira do leito, olhando para o lugar no qual
momentos antes viu a figura humana.
Como tinha saído dali? Ela perguntava-se, teimosamente. Quem era? Por que queria
assustá-la? Entrou pela parede? Por acaso era um fantasma? Riu de si mesma porque, se
fosse um espírito, esta seria a via de escape mais lógica.
Não era hora de seguir o jogo do intruso, mas com a luz do dia ia pôr o quarto de pernas
pro ar até encontrar a resposta. Porque tinha que existir uma. Sem as ter encontrado,
retornou ao abrigo das mantas.
Levantou-se logo que clareou. Lavou o rosto e braços, colocou o primeiro vestido que
encontrou e desceu para tomar o café da manhã. Seu estômago, um pouco indisposto, não
lhe permitiu mais que um café e uma torrada. Minutos depois retornou a seu quarto e
começou com suas pesquisas.
Pediu a dois criados para que a ajudassem a separar os móveis da parede e em seguida
os mandou embora. Inspecionou cada canto, o interior do armário, atrás da cômoda,
155
debaixo da cama… Empurrou as gravuras que adornavam as colunas, uma a cada lado da
janela, medindo, procurando que cedessem e descobrisse alguma passagem. Tudo foi inútil.
Bethia a encontrou com a cabeça colocada atrás de uma poltrona.
—O que perdeu?
Lea deu um pulo e bateu contra a parede. Esfregando-se, levantou-se e sacudiu a saia.
—Bom dia, Bethia.
—Que está procurando? O que é tudo isto?
—Uma passagem.
—Uma…?
—Isto é um castelo, não é? E nos castelos existem galerias secretas, corredores que
unem as salas, túneis que se usavam em outros tempos para escapar. —Sua criada a olhava
com os olhos muito abertos e percebeu que estava se pondo em evidência— Ora! Não se
importe comigo.
—Se o fizer acabarei tão louca como você, menina.
Eleanor começou a pensar que possivelmente estava se excedendo. Seria possível que
fosse uma brincadeira? Não. Ninguém ia ter essa leveza. Foi algo muito real, mas
dificilmente explicável, e prender-se a procurar passadiços secretos não a faria mais sensata
aos olhos de ninguém. Tirou a roupa que usava e deixou que Bethia abotoasse o vestido
que tinha escolhido por ela. Mas negou que a penteasse e se limitou a melhorar sua
aparência prendendo o cabelo em uma trança que deixou solta nas costas.
— Meu marido retornou?
—Felizmente, não — respondeu a outra, bastante seca.
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Quem era? Quem demônios seria? Por quê? A noite anterior não saia de sua cabeça e
mal ouviu a conversa de Bethia sobre Sonia. Se Sean, Ian ou Jaimie tivessem estado ali, não
teria tido dúvida de a quem apontar. Sabia de suas brincadeiras. Mas seus irmãos estavam
longe. A questão estava aqui. Em Hallcombe House.
—Hoje cavalgarei um pouco, Bethia. Não se preocupe se não retornar para almoçar.
—Mas, aonde vai?
—Preciso me afastar um pouco deste ambiente.
—Peça que um serviçal a acompanhe, não conhece este território.
—Não se preocupe, cuidarei disso.
Nem por todo o ouro do mundo ia privar-se de montar em liberdade, disse-se logo que
saiu.
Embora fosse cedo, o jovem Monty já andava pelas cavalariças.
—Bom dia.
—Bom dia, excelência. Vai montar Dream?
—Por favor.
O moço preparou o cavalo e a ajudou a subir.
—Temos uma égua a ponto de parir, milady — ele comentou— Se tudo sair bem, dentro
em pouco virá outro potro ao mundo.
— Bethia me disse… Quanto está faltando?
—Não creio que passe desta noite, excelência.
—Me avise quando começarem as contrações, Monty. Seja a hora que for.
157
—Mas o parto pode ser a…
—Seja a hora que for — ela insistiu.
O menino assentiu e ela bateu os calcanhares nos flancos de Dream saindo ao galope.
Afastou-se de Hallcombe House sem saber exatamente para onde se dirigia e, sem
querer chegou ao lago que seu marido tinha lhe mostrado. Desmontou, prendeu os arreios
em um galho e se acomodou na margem da água. Os pássaros cantavam e um tênue sol
parecia querer dar um alivio aos habitantes daquelas terras banindo os véus de bruma. O
terreno estava encharcado pela tormenta da noite anterior e cheirava a grama molhada. Ela
adorava aquele aroma e inspirou agradecida pela maravilhosa tranquilidade que a natureza
concedia.
Cortou um raminho e se dedicou a formar círculos na água, semelhante ao que fez seu
marido, de quem lembrou suas carícias. Sua mente a tinha levado outra vez até ele.
Desprezou-o, levantou-se e voltou a montar com a ajuda de um tronco caído. Não estava
acostumada a divagar sem um horizonte produtivo e tampouco a ser deixada de lado. Se
seu brilhante marido tinha decidido fazer sua vida em Londres, para ela não havia
problema, mas não pensava em adoecer esperando. O castelo necessitava de reformas, que
melhor momento para começar? Decidiu que era hora de voltar.
Ao chegar foi repreendida.
—Por que saiu sozinha?
—Não seja chata, Bethia. Nunca cai de um cavalo e não queria companhia. Precisava
estar sozinha.
—Já não é uma menina McKenna. É a duquesa de Ormond.
—Você se repete muito — ela protestou, com Bethia em seus calcanhares.
—Mas Lea…
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—Quero que me avise assim que Ellis apareça — cortou— Nem um minuto depois.
Entendeu Bethia?
—Perfeitamente, excelência.
Lea riu com carinho, se virou e a abraçou. Ah! O velho periquito a super protegia tanto
que se zangava por qualquer coisa.
—Nana, por favor. É importante.
—Está bem, mas vai me contar o que te aconteceu hoje? Você se levantou alvoroçada.
—Não aconteceu nada — ela respondeu sorridente sem reparar na garota que se
aproximava carregada com uma boa provisão de lençóis limpos— mas é muito possível que
o duque quebre a crista assim que o veja.
A criada sufocou um risinho cúmplice e Eleanor percebeu então, já tarde, sua presença.
—Bom dia, excelência. Senhora Fallen…
Lea inchou as bochechas e deixou escapar o ar de repente.
—Nunca vai aprender —a escocesa censurou — O que vão pensar de você?
—Sinto muito.
—Isso não serve pra nada. O que fez seu marido para que esteja tão furiosa com ele?
Elas chegaram a seu quarto, tirou as luvas e as atirou sobre a cômoda.
—Esqueceu-me.
—Mas o que disse?
—Você acha lógico que meu marido me deixe sozinha quase no dia seguinte de nos
casarmos? Mas ele vai me pagar por isso.
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Bethia não disse nada. O que podia argumentar? O condenado duque de Ormond havia
se comportado como um desprezível gastador e ela estava de acordo com sua menina.
Pensou que seria muito melhor deixá-la com seu aborrecimento a sós.
—Controle seu gênio escocês ou teremos problemas, Eleanor.
—O que eu faria sem minha consciência particular?
Capítulo 20
Lea, deixando de lado a procura por passagens, começou a tomar nota de tudo que
queria mudar começando por seu quarto. Cortinas, edredom, tapetes… Depois continuou
com outros do andar inferior. Mandaria trazer os melhores tecidos de Londres e gastaria
uma pequena fortuna. Era uma vingança pobre, mas tão boa como qualquer outra contra
um marido insensível que se casou com ela para enclausurá-la horas depois naquele lugar
abafado enquanto viajava.
Foi vendo as dependências e perguntando-se por quais cores teria se resolvido sua mãe.
Sua memória lhe provocou um acesso de ternura. Se sua mãe a visse agora… Tinha tanta
saudade… Evocou seu espírito alegre e se abraçou, girando sobre si mesma.
—Fico feliz que a sua solidão não tenha azedado seu humor, senhora.
A saudação varonil e inesperada de Clifford a sobressaltou. Ela voltou-se para o olhar
desconcertada. Ellis apresentava um aspecto lamentável. Estava com a roupa enrugada,
embora ainda assim serviam como uma luva. O cabelo revolto e despenteado caía em
ondas rebeldes sobre a testa. A barba crescida escurecia seu rosto bronzeado. Os olhos
injetados de vermelho… Poderia jurar que não tinha dormido. Seu aspecto a levou a uma
160
conclusão para a qual não tinha levantado conjecturas: tinha estado na farra. Zangou-se,
mas não o externou.
—Hallcombe House tem muito que me mostrar milord — ela disse seca — E como devo
ocupar meu tempo em algo, nada melhor que ir passo a passo. A sós.
Cliff admitiu a indireta com uma careta. Era verdade que a tinha deixado sozinha por
vários dias, mas estava esgotado e lhe doía a cabeça. Não era hora de discutir os brilhantes
insultos de sua esposa.
Assumia ter se comportado como um idiota. Ao deixar Amélia tinha decidido retornar
para casa e, entretanto, não encontrou coragem suficiente para fazê-lo e enfrentar Lea.
Perdeu-se pelos piores casebres e tinha bebido autêntica sujeira que, misturada com o
champanha ingerido previamente, acabou por tombá-lo. Tinha despertado de madrugada,
enfraquecido em uma esquina. Sua carteira, seu relógio e sua capa tinham desaparecido e,
se por acaso fosse pouco, atacava-o uma ressaca de mil diabos.
Sabia que tinha um aspecto lastimoso, mas não pensava em dar explicações. Nunca o
tinha feito e não ia começar agora. Mas lhe doeu que ela o olhasse de cima abaixo e não
dissesse uma palavra. Necessitava de um bom banho e de dormir até o dia seguinte, mas
era difícil se mover, cativado por seu corpo magro, seus olhos, sua boca, seu cabelo…
—Acreditei entender que este lugar lhe parecia lúgubre. Sabe que o conhecem como o
Castelo das Brumas?
—Um mausoléu, sim. Ouvi o nome em alguma parte. Muito adequado.
—Quer dizer que é muito adequado para o castelo ou para um homem como eu? É
curioso, inclusive com bom tempo a bruma se abraça à torre na qual… —Emudeceu e em
seu rosto se desenhou uma aflição que vinha de dentro— Suponho que venho com o velho
edifício como as moscas com os cavalos.
Ela não replicou, mas era justamente o que estava pensando.
161
—Ouvi mal ou temos uma reunião familiar? — ele perguntou.
—Seu ouvido é excelente, milord. Mandei que Bethia me avisasse… assim que chegasse.
—Não pode esperar?
—Não. Mas não roubarei muito tempo, imagino que deseje descansar e se arrumar,
parece péssimo. Só quero esclarecer algo que ocorreu ontem à noite.
Demônio de mulher! Cada vez que abria a boca era para lhe lançar um dardo.
—Se me der uns minutos, estarei encantado em tomar um café com você, senhora.
—Eu o esperarei na sala de jantar.
Lea fez uma cômica reverência e lhe deu as costas, afastando-se com um rebolado de
quadris realmente instigador. Cliff seguiu o movimento como um lobo faminto e seu corpo,
ainda exausto, respondeu imediatamente.
Subiu os degraus de três em três e tomou o tempo exato para lavar-se um pouco e
mudar de roupa. Conrad protestou ao céu ao ver o estado das roupas que usava. Mas
também não tinha que lhe dar explicações.
Desceu à sala de jantar esperando uma inundação de críticas por parte de Eleanor, por
outro lado absolutamente justificado. Não imaginava nem remotamente o que ia ouvir ao
entrar.
—Não sei do que está falando, senhora — respondeu uma vez que a tinha escutado
saboreando um gole de café.
—De verdade? — ela continuou incisiva— É possível que se tratasse de… um trote, mas
sabe Deus que não acrescento nem um pouco.
Não brincava, falava totalmente sério. Pelo amor de Deus! Não lhe faltava mais…!
162
—Quer dizer, senhora, que anda a procura de fantasmas? — ele perguntou-lhe com
ironia.
Lea perdeu a calma. Tinha passado uma noite horrível e agora ele zombava em sua cara.
Agarrou a primeira coisa que tinha à mão. Só uns bons reflexos permitiram que Cliff se
esquivasse da taça que passou junto a sua orelha e caiu uns metros mais à frente.
Espantado por sua reação, não se moveu até que a viu agarrar um prato. De um salto se
aproximou e a segurou pelos ombros. Ela se revolveu como uma cobra, mas ele a sacudiu e
acabou embutida em um peito duro e apanhada entre uns braços que pareciam correntes.
Foi um choque de personalidades no qual ambos permaneceram assim, mudos e
paralisados.
Completamente sobressaltado, Cliff deixou de respirar. Seu pulso acelerou.
—Me solte - exigiu ela, apertando seus braços.
Não podia. Por duas razões poderosas: a primeira, que tê-la junto dele o excitava; a
segunda, que não estava seguro de sua integridade.
—Se acalme e falemos como pessoas civilizadas, Eleanor — apertou por sua vez.
Ela elevou a cabeça para o olhar nos olhos. Lamentou-o imediatamente porque perdeu o
fio da disputa. Inalou ar e relaxou, assentindo. Empurrou-o ao ver-se livre e voltou a ocupar
uma cadeira. Ellis sentou ao seu lado, sem se preocupar com o único criado que se
mantinha muito sério e erguido, junto à porta, como se não tivesse visto e ouvido nada.
—Não acredito que alguém se arrisque a fazer uma brincadeira tão desagradável. Muito
menos com a duquesa — ele comentou muito sério— Quanto a mim, nem sequer estive em
casa.
Lea mordeu a língua. Estava-se comportando como uma estúpida.
163
—Pense nisso, porque eu não minto. Alguém esteve em meu quarto. E não é a primeira
vez.
Ao duque não coube dúvida da convicção de sua esposa.
—Pôde ter sido um pesadelo?
—Não.
—Uma má digestão?
—Não.
O semblante de Cliff escureceu. Que explicação podia dar-se a algo tão absurdo? Poderia
alguém ter entrado em seu quarto? Duvidava. Entretanto, ela não se destratava e exibia a
firmeza do que afirmava.
—Talvez a leitura de algum livro…
—Sei muito bem quando estou acordada. E nem sequer as novelas de J. Preston fazem
com que me esqueça da realidade.
Uma mistura de assombro e gabolice embargou Cliff, que agora sim cravou nela seu
olhar.
—J. Preston?
—Leio quase tudo o que cai em minhas mãos. Embora minha leitura de refúgio preferida
seja a dela, na verdade.
—Por quê?
—Porque é uma escritora incrível — ela continuou um pouco relutante à mudança de
tema— Consegue como ninguém encantar ao leitor com narrações que sobrevoam o
esoterismo. É uma mulher extraordinária.
164
Cliff não sabia se começava a rir ou amaldiçoar. Quando começou a escrever com esse
pseudônimo a última coisa que tinha imaginado é que pudessem confundi-lo com uma
mulher.
—Mulher? Por que pensa que J. Preston é uma mulher?
—Um homem não está acostumado a contar as coisas perfilando certos detalhes
femininos como ela o faz. —Dedicou-lhe um olhar presunçoso, como se ele não fosse capaz
de captar isso— Tenho lido todos seus livros e sei do que falo. Tem sensibilidade.
Ellis se engasgou. Assim tinha sensibilidade? Vindo dela era uma lisonja, sem dúvida,
embora no mundo em que se moviam possivelmente fosse mais um insulto a sua
masculinidade. Se o contasse ao seu editor ele morreria de rir.
—Interessante. —Resolveu o tema porque não queria mergulhar em águas profundas—
Voltando para ontem à noite…
—Ontem à noite estava acordada. Bem acordada. Embora…
—Embora, o que?
—Sentia-me um tanto estranha. Como se tivesse bebido.
—Bebeu?
Lea teve vontade de sacudi-lo.
—Sua dúvida me ofende. —Ele a olhava com interesse, mas intuía que com pouca
credibilidade. Não conseguiria nada insistindo, de maneira que deu de ombros— Deixemos
o assunto, certamente não estava completamente acordada, como diz.
—O que foi exatamente que viu Eleanor?
165
Não soube se ele se mostrava complacente, mas Lea supunha que o fazia como
pagamento por sua ausência. Chateava-lhe que a julgasse levianamente como a uma
mulher amalucada com a cabeça cheia de fantasias.
—Nada concreto — disse — Esqueça o assunto.
—Necessito que me diga o que houve — insistiu Cliff.
Lea relembrou a noite anterior. Foi difícil, mas não era simples de expor. Fez um sinal de
levantar-se e a mão do Ellis a deteve.
—Uma sombra. E uma voz.
—Uma voz…
—Pronunciava meu nome.
—Tratava-se de um homem ou de uma mulher?
—Os fantasmas têm sexo? —O esforço de brincadeira não funcionou— Não sei. Era um
tom rouco, sibilante, ameaçava-me e vibrava na madeira ou talvez no chão, como se
escorregassem sobre ele… Para entender o que digo teria que vivê-lo a sós em plena
escuridão. Vamos, decidamos o assunto.
Conrad solicitou permissão e após obtê-la, entregou um envelope ao duque.
—Milady — saudou a jovem— Da duquesa viúva, excelência.
Ellis deu um par de voltas no envelope e o abriu. Era um texto breve, como normalmente
eram sempre as cartas de sua avó. Estava cansado e a dor de cabeça persistia martelando
as têmporas, uma indisposição que se acentuou ao prestar atenção às inquietantes
revelações de sua esposa. Porque lhe recordaram outras, de há muito tempo. Como pósescrito, sua avó dizia que retornava.
166
—Comunica-nos sua chegada — ele suspirou, deixando o papel sobre a mesa— Ordena à
senhora Dumond que tenha prontas suas acomodações, Conrad, por favor - O valete
assentiu e saiu e ele se virou para sua esposa— Espero que não se choque com ela, Eleanor.
—E eu, que não me culpe pelo que aconteceu há anos. —Ellis piscou porque, em
qualquer caso, ele ia estar no meio— Conheço a história desde que nasci.
Cliff assentiu. Como não ia conhecer? Meia Inglaterra e toda Escócia souberam disso
quando aconteceu e agora ele revivia o escândalo com suas bodas. Ensaiou um gesto para
tranquilizar a moça e em um impulso irrefreável se inclinou e a beijou na bochecha.
—Nos veremos na hora da refeição.
Lea permaneceu sentada enquanto ele partia. Antes de sair ele se virou para olhá-la uma
vez mais e deixou uma frase no ar:
—Por certo… esposa, você e eu temos alguma intimidade pendente.
Capítulo 21
167
Quando ele entrou na biblioteca se apagou sua percepção da mesma e lhe atacou um
acesso de tosse.
Maldita jovem!
Era verdade. Não exagerava ao afirmar que tinha quatro baús repletos de livros.
Que demônios tinha feito com seu refúgio? Revisou as estantes; no lugar que antes
ocupavam seus livros, descansava agora uma inumerável coleção de novelas. Pegou uma ao
acaso. Românticas? Bufou como um gato escaldado, mas logo se fixou em que havia um
bom número de J. Preston. Era certo que sua esposa tinha adquirido muitas de suas
publicações! Relutante em lhe dar crédito, leu as lombadas dos exemplares: Obsessão,
Lágrimas Negras, Sacrílego, A maldição de Beth, Folhas Mortas… Estavam todas! Inclusive
Ocultismo e mais à frente, sua última obra. Um ensaio sobre as forças ocultas do Universo
que tinha feito correr rios de tinta e seu editor babar. Um verdadeiro êxito de vendas.
Já menos irritado e sem poder evitar sentir certa satisfação, deixou-se cair em uma
poltrona. Eleanor tinha tomado seu canto favorito de assalto, sem o consultar. Não, isso
não era verdade. Tinha-o consultado. E ele, indiferente, nem lhe deu permissão nem negou,
assim agora deveria assumir as consequências. Certamente, não pensava mudar seus
hábitos. A biblioteca era o único reduto de todo o condenado castelo onde podia se
concentrar para escrever e tinha proibido que o interrompesse.
Chamou Simpson e anunciou:
—Vamos fazer algumas mudanças. Comece a tirar esta fileira da estante.
—Mas excelência… a senhora duquesa…
Ellis não esperou e começou a empilhar as novelas de sua esposa no chão.
168
—Se quiser usar minha biblioteca… — deixou a frase em suspenso— Os colocaremos
mais acima.
—Obrigará milady a utilizar a escada.
—E?
Simpson deu de ombros e começou a tarefa. Quase tinha terminado quando o duque
retificou.
—Pensei-o melhor. Vamos deixá-los como estavam.
—Sim, excelência.
Cliff repassou seus volumes e foi passando alguns ao mordomo. Velhos livros em francês,
em italiano, um par de estudos de botânica, peças soltas de teatro…
—Manda trazer algumas caixas. Suponho que no sótão terão a mesma utilidade. E
coloque os de minha esposa no lugar que ocupavam.
Estavam embalando quando Lea apareceu. O primeiro que pensou é que levavam seus
livros, mas não. Eram os de seu marido. Acabava de ganhar uma pequena batalha e isso
ativou seu bom humor.
—Espero que o pequeno ajuste não o aporrinhe muito. —Não obteve resposta. Passou
um dedo por uma estante e o soprou. —Já sei que este é seu panteão, mas não seria ruim
se permitisse que se fizesse uma boa limpeza.
—Eu gosto assim.
—Começo a pensar que não fiz uma boa escolha trazendo meus livros para cá.
—Se for seu gosto, posso mandar que os tirem agora mesmo.
—Vejo em seus olhos uma ponta de esperança, marido?
169
—Posso tê-la?
—Na verdade, não.
Cliff olhou para o alto teto clamando por paciência.
—Só espero que não importunemos um ao outro. Esta biblioteca foi até agora meu
refúgio.
—Sua toca.
—Pode chamá-lo como gosta. Estará a sua disposição exceto quando eu esteja aqui.
—Não é grande o suficientemente para que…?
—Há ocasiões em que trato com documentos confidenciais e necessito de privacidade.
—Eu não incomodarei. Nem sequer se dará conta de que estou aqui.
Ela estava brincando? Ele perguntou-se passeando seus olhos por ela. Mal a conhecia,
mas tê-la perto constituía todo um suplício porque não podia pensar em outra coisa que
voltar a beijá-la.
Eleanor andou lentamente e, como se quisesse garantir seu direito de estar ali, provou a
comodidade das poltronas, situadas junto às janelas orientadas para o leste e
acompanhados por outras em frente à lareira. Os olhos cinza não perdiam nenhum de seus
movimentos.
—Que lugar pensa em ocupar? — ela perguntou.
—O desse canto.
—Então você gosta de ler à tarde.
—Ao contrario, de noite. Até agora as tive bem paradas. Mas agora as coisas vão mudar,
não acha minha esposa? —insinuou com um descaramento que arrepiou a pele de Eleanor.
170
Mesquinho. Ele desfrutava em recordá-la de sua nova condição e, portanto, de suas
obrigações. Fazendo ouvidos surdos a sua citação, pegou um de seus livros só para ter algo
nas mãos e evitar lhe transmitir sensação de insegurança. Mas sabia que estava a sua
mercê. Percorreu-lhe um tremor e Ellis notou.
Aproximou-se dela e, suavemente, pegou o exemplar. Ocultismo e mais à frente, dizia o
título.
—Deveria fugir destas leituras se a assustarem.
Como se uma vespa a tivesse picado, Eleanor arrancou dele o livro e o estreitou contra
seu peito.
—Não me assustam — ela rebateu— Eu adoro. Acredito que este é o melhor de todos.
—Sim, eu ouvi isso. Aparentemente o autor tem um número exagerado de seguidores
leais — disse Cliff, intimamente agradecido de que ela tivesse tão boa opinião de suas
obras.
—Esse tipo, como você o chama, é uma mulher.
—Por que insiste nisso? Ninguém sabe com certeza de quem diabos se trata.
—Eu sinto.
—Pois transmite a imagem de uma mulher retorcida.
—Retorcida? — ela escandalizou-se, devolvendo o livro ao seu lugar— Por que
retorcida? Porque descreve sem complexos situações que nos ultrapassam?
—Tem muita imaginação.
—Milord, o mundo está cheio de fenômenos estranhos. Ninguém tem respostas do
Outro Lado, do que ocorre depois de morrer. E é inegável a existência de forças…
—Por Deus! — ele riu— Tenta me dizer que estamos rodeados de fantasmas?
171
—Só digo que certas coisas não têm explicação e J. Preston tenta investigá-las. Sombras,
sons difusos, movimentos de objetos. Alguma vez teve a sensação de que havia alguém ao
seu lado, embora não pudesse vê-lo?
—Balelas! —exclamou Cliff. Fazia tempo que não desfrutava tanto com uma escaramuça
dialética. Sua esposa defendia suas causas com um ímpeto elogiável, o que aumentava seu
desejo por ela.
Lea, entretanto, o observava. Era tão teimoso quanto seu irmão Sean, dois asnos que
zombavam de tudo aquilo que não girava em sua órbita. Decidiu que não valia à pena
discutir com semelhante tonto e assim o fez saber:
—Não vou perder nem um minuto mais com um cético que zomba destes temas, meu
senhor. —Cliff arqueou uma sobrancelha— E se o incomodar que meus livros sem «perfil
cultural» façam jogo com seus tediosos volumes de «engenho intelectual», mandarei que
os tirem.
Era uma infinita oportunidade para reconquistar sua biblioteca, mas já tinha se
acostumado com a ideia de tê-la por perto enquanto lia. Não houve opção para
argumentar. Lea saiu espalhafatosamente e fechou a porta com muito impulso.
Eleanor aproveitou à tarde para ficar um pouco mais intima de Sonia. A criada resultou
ser uma caixa de surpresas, esperta, agradável e também uma apaixonada pelas histórias
de suspense. Desfrutou em escutar alguma de suas histórias e a tranquilizou que, de certa
forma, falasse com carinho da duquesa viúva.
Quando Sonia retornou as suas obrigações, Lea subiu para seu quarto. Bethia tinha
preparado para ela um vestido salmão, ajustado nos seios, de ombros descobertos. Simples,
mas elegante e… E como os outros, tinha uma horrível tira acrescentada no decote! Sem
contemplação alguma, arrancou-a.
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—Se amanhã encontrar um só vestido assim, começarei a pensar que quer retornar para
Ness Tower.
A fiel aia abriu a boca para responder, mas não disse uma palavra. Poucas vezes tinha
visto sua menina tão furiosa e embora soubesse que não falava a sério no referente a
afastá-la de seu lado, a mensagem era nítida. Lea não admitiria interferências em sua
maneira de vestir. Suspirou e se preparou para outra tediosa tarde de costura.
Prendeu o cabelo da jovem em um penteado alto sobre a cabeça e lhe entregou uns
brincos de ouro e uma pequena gargantilha. Ao olhar-se no espelho, Lea notou que o
vestido deixava muita pele descoberta. Era exatamente o que queria. Acenou com a cabeça
à superfície que agora lhe devolvia a imagem de uma mulher quase mundana.
Ouviu a porta fechar-se e se virou. Bethia tinha partido silenciosamente. Culpou-se
porque, sem pretendê-lo, tinha ameaçado sua criada. De qualquer maneira não acreditava
que tinha que preocupar-se, Bethia a conhecia desde menina e sabia que tudo tinha sido
fruto do aborrecimento momentâneo. Deveria sim, ter umas palavras com Floresce por ter
inculcado em Bethia patrões de moda tão conservadores. Tinha esquecido o assunto, mas
tinha que enfrentá-lo.
Abriu um frasquinho de perfume e o passou por debaixo das orelhas e nos pulsos. Antes
de fechá-lo, sorriu e jogou umas gotas entre os seios. Ellis a tinha estado comendo com os
olhos na biblioteca, lhe enviando mensagens sem pudor. Bom. Se ele queria jogar com
sedução, ela não ia desprezar uma partida.
Saiu muito decidida, mas à medida que descia a escada descia seu ânimo. Seria capaz de
incitá-lo e depois rechaçá-lo? Tinham um pacto de carícias e, embora houvesse dias
acumulados, ele não poderia chegar muito longe. O coração começou a palpitar
loucamente ao imaginar que a beijava. Mas nunca tinha sido uma covarde e agora era uma
mulher casada. Assumiria suas responsabilidades e uma delas era dar um herdeiro ao
ducado.
173
Dobrou pela galeria de acesso à sala de jantar.
A voz melosa de uma mulher fez com que diminuísse o passo até deter-se. Apurou o
ouvido quase sem pretendê-lo captando uma conversa. Ficou paralisada.
—… com a duquesa? —Escutou que diziam— Penso que não. Milord prefere em sua
cama uma mulher com minha energia.
Lea cobriu a boca com uma mão. Quem dizia isso? Falava de seu marido?
—Sugar, fica mais bonita quando não pensa —sussurrou uma voz rouca e muito familiar.
Eleanor se apoiou na parede do corredor. Ellis! Seu maldito marido e aquela que tinha
sido sua amante. Ou ainda era? Continuava a relação com a criada?
—Vou a sua câmara esta noite? Senti sua falta, excelência - se ofereceu sem disfarces.
—Tenho trabalho.
—Não me importa à hora.
—Sugar…
—Vamos, milord… Eu o conheço bem. Você é um homem que necessita de uma boa
fêmea e não me importa que se casou de novo…
—Exatamente — ele cortou em tom brusco— Eu voltei a me casar.
—Isso não é impedimento, excelência.
Ellis não tinha tempo para discutir e queria acabar com aquilo. A garota era insistente e,
provavelmente, acreditava que tinha algum direito por ter estado um par de vezes em sua
cama. Tinha tido encontros íntimos com ela pouco tempo depois da morte de Mariam, mas
sua relação tinha terminado. Tratava-se de uma simples transação comercial, um pacto
entre adultos. Ele tinha pagado generosamente pelo tempo de Sugar e ela tinha lhe
174
proporcionado um pouco de distração. Aí acabava tudo. Mas não queria mostrar-se
grosseiro e que ela se fosse despeitada.
—Já veremos Sugar — disse, sem comprometer-se com nada— Agora tenho que ir.
Lea ouviu as pisadas firmes e seguras de seu marido ao afastar-se e apertou os dentes.
Então era isso! Disse-se. Estupendo! Teria que procurar outra casa para a criada, afinal não
a culpava por haver-se deixado seduzir por Cliff. Mas a ele… A ele ia lhe deixar um olho
roxo!
—Mande chamar quando quiser milord - se despediu Sugar.
Lea só teve tempo para se esconder atrás de uma coluna quando a outra passou muito
perto, em direção à ala de serviço. Respirou fundo, apertou os punhos, obrigou-se a relaxar
o cenho e virou a esquina.
Uma sombra veio em cima e se topou com uma exclamação de surpresa.
A senhora Dumond ficou olhando: suas robustas e pálidas mãos cruzadas sobre o colo, as
conchas dos olhos afundadas, um semblante azedo e melancólico que corria até a
comissura de seus finos lábios.
—Assustou-me, Flora.
—Lamento milady.
—Agora que a encontro… — disse, recordando o assunto da indumentária.
—Não deve se preocupar com essa moça, senhora — se antecipou a governanta— Sua
excelência se desfará muito em breve dessa descarada.
Eleanor se irritou profundamente. Que todo o pessoal estivesse a par dos flertes de seu
marido com aquela garota era humilhante, mas não restava mais opção que lidar com isso.
Decidiu deixar o tema dos decotes para uma ocasião melhor. Muito digna, limitou-se a
despedir-se.
175
—Boa noite, senhora Dumond.
Capítulo 22
Quando o mordomo empurrou a porta da sala de jantar lhe cedendo gentilmente à
passagem, Lea estava decidida a deixar as coisas claras com respeito à senhorita Sugar
Bryton. Entretanto, o sorriso com que foi saudada por Ellis a desarmou completamente. Um
formigamento lhe subiu da planta dos pés à boca do estômago. Jesus! Bastava apenas lhe
dedicar um desses deslumbrantes e maliciosos sorrisos e conseguia desarmá-la. Lea
começou a temer que se ele decidisse seduzi-la, ia ser muito fácil; de fato, crescia momento
176
a momento sua atração por ele e, maldita fosse! Em seu coração desejava que ele cobrasse
sua dívida amorosa.
Ele puxou sua cadeira e se acomodou. Imediatamente, os criados começaram a servi-los.
Lea relaxou o escutando falar, lhe explicando os pormenores sobre a transação comercial
em Londres e, embora não estendesse muito, percebeu que o dito comerciante — ou o que
fosse— não tinha tido fácil trato com seu marido. O timbre de sua voz, tão envolvente, não
lhe permitia prestar a devida atenção aos seus comentários. Ela perguntou-se, uma vez
mais, como era possível que um homem como ele lhe tivessem conferido tal esplendor de
mistério.
No meio do jantar mencionou, de passagem, à duquesa viúva, mostrando sua adoração
por ela em seu semblante, que mudou para o de um moço travesso.
—Excelência — Simpson anunciou ao entrar na sala de jantar para retirar os pratos da
sobremesa— um cavalheiro o espera em seu escritório.
—A estas horas?
—Parece um assunto importante, milord. Vem da parte de lorde Carnavah.
Ellis assentiu, deixou o guardanapo, desculpou-se e saiu um momento, deixando-a
sozinha. Ela aproveitou para aproximar-se das janelas e espionou fora. Outra tormenta se
abatia sobre Hallcombe House como um manto escuro e tenebroso.
Cliff retornou ao fim de uns minutos. Sem dizer uma palavra, serviu-se uma taça de
vinho.
—Sinto haver me ausentado.
—Algo grave?
177
—Nada especial. Um recado. Já sabe não se deve fazer esperar à aristocracia. —
aproximou-se dela e observou o exterior— Parece que esta noite haverá uma tormenta de
novo.
—Sim, parece — Lea murmurou embora tivesse preferido a serena conversa que
mantinham sentados.
Cliff acabou a taça em um gole.
—Um panorama nada alentador — ele murmurou tão perto de sua orelha que lhe
atingiu o calor de seu fôlego— Uma noite para estar acompanhado.
Soou a insinuação e Lea ficou em guarda. Não se atreveu a virar-se por medo de
descobrir em seu olhar a intenção de cobrar, por fim, seus direitos conjugais. Sua pretensão
inicial de brincar de namoro com ele ficou encerrada no canto mais afastado de seu
cérebro. Ellis era muito homem, muito bonito e muito sedutor para competir contra ele.
—Uma noite para dormir — ela disse em um fio de voz, mais acentuado pela leve
massagem que iniciavam os dedos masculinos em seus ombros— Estou um pouco cansada,
milord.
—Milady… — lhes interrompeu de novo Simpson e ambos se voltaram— Monty, o
menino das cavalariças… Disse-me que lhe fizesse saber que…
Lea não o deixou terminar. Recolheu a barra do vestido e correu para a saída dizendo por
cima do ombro:
—Lamento, mas agora é você o que deve me desculpar.
Cliff ficou ali parado até que Simpson limpou a garganta e disse:
—Parece que vamos ter um novo potro, excelência.
O duque não pôde mais que assentir e sair atrás de sua esposa. Ia nascer um potro. Bem.
E o que tinha ela a ver com isso?
178
As cavalariças mal estavam iluminadas e o único lampião que estava aceso e os relinchos
de Shadow guiaram Ellis até o estábulo onde a égua ia parir. Estava a ponto de tropeçar ao
topar com a cena. O animal se encontrava deitado e empurrava ao mesmo tempo em que
emitia fortes bufos. Seus grandes e escuros olhos quase saíam das órbitas. Monty de um
lado e Eleanor do outro, tentavam acalmá-la.
—Vamos bonita. Aguente um pouco mais — ela dizia.
O jovem Monty o viu e lhe saudou com um rápido movimento de cabeça.
—Lamento excelência — se desculpou— mas Shadow tem dificuldades e milady
desejava…
—Cliff, traga um balde de água e sabão.
Não hesitou em procurar o que lhe solicitava e o pôs ao alcance dela. Sem se preocupar
com o vestido que recolheu por cima dos joelhos, Eleanor arregaçou as mangas até os
cotovelos, lavou bem as mãos e braços e centrou sua atenção na égua. Introduziu uma mão
pela vagina do equino e mediu.
—Não está em posição.
Shadow lançou outro relincho de dor e tentou levantar-se, mas Monty se jogou sobre a
cabeça da égua e ficou dando tapinhas no dorso dela.
—Calma. Calma, preciosa. Tudo vai sair bem. Vamos ajudá-la, certo?
Cliff achou que hesitava, mas não. Voltou a colocar o braço até quase o cotovelo dentro
do animal. Shadow deu coices, inquieta e dolorida, e ela falou enquanto esfregava seu nariz
por seu ventre. A égua se movia e ela não deixava de acalmá-la. Nunca havia se sentido tão
inútil quanto vendo os dois trabalhar, cotovelo a cotovelo, como um só, enquanto ele
olhava assombrado e sem saber o que fazer.
—Posso fazer algo?
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—Ajude Monty para que não se mova, estou a ponto… É isso! — disse ela exultante
impulsionando Ellis a ajoelhar-se junto a Monty tentando conter os espasmos da égua que
tentava levantar-se. O entusiasmo de Eleanor incitou seu coração com um otimismo que o
envolveu— Empurre agora, querida. Empurre.
Sentada sobre seus calcanhares, com seus braços úmidos e manchados de sangue,
despenteada, com o vestido enrugado ao redor de suas pernas, era o ser mais formoso que
Cliff já tinha visto. Afastou os olhos dela quando a égua lançou um relincho e apareceram os
membros anteriores do potro cobertos por membranas por entre a vulva do animal. Entre
os três a mantiveram deitada enquanto empurrava. Por fim, viram a cabeça do potro.
O nervosismo de Ellis ia aumentando. Era a primeira vez que assistia ao parto de um de
seus formosos animais e estava fascinado. Enquanto isso, Lea puxava com decisão os
membros do potro, justo no momento em que uma nova contração esticava o ventre de
Shadow e esta combatia para expulsá-lo. Uma vez fora, Lea rompeu a membrana do focinho
e limpou os condutos nasais. O recém-nascido deslizou seguidamente fora do ventre
materno, ainda recoberto de algumas membranas, molhado e unido à égua por um escuro
cordão umbilical.
—Está indo muito bem, Shadow — ele ouvia sua esposa como em um sonho— Está indo
muito bem.
Monty deixou escapar o ar longamente contido e limpou o suor da testa no antebraço,
enquanto cruzava um olhar encantado com a moça, totalmente encantado com ela.
Ellis sentiu uns ciúmes que não tinham nada a ver com a paixão e sim com a
comunicação espiritual entre eles.
—É uma coisinha linda - disse o rapaz.
—Sim é — ela assentiu, limpando os braços na saia de seu vestido e observando a cor
café do potro— Um macho muito bonito, Shadow.
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Como se desse a razão a ambos, a égua se moveu de lado para que se rompesse o cordão
e elevou a cabeça para olhar seu pequeno. Relinchou e voltou a deitar-se, fechando os
olhos. Nunca um animal tinha parecido tão bonito para Ellis e se maravilhou da sabedoria
da natureza. Acariciou o focinho de Shadow.
—Boa garota — elogiou.
Eleanor e ele também se olharam. Nela brilhava a satisfação do trabalho bem feito. Cliff
se reprimiu de inclinar-se para ela e beijá-la. Tudo o que fez foi esticar a mão e limpar a
mancha de sangue de sua bochecha. Com a maior humildade conseguiu dizer:
—Obrigado.
Eleanor se levantou, alisou o quanto pôde a saia e recolocou o cabelo que tinha
escapado de seu penteado, ambos definitivamente arruinados.
—Os deixe descansar um pouco, Monty.
—Sim, excelência. E não se preocupe com nada, eu me encarrego do resto. Dentro de
uns minutos o potro estará farejando as cavalariças.
—Amanhã virei vê-los. Se surgirem problemas de febre ou…
—Vá tranquila, milady. Shadow e seu filho estarão bem atendidos.
Ela perguntou ao seu marido por cima do ombro:
—Deveríamos escolher um nome. Posso?
—É claro.
—Terrain. É a cor da terra úmida onde nasceu.
Lea acariciou de novo à égua, que respondeu com um relincho agradecido, e se dirigiu
para a saída.
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—A melhor duquesa possível! —escutou Cliff dizer a um Monty afligido, um segundo
antes de seguir os passos de sua esposa.
Capítulo 23
Alcançou-a antes que passasse a entrada.
—Onde aprendeu…?
—Amo aos cavalos. Meu irmão Sean tem magníficos exemplares, é sua paixão. Desde
muito criança estive ligada a eles, os cavalos são muitas vezes melhores que as pessoas. E,
certamente, mais leais.
Ela tinha razão. Por acaso as pessoas não tinham lhe enganado frequentemente?
Entretanto, não suas montarias.
—Gostaria de uma taça? —ofereceu. Ele, certamente, sim necessitava de uma. Ou duas.
Porque à excitação do maravilhoso acontecimento de que acabava de ser testemunha,
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unia-se a efervescência de estar ao lado de uma mulher cada vez mais fascinante— Ainda é
cedo.
—Pareço um desastre…
—Está linda.
—… E necessito de um banho — ela continuou como se não tivesse ouvido o elogio—
Pena o vestido, não acredito que possa ser salvo.
—Isso não é problema, terá todos os que necessite. Conheço uma costureira em Londres
que… — Ele percebeu que foi completamente indiferente as necessidades mais
elementares de sua esposa. Nem sequer sabia se Eleanor dispunha de vestidos suficientes
ou joias de acordo com sua nova condição.
—Excelência — ela cortou elevando o queixo e endurecendo o olhar— Não pretende me
pagar pelo trabalho?
—Eeeeh…
—Melhor que não diga nada. Felicidades pelo novo potro, milord, e boa noite.
Perdeu-se escada acima e o deixou sem capacidade de reação. Ele tinha sido literalmente
drenado. Para piorar a situação, ela o tinha derrotado em palavra e atos, com um desprezo
olímpico ao seu oferecimento. Cabisbaixo, apoiou-se no corrimão e logo dirigiu seu olhar ao
patamar pelo qual ela acabava de desaparecer.
Ellis se caracterizava por saber sempre, em qualquer momento, como devia agir.
Entretanto agora, parado ali, como um estúpido, não sabia o que fazer. Eleanor o
desarticulava. Em muito pouco tempo tinha lhe revelado ser forte de caráter, rebelde, fiel
aos seus princípios e afeições, fossem cavalos ou sua escritora favorita. Uma sonhadora que
enfrentava à adversidade mesmo que fosse à forma de fantasmas. Uma fada fascinante que
não duvidava em deixar de lado sua feminilidade e responder sem demora mesmo que
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fosse ao nascimento de um potro. Uma mulher que, além disso, não procurava
compensações nem elogios. Um coquetel de difícil digestão para alguém como ele,
acostumado a tratar com dois tipos de mulheres: as mentirosas e as interesseiras, com
isoladas exceções, é obvio. Sua fulgurante esposa não parecia nem uma coisa nem outra e,
portanto, desarmava-o. Mas, longe de incomodá-lo, seduzia-o.
Subiu para seu próprio quarto. Também sua roupa deixava bastante a desejar. Conrad,
seu valete, não gostou muito do que viu.
Na manhã seguinte mal trocaram umas poucas palavras durante o café da manhã porque
Cliff devia voltar para Londres para finalizar alguns detalhes em relação à nota recebida no
dia anterior. Mas Ellis prometeu retornar naquela mesma noite. Não voltaria a cometer o
engano de ficar dormindo na cidade. Sua esposa o esperava e lhe devia uma dedicação que
não tinha lhe dado em decorrência de seus numerosos compromissos.
É obvio que a proveria dos vestidos e joias necessários, ela gostasse ou não. Mandaria
limpar as joias ducais e as entregaria.
Lea, por seu lado, passou grande parte da manhã nas cavalariças, encantada com o
potro, embora nem sequer Terrain pudesse aplacar seu mau humor. No meio da tarde
retomou a tarefa de anotar o que queria renovar em certas salas, brincando com a ideia de
gastar mais do que o necessário como uma vingança que seu estado de ânimo a remetia.
Ela afastou de sua mente os acontecimentos da noite passada. Não queria pensar neles,
não desejava assumi-los porque a empurravam à instabilidade emocional.
Após banhar-se, deitou na cama, exausta depois do parto de Shadow e pela excitação
que Cliff causava nela e que tinha conseguido manter controlada. Mas ela era uma pessoa
que estava acostumada a exteriorizar seus sentimentos e ter que controlar o que ele lhe
provocava era exaustivo. Mais de uma vez, através do semblante de seu marido, que trocou
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de estático e taciturno a admirado e jovial quando viu o potro nascer, teve vontade de
beijá-lo. Cada vez eram mais fortes e categóricos.
Entretanto, não foi à lembrança de Cliff Ellis que a desestabilizou ou que a manteve
acordada boa parte da noite, e sim os ruídos. Os sons fantasmagóricos voltaram a repetir-se
em sua antecâmara. Vaias, tinido de correntes, às vezes sussurros que imitavam as sílabas
de seu nome.
O medo inicial deu lugar à irritação. Porque já não tinha dúvida de que alguém a tinha
pegado como alvo para suas brincadeiras macabras. Encontraria o fantasma zombador
noturno e o expulsaria, jurou.
Ellis não conseguiu retornar naquela noite e o dia seguinte já anoitecia quando voltou
para Hallcombe House.
Simpson o informou que Eleanor estava acabando de jantar e ele se uniu a ela apresado,
apenas se lavou um pouco e trocou de roupa.
Ao entrar, vendo-a tão só na imensa sala de jantar, pareceu-lhe um pardal enjaulado e se
alegrou de estar com ela, amaldiçoando o trabalho que o tinha retido na cidade.
Aproximou-se, inclinou-se e roçou ligeiramente sua bochecha com os lábios.
—Lamento o atraso — se desculpou.
Os olhos de Lea o seguiram enquanto se acomodava na cadeira em frente a ela. Ela
recuperou-se do estremecimento que sua tênue carícia tinha provocado e adotou uma pose
de indiferença, embora seguisse achando-o muito atraente.
—Resolveu seus assuntos em Londres? — ela perguntou, riscando círculos em um pires
auxiliar.
—Tudo correu bem, sim. Obrigado por se interessar.
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Lea esperou, em completo silêncio, enquanto o serviram. Ele tinha dado uma resposta
concisa, assim não pensava em lhe contar nada. Por que iria fazê-lo? Ela não era mais que
sua esposa, não é? E as esposas existiam para serem exibidas e para ter filhos, não para
compartilhar e trocar opiniões com elas. Empurrou seu prato, deixou o guardanapo sobre a
mesa e se levantou antes que um dos criados tivesse tempo de puxar a cadeira, que chiou
contra o chão.
—Terrain e Shadow se encontram perfeitamente, se por acaso se interessar em sabê-lo comentou— Se me desculpa…
—Eu gostaria que ficasse jantando comigo. Temos que falar.
—Sobre o que? Sua governanta pode lhe dar um relatório completo sobre os
acontecimentos do dia, Monty controla as cavalariças, seu valete tem a roupa preparada e
Simpson mantém dispostas as cartas que chegaram em seu nome. —As sobrancelhas do
duque se curvaram— Por minha parte, não tenho feito outra coisa que anotar o que quero
mudar em algumas dependências. E você nisso não está interessado, não é?
Deu-lhe as costas e saiu.
Ellis captou claramente a tossidela divertida de um dos criados e não esperou mais.
Esquecendo o jantar, levantou-se, lançou o guardanapo no prato e a seguiu a passos largos.
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Capítulo 24
Ele conseguiu ver a barra do vestido quando sumia na curva da galeria do andar superior
e acelerou o passo.
Que o deixasse com a palavra na boca já estava se convertendo em um hábito que não ia
virar uma regra, certamente. Não procurava um confronto doméstico. Tratava-se, nem mais
nem menos, de sua necessidade de estar com ela, de acompanhá-la. E que diabos! Também
para se divertir com ela sem ultrapassar o limite acertado. Não desejava lutar com sua
esposa, mas tê-la definitivamente em sua cama; esse pensamento o tinha estimulado
durante todo o dia.
Ao longe, bateu o ruído do bombardeio de um trovão. Hallcombe House voltava a estar
cercado por nuvens negras e densas, algodões escuros que pendiam em um céu carregado
de tormenta. O temporal que se aproximava fez Cliff recordar da estranha presença a qual
Lea se referiu e subiu as escadas de três em três degraus.
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Ao dobrar a curva do corredor freou em seco e ficou olhando-a, a somente um par de
passos.
Ela permanecia com a mão no trinco da porta de seu quarto, o pescoço voltado na
direção de onde ele vinha. As luzes desenhavam reflexos de fogo em sua gloriosa cabeleira.
No jogo de luzes e sombras do corredor ficava quase etérea. Era muito bonita.
Lea pareceu recuperar a iniciativa, fez girar o trinco, empurrou… e o musculoso braço de
Ellis passou por diante de seu rosto para segurar a pesada chapa.
—Você me assustou!
—Não era minha intenção. E já que danificou meu jantar, pareceu-me prudente me
certificar de que tudo está tranquilo em suas acomodações.
—Se certificar?
—Disse que uma visão, aparição, ou o que demônios fossem, esteve aqui dentro, não é?
—Ao mesmo tempo em que falava a puxou pela cintura e fez com que entrasse. Depois
fechou a porta em suas costas. Sem soltá-la, caminhou para o criado mudo e acendeu um
candelabro. Imediatamente a peça se tornou cálida e se diluíram as sombras— Onde?
—Onde o que?
—Onde viu essa… coisa?
—Oh, vamos! Já deduzimos que tudo deve ter sido um pesadelo.
—Onde? — ele insistiu.
Lea tremia ligeiramente ao lhe apontar os pontos onde supostamente o situava. Cliff
supôs que era uma reação lógica à lembrança de sua experiência, mas a verdade era que a
agitação dela se devia a sua proximidade física dentro de seu quarto.
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Cliff inspecionou palmo a palmo cada vazio, canto, cada desenho da parede, cada
ranhura. Como ela fez, olhou para cá e lá, inclusive puxou um móvel e olhou atrás dele.
Eleanor não perdeu nenhum de seus movimentos. Centrado no que fazia, pausadamente
e passo a passo, lembrou a um animal selvagem à espreita, em busca de sua presa,
preparado para saltar sobre ela. Acomodou-se aos pés da cama, cruzou os braços e esboçou
um sorriso enquanto ele se movimentava.
Ao fim de um momento Cliff se deu por vencido, tal e qual ocorreu com ela em sua
infrutífera busca. Abriu comicamente os braços em sinal de rendição.
—Sou incapaz de ver algo que me faça suspeitar, se é que houve algo. O certo é que o
serviço conhece estas paredes muito melhor que eu, que às vezes passo meses sem que
entre um segundo em… — Ele percebeu uma faísca de humor nela— Do que você acha
graça?
—Eu tinha entendido que tudo tinha sido fruto da minha imaginação. A que se deve que
mudou de opinião, milord?
Ellis deu de ombros, aproximou-se e se sentou ao seu lado. Lea se esticou. O colchão se
afundou sob seu peso. Tê-lo sentado em sua própria cama não a tranquilizava
absolutamente, mas se obrigou a permanecer quieta, embora o aroma corporal que
desprendia de seu marido provocava nela um calor que a perturbava. Cheirava tão bem…
Estúpida! Ela disse. Está onde deve, junto ao seu marido e, cedo ou tarde, deverá
compartilhar com ele muito mais que instantes de camaradagem à caça de fantasmas.
Tampouco Cliff estava tão tranquilo como aparentava. A proximidade dela o excitava. E
sua virgindade atiçava ainda mais sua excitação. Mas também lhe causava ansiedade. O
sexo implicava posse, mas quando pensava em Lea captava uma aura que o puxava além do
aspecto físico. Pela extremidade do olho viu que ela esfregava as mãos sobre sua roupa.
Estava nervosa e tinha medo. Um cavalheiro se levantaria e partiria dali com um beijo de
boa noite, mas ele não estava disposto a ir.
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Enquanto isso, a tormenta se fez presente e inundava o ambiente de brilhos brancos.
Justo então a porta se abriu e Bethia entrou. As chamas cintilantes das velas do
candelabro apagavam seu rosto e o relâmpago contornava sua silhueta.
Ela desculpou-se ante a inesperada presença do duque.
—Não sabia que estava aqui, excelência.
—Como demônio ia saber mulher? —grunhiu Cliff, imaginando sua entrada em pleno ato
amoroso— Alguma vez você bate na porta?
—Não, se for o quarto de minha senhora — ela respondeu, entretanto, um tanto altiva e
incomodada— Mas me desculpo milord. Eu o levarei em conta de agora em diante.
—Veio também em busca de fantasmas? — ele interrogou asperamente, levantando-se
da cama e se aproximando dela.
—Fantasmas, excelência?
Cliff compreendeu que a boa senhora não sabia das visões de Eleanor.
—Por que veio, senhora Fallen?
—Todas as noites eu ajudo à pequena. Quero dizer a milady, a deitar-se.
—Pois hoje não a necessita. — ele arrebatou-lhe o candelabro— Será bom um pouco
mais de luz, obrigado. —E, como a criada não parecia haver-se conformado, inclinou-se
para ela e quase roçou seu nariz com o dela— Boa noite, senhora Fallen. Bom descanso.
Bethia piscou como se saísse de um transe. Olhou o duque nos olhos e em seguida Lea.
Estava de mais ali. Corou, abaixou a cabeça e se foi.
—Boa noite, milord. Boa noite, milady.
—Bom descanso, Bethia — respondeu à jovem.
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Eleanor aguentou até que ele fechou a porta e passou o trinco com deliberada lentidão.
Em seguida deu rédea solta à tensão acumulada, deixou-se cair sobre o colchão com os
braços cruzados e começou a rir.
Cliff, embevecido, ouviu uma risada franca e plena que o contagiou. Encontrava-se
diante de uma mulher exultante que se mostrava ao natural, abandonando-se de um modo
infantil e sem disfarces.
Nunca tinha conhecido a nenhuma tão linda.
Nem tão desejável.
O escasso controle que tinha mostrado até esse momento se evaporou e um segundo
depois se encontrou sobre ela, roçando seus lábios com os seus.
O espírito de Lea cresceu e se entregou à carícia com certo acanhamento. Ellis
despertava nela paixões desconhecidas. Intrigava, provocava certo temor, mas, sobre tudo,
a atraía. Tinha um magnetismo primitivo, misterioso e predador que anulava sua vontade.
Ela viu a si mesma encurralada, como uma caça, mas não se importou e se deixou levar.
—Eleanor… — ele sussurrou sobre sua boca.
Cliff tinha conhecido muitas mulheres. Talvez, demais. O número de casamentos de
conveniência entre a aristocracia garantia o campo dos libertinos. Os homens se casavam
para dispor de uma dama em sua casa e na expectativa de descendência, a se possível, de
um varão; as mulheres o faziam para amarrar a segurança que proporciona um matrimônio.
Nem uns nem outro, na maioria dos casos, amava seu cônjuge. Às vezes somente se
dispensavam afeto e nem sempre. Uma boa colheita para cavaleiros de almas
atormentadas como a de Clifford Ellis. Estava a tanto tempo conseguindo os favores de
damas devassas e assaltando camas de senhoras casadas que quando abraçou o corpo de
Eleanor se sentiu como um estudante ante seu primeiro exame.
—Cliff… espere.
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Lea se afogava. O temor do que viria a paralisava. Alagava-a um desejo ofegante de
abraçá-lo, de acariciar cada músculo de seu corpo firme e masculino, mas não sabia como
devia agir. Dar rédea solta a seus desejos podia dar uma imagem equivocada a seu marido.
Amoleceu-se em seus braços perguntando-se se não era vulgar desejar beijá-lo de novo,
apertar-se contra ele, gozar de seu contato.
Ele se apoiou sobre os antebraços e escrutinou seu rosto.
—Está assustada?
—Sim.
—Só estou cobrando parte de minha dívida — ele brincou, para acalmá-la.
—Certo.
—A quanto chega nossa conta pendente?
Eleanor engoliu com dificuldade e fugiu de seu olhar.
—Duas ou três carícias.
—Pequena mentirosa. Algumas mais, se a mente não me falhar.
—Falha, milord.
Ellis riu com vontade.
Acariciou seus lábios com a ponta da língua e massageou sua nuca e o pescoço, riscando
círculos de fogo em sua pele. Sua mão moldou um de seus seios… Mas ela não respondeu
como esperava. Ou sua esposa era um bloco de gelo ou ele estava perdendo os dotes de
sedução que lhe atribuíam.
Ficou de lado e se apoiou sobre um cotovelo. Ela tinha o rosto rosado e os lábios
umedecidos e cheios. Em suas pupilas brilhava uma faísca incerta que a fazia mais
desejável.
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Ao o olhar, o coração de Lea deu um pulo; ele parecia decepcionado.
—O que aconteceu? —perguntou-lhe quase sem voz.
—Diga-me isso você. Está enrijecida e distante.
—Não. É só que… — ela virou a cabeça— Não estou muito segura de quanto tem que
durar cada carícia. E também não sei no que consiste realmente cada uma delas.
Ao duque de Ormond sentiu invadir uma infinita ternura e um súbito arrebatamento de
culpa, algo que não contava para alguém como ele, para quem debilidade era somente uma
palavra.
—Eu a ensinarei. Você unicamente me indicará quando achar que é o bastante.
Ela concordou não muito convencida. Se cada carícia era como o beijo que acabava de
receber, não pensava em abrir a boca para detê-lo.
—Assim iremos chegando a um ponto no qual, no final, perderá sua virgindade.
—Não sou tola — se ruborizou.
—Na lagoa falou de confiança — Cliff sibilou beijando com delicadeza seu queixo e
medindo-a de novo— Poderá confiar agora em mim?
Ela não respondeu e os poços verdes que eram seus olhos se umedeceram. Para Cliff foi
um golpe porque não sabia quem humilhava a quem. Nesse instante hesitou entre abraçála ou estrangulá-la.
—Me olhe, Lea. —Ela obedeceu— Vai confiar em seu marido?
Eleanor estava a um passo de começar a chorar. Podia confiar realmente nele? Em um
homem com a lenda que arrastava sobre sua esposa anterior?
—Não sei — ela gemeu, com voz embargada.
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Ellis se levantou. Rearmando-se de paciência passeou pelo quarto, mexendo no escuro
cabelo. Navegava em um mar dúvidas. Desejava que ela se rendesse, que o amasse e… Por
Cristo! Estava ficando louco, pensou naquele momento. O amor não existia, os homens e as
mulheres se guiavam pelo dinheiro. Pelo sexo. E ele era um gastador se pensava que com os
beijos derrubaria a muralha que ela devia ter levantado apoiada no boato.
Ela o olhava prostrada. Um homem assim, atrás dela, que se acomodava ao seu ritmo,
que controlava seus impulsos viris para não violentá-la, tinha que ter defeitos. Claro que
sim. Mas se de algo estava completamente segura era de sua bondade. Tinha poder e ela
era sua esposa; podia dispor dela e de seu corpo quando quisesse sem dar contas a
ninguém, mas se detinha perante seu medo. Não podia ser uma má pessoa.
Por que não tinha respondido simplesmente que sim? Por que sempre tinha que ser tão
franca? Sua maldita língua só a conduzia a situações comprometedoras.
Cliff se aproximou da janela e recostou um ombro contra a parede. Fora, as rajadas de
chuva açoitavam a pedra e unicamente pôde ver escuridão. A mesma obscurecia sua alma.
Tinha um nó doloroso na garganta e uma adaga de desprezo por si mesmo que se retorcia
em seu estômago. Certamente não merecia uma esposa como ela, ou talvez se equivocasse
ao unir de novo sua vida a de uma mulher, porque o rancor e a culpa o tinham
acompanhado por muito tempo e não sabia se era capaz de ligar-se a outra pessoa.
—Confie em mim — ele lhe pediu outra vez.
Foi uma súplica. Cada fibra de Lea vibrou ao lhe ouvir. Queria dar-se a ele, sim, mas ainda
duvidava. Impulsionou-se para levantar-se e se aproximou. Cliff nem sequer a olhou, mas
sabia de sua proximidade pelo barulho de suas roupas e o halo de seu perfume. Ela elevou
sua mão e acariciou o rosto severo.
O leve toque acelerou os batimentos do coração de Cliff, mas ele não se moveu. Doía-lhe
cada músculo do corpo pela necessidade de abraçá-la, mas estava disposto a se fazer de
eunuco antes que submetê-la e assustá-la.
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—Ensine-me.
Aquilo foi outra súplica.
Virou-se, rodeou-a com seus braços e sua boca, faminta, selou a dela. Sua língua obrigou
Leia a lhe dar passagem livre. Foi um beijo exigente que embriagou Lea como taças de bom
vinho, saboreando essências ignoradas, que a instigava a atacar com sua língua com o
mesmo ímpeto que punha Cliff. Seus braços se enroscaram no pescoço masculino com vida
própria. Até que o contato de uma mão em seu seio fez com que retrocedesse um pouco e
se quebrou o encanto.
—Acredito… acredito que… já paguei a primeira carícia.
Ellis teve que esforçar-se para não gritar. Para não lhe arrancar a roupa, contemplá-la
nua sobre a cama, enche-la de beijos e fundir-se em sua carne de mulher. As malditas
normas que urdiram entre ambos o estavam matando, mas tinha dado sua palavra e a
cumpriria. Foi se separando dela e abriu um móvel-bar do qual tirou uma garrafa e duas
taças.
—Um pouco de brandy virá bem.
—Eu disse que não bebia. Quer me embebedar, milord?
—Apenas fazer uma pausa, senhora, ou se dobrará a minha vontade e então toda a
dívida não me parecerá o bastante.
Lea aceitou a taça e provou um pouco do licor. O líquido queimou sua garganta e o calor
se acrescentou ao chegar ao estômago.
—Como é que há provisão de brandy na habitação de uma dama? É algo que estive me
perguntando desde que o descobri.
—Este quarto estava normalmente à disposição de Thomas. O brandy é dele. Quando foi
te buscar na Escócia mandei que o adaptassem ao perfil feminino, mas esqueci do armário
195
até agora. —Viu que ela tinha terminado sua taça e arqueou ironicamente uma sobrancelha
— Melhor?
Lea assentiu. O álcool tinha acalmado um pouco seus nervos. Ellis acariciou seus dedos
ao tocar sua taça em um toque estudado. Acabou a sua de um gole e o vidro tilintou
ligeiramente. Que curioso! O implacável duque de Ormond tremia como um garoto. Ele,
que se gabava de ser um homem cerebral e frio e de tomar o sexo como mero passatempo.
Sua esposa, com as mãos cruzadas sobre o colo e a cabeça um pouco inclinada, parecia
estar esperando uma aula. E nada mais longe do que ver a si mesmo como um professor
nesse momento. Superando o desvio de seus pensamentos, atraiu-a pela cintura e se
agachou em frente a ela. Sua mão direita levantou a barra do vestido de Lea e se posou em
seu tornozelo. Notou que se esticava.
—Uma carícia pode ter muitas formas, Eleanor — ele insistia, esfregando sua bochecha
no suave tecido ao mesmo tempo em que sua mão subia perna acima e chegava até o
joelho. Foi levantando pouco a pouco e sua boca desenhou beijos sobre o vestido no ventre
feminino, o estômago, a protuberância do seio. À medida que se levantava, o fazia também
com sua saia e a exposição da perna dela.
Lea fechou os olhos com força. Estava ruborizando e o pudor a abandonava. Abriram-se
como molas quando ele alcançou seus glúteos e começou a massageá-los enquanto seus
lábios se perdiam no decote.
—Lembre que pode me ordenar a parar quando quiser — ela ouviu que ele dizia contra
seu pescoço.
«Por todos os infernos! Agora não! Que não se detenha!», ela pensou.
Ellis prosseguia sua exploração. Seus seios inchavam, seus mamilos estavam lutando com
o tecido, ardia-lhe a pele. E ele não retrocedia em seu papel de sátiro, mas se controlou. Foi
despojando-a da roupa que sussurrava ao cair e rodeou sua estreita cintura para aproximá-
196
la dele. Se por acaso ela decidisse freá-lo, posou a boca na dela, mas não a beijou, mas sim
se limitou a passar a ponta de sua língua pelos cantos de seus lábios. Sua ereção, brigando
em suas calças ajustadas, estava o matando e o convidava a apertar-se contra sua pélvis,
fazendo ostentação de sua luxúria.
—Oh!
Cliff se retirou um pouco para olhar seu rosto. Os olhos brilhavam como pedras preciosas
e suas bochechas tinham adquirido o tom rosado de um pêssego amadurecido.
—Está bem? Quer que pare?
Ela estava fascinada. Por que ninguém tinha lhe explicado alguma vez tudo aquilo? Por
que Bethia tinha sido tão econômica em suas ilustrações? Dava-se conta de que não sabia
nada de sedução, de libido, de desejo. Tinha que aprender e não tinha tempo porque seu
corpo clamava por apagar uma chama que a abrasava. As atenções de seu marido eram um
chamariz ao qual não podia, nem queria resistir.
Um mistério. E, como tal, monopolizava seu instinto para desvendá-lo.
—Não. Por favor.
Os lábios de Cliff se localizaram na cavidade que formava entre seu pescoço e seu ombro.
Suas mãos abrangeram seus seios e apertaram suavemente. Ela deixou escapar uma
afogada exclamação que se materializou em sua virilha umedecida e parou seu avanço
segurando-o pelos ombros.
—Isto é… É… — hesitou.
—É só o que nos demandamos um do outro, duquesa.
—Sim, mas…
—Se entregue a mim, Lea — ele sussurrou— Confie em mim.
197
Capítulo 25
Eleanor se esforçava para relaxar. Queria se deixar levar, mas se interpunha esse receio
de toda mulher, incultado há séculos, que fazia da virtude um troféu. Cliff atacava com seus
beijos e então ela se esquecia de seus demônios pessoais e tremia como uma folha. Seu
sangue começou uma louca corrida pelas veias. Era impossível mostrar-se desapaixonada
quando a beijava assim, como se uma mariposa batesse as asas em seus lábios. Sua boca
era quente e com gosto de pecado. Suspirou ao acolher seus lábios em seu pescoço, ali
onde uma veia pulsava irregular. Fechou os olhos e se abandonou em seus braços.
—É tão bela, Eleanor!
Não, não era, disse-se a si mesma. Não era mais que bonita. Mas, vindo dele, soava como
música. Que mulher não se suavizaria ante o louvor?
Ellis mediu com os dentes a base de seu pescoço, se divertiu na clavícula, chegou ao
decote. Enquanto isso, suas mãos acariciavam suas costas, subiam até os ombros,
deslizavam-se costas abaixo. A suave massagem era uma maré quente que invadia Lea
oferecendo o jogo erótico que até então lhe tinha sido negado. Estava ardendo e respirava
entrecortadamente.
—Pare, não siga — ela suplicou.
Cliff obedeceu com muita dificuldade. Tinha a fruta amadurecida, ao seu alcance, mas a
abandonaria embora a ansiasse como um louco. Apoiou sua testa na dela e fechou os olhos
com força constrangendo seu ardor, expelindo o fôlego, oscilando em um tobogã sensorial
inexplorado para ambos por diferentes razões. Eleanor temia porque desconhecia e ele,
198
agora se dava conta, porque em seu afã erótico o estava convertendo em um boneco ao
qual não reconhecia.
Cravou o olhar nela e Lea se afogou nas profundezas prateadas de seus olhos. Tinha que
dizer algo. Qualquer coisa. Era isso ou lhe pedir que a tomasse já, e ainda não se via
preparada.
—Acredito que já finalizamos nosso acordo, não?
—Importa realmente, minha bela duquesa?
Importava? Na verdade acreditava que tinha tido sorte casando-se com ele. Quantas de
suas conhecidas deviam suportar um marido de idade avançada, ou nada atraente, ou pior
ainda, agressivo? Cliff, pelo contrário, era jovem, misterioso e respeitador e, a luz dos fatos,
um grande sedutor.
—Outra taça? —ofereceu.
Lea não pôde reprimir um risinho.
—Acredito que quer me embebedar, meu senhor.
—«Meu senhor» — ele repetiu brincalhão, e tão perto de seus lábios que estava a ponto
de levantar-se e beijá-lo— Se seriamente fosse seu senhor não me rechaçaria.
—Não o rechaço. Chegamos a um acordo que…
—Sei — ele cortou, azedando um pouco o gesto— Não vou obrigá-la. Tome todo o
tempo que necessite, mas asseguro que vou cobrar minha dívida por completo.
—Não poderíamos… deixá-lo para amanhã? — ela sugeriu.
—Não.
—Por favor.
199
—Não, minha preciosa escocesa. —E seu semblante sério disse a Lea que estava
irremediavelmente perdida— Esta noite. Acredito que já é hora de saldar o débito. Todas e
cada uma das carícias.
—É que… perdi a conta.
—Eu não.
Elevou-a no ar a pegando pela cintura e com muita delicadeza a sentou na borda da
cama. Situou-se na frente dela agachado e começou a levantar outra vez sua saia. Dobrou o
tecido sobre seus joelhos até o ponto onde se ajustavam as ligas. Há quanto tempo não via
uma liga virginal? Tinha despido ligas com miçangas em vermelho, negro, arroxeado… mas
nunca rosas e com florzinhas brancas… Pigarreou e começou a tirar um de seus sapatos.
Olhou-a fixamente nos olhos e, com uma piscada travessa, lançou-o por cima do ombro. Ela
riu nervosa, deixando-o fazer. Repetiu com o outro sapato que ricocheteou no chão com
um ruído seco.
—Vamos retomar nosso jogo — ele disse, agarrando uma das ligas e liberando a meia
que foi deslizando perna abaixo.
Sua pele ardia, mas nada dizia, só respirava rapidamente.
—Excelência, eu acredito que está fazendo uma armadilha.
Ele apoiou a cabeça em seus joelhos ao mesmo tempo em que dizia:
—Não sei se aguentarei isto, Eleanor. Às vezes acho que embarcamos em um navio que
está naufragando.
—Mas a travessia é com muitas emoções, milord.
A resposta foi como um bálsamo para ele. Terminou de tirar a meia dela e começou com
a outra, atrasando-se, acariciando sua perna com deliberada lentidão, o que provocou nela
uma grande confusão.
200
A postura em que se encontrava, quase ajoelhado diante dela, estava acabando com sua
vontade. Só tinha que separar um pouco seus joelhos e… um suspiro lhe escapou
entrecortado. «Devagar menino - se disse - devagar. “Não arrebente o cavalo antes de
chegar à meta».
—Arriscamo-nos um pouco mais, senhora?
A essas alturas, inclusive para Lea, qualquer dúvida roçava a incoerência. Não respondeu.
Ele tomou seu silêncio como uma aceitação e abraçando seus tornozelos com as mãos
começou a subir. Acima, acima… Quando sua mão direita alcançou os cachos ocultos sob o
calção de seda, o coração de Lea já retumbava nas têmporas e estava certa de que ia sofrer
um colapso.
—Deus…! — ela gemeu, jogando o corpo para trás e apoiando-se nos cotovelos— Por
favor… já é suficiente.
Elliss parou e respirou tão fundo que o ar machucou os pulmões. Estava fazendo uso de
toda sua força de vontade, mas se ela insistisse em interrompê-lo ia esgotar suas reservas: a
deitaria no leito, levantaria seu vestido e a tomaria de uma maldita vez, saltasse ou não
pelos ares o maldito pacto.
—Estou muito excitado para parar agora, Eleanor — se justificou— Não me peça…
—Não poderei aguentar! — ela soluçou, rodando sobre o colchão e afastando-se.
Sua exclamação foi uma navalhada para Cliff. Levantou-se com rapidez pondo distância
entre ambos.
—É tão horrível que eu te toque?
Ela o olhou como se estivesse louco.
—Horrível? Não, claro que não. É… é… Não sei o que é maldito seja! Ninguém me fez isto
antes.
201
O rosto de Cliff se iluminou com um sorriso que foi um clarão de dentes brancos e iguais.
Jogou a cabeça para trás, com as mãos nos quadris, esperando.
—Não se atreva a zombar de mim!
—Não zombo minha arisca escocesa. —ele deitou-se ao seu lado, de barriga para baixo,
como um felino em repouso, com um braço envolta da cintura dela— O que te acontece é
normal. É o acolhimento físico que invade a qualquer mulher que está fazendo amor.
—Todas sentem o mesmo?
—Bom… — ele fez uma cara de patife— Todas as que têm a sorte de ter um amante
perito em sua cama.
—Que tolo! — ela desdenhou— É tão presunçoso como seria um bom escocês.
—Certamente.
—Inegavelmente, excelência. Presunçoso e irritante.
—Mas consegui te excitar.
—Nem sequer um pouquinho.
—É uma mentirosa encantadora.
—Por não te dar a razão?
—Não pode negar que alvorocei suas plumas, pomba.
—Além disso, pedante.
Ele passou sobre seu nariz a ponta de um dedo.
—Se não entendi errado, não pode controlar o deleite que sente quando a acaricio.
—Posso fazê-lo perfeitamente — ela disse, embora soubesse que não era mais que uma
desculpa torpe.
202
—Não deveríamos, então, seguir praticando seu controle, milady?
A garganta de Lea se fechou engolindo uma saliva que tinha se esgotado. Ele era seu
marido. Um homem extremamente atraente e, até então, extraordinariamente galante. Era
possível que o que se dizia dele fosse certo, mas cada vez ela dava menos crédito aos
rumores que ele se encarregava de desmentir com atos. Se Cliff tinha seduzido sua anterior
esposa do mesmo modo que estava fazendo com ela, era impossível imaginar que houvesse
se suicidado. Aproveitando-se da necessidade masculina, decidiu ser um pouco perversa e
se deitou, com os braços por cima da cabeça.
—Eu posso tomar alguma parte ativa em nosso trato?
Cliff não dissimulou seu assombro. Seu membro, endurecido e desenfreado, aumentou
de tamanho um pouco mais. Para esfriar suas pulsações esticou a mão e se entreteve em
tirar os grampos. O cabelo de Eleanor se estendeu sobre o edredom captando a luz das
velas e o fogo da lareira. Entrelaçou seus dedos naquela massa de fogo que o fascinava e
respondeu:
—Poderia claro.
Lea acariciou sua bochecha, onde a barba já despontava. O toque a incentivou. Cliff
pegou sua mão e ele posou seus lábios no dorso do pulso. Seus olhares se cruzaram,
ficaram presos, aceleraram suas respirações.
E Eleanor McKenna soube que estava irremediavelmente perdida.
Capítulo 26
Cliff a deixou fazer.
203
Ele tinha iniciado o cortejo, mas era extraordinário que ela quisesse explorar também
seu corpo.
Lea deixou que sua curiosidade passeasse pelo cabelo do duque, por suas pronunciadas
maçãs do rosto, seu nariz senhorial e seu queixo robusto. Puxou do nó da gravata, jogou-a
por cima do ombro como ele fez com suas ligas e soltou os primeiros botões de sua camisa
deixando seu pescoço descoberto e o inicio do pêlo moreno em um peito largo. O pomo de
adão subia e descia, mas Cliff se manteve quieto, embora o que mais desejava no mundo
era jogar-se sobre ela, lhe arrancar a roupa e fazê-la sua.
Ela se levantou e se sentou sobre seus calcanhares para poder alcançá-lo mais
plenamente.
Estava casada, repetia-se. Casada com um homem cujo corpo desejava descobrir. Queria
pôr freio em tão ímpios pensamentos, mas ele era uma provocação a qual não podia se
opor. E Ellis estava com muita roupa em cima.
Abriu sua jaqueta e passou as palmas de suas mãos pelo tecido de sua camisa rastreando
os fortes músculos de seu peito e o retumbar de seu coração. Quis abrir mais botões, mas
ficou parada. Cravou seus olhos nos dele, entreabertos nesse momento.
—Estou indo bem?
Cliff estava se afogando, mas assentiu tenso como uma corda de violino.
Eleanor acabou de tirar sua jaqueta e em seguida trabalhou as casas dos botões uma a
uma, com deliberada parcimônia. Sim, pensava. Sim. Subia-lhe rubor às bochechas,
tremiam-lhe ligeiramente os dedos, sofria em seu ventre uma necessidade desconhecida.
Certamente não estava se comportando como uma dama, mas ao inferno com as normas!
Queria fazer o que estava fazendo. Acabava de descobrir o que era a sedução e teria que
aprender como se comportava uma boa aluna.
204
Atrapalhou-se com o botão mais próximo da cintura da calça intimidada pelo indecente
vulto de sua masculinidade. Ele retirou suas mãos, puxou o tecido, rasgando-o, e tirou as
abas. Um principio de agitação impaciente cruzou pelos olhos de Lea ante o torso moreno
totalmente exposto para ela. Tocou-o com precaução, exclamando aliviada.
—Que suave! Imaginava que fosse áspero entre os pêlos.
Por Cristo crucificado! Cliff perdia o raciocínio por segundos, já nem recordava como se
respirava. Tinha planejado seduzi-la com calma, despi-la devagar, enche-la de mimos, ir
descobrindo seu corpo pouco a pouco. Entretanto, a maré tinha mudado. Quando tinha
invertido os papéis? Quando tinha se convertido na presa? As pequenas mãos
massageavam seu peito com naturalidade, o atiçando com pontadas de excitação. Nublava
sua vista, doía-lhe cada músculo, estava sendo torturado… Mas queria seguir assim, um
brinquedo em mãos inexperientes que lhe tiravam a razão.
—Pode me pedir que pare quando quiser, tal como você me dizia — ela o provocou.
Ellis apertou as pálpebras e suas mãos se converteram em punhos que se fecharam
sobre o edredom. Como resposta, deixou escapar um gemido que ela interpretou como
uma licença para seguir. Assim, acalorada por sua própria desfaçatez, começou com os
botões da braguilha.
E ele deu um lamento que a paralisou quando roçou seu membro.
—Não é assim, certo?
A merda se era assim! Disse-se o duque. Ele esticou as mãos, seus dedos agarraram as
alças do vestido de Lea e o abaixou até a cintura, proferindo uma exclamação que
impulsionou mais, se cabia, aquela parte de sua anatomia que o martirizava. Seus olhos
ficaram apanhados na pele nacarada, nos montes gêmeos de uns seios pequenos, perfeitos,
altivos, que culminavam em aréolas escuras de mamilos erguidos. Abrangeu-os em suas
mãos, trêmulas como as de um colegial, pesando-os, clamando por saboreá-los.
205
Lea jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Sua cabeleira roçou as pernas dele.
—Oh, Senhor…!
Tinha ouvido que, às vezes, o fogo da paixão envolvia aos amantes em uma bruma
vermelha. Sempre acreditou que não eram mais que bobagens de novela romântica, mas
comprovava agora sua veracidade. Flutuava em uma nuvem de desejo incontrolado, uma
onda arrastava-a. Suas mãos, ainda estavam paradas na braguilha da calça, rodeando sua
virilidade. Ouviu o chiado do ar escapando entre os dentes dele e de novo ficou quieta.
Cliff lhe acariciava as costas, os ombros, a cintura. Deixava um rastro de fogo por onde
passavam seus dedos.
Não soube como, mas seu vestido acabou no chão e se encontrou totalmente nua. O
pudor e um pingo de culpa a deixaram sem resposta. Estava flutuando e se deu conta de
que agora jazia de barriga para cima e ele separava seus joelhos. A tinha levado até ali,
tinha jogado para excitá-la, mas, tão próxima à definitiva união, se retesava, embora
também clamasse por ela. Ele percebeu, fez um esforço por afastar o olhar do triângulo de
seda entre suas coxas e cravou os olhos nos de Lea.
—Não me peça que pare agora.
—Não… penso em… pedir isso.
Cliff acabou de despir-se. Lea se convulsionou ao ouvir o ruído das botas caindo ao chão,
mas não desviou sua atenção um ápice quando ele baixou as calças com pressa e as jogou
de lado. Um ar denso formou redemoinhos em sua garganta. Seu marido era uma estátua
de bronze. Magnífico. Vagou seu olhar por um corpo magro e musculoso de braços fortes,
torso amplo, ventre plano e pernas longas e proporcionadas. Mas também por um apêndice
que despontava entre suas coxas: altivo e orgulhoso, como seu dono.
Excitado como nunca antes tinha estado Ellis permaneceu de pé junto à cama,
permitindo que ela o contemplasse. O trepidar de seu coração o ensurdecia, vibrava-lhe um
206
músculo na bochecha e não sabia onde pôr as mãos. Esperava como o estudante ao qual
vão entregar a nota de um exame, agitado e pronto para derramar-se. Onde estava sua
reputação de libertino?
Ela, entusiasmada, estendia os braços o chamando.
Então sim. Então se deixou levar, perdeu-se no redemoinho que o arrastava. Para o
triunfo ou para a destruição. Dava na mesma. Esqueceu-se por completo do juramento que
tinha feito depois da morte de Mariam, renegou seus demônios permitindo que estes
subissem no cavalo de seu desejo e pisoteassem suas antigas feridas. Era argila em que
amassavam as mãos da mulher que tinha convertido em sua duquesa.
Subiu ao leito e se deitou sobre ela. Seu membro se guiou à entrada do êxtase. Ela estava
úmida e era dele. Segurou os pulsos de Lea com uma mão sobre sua cabeça e baixou sua
boca para sugar um seio que se ergueu ao contato de sua língua. Empurrou. E se encontrou
com a sutil barreira de sua virgindade que o petrificou momentaneamente. Não queria
machucá-la. Por nada no mundo.
Era inclusive capaz de retirar-se se ela o pedisse, até aí chegava sua loucura. Mas ouviu
um canto de anjos que lhe conduziu ao clímax:
—Não vou quebrar Cliff. E te desejo.
Em um só movimento cruzou a defesa. Ela se esticou uns segundos e depois relaxou. Ele
ficou quieto, deixando que fosse se acostumando com ele. Ardia-lhe a pele, o coração
trotava como um potro descontrolado, perseguindo uma alucinação…
O amontoado de sensações que alagavam Lea era um tobogã ao infinito. Moveu-se um
pouco debaixo dele para se acomodar e topou com seus olhos embebidos.
—Assim que isto é fazer amor — balbuciou.
207
—Não, minha beleza, não — ele respondeu entrecortadamente —Isto é apenas o
começo.
Saiu dela voltando a entrar, em um vaivém sem trégua, de investidas lentas e alongadas
que a deslizavam longe da cúpula e voltavam a trazê-la.
Lea impulsionou os quadris para ele, uniu-se a seus ataques, aprisionou-lhe os glúteos
com suas pernas. Ele soltou suas mãos e estas voaram para aferrar-se em suas nádegas e
apertá-lo para ela. Sentiu que um calor alagava todo seu ser e se empoleirou no cume do
prazer em espasmos que modulavam gritos de plenitude.
Cliff, recostado sobre um cotovelo, não podia deixar de olhá-la. Era uma fada. E dormia
como um bebê. Tinha o rosto extasiado, os lábios inchados e sorria. Com cuidado para não
despertá-la, beijou-lhe a bochecha.
Sua esposa.
Endureceu-se revivendo os momentos passados. Ainda estava confuso, porque não
conseguia entender o que tinha lhe acontecido. Tinha perdido o controle e se deixou levar.
Na realidade, era ela quem tinha marcado o tempo. Eleanor tremeu e gemeu no sono. Ele
puxou o edredom, ela protestou e se colocou de barriga para baixo e ele acabou por cobrir
a ambos. Na lareira mal restavam os rescaldos do fogo, mas ele se negava a levantar-se
para avivá-los. Era impossível abandonar a cama, algo que fazia sempre depois de uma
batalha amorosa.
Era a primeira vez que uma mulher o fazia perder a cabeça. Percebeu, além disso, de que
Lea o tinha atingido involuntariamente. Teria que ir com cautela se quisesse evitar voltar a
cair nas garras de uma mulher, correndo o risco de apaixonar-se. Não estava preparado
para essa experiência.
208
Capítulo 27
Foi despertando. A morna claridade da manhã alagava o quarto. Virou a cabeça, o
buscando, mas estava sozinha. Nua e só sob o edredom. Por um instante se perguntou se
não teria sido um sonho.
Bateram na porta e Sonia entrou. Arrastando os cobertores, Lea se levantou envolvendose em metros de tecido e a esperou preparar seu banho matinal. Deu uma olhada no
relógio e se deu conta que eram quase onze. Que barbaridade! Não recordava de haver se
levantado tão tarde há tempos.
209
Uma vez a sós, meteu-se na tina e relaxou. Seu corpo vibrou ao contato da esponja,
rememorando outros contatos mais ardentes e indecentes. Uma vez fora da banheira, seu
olhar foi fixar-se na pequena mancha avermelhada no edredom e suas têmporas pulsaram
como se a tivessem pego em uma saia justa. Um ardor lhe subiu ao rosto. Certamente que
não tinha sido um sonho. Ali estava a prova. Uma mistura de plenitude e bem-estar a
embargou e não reagiu quando Bethia entrou no quarto.
Sua aia lhe deu bom dia e começou sua limpeza diária. Com o cobertor nas mãos ficou
quieta uns segundos e em seguida o deixou de lado. Então se dirigiu a Eleanor.
—Encontra-se bem, menina?
Lea assentiu, envolveu-se mais na toalha e recusou seu olhar.
—Por que nunca me falou de verdade sobre tudo isto? Por que não me contou que podia
ser tão… tão…?
—Porque uma velha como eu já se esqueceu de certas coisas, criatura — se congratulou
intimamente, satisfeita— Por sua expressão, deduzo que o duque soube comportar-se.
Eleanor elevou os olhos ao céu. Havia algo que se chamava comportar-se. Deu-lhe um
beijo na bochecha e evitou entrar em confidências. Secou-se e deixou que a ajudasse a
vestir uma peça de musselina verde claro com cós brancos no decote e na barra da saia.
Uma fita larga rodeava sua cintura. Penteou-se com um simples rabo de cavalo, colocou um
brinco e deu uma olhada no espelho antes de sair. Tinha agora um ar vagamente mundano?
Simpson a informou que sua excelência tinha saído para cavalgar, assim ela tomou o café
da manhã a sós, fervendo com mil perguntas na cabeça. Uns momentos de privacidade lhe
viriam bem. Além disso, estava esfomeada. Não recordava de ter tido tanto apetite pela
manhã.
A tormenta da noite anterior tinha dado lugar a uma manhã fresca e nublada que
anunciava outro aguaceiro, por isso desistiu de montar Dream. Em troca, foi ver Shadow e
210
Terrain, com o quais esbanjou alguns mimos antes de retirar-se para ler. Aquela manhã não
estava com vontade de continuar anotando mudanças em sua caderneta; as franjas de sua
vingança estavam se desfiando.
Lea encontrou-se com Floresce ao entrar.
—Senhora Dumond.
—Sim, milady.
—Quando sua excelência retornar, me avise?
—Sim, senhora.
Viu-a afastar-se com seu aspecto rígido e reservado que tanto a desagradava. Que
circunstâncias teriam feito dela um ser tão oculto e distante? Como em anteriores ocasiões,
transmitiu-lhe um pouco de agitação e compreendeu porque Bethia se incomodava com
sua altivez. Mas se esqueceu dela imediatamente e se refugiou na biblioteca.
Procurou a última novela de J. Preston e ocupou uma das poltronas que davam para o
lado leste. Acomodou-se com as pernas dobradas sob a saia e mergulhou no mistério pelo
qual transitava seu protagonista. Absorta na leitura, nem notou que o céu ia se cobrindo de
densas nuvens negras e que a luz que entrava pela janela se extinguia.
—Milady. —A voz sem expressão de Flora a tirou de sua aventura— Sua excelência a
espera na sala de jantar.
Viu a hora no mostrador do relógio sobre a lareira e fechou o livro. O tempo tinha
passado sem dar-se conta.
—Obrigado, senhora Dumond.
A governanta se inclinou levemente e partiu. Eleanor pensou em subir e trocar-se, mas
desprezou a ideia e acelerou o passo para unir-se a Cliff. À medida que ela avançava pela
galeria, seus passos se fizeram mais lentos. Desejava e temia encontrar-se com ele e não
211
sabia qual dos dois sentimentos prevalecia. Expulsou ar convulsivamente quando um dos
criados, ao vê-la chegar, abriu a porta e lhe deu passagem.
E seu coração se deteve ante ele, de costas, com um ombro recostado com indolência
em uma das janelas. Ao ouvir a porta, Ellis se voltou e seus olhos passearam com
descaramento dos seus olhos até a ponta dos sapatos, como se a estivesse avaliando.
Lea reviveu a intimidade que tinham compartilhado e ruborizou sem poder evitá-lo. Uma
vez mais, deu-se conta de quão impressionante era seu marido. E ele estava
cuidadosamente vestido, o que não se podia dizer dela.
—Bom dia, excelência — saudou, avançando para a mesa e mostrando uma integridade
que não tinha, porque o que queria realmente era sair correndo.
Cliff se adiantou a um de seus criados e puxou uma cadeira para que ela a ocupasse.
Acomodou-se na frente dela e esperou que a servissem. Não lhe passou despercebido a
intranquilidade da moça, de modo que com um gesto se despediu do criado e ficaram a sós.
Ela era comida pela incerteza. O que Cliff pensaria dela? Porque na noite anterior
pareceu desfrutar de seu desembaraço, mas agora… Como era possível que ela tivesse se
comportado de um modo tão descarado? Vieram-lhe à mente as desavergonhadas carícias
que esbanjou, a forma com que tinha apertado as nádegas dele para exortá-lo a possuí-la,
entregando-se desinibida enquanto o beijava… Ela queria desaparecer.
Cliff adivinhava sua confusão. O assaltavam outras dúvidas. Ao despertar e encontrar-se
junto a ela no leito revolto, atacou-lhe o desgosto. A ternura tinha escalado suas defesas
alojando-se no centro de seu coração e o estava confundindo. Por isso tinha saído para
cavalgar. Esperava que o ar fresco, o espaço aberto e o ritmo de uma boa galopada o
ajudassem a pôr em ordem seus pensamentos. Entretanto, só tinha podido voltar para ela,
relembrando cada segundo, cada beijo, cada gemido…
—Sinto muito — ele ouviu Lea dizer.
212
—O que?
—Lamento não haver me trocado para a refeição. E também, minha atuação de ontem à
noite. Suponho que me comportei como…
—Como o que? Como uma mulher de verdade? Eu acredito que esteve maravilhosa.
Eleanor piscou, mordeu o lábio inferior e seus dedos tamborilaram sobre a mesa.
—Não está zangado?
—Zangado?
—As damas não costumam… Não podem… deixar-se levar por certas coisas.
—Sério? Que coisas?
Ele zombava dela? Tentou descobrir um indício malicioso em seu rosto, mas só
encontrou seu ar de sempre, um tanto interessado talvez. Bem, se ele o fazia difícil, ela não
ia voltar atrás. Ergueu os ombros para dar-se ânimo e respondeu:
—Ser ativas. Tocar e acariciar, por exemplo.
—Ah!
—Imagino que foi um… arrebatamento de curiosidade.
—Arrebatamento de curiosidade, é? —ele repetiu, colocando os cotovelos na mesa,
cruzando os dedos e apoiando o queixo neles— Pode me explicar o que significa,
exatamente, um arrebatamento de curiosidade?
Lea suspirou. Dando-se tempo para encontrar as palavras adequadas, pegou o
guardanapo e a colocou sobre seus joelhos. Seria bom pedir um uísque nesse momento,
embora nunca o tivesse provado? Não, melhor uma garrafa. Embebedar-se como um
gambá. Ao menos, assim, não entraria em seu jogo. Tinha ouvido seus irmãos dizerem que
213
o álcool provocava entorpecimento no cérebro. Justo o que ela necessitava nesse
momento.
—Uma esposa deve ser recatada — ela continuou.
—Já vejo.
—Decorosa.
—Oh!
—Discreta.
—Sim?
Ela espremeu o guardanapo. Não, o maldito duque não estava deixando nada fácil.
—E suponho que deve conter certos desejos — acabou o olhando fixamente.
—Aprendeu em seus livros?
—Eeeeh… Bem, não.
—Então, quem lhe disse semelhante estupidez?
—Não zombe de mim, por favor.
—Eleanor — ele falou delicadamente— Se encontra bem?
—Bem?
—Eu absolutamente não zombo de você. Quero saber se está incomodada.
Um repentino calor subiu de seu estômago às bochechas. Estava falando de ontem à
noite? Por que todos pareciam interessados em seu estado de saúde?
—Estou perfeitamente bem.
—Bom.
214
Cliff desdobrou seu próprio guardanapo sobre seu joelho e o alisou várias vezes como se
necessitasse ser engomado. Não sabia por onde começar. Maldição! Tudo aquilo era novo
para ele. Sua esposa era uma moça forte, mas sem dúvida devia encontrar-se incômoda
depois de… Pigarreou e a observou atentamente. Estava linda. O rubor tingia suas
bochechas e destacava suas pequenas sardas em seu rosto de duende. Queria as acariciar,
as beijar, afundar seus dedos no trançado de cabelo e soltá-lo para voltar a desfrutar de sua
maciez. Condenado fosse se não desejava voltar a levá-la para a cama!
—Eu te fiz mal ontem à noite?
—Não fez — ela respondeu. Não sabia como dissimular que tremia. Não sabia onde pôr
as mãos, nem se o olhava ou não.
—Daqui em diante será melhor — ele afirmou, acariciando-a com o olhar— Eu lhe
prometo isso.
—Melhor? — O garfo que segurava ficou a meio caminho e nas íris dela reapareceu sua
faísca travessa— O promete, excelência?
Ormond pigarreou e se reanimou na cadeira surpreso por uma ereção incipiente. A
comida já tinha perdido todo seu interesse. Esticou seus braços por cima da imaculada
toalha e tomou as mãos de sua esposa.
—Muito melhor, minha flor escocesa.
215
Capítulo 28
Cliff sacudiu a cabeça e uma infinidade de gotinhas espirrou ao seu redor.
Fazia frio e o céu estava nublado e triste, mas ao menos o banho gelado tinha lhe
acalmado os nervos. Sobre tudo, tinha aplacado até o excesso do apêndice de sua anatomia
que insistia em fazer-se presente sob as calças cada vez que se encontrava perto de sua
esposa. Não era um sátiro, mas estava em débito com sua masculinidade. Por isso escapou
dos muros do castelo assim que pôde. Eleanor o tinha olhado entre esperançosa e confusa
e ele, como um cretino, escapuliu através das desculpas de documentos que não podiam
esperar.
Tinha tentado concentrar-se em seu novo manuscrito, mas com resultados foram nulos.
A palavra «fogo» lhe trouxe a mente o cabelo de Lea, e a partir daí sua criatividade se foi à
deriva. Assim tinha escapado para a lagoa.
Mentiu para si mesmo a respeito de seu escasso controle quando se tratava dela.
Custava-lhe assumir o quanto ficava enlevado com a moça que há apenas alguns dias era
uma perfeita desconhecida.
—É um deslumbramento passageiro — ele se disse em voz alta.
Mas ao lembrar-se das mãos de sua esposa sobre ele esteve a ponto de voltar a jogar-se
à água. Aparentemente, de pouco tinha lhe servido o mergulho de cabeça. Cuspiu uma
216
imprecação e pôs as calças. Estava gelado e tinha obrigações a cumprir, não podia passar o
dia ali.
Colocou os braços nas mangas da camisa e ficou a meio caminho.
—Olá, excelência.
Cliff se voltou. Sugar, atrás do tronco de uma árvore, observava-o com descaramento.
«Guloso» era um adjetivo perfeito para descrever o esgar de seus lábios.
—Quanto tempo está aí?
—Um momento, milord.
Em outras circunstâncias ele até teria gostado de sua desfaçatez. Entretanto,
incomodou-lhe ter sido espiado por ela enquanto se banhava nu. Abotoou a braguilha ante
seu olhar faminto. De repente, achou-se ridículo, tentando preservar um pudor que agora já
não tinha sentido. Devia tê-lo antes, quando estava nu. Acabou de abotoar a camisa e ela,
servilmente, alcançou-lhe as botas e se ajoelhou para ajudá-lo a calçar. Ele virtualmente as
arrancou de suas mãos.
—Posso fazê-lo sozinho, obrigado.
Ela se sentou sobre seus calcanhares sem perder um detalhe de seus movimentos.
—Posso lhe dizer que têm um corpo esplêndido, milord?
—Pode dizer o que tiver vontade, Sugar. Mas não volte a me seguir!
—Antes não se importava que o fizesse.
Ia repreendê-la, mas se conteve. Tinha razão. Mariam tinha sido uma mulher frígida, ao
menos para ele. Sua apatia ao sexo o tinha obrigado a um celibato muito longo e, com a sua
morte, procurou a satisfação nos braços da jovem. Até certo ponto, podia entender que ela
quisesse manter viva sua influência sobre ele, mas não tinha deixado claro à empregada
217
que tudo tinha terminado? Seu próprio tio estava acostumado a chamá-lo às vezes de
bastardo, e seu comportamento com ela podia definir-se assim: a tinha usado quando lhe
tinha convindo, mas não tinha feito nada por lhe fazer saber que tudo tinha terminado
definitivamente.
—Sugar — ele falou calmamente, colocando a jaqueta— As coisas mudaram.
—Meu desejo por você não, milord.
—Deve entender que…
—Que se casou de novo, já sei. Ora! Uma escocesa. Tão fria como sua esposa anterior,
não? Eu posso lhe dar essa faísca que lhe falta.
Cliff não pôde evitar esboçar uma careta. Lea era escocesa, certamente. E teimosa. E
desbocada. E atrevida. Mas fria?
O inusitado brilho nos olhos cinza do duque deixou Sugar em guarda. Ficou de pé e o
desafiou perguntando:
—Dormiu com ela? —Ele não respondeu, mas seu silêncio o delatava— Já entendo.
Deixou-me de lado.
—Tivemos uma aventura que nasceu de um acordo mútuo, mas que agora deve
esquecer.
—Esquecer que foi meu e agora é uma vulgar escocesa quem o acolhe em sua cama?
—Sugar! —Cliff a segurou cravando os dedos em seus ombros. Atravessou-o uma
disposição violenta que controlou imediatamente. —Está falando de minha esposa e de sua
duquesa. — ele sacudiu-a, soltando-a em seguida e caminhou para sua montaria— Não vou
consentir uma palavra a mais. O melhor é que você encontre outra casa. Acabou, Sugar!
Falarei com a senhora Dumond.
218
Ela sentiu escapar as lágrimas, mordeu os lábios e soube que tinha chegado o fim. Ela
tinha tantas ilusões… Se ele tivesse demorado um pouco mais para casar-se de novo… Se
tivesse havido tempo para conceber um filho… Não tinha tomado precauções. Claro que
não. Desejava uma gravidez, porque, bastardo ou não, sabia que ele não a teria deixado
abandonada, teria tido ao menos o reconhecimento econômico como mãe, e seu filho,
possivelmente, uma herança ducal. Assim simples. A mãe de um filho do duque de Ormond!
A chegada da nova duquesa tinha acabado com todos seus belos planos. Odiava-a!
Odiava-a e desejava que tivesse o mesmo final que lady Mariam!
Não tinha nada a fazer ali e se foi por onde tinha vindo.
A pouca distância, alguém que tinha escutado o direto diálogo esticou os lábios em um
sorriso de escárnio. Tinha um ás naquela partida de cartas e pensava em aproveitá-lo. Sugar
Bryton era esse ás. Com seu raciocínio curto, seria incapaz de dissimular a mortificação da
rejeição. Todos perceberiam que o duque a tinha desprezado. E indevidamente chegaria
aos ouvidos da nova duquesa que acabaria se perguntando, quando aparecesse seu
cadáver, quem teria maiores motivos que o duque para acabar com ela.
Porque Sugar ia ser assassinada.
219
Capítulo 29
Samantha Ellis entregou a Simpson o casaco, as luvas e o chapéu coquete que usava.
Ajeitou o cabelo na imprecisa imagem do vidro embaçado e perguntou:
—Meu neto está em casa?
—Não, milady. Sua excelência foi a Londres. Assunto do governo me parece. Ainda que
dissesse que retornaria para o jantar.
—Assuntos do governo. Sempre o mesmo. Nunca o encontro quando tenho necessidade
- grunhiu a anciã.
—A duquesa está milady. Deseja que a anuncie?
Samantha suspirou e ficou olhando como ele houvesse dito algo estranho.
—Tinha esquecido. —Arrebatou-lhe suas coisas e se virou com espantosa agilidade para
a porta— Mande carregar de novo meus baús na carruagem, Simpson!
—Mas milady…
—Não penso em ficar sob o mesmo teto que essa condenada McKenna.
—Milady, equivoca-se, é uma jovem encantadora — ele disse pretendendo atenuar um
dos arrebatamentos da duquesa viúva— Se esperar para conhecê-la estou certo que…
—Mande que carreguem minhas coisas!
—Sim, milady, mas…
—Maldito seja, Simpson! Por que não faz o que te digo?
220
Ao entrar no hall, Eleanor ouviu a reprimenda ao mordomo. Não precisou de mais que
uma olhada para adivinhar a personalidade da dama. Tinha o porte régio que tantas vezes
escutou seu avô descrever.
—Simpson — Lea disse amavelmente— Por que não segue as instruções da duquesa?
Samantha Ellis virou cento e oitenta graus disposta a fazer frente ao odioso sangue
escocês com o qual seu condenado neto tinha tido o descaramento de casar-se… Mas ficou
muda.
Como em um sonho, encontrou-se o rosto suave da jovem, a tonalidade verde de uns
olhos grandes e diretos, seu cabelo um pouco encaracolado e acobreado salpicado de
brilhos da cor dos cardos. Mas não viu Eleanor, mas sim Dauly McKenna. Era como se
tivesse retrocedido no tempo.
Nesse espaço, Lea aproveitou para chegar até ela e lhe dar dois beijos nas bochechas.
—Bem-vinda a casa, milady — ela saudou, dobrando a seguir ligeiramente o joelho em
uma graciosa reverência— Teve uma boa viagem desde York?
—Excelente - a anciã respondeu depois de limpar a garganta— Pelo amor de Deus!
Parece impossível.
—O que, senhora?
Samantha não era dada às palavras vãs, e muito menos aos elogios. Sempre tinha sido
direta sem se importar nem um pouco com a opinião do resto do mundo, mesmo que com
isso ofendesse. Seu defunto marido tinha repetido isso em infinitas ocasiões. Examinou Lea
com atenção. De cima abaixo. Aplicando seu ar altivo com o qual estava acostumada a
intimidar ao resto dos mortais. Sim, sabia como diminuir aos seus interlocutores, algo que
Cliff tinha herdado dela.
—É a viva imagem de seu maldito avô.
221
Simpson elevou os olhos ao forro do teto intuindo o aguaceiro. Mas se equivocou. A
jovem duquesa se limitou a rir e Samantha Ellis ficou perplexa.
—É o melhor elogio que podia me fazer, excelência — Lea replicou— E se me permitir,
milady, direi, com as palavras de meu avô, que você é asquerosamente atraente.
Um acesso de tosse atacou Samantha.
Simpson, simplesmente, não encontrou onde esconder-se.
Bethia, que passava por ali, ficou presa ao chão, imóvel, como se assim pudesse se
evaporar com o que acabava de ouvir.
Lea sorria, com as mãos cruzadas sobre o colo, segura de ter feito o comentário
adequado à frase da velha duquesa.
O silêncio se podia cortar. Mas então a duquesa viúva começou a rir e suas gargalhadas
se expandiram pelo amplo hall, o ar retornou aos pulmões de Simpson e Bethia recuperou o
fôlego.
Samantha passava os dedos sobre suas pálpebras e o mordomo, solícito, entregou-lhe
um lenço. Ela secou as lágrimas e o guardou na manga.
—Então você é a jovem que se casou com o teimoso de meu neto — comentou por fim.
—Assim como uma mula, senhora.
A dama voltou a rir de entusiasmada.
—Pelas barbas de um bode! Tem o selo dos McKenna — ela murmurou com um toque
de saudade— Ao pão, pão e ao vinho, vinho, não é?
—Temo que nesse aspecto, milady, nós duas nos parecemos muito.
—Não seja descarada, menina! — Samantha franziu o cenho, intimamente satisfeita,
entretanto— Simpson… o que faz aí parado? Vá subindo minhas coisas.
222
—Mas milady, há apenas um momento disse…
—Sua excelência parece ter mudado de opinião, senhor Simpson - interveio a jovem—
Suponho que já não se importa que convivamos sob o mesmo teto. É isso, senhora?
—Você escutou tudo, verdade? Tem fibra, menina.
—Nisso saí a meu avô, milady.
—Melhor não me recorda esse bárbaro, criatura! Sua coragem merece que eu te
dedique um pouco de meu tempo, mas não volte a nomear ao c… — ela pigarreou—… a seu
avô, ou sairei por essa porta e não retornarei.
Eleanor assentiu inclinando graciosamente a cabeça.
—Tinha pedido chá no salão verde, senhora. Terei a honra de desfrutá-lo com você?
Samantha suspirou exageradamente e deixou suas coisas em braços do mordomo.
—Conversemos um pouco, embora não te prometo nada. Que fique bem claro que eu
não gosto dos escoceses. De nenhum! — ela advertiu, caminhando já com passo senhorial
para o salão.
Lea piscou um olho para o mordomo e ele tentou correspondê-la com um sorriso que
pareceu uma careta. Bethia se benzeu e se atreveu a dizer:
—Não vamos nos aborrecer, senhor Simpson. Não senhor, não vamos nos aborrecer.
Mas longe de qualquer confrontação estava desenvolvendo-se um bate-papo amistoso e
jovial.
A duquesa viúva se vangloriava de conhecer às pessoas, de saber por onde podia ir. Era
muito jovem, mas não tinha dúvida de que Eleanor McKenna, agora Eleanor Ellis, podia
competir com ela mesma em uma batalha verbal. E isso lhe agradava enormemente,
223
porque já fazia muito tempo que não encontrava um adversário de categoria disposto a
enfrentá-la.
Embora tivesse pedido expressamente a Lea que não nomeasse Dauly, suas perguntas
pairavam em torno dele. Cortesmente, interessou-se por sua viagem desde a Escócia e
como se adaptava a Hallcombe House. Eleanor respondia com respeito, mas a informando
sem disfarces do que pensava a respeito da espantosa decoração de certas salas.
—Sempre foram assim.
—Lúgubres. Muito pouco atuais.
—Sim. É uma forma de dizer — admitiu Samantha.
Do outro lado da porta, Simpson grudou o ouvido à madeira. Acabavam de chegar visitas,
mas não se atrevia a interromper. O rumo descontraído da conversa lhe deu a pauta para
anunciar às duas damas que esperavam para serem recebidas. Ajustou a gravata, ajeitou as
abas de sua casaca e chamou.
—Desculpem suas excelências. Duas damas desejam vê-la.
—A quem desejam ver, Simpson? — perguntou Samantha.
—Perdão. — ele corou— Eu me referia à lady Eleanor, excelência.
—Que problema! Tanto título me confunde. Um simples «milady» estará bem para mim
enquanto dure minha estadia. Faça entrar essas senhoras. Suponho que não se importará
que fique lhe fazendo companhia, Eleanor.
—Eu adoraria milady. Por favor, senhor Simpson, traga mais chá.
Ele se retirou e pouco depois Leia deixou escapar um grito de alegria levantou-se e
abraçou sua melhor amiga.
224
Tina Mason se inclinou perante a anciã, a quem conhecia há tempo. Mas não tinha
chegado sozinha: sua acompanhante permanecia na soleira, pálida como um cadáver. Irish
Durham evitou o áspero olhar de Samantha Ellis.
—Já era hora de que se dignasse a pisar nesta casa, jovenzinha! — a dama reprovou-a
como saudação— Venha aqui, menina, quero vê-la. E me dê um beijo. Afinal de contas,
somos família.
Irish tinha sido literalmente arrastada por Clementina até o castelo. Não era sua intenção
realizar uma visita de cortesia a Eleanor McKenna, mas as circunstâncias a obrigavam.
Certamente, encontrar-se ali com a viúva não entrava em seus planos, mas se aproximou,
fez uma reverência e a beijou na bochecha.
Bethia Fallen entrou com o novo serviço de chá, situação que Lea aproveitou para
suavizar a tensão.
—Eu senti sua falta! — ela confessou-lhe enquanto servia.
Pouco a pouco foram relaxando e as quatro não demoraram em se envolver nas últimas
fofocas de Londres.
—Pois Melanie Jackson está preparando suas bodas — Tina comentou.
—De modo que esse fantoche do Thomas Fergusson acabará por levá-la ao altar —
grunhiu a anciã, embora sorrisse — Porque imagino que é ele.
—Sim, excelência — afirmou Tina— Estão apaixonados. Dizem que as bodas serão na
próxima primavera.
—É possível que a última moda na Inglaterra seja casar-se com os obstinados escoceses e
eu não tenha me informado?
O comentário de Samantha emudeceu a reunião e Irish olhou de esguelha para Lea, mas
Tina se antecipou em uma réplica sem azedume e muito ao ponto.
225
—Com certeza, excelência, está de moda. O duque mesmo é o melhor exemplo.
—Bem sim. E nada menos que com o sobrenome que mais detesto.
Lea dissimulou um sorriso. Aquela mulher não se calava nem debaixo d’água, pensou.
Mas Irish se removia incômoda, jogando dissimuladas olhadas à porta.
—Tem algum problema, menina? — Samantha perguntou-lhe dando-se conta de sua
inquietação.
—Não, excelência.
—Se teme que seu primo apareça por essa porta e alterado a expulse, esqueça. Está aqui
como minha convidada. E como convidada de sua flamejante esposa. Nem sequer esse
demônio se interporia entre nós. Outra coisa seria se fosse seu pai.
—Obrigado, milady — ela corou.
—Bom — interveio Tina— Não podíamos deixar que Lea se isolasse entre estas paredes
sem notícias do que acontece pelo mundo. Desde que se casou não sabíamos nada dela.
—Não me tem encerrada, Tina, se é isso o que insinua.
—Você diz o que quiser, mas me parecia que sim. Nem sequer deu a clássica festa de
apresentação.
—Arrumaremos esse descuido imediatamente — assegurou à anciã— Uma grande
celebração é o que necessita para que Hallcombe House volte para a vida.
—O seu neto não gostará nada, milady.
—Ao diabo com ele! E bem, Irish, o que tem feito desde a última vez que te vi? Tem
algum pretendente?
A moça avermelhou até a raiz do cabelo e baixou a cabeça sem atrever-se a responder,
mas Tina confessou:
226
—Há um jovem, sim. Kenneth Brandon.
—Tina…
—Por que ocultá-lo? Brandon é um jovem educado. Conheceu-o há uns meses enquanto
comprava livros em Bond Street. Chocaram-se e os livros acabaram pelo chão.
—Foi uma coisa tão parva… — Irish sussurrou, envergonhada, recordando o baque que
tinha lhe dado no peito.
—Os pacotes voltaram para as mãos de nossa amiga… mas seu coração ficou em poder
de Kenneth — Clementina teimava em esmagá-la.
—Que romântico! — aplaudiu Lea.
—Eu me encarregarei de que receba um convite — assegurou Samantha Ellis— No inicio
do próximo mês, antes que o infeliz clima congele o traseiro de todos.
Lea e Tina assentiram entusiasmadas, mas Irish se remexeu em seu assento como se
tivesse um porco espinho sob a saia.
—Não poderá ser excelência. O senhor Brandon não… Quero dizer que...
—Kenneth não tem nenhum centavo — Tina acabou por ela.
—Meu pai não permite que eu me comprometa milady. Kenneth não teve muita sorte na
vida. É inteligente e trabalhador, mas mal ganha para viver e manter sua mãe. — Seus olhos
começavam a cobrir-se de uma camada de lágrimas.
Lea sabia muito bem o que era lutar contra isso. O que era apaixonar-se por alguém sem
fortuna. Lá, em Edimburgo, ela tinha assistido ao enterro de uma boa amiga. Uma moça
que preferiu morrer antes que enfrentar o destino sem o homem ao qual amava. A negativa
de sua família a conceder sua mão a um João ninguém antecipou tudo e, dois dias depois de
seu enterro, o moço apareceu enforcado em seu domicílio. Duas vidas truncadas e um
denominador em comum: pouco dinheiro. Sua empatia para Irish foi absoluta.
227
—Não sou boa companhia nestes dias — disse a moça, levantando-se — Eu sinto. Não
deveria ter vindo.
—Então, por que o fez, prima?
A potente voz de Cliff as sobressaltou. O coração de Eleanor iniciou um amalucado
galope vendo seu masculino desleixo no vão da porta.
Ellis se desembaraçou do casaco, que deixou sobre o encosto de uma poltrona e tirou as
luvas com calculada calma. Seu olhar aguçado se posou em cada um dos rostos femininos
ao mesmo tempo em que insinuava uma muito ligeira inclinação de cabeça.
—Senhoras…
Samantha não dissimulava seu orgulho. Certamente, era um homem que podia tirar o
fôlego de qualquer dama. Encontrou-o um pouco mais magro, mais severo, inclusive mais
mordaz.
Irish espremeu o tecido de sua saia entre os dedos sem atrever-se a olhá-lo de frente.
—Já ia, excelência.
A primeira reação de Cliff ao chegar e inteirar-se da visita, tinha-lhe azedado o humor.
Quase tinha arrebentado sua montaria pelo puro prazer de estar junto à Eleanor e
encontrar um inesperado compromisso o chateou. Era um comportamento egoísta, sabia,
mas queria sua esposa só para ele.
—Sente-se, Irish — ele pediu, trazendo a tona suas rudes maneiras.
—É tarde, excelência - Clementina respondeu, levantando-se por sua vez.
—Por favor.
Tina estava a ponto de replicar, mas ele sorriu de tal modo que decidiu aceitar.
228
—Continuem com seu bate-papo, senhoras. Roubarei o tempo justo de saudar minha
avó.
Cruzou o salão com aquele ar dissoluto, resolvido e felino que o caracterizava, inclinou-se
e beijou a dama.
—Alegro-me em tê-la de volta ao lar, grand-mère.
Em seguida se virou para Lea. Em seus olhos cinza apareceu um brilho fugaz e pouco se
importou com os preceitos sociais. Passou uma mão atrás da nuca dela, abaixou-se e a
beijou na boca.
—Espero encontrá-las na hora do jantar — ofereceu, sem olhar para outro ponto que
não fosse o rosto acalorado de sua esposa— Agora, se me desculparem… As verei mais
tarde.
Foi e as deixou com o silêncio em sua esteira. A seguir, todas começaram a falar ao
mesmo tempo.
—Pelas barbas de um bode! —repetiu pela segunda vez no mesmo dia Samantha Ellis—
Menina parece-me que acabará por domar ao dragão.
Capítulo 30
Eleanor fechou os olhos e se abandonou a agradável moleza que invadia seu corpo.
A noite tinha sido perfeita. Até Tina concordou em suavizar a opinião que tinha de seu
marido depois de que este suportou estoicamente o animado bate-papo das quatro
durante o jantar. Uma vez que se trouxe o tema da festa, Cliff não se pronunciou nem a
favor nem contra, e só se mostrou muito expressivo ponderando o suflê com qual a senhora
Fellini os surpreendeu. Até para um cavalheiro com seu temperamento, o falatório sinuoso
229
e eminentemente feminino unido ao anúncio da pretendida celebração devia supor um
exercício de paciência considerável.
Eleanor tinha acreditado observar, entretanto, que a couraça de indiferença de seu
marido se rachava. Enviou um recado por meio de dois lacaios tanto aos pais de Tina como
para o domicílio de Irish, avisando a eles que sua filha dormiria no castelo e, quanto a Irish e
de mútuo acordo com sua prima, que passaria a noite na casa dos condes de Bermont. Tal e
como tinha comentado a duquesa viúva, era certo que o dragão estava abrandando. Assim
aproveitou um primeiro momento de intimidade, quando todos se retiraram, para falar
com ele sobre o dilema de Irish. Tinha que conseguir que Cliff tomasse medidas no assunto.
Ele a escutou sem abrir a boca e quando terminou unicamente encolheu um ombro e disse:
—Já veremos.
Depois de tão parca e pouco prometedora resposta a tinha tomado nos braços e subido
para o quarto. Pareceu-lhe que o fazia com pressa e seu coração se acelerou. Segurou-se
com firmeza em seu pescoço e ali repousou sua cabeça para esconder seu sorriso de
satisfação.
Tinham feito amor em completo silêncio, lentamente e com dedicação, enchendo-a.
Depois do maravilhoso momento, ele adormeceu, mas ela foi incapaz de conciliar o sono,
e sua mente revoou entre um emaranhado de perguntas.
A faiscante luz das velas desenhava estranhas figuras no teto e alargava as sombras, que
pareciam mover-se. No exterior, a neblina, a odiosa neblina que sempre parecia lamber os
muros de Hallcombe House, dava a impressão de ser mais espessa. Se pudesse fazê-la
desaparecer… Ela se remexia, inquieta.
—No que está pensando?
Ela inclinou-se um pouco para olhar o rosto atraente, viril e relaxado de Cliff.
230
—Acreditei que dormia.
—Eu o fazia. Mas você se move mais que um esquilo.
Suas unhas acariciaram o peito masculino e se entretiveram em seguida na pequena
protuberância de um mamilo. Este se ergueu e ela se espreguiçou em um comichão
insolente. Sua mão se deslocou para baixo, até passar a barreira de seu ventre. E ali a
deixou.
Intimidava-a sua própria luxúria. Intimidava-a porque não era essa a única sensação que
se ativava quando o tinha ao seu lado. Era algo muito mais profundo. E o temia. Porque
apaixonar-se por Cliff era muito perigoso se ele não a correspondesse. Não podia negar que
tinha demonstrado amplamente que a desejava. Ele tinha sabido elevá-la até cúpulas do
prazer. Mas do desejo ao amor existia um muro impenetrável que ele não parecia disposto
a derrubar. Ele não tinha deixado claro que não acreditava no amor? Que para ele era só
uma palavra?
—A festa — mentiu.
O poderoso tórax do duque se ergueu e se apoiou em um cotovelo, sorrindo.
Desapareciam suas dúvidas e surgia o sedutor.
—O que é tão engraçado?
—Pensei que sua mão imaginava uma forma de me arrastar outra vez à loucura.
Cliff a guiou de novo e a colocou onde desejava que estivesse. Os lábios dela se franziram
em uma careta maliciosa porque era ali onde queria ter chegado.
—Ah! Certo! Excelência! —brincou travessa jogando com o mastro indecente.
—Mulher, eu não sou de pedra. — Ellis enterrou seus dedos na cabeleira acobreada e a
atraiu para si.
231
Durante um milésimo de segundo, só um milésimo, o cérebro de Lea rebobinou a
respeito de Cliff, amor e desejo, mas mandou o cinzento pensamento para o inferno e se
entregou a ele sem reservas.
Cliff já ardia, aderido à pele feminina. Lea o arrastava atrás dela, lançava-o uma e outra
vez pelo tobogã do frenesi. Em seus arrebatamentos sensuais não era consciente do poder
que exercia sobre ele. Junto a ela não havia nada, exceto a necessidade de possuí-la, beber
o néctar de seus lábios, ouvir seus gemidos abafados e ambos superarem a cúpula do
orgasmo.
Lea não era uma professora do amor, nem sequer uma aluna avançada, mas sua beleza,
o incentivo de seu corpo jovem e sua atitude desinibida fazia dela um ímã que enfocava
toda a paixão do duque.
—Eleanor…
Ela era um botão recém aberto e só ele tinha experimentado seu néctar. Unicamente ele
era seu dono. Quase sem dar-se conta disse:
—É minha e…
Bastou expressá-lo para ser consciente de ter ultrapassado seus próprios limites. Por uns
segundos, não reagiu. Porque tinha estado a um passo de comprometer-se, de falar de
amor. Não podia cair em um sentimento que só o tinha frustrado como frustrou ao seu pai.
Mal conhecia Eleanor e seu vício por ela tinha que necessariamente ser o resultado de um
celibato prolongado. Não voltaria a se deixar arrastar por uma mulher. Nunca. Jamais. Tinha
amado sua mãe e esta lhe falhou miseravelmente ao abandoná-lo. Apaixonou-se — se
apaixonou?— por Mariam e ela pagou com desinteresse, infidelidade e tirando sua vida
junto à do filho que esperava. Do resto das mulheres que cruzaram sua vida só podia se
lembrar de seus interesses em busca de sua fortuna e influência. Portanto, devia manter
reserva à ternura que Eleanor lhe provocava. Era isso, ou renunciar aos seus princípios.
232
Mas a dureza de seu membro, inferno, não entendia de sutilezas morais. Por isso,
quando os dedos de Lea o envolveram, desequilibrou-se, puxou-a pela cintura e a montou
sobre ele.
Lea se encontrou empoleirada, com Ellis dentro dela, insolentemente exposta e ao
mesmo tempo dominante. Viu a si mesma indecente, mas isso a excitava no momento.
—Se mova Lea.
—O que?
—Cavalgue sobre mim, pequena.
Ele empurrou para cima pressionando os quadris dela e Lea se aplicou ao vaivém com
entusiasmo porque, assim que começou a mover-se soube que, na verdade, era ela e não
seu marido quem dirigia os embates que o transportavam a uma condição arfante. As mãos
masculinas subiram de seus quadris a seus seios, abrangeram-nos, pressionaram com
dureza sobre eles… Cliff fechou as pálpebras e se rendeu aos espasmos do prazer.
Lea se maravilhava. Era proprietária de Cliff, podia levá-lo ao clímax e consegui-lo para si
mesma.
Um Ellis satisfeito abriu os olhos e os fixou na ardente massa do cabelo de Eleanor
dançando ainda ao redor de seu rosto, cobrindo e revelando seus seios imersos na mesma
dança. Era a imagem de uma fada dos bosques. Ou de uma bruxa muito bela. Fosse o que
fosse, estava o hipnotizando. Destilou um estúpido orgulho masculino sabendo que era seu
dono, mas também se precipitaram as dúvidas, porque estava se dando conta de que ela
podia fazer com ele o que quisesse.
Lea despertou a meia-noite.
233
As velas queimaram e Cliff não estava, embora persistisse seu aroma e o calor de seu
corpo no travesseiro e entre os lençóis. Reviveu a última batalha sexual e se esticou como
uma gata satisfeita.
Não soube por que, mas percebeu que algo estava mau. Tinha a boca seca e uma
frouxidão que mal lhe permitia manter os olhos abertos. Tentou enfocá-los, mas sua visão
se nublou.
Em troca, descobriu uma bandeja no criado mudo. Quando a tinham deixado ali? Não se
lembrava de que alguém o tivesse pedido, mas havia um copo de ponche pela metade.
Bocejou e se deixou cair. Umedeceu os lábios. Tinha a garganta como uma bucha! Alcançou
o ponche e o terminou de um gole. Um pouco de líquido escorregou pelo queixo e o limpou
com os dedos, chupando-os depois. A ideia de que Bethia a visse lambendo os dedos a
induziu a uma risada boba. Sua preceptora passava a vida a recriminando por esse tipo de
coisas.
Com a cabeça transbordante de imagens de Cliff nu, sedutor e entregue, tentou retornar
aos braços de Morfeu. Pela manhã esclareceria com seu marido o porquê de seu
desaparecimento no meio da noite; ela queria despertar com ele ao seu lado.
Amaciou o almofadão e fechou os olhos. Então irrompeu o feitiço.
Alguém a chamava.
Um sussurro horripilante e rouco pronunciava seu nome.
Esquadrinhou até onde permitiam as sombras enquanto suas costas se contraíam em um
estremecimento de medo. Os contornos dos móveis pareciam mais alargados e
ameaçadores.
—Eleanor…!
234
Deu um salto e ficou sentada. Registrou os cantos com o olhar, esfregou os braços,
repentinamente gelados. Aquele horrível sonho… ou aquela desprezível brincadeira se
repetia. Por Deus, outra vez não!
—Eleanor…!
Com uma maldição nos lábios jogou para um lado os cobertores e saiu da cama. O frio
dos ladrilhos aguilhoou as plantas de seus pés. Segurou-se a uma das colunas do leito e
perguntou:
—Quem demônio está aí?
Veio uma risada oca e apagada que a fez estremecer.
As pernas pareciam negar-se a sustentá-la e teve que piscar repetidas vezes para
esclarecer a visão. Começava a sentir os braços pesados. Com um esforço notável avançou
um par de passos, vacilante, como uma criatura aprendendo a caminhar.
—Cliff — gemeu— É você?
Ninguém respondeu, mas foi consciente de uma respiração acelerada e ofegante. Abriu a
boca para gritar, mas não pôde fazê-lo, suas cordas vocais estavam atrofiadas. Tinha a
mente inchada. Deu um passo mais e caiu de bruços. Mal sentiu, como se ela toda fosse
feita de gelatina.
De quatro, meio atordoada, insistiu em alcançar o ponto do qual chegava o tenebroso
chiado do visitante noturno.
—Quem é? — interrogou de novo ao nada, sem obter resposta— Maldito seja! É uma
aparição?
Começou a pensar que sim, que nenhum dos serviçais se atreveria a atemorizá-la dessa
maneira. Além disso, por que iram fazê-lo? Sua já minguada capacidade mental lhe deu
certeza de que se tratava de um fantasma. Ela entendia dessas coisas, não? Sim era
235
estúpida! Delirava e se deu conta. Sacudiu a cabeça para limpá-la, mas nem mesmo assim
saia à ideia de que estava sendo vítima de uma aparição, e a lembrança da primeira esposa
de Cliff sobre ela.
—O que quer de mim?
—A torre…! —sussurrou a aparição— Venha à torre sul, Eleanor…
Ela ficou petrificada. A torre sul! Foi dali que se jogou ao vazio a anterior duquesa de
Ormond!
—Basta, por Deus! — ela tapou os ouvidos— Me deixe em paz!
O eco de uma risada gasta retumbou nas paredes. Ela gritou. Ou acreditou fazê-lo.
Depois ouviu um leve estalo e uma lufada de ar gelado cruzou o quarto acariciando-a como
a mão de um morto.
Depois, tudo ficou em completo silêncio.
Inclusive o vento que açoitava no exterior pareceu parar.
Quando Eleanor despertou na manhã seguinte só lembrava-se de ter sofrido um
pesadelo, mas não pôde concretizar do que se tratava.
236
Capítulo 31
Bethia pegou para ela umas meias de seda brancas e Lea levantou a barra de sua
combinação para colocá-las.
—O que houve com você?
Ela percebeu então as contusões azuladas em seus joelhos e encolheu um ombro.
—Ontem à noite tropecei e caí — disse, acabando de colocar as ligas com rapidez e
cobrindo as manchas roxas.
—Você caiu? Quando foi isso? — ela interessou-se segurando ante ela um vestido de cor
cereja.
237
Eleanor não quis entrar em detalhes. Tinha a mente embotada e unicamente lembravase de pedaços do ocorrido. Colocou o vestido e deu as costas a Bethia para que ela
abotoasse os incontáveis botões. Mas sua aia insistia.
—Onde caiu?
—Não tem importância, nana. Acho que levantei no meio da noite e topei com algo.
Bethia não ficou muito convencida. Ela, desconfiada por natureza, cheirava algo
estranho, intuía que a jovem não estava sendo sincera. Esperou que Lea se sentasse em
frente à cômoda e escovou seu cabelo para depois prendê-lo em um coque alto que
acentuava a delicadeza de seu rosto e seu pescoço esguio.
— Irish e Tina já se levantaram?
—Faz mais de meia hora.
Ela olhou de esguelha o relógio e franziu o cenho. As dez. Era estranho, ultimamente
dormia muito frequentemente. Apesar de tudo, essa manhã se encontrava esgotada, e de
boa vontade teria voltado a meter-se na cama.
—Não dormi muito.
—Já imagino — Bethia resmungou com o tom condescendente de quem sabe das coisas
— É natural entre os recém casados. —Lea corou, mas ela aplicou os últimos toques do
penteado e em seguida contemplou sua obra. Ao ver que não se levantava a observou mais
atentamente— Elas a estão esperando para tomar o café da manhã. Suas amigas
pretendem retornar a Londres esta mesma manhã.
—Já vou. — colocou os brincos e se levantou cansada.
—Por certo, não paravam de falar de quantos vestidos teriam que mandar fazer para a
festa. A que festa elas se referem?
238
—A que me servirá de apresentação como duquesa de Ormond. Lamento ter me
esquecido de comentar isso.
—Acreditei que seu marido não era partidário desse tipo de acontecimentos.
—Na verdade, não foi ideia dele.
—Tenho certeza que não — ela reclamou baixinho.
Lea suspirou. Se havia uma pessoa capaz de importuná-la no mundo, essa era Bethia.
Não deixava nunca de falar o que pensava nem que a amordaçassem.
—O que é isto? —ouviu que lhe perguntava com a bandeja nas mãos.
—Ponche.
—Isso eu já o vi — disse, colocando o nariz no copo.
—É um detalhe da senhora Dumond.
—Eu não gosto dessa mulher.
—Já sei, você me disse isso mil vezes. Tampouco é que seja um santo de minha devoção,
mas faz bem seu trabalho. Eu pensei tirá-la de algumas de suas obrigações. Eu poderia me
encarregar de certas tarefas, não acha?
—Tarefas? Não diga tolices! Agora é uma duquesa, e as duquesas não se encarregam de
trocar os lençóis das camas ou preparar o chá.
—Sabe que nunca fiquei sem fazer nada.
—Pois suba nessa preciosa égua que o duque te deu de presente. Vá a Londres.
Mergulhe em obras de caridade. Gaste um montão de dinheiro em roupas ou comece a
redecorar este mausoléu de uma vez. Seu marido não te negará nada. Pelo que pude ver
você poderia pedir a esse diabo a lua e ele ordenaria que a trouxessem.
239
—Bethia!
—Está bem, está bem, está bem. Já me calei.
—Segure um pouco sua língua. Não é o que sempre me diz? Cliff é…
—Sim, sim. Aquele que a mantém acordada a noite toda.
—Você é impossível!
Deixou-a e saiu. Estava a ponto de se chocar com quem monopolizava todos os seus
pensamentos. Como uma aparição, esplêndido, só vestia camisa, sua jaqueta pendurada em
um ombro e tinha o cabelo úmido.
—Bom dia, milady.
—Bom dia.
—Lamento não haver te esperado para tomar o café da manhã, mas não quis despertála. Descansou bem?
O brilho sagaz de seus olhos cinza não passou despercebido a Lea.
—Pouco — respondeu, esforçando-se em dissimular seu estado de ânimo sabendo que
Bethia estava muito atenta ao que falavam embora já se movimentasse pelo quarto— E
você?
—Pouco. — Endossou sua resposta acompanhando-a com uma piscada.
—Ninguém parece ter descansado muito esta noite — Bethia ousou balbuciar.
Lea revirou os olhos e ele mordeu uma bochecha para sufocar a risada. Abaixou a cabeça
para beijá-la suavemente nos lábios e disse:
—Veremo-nos logo.
240
Ele foi se afastando até o final da galeria, para suas próprias acomodações. Ela se
perguntou por que o deixava ir. O beijo, até ligeiro, tinha-a entusiasmado e queria mais.
Ergueu os ombros e desceu para a sala de jantar.
Por sua parte, Cliff fechou a porta de sua antecâmara e se apoiou nela. Voltava a estar
excitado.
—De que porcaria me serviu o banho gelado?
Transcorreram vários dias da visita de suas amigas. Tina tinha se devotado a confeccionar
a lista de convidados, que logo conferiria com a duquesa viúva. A velha dama se encarregou
de dar as instruções pertinentes para uma limpeza em profundidade e para que tudo
resplandecesse para a celebração, encarregando à senhora Dumond o controle desse
trabalho. Embora Eleanor sempre tivesse sido um espírito ativo, tanto barulho movendo
móveis, trocando tapetes e retocando detalhes aqui e lá a suplantava. Ao contrário,
Samantha parecia incansável. A ouvia dizer:
—Não, não, não. Esses candelabros ali, Flora. Aqui devem ir os vasos de flores. Simpson,
pelo amor de Deus, faça que retirem esse móvel. Onde estão as tapeçarias? Por que
ninguém as desceu ainda?
—Agora mesmo, milady.
—E onde inferno se escondeu Conrad? —Seguia a anciã— Se pensa que só deve atender
as necessidades de meu neto, faça o favor de lhe dizer que o duque pode por as cuecas
sozinho. Necessitamos dele aqui e agora.
—Sim, Sua Graça.
—Milady, milady… — resmungava— Deixe-se de tanta compostura e vá procurá-lo.
241
—Como manda milady. — afogava-se o mordomo, que saía correndo para indagar onde
se encontrava o valete de Ellis.
Samantha Ellis era incansável. Dominava tudo que a rodeava, dirigia-o a sua maneira,
mas tinha a precaução de pedir opinião a Eleanor, fazendo-a participar da desordem em
que tinha convertido o castelo. Inclusive consultava algumas coisas com a governanta.
Juntas, e com a inestimável ajuda de Flora e da senhora Fellini confeccionaram uma lista
com as várias delícias que seriam oferecidas durante a festa, as numerosas caixas de
champanha que iram abrir, as toalhas, as velas…
Eleanor se assombrava com o vínculo de camaradagem que tinha surgido entre ambas
quando, para ser sincera, tinha esperado achar uma inimizade na duquesa viúva.
Ao anoitecer, esgotada, deixava-se cair nos braços de Cliff. Nunca uma festa tinha
representado para ela uma dor de cabeça. Mas claro, as celebrações em Ness Tower eram
mais uma reunião de amigos que outra coisa. Agora era muito diferente: Samantha Ellis
queria uma noite em grande estilo.
Cliff não contribuía com nenhuma ideia e enrugava o cenho quando o interrompiam com
questões de última hora para o venturoso festejo, mas não se queixava. E aguentava as
criticas de sua avó a propósito da conveniência ou não de que tal pessoa viesse a Hallcombe
House, com uma paciência incrível.
—Os Marvell? —protestava a dama esquadrinhando a lista enviada por Tina— Nem que
a bunda de Satanás se congele! Esse idiota do James que não apareça aqui. O conde de
Brent, não. Lady Margaret Winter, tampouco.
—Dava-se bem com ela, grand-mère — interveio Cliff.
—Você disse bem: dava-me. Até que encomendou um vestido idêntico ao meu no ano
passado e teve a ousadia de estreá-lo dois dias antes que eu.
242
O duque de Ormond podia haver fugido com qualquer pretexto, mas calava e assentia,
soprava ou suspirava, acompanhando sua esposa quando sua avó os incumbia de que
comprovassem se estavam fazendo as coisas como se devia.
Os dias transcorriam movimentados, mas as noites eram um tônico delicioso. Cliff se
comportava de um modo tão encantador que Lea não conseguia acreditar que pudesse ser
tão afortunada. Quando subiam ao quarto — sempre o dela— seu marido a despia
lentamente, beijando cada pedacinho de pele que ia descobrindo, sufocando-a, agitando
seu desejo. Uma vez satisfeitos, ao primeiro bocejo dela atendia seus desejos, fazia que se
deitasse de barriga para baixo e massageava seus ombros, costas e pernas até deixá-la
sonolenta. Depois, quando ela dormia, agasalhava-a, beijava-a na testa e partia.
Ellis desaparecia unicamente no meio da tarde, encerrando-se na biblioteca até a hora
do jantar. Lea tinha desejado em mais de uma ocasião isolar-se com ele e dedicar um
tempo à leitura. Sentia falta de perde-se nas fascinantes histórias de sua novelista
preferida, mas era impossível com a avó duquesa rondando por toda parte; não a deixava
nem no sol nem na sombra.
Dia a dia, Eleanor florescia. E Bethia, apesar de criticar o que ela considerava uma
atividade de loucos e um gasto excessivo, ia suavizando pouco a pouco sua opinião sobre o
duque, certamente pelo grau de felicidade que transmitia sua menina.
Outro fator ajudava: Lea não havia tornado a sofrer com as inquietantes visitas noturnas.
Inclusive o fantasma de Hallcombe House parecia haver tomado uns dias de folga perante a
delirante agitação para preparar a festa. Eleanor tentava relegar as estranhas experiências
ao canto mais afastado de sua mente, embora ocasionalmente reaparecessem ao empurrar
a porta de sua antecâmara. Estava tentada em comentar com Cliff que havia retornado,
mas ao final optava por deixá-lo para depois, sobre tudo se estava em seus braços. Não
queria que sua reiteração semeasse dúvidas em seu marido sobre sua estabilidade
emocional.
243
Uma tarde, fazendo-se acompanhar por dois criados que transportavam ao sótão umas
caixas, plantou-se diante de uma escada meio escondida em que não tinha reparado antes.
Era estreita, escura e íngreme.
—Aonde leva? —perguntou-lhes.
—Sobe à torre sul, excelência.
A voz sem alma da governanta fez que desse um pulo. Ali estava ao seu lado. De onde
tinha saído? Um instante antes não havia ninguém na galeria exceto ela e os dois criados.
Dissimulou a inquietação que sempre lhe produzia sua presença.
—À torre sul?
—Isso, senhora. Mas a porta de acesso está trancada.
—Sim.
—Se por acaso milady não sabe, a esposa anterior de sua excelência caiu dessa torre.
Eleanor sentiu que a cor saia de suas bochechas. Sim, claro que sabia. Toda Londres
sabia. Toda a maldita Inglaterra sabia. Mas diria que Flora se entretinha trazendo a tona o
fato macabro.
—Obrigado — ela murmurou, esquivando do olhar frio e do semblante severo da
governanta— Acredito que a duquesa viúva necessita de seus conselhos.
Flora se afastou com o mesmo sigilo com o qual tinha chegado, e Lea não pôde evitar dar
outra olhada para aquelas escadas. Controlou um arrepio e continuou andando, mas
inquieta ao sentir que uns olhos invisíveis vigiavam seus passos, o que estimulou mais sua
curiosidade. Cedo ou tarde visitaria aquela torre; enfrentar seus medos era o melhor
remédio para eliminá-los definitivamente.
244
Capítulo 32
Samantha e Lea repassavam o que podia ser a lista definitiva de convidados quando
foram interrompidas por Simpson.
—Uma nota para Sua Graça — ele anunciou, entregando para a jovem.
Lea o rasgou e leu. Enrugou as sobrancelhas e disse com ironia:
—Definitivamente, o dragão está se abrandando.
Passou a Samantha a carta, esta ajustou um óculos encantador a ponte de seu
imponente nariz e lhe deu uma olhada. Era de Irish. Leu em voz alta:
Querida Lea:
Estou tão feliz que mal posso acreditar, e tudo graças ao seu marido. Teve a bondade
escrever ao conde de Lerstone recomendando Ken para a vaga de administrador de seus
245
imóveis. Não sei como soube da capacidade de Ken para este trabalho, mas sua senhoria o
mandou chamar. Eu diria que meu pai já o vê com outros olhos. Lea, por favor, transmita a
Cliff nossa gratidão por sua generosa ajuda, embora nós iremos agradecer a ele na festa.
Com todo meu carinho, sua prima,
IRISH DURHAM
A duquesa viúva tirou os óculos e se massageou entre as sobrancelhas. Em seguida,
dirigiu-se a Eleanor.
—Não posso acreditar. O que está fazendo com meu neto, criatura? Levava anos sem
querer saber nada desse ramo da família.
—Fosse o que fosse o que aconteceu antigamente, Irish não é a responsável, e Cliff é um
homem maravilhoso.
—Ha! Como Satanás quando quer levar uma alma ao inferno!
Eleanor pensava que tinham tudo mais ou menos sob controle para a festa, mas
percebeu o seu equívoco quando a senhora Wildes fez sua aparição no castelo,
acompanhada por dois aprendizes, com o único fim de lhe confeccionar vestidos.
—Tenho um armário cheio — se queixou.
Era verdade. Seu pai tinha sido generoso nesse sentido. Uma extravagância em trajes
novos era dilapidar o dinheiro, quando existia tanta gente necessitada. Desde pequena, sua
mãe tinha lhe incutido que devia ajudar aos mais desamparados, e para confirmar fazia
frequentes doações a instituições de Edimburgo. Eles iam gastar uma fortuna na festa e em
alegrar um pouco a cara dos velhos salões, assim como alguns dos quartos do castelo, por
isso engordar a fatura devia ser pouco menos do que imoral.
246
Samantha estalou a língua e disse:
—A duquesa de Ormond não pode se vestir de qualquer modo.
—Asseguro-lhe, milady, que meu vestuário, embora não muito luxuoso, não matará de
vergonha ao duque.
—Não duvido criatura. Mas alguns vestidos a mais não arruinarão meu neto e, além
disso, em breve, terá que ser apresentada na Corte. A senhora Wildes tem que tomar
medidas e bem pode aproveitar a viagem.
Lea não teve mais remédio que ficar nas mãos da costureira. Dois dias depois já jurava
em aramaico e lhe doíam até os cílios: passava horas de pé, suportando as provas e a ponta
afiada de algum alfinete que pegava nela.
Cliff mal se deixou ver desde que chegou aquela inquiridora com cara de anjo, mas com
menos pontaria que seu irmão Jaimie.
—Definitivamente, a cor branca lhe fica maravilhosa.
—Eu gostaria mais em verde.
—Não, menina — interveio Bethia que parecia haver formado uma co-autoria com a
viúva— O branco é sua cor.
Queria ir contra essas duas! Virou-se um pouco para ver-se refletida no espelho. Embora
não quisesse dar o braço a torcer, o modelo lhe caía como uma luva e realçava o tom de seu
cabelo. Claro que também realçava as infelizes sardas de seu nariz. O certo era que lhe doía
à cabeça. Já não estava certa se iam convidar ao conde de Mawley e contratar os serviços
auxiliares de criados do povoado ou iam convidar ao conde de Pueblo e contratar os
serviços de criados de Monferraux. Em seu cérebro fervilhavam tantos nomes e títulos que
pareciam dançar sem cessar.
Em um arrebatamento se desfez do vestido e o lançou sobre uma cadeira.
247
—Por todos os infernos! Basta! —A costureira se fez o sinal da cruz e escapou—
Necessito de uma hora livre. Uma hora só ou acabarei louca! Começo a estar até o nariz
com tudo isto.
Samantha Ellis, pelo contrário, que conhecia bem o pano, não perdia a calma.
—Se vista Eleanor. Faz frio e um nariz vermelho como uma beterraba não a deixaria em
um bom lugar.
Bethia já ajudava a jovem com o outro vestido e se uniu a cantinela.
—O que pensava que seria ser a duquesa de Ormond?
—Certamente, não era ser escravizada por essa mulher.
—A senhora Wildes é uma excelente costureira. A melhor de Londres.
—Mas deve lhe falhar o pulso, porque sou o alvo de seus alfinetes, maldita seja! — ela
deu-se conta do que estava fazendo e retificou— Eu não devia falar assim. Espero que não
diga ao Cliff que…
—Que amaldiçoa como um pirata? — Arqueou uma sobrancelha cômica— Dificilmente
se alarmaria, porque foi ele quem me advertiu desse teu costume.
—Sinto muito. É meu…
—Seu gênio escocês, eu sei.
—Tentarei controlá-lo.
—Particularmente, não me importa. Inclusive me diverte. Também eu, como deve ter
observado, enfio os pés pelas mãos em muitas ocasiões.
—Desde que na celebração esteja à altura… — a perseguiu Bethia.
—Certo, certo, certo. Não volte a me repetir que tenho uma língua viperina, por favor.
248
Samantha se pôs a rir espontaneamente.
—O que sabe você de línguas viperinas? Poderia te dar o nome de um bom número de
damas que, apesar de suas refinadas maneiras e suas palavras corteses, destilam veneno.
Mas controle esse gênio intenso que tanto me recorda ao bucanero do seu avô, pequena.
—Ainda o estima, não é?
—Aprecio a esse abutre nascido de um corvo e uma raposa? Condenado seja ao inferno!
Lea comemorou sua saída com uma gargalhada, mas Bethia não viu nenhuma graça.
—Tem certeza de que não tem sangue escocês nas veias, excelência?
—Pode ser que algumas gotas — ela respondeu com ironia— Bem, acredito que é hora
de dar uma pausa. Uma xícara de chá me viria muito bem.
Fizeram uma pausa e, já servidas, Eleanor perguntou:
—Senhora… Sabe como se vestirá meu marido? Não me atrevi a lhe perguntar.
—Por que isso a interessa?
—Eu gostaria que uma vez se vestisse de cinza. Iria bem com seus olhos.
—Que eu saiba Cliff só usa roupa negra e camisas brancas. —Franziu o cenho e cravou os
olhos em sua xícara— Suponho que vai com seu modo de ser, com sua personalidade e com
o ar de amargura que o acompanha desde que…
—… desde que morreu sua esposa anterior — Lea finalizou já farta do espaço que a
antiga duquesa de Ormond roubava de seu marido.
—Ele se sentiu culpado durante muito tempo. Mas deixemos isso — resolveu Samantha,
visivelmente incômoda pelo curso da conversa— Acompanharia-me a dar uma volta pelo
jardim?
249
O ar estava frio, mas ainda era agradável passear entre a tranquilidade dos canteiros de
flores e os carvalhos. Chegaram à pequena pracinha rodeada de margaridas de cor amarela
brilhante e cone púrpuro, e Samantha procurou um lugar em um dos bancos de pedra. Lea
sentou ao seu lado e subiu o xale que tinha escorregado dos ombros da dama.
—Meu marido e eu passamos muitas tardes do verão escutando música aqui.
—Eu teria gostado de conhecê-lo, excelência.
—Você teria se dado bem com ele. Era um homem honrado. E sensato, justamente o
meu contrário. Ao seu lado encontrei a paz. Meu filho se parecia muito a ele. —Uma pátina
de saudade abrilhantou seus olhos— Ao menos até que sua esposa o abandonou. Eu me
pergunto a quem terá saído meu neto com esse caráter introvertido e déspota.
—A sua avó? — Lea brincou.
—Talvez sim — ela se atreveu a afirmar— Mas eu deveria me orgulhar por lhe conceder
essa herança?
—No fundo, duquesa, você é encantadora.
—Que não a ouçam! — Ela ensaiou uma careta de horror— Perderia o respeito que
todos têm por esta múmia velha.
Apesar da senhora Wildes, Eleanor decidiu tomar a tarde livre e dedicar-se à leitura.
Entretanto, antes de entrar na biblioteca, foi abordada por Bethia, que quase a arrastou
para o salão de música.
—Estive averiguando os serviçais. E não me agrada o que constatei menina.
Sua velha babá movia o pescoço de um lado para o outro, como se procurasse algum
intruso atrás dos móveis ou das cortinas.
250
—Bem. Conte o que for.
— Eu não gosto de Floresce Dumond.
—Por favor, nana! Já me disse isso até não poder mais.
—Sim, sei. Mas antes dela houve outra governanta. Julia Davenport.
—E? Um cargo nunca é perpétuo, e se encontrou um trabalho melhor e partiu…
—Eu disse por acaso que partiu de Hallcombe House? —interrompeu Bethia,
acompanhando suas palavras com a expressão de suas mãos em movimento— Eu lhe disse
isso?
—Não, mas imaginava que…
—Davenport morreu. Assassinada.
Eleanor ficou de cabelo em pé. O que ela pretendia lhe contando isso? O que tinha a ver
com o fato de que Flora não a agradasse?
—É muita coincidência, não acha? — ela insistia.
—Bethia, se não se explicar, melhor se calar. Qual coincidência? Há algum vínculo entre a
senhora Dumond e a governanta anterior?
—Não sei. O que posso te assegurar é que ninguém do serviço se dá bem com o corvo, e
adoravam a senhora Davenport. Emudecem se tenta se aprofundar em busca de
informação. É como… Como se tivessem medo.
—Que tolice!
—Estupidez ou não, deveria tentar sondar a duquesa viúva. Pode ser que ela saiba mais
sobre essa morte.
251
—Assim quer que eu pergunte à avó de meu marido sobre um assassinato que ocorreu
faz…
—Elissa Davenport morreu três meses antes que a antiga duquesa de Ormond se atirasse
das muralhas da torre sul.
Devia ser uma insinuação de que Flora poderia ter tido algo a ver com o crime. Estava
caducando sem dúvida alguma! Matar alguém para conseguir seu posto de trabalho era tão
louco como imaginar que os cavalos podiam voar. Despediu-se de sua aia e se encaminhou
para a biblioteca, mas sua imaginação já tinha se enfiado no atalho da curiosidade que
tantas dores de cabeça lhe davam sempre.
Tão distraída ia que não percebeu a presença do duque. Pegou mecanicamente a novela
de J. Preston e se propôs acabá-la naquela mesma tarde; não podia crer que estivesse
relegando seu bom costume de dedicar um momento diário à leitura. Sentou-se, dobrou as
pernas sob a saia, mas não abriu o livro, e sim ficou olhando fixamente sua lombada e o
título de letras douradas: Ocultismo e além. Realmente ocultava algo a senhora Dumond?
Teria tido seu marido algum papel no evento? Que curioso, disse-se. Se a memória não lhe
falhava, tinha prometido a Thomas Fergusson ser uma dor na bunda de sua excelência e,
entretanto, tudo o que a preocupava agora era exonerá-lo de qualquer indicio de culpa.
Quando tinha substituído sua distância e hostilidade por esse outro sentimento que a
guiava a confiar cegamente nele?
Cliff a observava sem mover-se. Tinha tido um sobressalto ao vê-la entrar. Secretamente,
ele guardou em uma gaveta as páginas que acabava de escrever e nas quais desentranhava
o mistério de Morey Manor, um casarão no qual se cometeram seis assassinatos. Estava a
um passo de acabar sua nova novela, Noite sem lua, mas a chegada de sua avó e os
condenados preparativos do evento que ela havia tirado da manga o mantiveram afastado
da pena. Certamente, o que não queria de maneira nenhuma era que sua esposa
252
descobrisse o manuscrito e, o pior de tudo, que era ele nada mais e nada menos que a
encantada J. Preston, sua autora predileta.
Sua prudência resultou ser desnecessária, porque Lea não tinha reparado nele e parecia
estar em transe.
—Lea… se encontra bem?
Ela deu um salto e o livro caiu de suas mãos. Cravou seus esverdeados olhos em Ellis
como se lhe tivessem saído chifres e rabo. Recuperou a novela e se esforçou por aparentar
tranquilidade.
—Não o tinha visto.
—Assim agora passei a ser o homem invisível.
—Bem mais ou menos, porque quase não o vi desde que a costureira chegou.
—Minha senhora, eu posso suportar o bate-papo de minha avó, mas aguentar a todas de
uma vez falando de panos, nem sonhando. A propósito, o que você está lendo?
—Algo que você não gosta meu senhor.
—A voltas com esse J. Preston, não?
Eleanor esboçou um sorriso. Suspirou, sem vontade de lutar de novo com ele sobre o
sexo da autora.
—Você se incomodada se eu ficar um tempo? Prometo não o interromper.
Cliff assentiu e ela abriu o livro, centrando-se imediatamente na leitura. Com cautela, ele
voltou para suas páginas, centrou-se nas últimas linhas e seguiu escrevendo. Não pôde pôr
nem duas frases. Insistentemente, seus olhos se desviavam para Lea. A escassa
luminosidade se filtrava através das janelas projetando-se em seu cabelo e lhe arrancando
brilhos de fogo quando movia a cabeça.
253
Eleanor, abstraída na história, mudou de posição. Moveu um pé até que seu sapato caiu
sobre o tapete e ela massageou o pé direito.
Ele sentiu a saliva engrossar em sua garganta. Nunca um gesto tão simples tinha lhe
parecido tão erótico. Sem olhar, esticou o braço para molhar a pluma, mas seus nódulos
golpearam o tinteiro, derrubando-o.
—Merda! —cuspiu enquanto se inclinava para trás.
Eleanor o viu gesticular como um possesso, tentando salvar as páginas do desastre.
Levantou-se para ajudá-lo, mas, antes que se aproximasse, Ellis recolheu os papéis,
enrugando-os, guardou-os em uma gaveta e a fechou de repente.
—Que desastre! — ela lamentou-se em busca do secante para absorver o rastro negro
que se estendia pelo móvel— Eram documentos importantes?
—Nada que não se possa refazer. Siga com sua leitura — ele disse percebendo a mancha
de tinta na manga de sua jaqueta— Que droga! —exclamou.
Lea acreditava que sua reação foi um tanto inesperada, sendo que corroborou o fato de
vê-lo tirar uma chave de seu bolso, fechar a escrivaninha e sair dando uma portada. Ou lhe
ocultava algo ou mentia. Por qual outra razão teria tanto cuidado em pôr em segurança
seus papéis? De repente, o conteúdo da gaveta criou para ela um interesse inusitado.
254
Capítulo 33
Faltavam poucos dias para a celebração e, sem prévio aviso, Robert Ellis se apresentou
em Hallcombe House.
Lea saía do quarto de costura e o jovem atravessava a galeria como um tufão. Faltou
pouco para que a empurrasse para longe. Chegava sujo e claramente mal-humorado, e nem
sequer lhe dedicou um cumprimento, limitando-se a perguntar:
—Onde está meu meio-irmão?
—O que houve?
—Onde demônio está?
—Trabalhando na biblioteca. Você vai... — Robert já se afastava a largas passadas
deixando-a com a palavra na boca.
Ela foi atrás dele, temendo um confronto com seu marido e chegou a tempo de ouvir a
voz alterada de Cliff.
—Um duelo?!
Não se atreveu em interrompê-los, limitou-se a entrar sem intervir com seu coração
galopando descontrolado ao conhecer o motivo da visita de Robert.
—Está de brincadeira? —retumbou o vozeirão do duque.
—Não pude evitá-lo.
—Condenado estúpido! — Ellis lamentou-se— Quem é seu rival?
—Richmond.
255
—Lionel Richmond? Mas se é um de seus melhores amigos!
—Meu amigo, sim. Meu amigo até que fui esta manhã ao banco.
—Ao banco? — o duque estanhou— De acordo, vejamos o que houve. Sente-se e me
conte.
O moço apoiou as palmas na mesa e encarou seu irmão.
—Tinha que ocultá-lo? — ele o criticou— Sim, claro, que pergunta tão estúpida. Tinha
que mantê-lo em segredo, como tudo o que faz.
—A que demônios se refere?
—Ao seu maldito dinheiro!
Um músculo tremia no queixo de Cliff. Lea quis evitar que a discussão chegasse a vias de
fato, por isso decidiu pegar o jovem pelo braço e pedir-lhe para acalmar-se, pondo distância
entre ambos.
—Vamos. Não pode ser tão grave, se tranquilize.
—Eu adoro pintar e quero ir estudar em Paris. Não sei… pareceu-me uma boa ideia ver a
possibilidade de que me concedessem um crédito. Lionel me acompanhava e se inteirou de
tudo. Assim me diga: como posso me tranquilizar se vou me enfrentar com ele ao
amanhecer? —respondeu a gritos dando um puxão para soltar-se.
Eleanor não se distinguia precisamente por sua paciência, de maneira que o empurrou
em direção a uma poltrona, onde caiu sentado. Desafiou-o com as mãos na cintura e o
cenho franzido.
—Pare de zurrar. Pode ser que seu irmão aprove um comportamento de homem das
cavernas, mas eu não. Tem duas opções: ou se acalma e nos explica com educação o que
houve, ou sai por essa porta e não volta.
256
Robert ficou absolutamente atônito, sem capacidade de responder. Não esperava que
ela o repreendesse nem que Cliff permanecesse estático, sem intervir. Não só não interveio,
mas também admirou a determinação de Lea. Era a primeira vez que alguém deixava seu
irmão mudo.
—Isso é o que se denomina gênio escocês? — Robert perguntou um tanto triste.
—Não tem ideia do que é o verdadeiro gênio escocês, asseguro-lhe. Bom, estamos
esperando… - E foi sentar-se no braço da poltrona que seu marido ocupava.
O jovem Ellis demorou um pouco para encontrar as palavras. Cruzava e descruzava os
dedos e evitava olhá-los.
—Houve uma aposta de cavalos. Uma corrida entre o garanhão de Pigton e a nova
aquisição de lorde Bertan. Só queria ganhar umas libras.
—Ninguém te disse alguma vez que apostar é para tolos? —instigou-o Lea.
—Não estou acostumado a fazê-lo, mas vi uma oportunidade de ganhar dinheiro fácil.
Bom, isso não vem ao caso. O caso é que o senhor Moggan não estava no banco e me
atendeu seu ajudante, Peter Cosnan…
Deixou o nome aí, flutuando no ar, dando a entender algo que Lea não captou. Cliff não
ajudou, limitando-se a dar voltas à pena entre seus longos dedos.
—Peter Cosnan — ela repetiu ao ver que nenhum dos dois parecia disposto a seguir—
E…?
—Cosnan é um bêbado — Cliff disse— Não entendo os motivos pelos quais Moggan o
ainda mantém em seu posto.
—Sim, ele tem o hábito de soltar a língua — confirmou Robert, em um tom ácido.
Cliff cheirava o que podia vir.
257
—O que ele disse exatamente?
—Pôs-me a par de minha conta bancária e do conteúdo de alguns documentos que têm
em custódia.
—Merda!
—De minha bem nutrida conta bancária, na realidade — ele assinalou — Não da que
manejo habitualmente, mas sim de outra. De uma que uma alma caridosa abriu em meu
nome há anos e onde religiosamente se ingressam cinco mil libras anuais. E das escrituras
da casa de Montfierre, de Swanton Manor e dos estábulos de Mollyfield. Uma fortuna da
qual poderei dispor ao completar vinte e cinco anos.
Cliff guardou silêncio, um silêncio que Lea rompeu.
—Você não sabia nada disso?
—Não tinha ideia. Meu querido meio-irmão e o senhor Moggan o mantinham em
segredo.
—Bom, mas… É uma estupenda notícia. Não entendo sua irritação por saber que é dono
de uma fortuna. E também não compreendo o que isso tem a ver com o duelo.
—Sempre vivi como um paria. Como o meio-irmão do duque de Ormond. O filho
ilegítimo reconhecido em última instância por um pai que me favoreceu com uma herança
de migalhas.
—Paguei todos seus gastos, não? —protestou Cliff.
—Sim. Mas meus amigos me aceitaram pelo que eu era um João ninguém sem dinheiro
nem privilégios. E agora sou um cara rico e Richmond me pôs de lado. Chamou-me de tudo
o que você possa imaginar, porque pensa que os estive enganando, que não sou mais que
um esnobe egoísta. — ele passou os dedos pelo cabelo revolto— Faz um mês Lionel se viu
258
em dificuldades para pagar uma dívida de jogo e eu não pude lhe emprestar um tostão
porque tinha outra similar. Entende agora?
—E chegaram às vias de fato.
—Sim. Dei-lhe um murro para que se calasse. Tive que aceitar o duelo quando cuspiu em
minha cara sua lista de insultos.
—Isto é loucura — Lea murmurou.
—Em um abrir e fechar de olhos eu fiquei sem amigos graças a ti — Robert continuou
cutucando— E vou duelar com um deles. Por isso vim. Para que me explique.
—O que tenho que explicar?
—Não quero seu maldito dinheiro, homem!
—Não é meu dinheiro, condenado seja! — Ellis estourou cortando a distância que os
separava e segurando-o pelas lapelas da jaqueta até pô-lo em pé— Não é meu dinheiro,
idiota, a não ser o de nosso pai.
—Nosso pai não me deixou um puto de um centavo, só dívidas.
Cliff o soltou e este voltou a cair na poltrona.
—Dívidas, sim. Deixou muitas. Muitas. Mas as terras estavam aí e voltaram a dar seu
fruto. Os negócios prosperaram. Se nosso pai não tivesse deixado Hallcombe House, e os
terrenos que o circundam e o resto das propriedades, mesmo que tudo estivesse
hipotecado, agora você e eu estaríamos na indigência.
—Eu não fiz nada para levantar a fortuna da família.
—Você não era mais que um moleque chorão quando ele morreu. O que iria fazer?
—Papai só me deixou uma pequena quantia e…
259
—Seus enganos foram dele. Não me compare com ele. Reconheceu-o como legítimo
graças à insistência da avó, porque não queria reconhecer seu fracasso como marido. Mas
eu não sou nosso pai. Maldito seja Robert! Não sou ele, embora leve seu título!
—Eu sei, eu sei — admitiu o jovem.
—É meu irmão. Não me importa nada que não tivemos uma mãe em comum. E continua
sendo meu irmão, embora seja difícil você entendê-lo. —Eleanor assistia fascinada à
conversa— Falei com Moggan há anos— continuou Cliff— E nós dois planejamos uma
estratégia financeira para aumentar sua herança. Ai sim, eu insisti em que não pudesse ter
acesso a ela até os vinte e cinco, quando tivesse sentado a cabeça.
Lea não podia acreditar. Seu marido não só estava irritado, mas também parecia até
envergonhado. Por ter cuidado de seu irmão! Também tinha corado quando ela tinha lido
para ele a carta de sua prima lhe agradecendo sua intervenção por Kenneth. Uma ternura
infinita derreteu qualquer vestígio de dúvida que pudesse ter dele. O frio, distante e altivo
duque de Ormond não tinha um pedaço de metal como coração, a não ser uma blindagem
que o protegia e que, em ocasiões como esta, rachava-se expondo a bondade de seus atos.
Queria jogar-se em seu pescoço para beijá-lo pela abnegação com que tinha confrontado
seu futuro e o de seu irmão, sua generosidade e o espírito com o qual tinha suportado sua
carga desde que era um rapaz. Mas apenas se aproximou dele e o abraçou pela sua cintura,
recebendo um beijo na cabeça como agradecimento por seu gesto de apoio.
—Robert, deveria falar com seu amigo — ela disse a seu cunhado— Explique. E cancelem
esse estúpido duelo.
—Lionel não me escutará.
—Então não é tão bom amigo como achava.
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—Possivelmente — ele admitiu— A verdade é que me rodeei de alguns tipos… Talvez
evitáveis. O caso é que tenho que me bater com ele se quiser manter minha honra intacta.
Houve testemunhas, não tenho outra saída.
—Então, serei seu padrinho — sentenciou Cliff.
Robert ficou perplexo. Seu irmão não era nada partidário do uso da violência. Colocava
uma máscara para amedrontar, por isso trabalhava para a Coroa.
—Fala a sério?
—Não vou deixar que vá sozinho a esse encontro.
—Obrigado. Nunca pensei que…
—Alguma vez pensa filhote — grunhiu o mais velho lhe dando tapinhas nos ombros—
Por que não fica para jantar? À avó adorará te ver.
—E me envenenar com seus conselhos e suas coisas.
Lea permaneceu na biblioteca quando eles saíram. Sentou-se e recolheu as pernas sob o
traseiro. Os homens eram seres simples. Davam quatro gritos, esclareciam suas diferenças e
era como se não tivesse acontecido nada. Era isso. Tudo solucionado. Por todos os Santos! E
o que aconteceu com o duelo?
—Deus criou aos homens para complicar a vida das mulheres — ela concluiu.
Capítulo 34
261
Lionel Richmond tinha sido um problema até essa noite. Ellis nunca quis interpor-se
entre ele e Robert por temor de que seu irmão interpretasse equivocadamente sua atitude,
mas conhecia há tempo os truques sujos nos quais ele se envolvia: apostas, prostituição ou
roubo, qualquer assunto era válido para Lionel desde que conseguisse umas libras com as
quais continuasse sua vida dissoluta. De modo que o duelo ia proporcionar ao duque a
ocasião perfeita para desfazer-se de uma vez por todas da má influência que exercia sobre
Robert.
Cliff não entrou no clube, não queria que ninguém relacionasse sua visita com os futuros
acontecimentos, já que sua intenção era preservar o orgulho de seu irmão menor. Enviou
um aviso por meio de um garçom e esperou na passagem que havia na parte de trás do
local.
A nota era intrigante o suficientemente para que Lionel aceitasse encontrar-se com um
estranho. Ele pediu licença e saiu à rua. Chovia torrencialmente, de modo que caminhou
depressa, resguardando-se sob o beiral do edifício. Ao distinguir o duque sob a luz parou. A
fraca e trêmula luz da chama delineava claros e escuros em seu rosto severo, tinha o cabelo
negro grudado na cabeça e não parecia nada amigável.
—Excelência. A nota é…?
Ellis se aproximou. E sem aviso, puxou-o pelas lapelas e o esmagou contra o muro.
—Vim te esclarecer algo, moço. Eu não gosto de você. Nunca gostei. Importa-me muito
pouco que possa morrer amanhã, mas não quero ver o nome de meu irmão misturado
contigo nunca mais.
—Não se pode parar o duelo, havia testemunhas — ele balbuciou.
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—Certo, muito bem. Mas você vai me escutar atentamente e fará exatamente o que eu
disser. Está me compreendendo? —O olhar acovardado do outro aumentou sua veia
perversa porque começava a divertir-se. Lionel concordou e ele, com um sorriso lupino,
sacudiu a água das lapelas— Bom menino. Esta mesma noite vai embora de Londres.
—Mas é… impossível. Há pessoas às quais…
—Esta noite, Lionel. Se tiver alguma puta da qual se despedir, faço-o por carta.
—Mas…
—Deixe uma nota aos amigos confessando que, na verdade, Robert não sabia nada de
sua herança. E desapareça. Em troca disso mandarei mil libras em seu nome.
—Eu… eu…
—Tem — ele tirou o relógio do bolso de seu colete e lhe deu uma olhada— quatro horas.
Nenhuma mais. E o advirto, Richmond: se voltar a mostrar seu rosto feio em Londres será
comigo com quem terá que duelar.
—Com você… Eu… Certamente, não…
—Me levaria menos tempo enviar sua bunda para Satanás do que você demora em
piscar, como sabe.
Lionel assentiu repetidamente, pálido como um morto. Parecia um vira-lata ensopado.
Cliff o soltou e ele escorregou muro abaixo até ficar sentado. Ali ficou, aturdido,
recuperando um pouco de serenidade enquanto via o duque de Ormond afastar-se. Ele deu
um pulo quando Ellis voltou a encará-lo da entrada da ruela. Inclusive à distância, suas frias
pupilas o perfuraram.
—Quatro horas, Richmond.
A escuridão tragou a poderosa figura do duque e Lionel se arrastou até encontrar uma
base na qual apoiar-se. Trabalhosamente ficou em pé. Quase nem se sustentava nas pernas
263
e praguejava obscenidades. Ruminando seu medo se afastou do clube, porque era
impossível entrar nas condições em que se encontrava, jorrando água e empapado em
barro. Chamou um carro de aluguel e subiu depois de indicar ao cocheiro o endereço de sua
casa.
Durante o trajeto recuperou o domínio sobre si mesmo e até esboçou um sorriso torcido.
Uma nova oportunidade acabava de se apresentar. Porque ao não ir ao duelo ficaria como
um covarde, era verdade, mas não o ruim que pudesse começar uma nova vida em outra
cidade com o dinheiro que o duque lhe oferecia. Ormond podia ser o pior sujeito que tinha
conhecido, mas nunca faltava com a sua palavra.
Sugar Bryton observou de relance seu acompanhante.
Desconfiava, mas era a ocasião que tinha estado esperando. Se pudesse conseguir o
instrumento que obrigaria o duque a voltar para ela, seria capaz de seguir ao próprio
leviatã. Entretanto, quando se aproximaram da escada que subia à torre sul, deteve-a por
precaução. Fazia muito tempo que alguém da criadagem se atrevia a ir até aquela zona do
castelo.
A chuva açoitava as janelas da galeria com um repicar insistente e Sugar, vítima de um
calafrio, enrolou-se mais no xale que tinha jogado apressadamente em cima da camisola.
—Quer ou não? —perguntou a voz rouca que saía sob o capuz.
—Está na antecâmara da torre?
—Sim.
Assentiu com o coração saltando no peito e seguiu os passos de quem a precedia
subindo a velha escada, sentindo ter seu cérebro cutucado pelas antigas histórias sobre
aquele recinto onde, conforme contava a lenda, uma antiga dama esteve presa até morrer,
264
completamente louca. Isso fazia mais de trezentos anos. Mas ainda se dizia que seu espírito
vagava pelas muralhas de Hallcombe House. Ergueu os ombros e acabou de subir; ela não
acreditava em fantasmas.
Chegaram ao final. Uma pesada chave acionou a enferrujada fechadura. As dobradiças
da porta rangeram com o ruído do tempo anestesiado e uma corrente de ar gelado a
açoitou. Uma mão gentil em suas costas instigou Sugar a sair primeiro e a chuva a atingiu
sem misericórdia.
O vento alastrava seu lamento, uma canção triste que arrepiou o pêlo da moça. De
repente lamentou estar ali, de ter subido à torre onde achou seu final a duquesa anterior.
Sua coragem começou a falhar. Inclinou a cabeça esperando seu guia e uma mão cobriu sua
boca ao mesmo tempo em que um braço agarrava seu pescoço por trás. Só pôde emitir um
gemido sufocado enquanto era arrastada. Com os olhos saindo das órbitas e o rosto
congestionado, fez uma desesperada tentativa de liberar-se. Seu uivo de socorro ficou
apanhado em sua garganta e a vista borrou.
Sugar percebeu que ia morrer. O pavor mais absoluto a imobilizou por uns segundos,
mas se aferrou a sua salvação o que a impulsionou em um último esforço: retorceu-se,
gesticulou no ar e tentou alcançar o rosto de seu carrasco. Seus dedos se agarraram ao
capuz, esperando alcançar o rosto ao qual não pôde chegar. Uma careta selvagem curvou
seus lábios arroxeados. Seu algoz apertou mais. E mais. E mais… Sugar perdeu a consciência
e seu corpo, flácido, caiu inerte.
O agressor enfrentou o vento e a chuva enquanto compassava sua respiração. Arrastou
Sugar para a borda da torre e depois, com uma frieza absoluta, empurrou-a para o vazio.
Um dos sujeitos era uma massa sólida. Não havia outro adjetivo para descrever um
corpo robusto e grande, um pescoço largo e curto e todo o aspecto de um cão de caça. Um
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tipo vulgar que não parecia muito inteligente. Entretanto, era, pois em seu trabalho
imprescindível.
O outro, pelo contrário, era alto e magro, extremamente elegante. Seus olhos escuros e
perspicazes abrangiam tudo: John Murdock. Lorde. Juiz.
Ellis o conhecia bem. Muito bem para sua desgraça.
O indivíduo de aspecto áspero assentiu depois de escutar a declaração do duque e olhou
de viés para o juiz.
—Agradeço a todos que tenham respondido a minhas perguntas. Em princípio, lady
Samantha e lady Eleanor estão acima de qualquer suspeita, é impossível pensar que elas,
dadas suas características físicas, pudessem ter subjugado à vítima. Quanto a você, senhor
— disse a Robert— comprovarei seu álibi, é claro, embora aceite a palavra do resto sobre
que não conhecia a defunta senhorita Bryton. Mas teremos que interrogar a criadagem,
excelência.
—Imagino — assentiu Cliff.
—Mau assunto. —Ele estalou a língua— O corpo foi movido quando foi encontrado?
—Não, inspetor.
—Bom. —Guardou um amplo silêncio. Sabia que essa prática punha a prova o sistema
nervoso daqueles aos quais interrogava. Serviu um pouco de água em um copo e bebeu.
Depois pigarreou e olhou diretamente para Ellis— Suspeita de alguém, excelência?
—Desde que não seja de mim mesmo...
A resposta desarticulou Nestor Parrish. Como a todo mundo naquela sala. Eleanor reteve
uma exclamação e segurou com mais força à mão de Samantha que, sobressaltada, não
conseguia entender a ligeireza de seu neto. Robert, em um canto do salão, abotoava e
soltava alternadamente sua jaqueta para dissimular seu desconforto. Quando acreditava
266
que tudo estava resolvido depois de chegar ao lugar do duelo e descobrir que Lionel não se
apresentou, mas sim tinha deixado uma carta que o exonerava ante todos, topava com um
problema muito maior: um possível assassinato. Ele não sabia como ajudar, mas centrou
toda sua atenção no interrogatório e no rústico personagem que sondava seu irmão.
Parrish se aproximou das janelas e ali ficou um momento, meditando. Era inspetor de
polícia veterano e em contadas ocasiões conseguiam o surpreender. O duque de Ormond
acabava de fazê-lo. Em seus olhos cinza se desenhou a calma serena de quem sabe ser
protegido por sua reputação, influência e título. Isso o desagradava. Ele provinha de uma
família humilde e alcançou seu cargo com enorme esforço, trabalhando dezesseis horas ao
dia e em ocasiões jogando com sua vida, assim um ano após o outro, e apesar disso
unicamente tinha conseguido comprar uma casa pequena e escura e uma conta com a qual
fazia malabarismos para tirar do vermelho. O que pior aguentava era a indiferença com que
estava acostumado a ser tratado pela alta aristocracia. Observando o luxo que o rodeava,
sentiu esticar o nó que apertava seu estômago. Sua excelência, uma raridade entre a
nobreza de Londres, tinha poder. E contatos. Sem dúvida alguma, o juiz Murdock tinha
decidido acompanhá-lo para interceder porque, afinal de contas, ele também fazia parte da
elite na qual se movia Clifford Ellis, apesar de que, até então, o magistrado não tinha
intercedido, e tinha deixado que o interrogasse com liberdade.
—Nos explique isso, excelência — ele pediu em um tom seco, sem virar-se, com a vista
cravada nas gotas de chuva que escorregavam pelo vidro.
—Mantive certa… relação com a senhorita Bryton.
—Já vejo — escrutinou, agora sim, o rosto de Ellis— E diz que esse… vínculo tinha
terminado?
—Sim.
— A jovem mostrou-se interessada em continuar essa relação, excelência?
267
—Sim. —Cliff não hesitou.
—Inclusive depois de suas recentes bodas?
—Deixei-lhe muito claro que tudo tinha terminado, mas… — ele respirou fundo e
observou Lea de soslaio. Ele estava tranquilo, mas não podia escapar desta situação
extremamente embaraçosa.
—… mostrava-se impertinente. — Murdock, até então calado, acabou a frase por ele.
—Suponho que essa seria uma definição correta — o duque aceitou entreabrindo
ligeiramente os olhos.
Parrish, um tanto assombrado pelo repentino giro que dava o interrogatório com a
intervenção do juiz, guardou silêncio para caso dele pretender seguir perguntando.
Murdock se recostou em seu assento com um meio sorriso na boca.
—De maneira que a moça começava a ser um problema — ele deixou cair.
Cliff começou a não gostar do caminho que tomava o assunto.
—Se você o vir assim…
—Não vai negar a chocante semelhança entre a morte desta garota e a de sua esposa —
argumentou o juiz.
Um indício de inquietação cruzou o rosto do duque. Até esse momento, o juiz se
manteve em um segundo plano, fora da atenção, mas agora entrava em cena. Ele já estava
esperando. Conhecia sua antipatia por ele. Conhecia-o há anos, quando o juiz se propôs a
afundar Thomas Fergusson e ele não permitiu. Murdock ainda ruminava ter perdido sua
aposta pessoal e as propriedades do escocês, objetivo que perseguiu desde o início. Ele
propiciou a queda de seu amigo, ao adquirir cada uma das notas promissórias assinados por
Thomas para reclamar depois a grande dívida.
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Não. O ardiloso juiz não o tinha perdoado ainda que tivesse posto um pagamento sobre a
mesa para evitar a falência de Thomas, tinha arruinado um negócio excelente.
—Está insinuando algo, milord?
—Que você pôde matá-la, Ormond? Não, Por Deus! — Ensaiou uma risada vazia que
aprofundou os traços cruéis de seu rosto— Você não mancharia as mãos em algo assim. —
levantou-se e cruzou um olhar com o duque, ao qual não ia perdoar por lhe privar de ser
muito mais rico agora. Tinha pegado Ormond pelas bolas e não pensava em soltá-lo— Não
me ocorreria acusá-lo de nada. No momento.
A nenhum dos presentes passou despercebida a inimizade latente entre ambos. Parrish,
vendo que o juiz não pensava em continuar, pigarreou e perguntou:
—Quando posso interrogar seus criados, excelência?
—Quando quiser inspetor. A sua inteira disposição, não só a criadagem, mas também o
pessoal da casa por completo. Embora, se me permitir isso, eu gostaria de lhe pedir algo.
Parrish assentiu, armando-se de paciência. Ormond ia recordar-lhe seu berço e a…
Insinuar-lhe que jogasse terra sobre o assunto. Depois, deixaria cair em seu bolso uma boa
quantidade de libras e o tema estaria resolvido. Afinal, unicamente se tratava de uma
simples criada. Deus! Se tivesse aceitado todos os subornos que tinham lhe oferecido desde
que era inspetor, hoje seria rico. Os malditos aristocratas pensavam que tudo se
solucionava com algumas moedas.
Mas não era isso e Clifford Ellis voltou a surpreendê-lo.
—Damos uma festa em um par de dias. Se fosse possível atrasar um pouco suas
pesquisas eu ficaria muito grato. Não gostaríamos esfriar o ambiente nem alimentar às
línguas que situariam a morte de minha anterior esposa e este caso no mesmo nível, tendo
em conta, tal como apontou lorde Murdock, a semelhança de algumas circunstâncias.
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Parrish estava ciente do desgraçado episódio, embora não interferiu em nada nele.
Analisou a petição do duque e se pôs em seu lugar. Podia considerá-la razoável.
—Por mim não há inconveniente. Lorde Murdock?
O juiz não ia ser a nota discordante, uma pequena trégua não prejudicava a ninguém.
Aceitou, não podia fazer outra coisa.
—Espero, pelo bem de todos — avisou, entretanto— que nenhum só de seus criados se
evapore da noite para o dia, Ormond.
Capítulo 35
Lea deixou que Samantha a ajudasse a tirar o vestido, uma criação maravilhosa da
costureira, mas ela não estava com humor para apreciá-la. A morte de Sugar Bryton pesava
no ânimo de todos e era inevitável que não se falasse de outra coisa.
270
Eleanor não podia pensar em nada que não fosse o maldito assassinato. Uma e outra vez,
com a monotonia cansativa, lhe vinham à cabeça a confissão de seu marido sobre sua
relação com a moça. E as insinuações astutas do juiz Murdock. Tinha terminado realmente
o caso de Cliff com a criada? Onde tinha estado ele naquela noite? Essa pergunta a
inquietava. Porque quando ela levantou na alvorada, decidida a ir ao duelo e impedi-lo
como fosse, tinha encontrado seu marido mudando uma roupa que jorrava água e
preparando-se para o encontro acertado com Lionel. O que mais estranhou era que a cama
estava intacta. Cliff não tinha dormido ali. Então, onde tinha passado a noite? O que tinha
estado fazendo?
Um torniquete doloroso ferroava suas têmporas. Dizia-se que era apenas uma
coincidência, que talvez tenha ficado trabalhando na biblioteca, que tinha saído depois para
respirar ar fresco, que a chuva o tinha surpreendido… Mas todas e cada uma das respostas
que encontrava se chocavam contra o muro da dúvida e, o que era pior, o próprio Cliff fazia
pouco por limpá-la. Ele encerrou-se em seu mutismo e se negou a dar explicações uma vez
que se foram o inspetor Parrish e o juiz. Não tinha conseguido lhe tirar uma palavra. Nem
sequer sobre o duelo. Ele sabia que ela estava se mordendo pelo trato degradante que ele
tinha lhe dispensado. Porque quando lhe disse que iria com ele, limitou-se a olhá-la de cima
abaixo, a tinha agarrado pelo braço, havia a devolvido ao seu quarto e tinha trancado a
porta por fora. Ela tinha gritado algo muito feio, mas ele já tinha fechado.
—Relaxe, menina — ouviu que Samantha a animava— Tudo se esclarecerá.
Desculpou-se assim que pôde e se encerrou em seu quarto. Sonia estava dentro, mas Lea
mal reparou nela, perdida em suas reflexões.
Sentou-se em frente à penteadeira e o espelho lhe devolveu uma imagem gasta, com
olheiras profundas sobre suas maçãs do rosto. Levantou-se e caminhou até as janelas onde
massageou suas têmporas para atenuar a dor de cabeça e suspirou. Teria dado tudo por ter
Sean ao seu lado. Ele era o mais atrevido de seus irmãos, que lhe devolvia o ânimo e a
271
aconselhava. Mas Sean estava à milhas de distância e ela devia enfrentar sozinha sua
vacilação. Se por acaso fosse pouco, ainda estava próxima uma celebração na qual teria que
lidar com a nata de Londres e aguentar as suspeitas dos céticos que a julgariam pouco
adequada para ocupar o lugar que lhe correspondia como esposa de Cliff.
Sonia limpava a superfície do móvel, mais atenta às reações da duquesa do que ao que
fazia e, assim, derrubou o porta-joias que caiu, esparramando as poucas joias que continha
e um papel escorregou até o chão no momento em que Lea se virava para ver o que
acontecia.
—O que é isso?
—Não sei milady. Devia estar no porta-joias. Lamento minha incompetência, excelência,
agora mesmo o arrumo.
Uma nota? Se ela não estava acostumada a guardar… Oh, inferno! A sua cabeça latejava.
—Não se preocupe e me leia a nota, Sonia, por favor. —Voltou sua atenção ao exterior.
Abaixo, um par de jardineiros trabalhava nos canteiros embora garoasse outra vez.
Como não obtinha resposta se virou e encontrou Sonia com a nota na mão e a expressão
preocupada.
—E bem? O que diz?
—Não sei ler, excelência — confessou à jovem.
Eleanor se deu conta de sua falta de tato e tratou de sorrir. Aproximou-se e pegou o
papel.
—Está bem por agora, Sonia. Vá ver se Flora tem algo que recomendar.
—Mas milady, suas joias…
—Eu as recolherei.
272
A moça fez uma reverência e partiu. Então Lea desdobrou o papel e leu. Era uma escrita
de traços regulares e letra grande. E a mensagem, uma canalhice que a fez cambalear e
aumentou os dolorosos batimentos em suas têmporas.
A primeira mulher de Ormond morreu quando Sugar cruzou em sua vida. Agora, ela
morreu porque você chegou.
Já se perguntou o que poderia acontecer se aparecesse outra mulher na vida do duque?
Deixou cair à nota e levou as mãos à boca como se com isso pudesse tapar sua
respiração agitada. Quem a teria deixado ali? Quem podia havê-la escrito? Queriam avisá-la
de um perigo?
Então bateram na porta. Com um chute arrastou a nota que foi parar debaixo do móvel.
Recompôs o semblante, era seu marido.
—Encontra-se bem? — ele perguntou.
Foi se aproximando dela, que permanecia estática porque via inimigos por toda parte.
Negava-se a acreditar que Cliff tivesse algo a ver com o assassinato de sua esposa ou com o
de Sugar, mas o que sabia realmente dele? O que tinha acontecido na torre sul naquela
noite? Quando ele se inclinou para procurar a base de seu pescoço não fez nada para
correspondê-lo e seus olhares se cruzaram no espelho.
—Está afetada por tudo o que houve. Tem olheiras.
—Não dormi bem. Preocupava-me muito com o duelo.
—Lamento haver me comportado de modo grosseiro, Lea, mas entenda que não podia
vir conosco. E, como antecipei, no final Lionel não compareceu.
273
—Essa não é razão para que me trate como uma criatura a ser castigada e me enjaular
como um mascote — ela o recriminou— O que houve realmente? Por que Richmond não se
apresentou?
Cliff se fixou em sua expressão distante, em seus olhos que fugiam dos seus.
Compreendia seu estado de ânimo e seu mau humor. Acariciou-lhe o lóbulo de uma orelha
e respondeu:
—Ameacei-o de desafiá-lo pessoalmente se não se fosse de Londres.
Ela o olhou através do espelho.
—Não parece uma ação própria de cavalheiros.
—Esse idiota não é um cavalheiro. Mas devo reconhecer que a carta que escreveu a seus
padrinhos foi das mais convincentes, tanto que redimiu Robert ante seus conhecidos.
Não estavam errados os métodos do duque de Ormond para resolver os problemas,
pensou ela. Se algo lhe estorvava, simplesmente o tirava da frente.
Para Eleanor tudo era um pouco mais complicado, movia-se entre claros e escuros,
queria respostas e não as tinha. Ele, em troca, mantinha-se sereno, seguro de si mesmo,
sempre atraente, abrindo agora seu cofre e manuseando suas joias. Era difícil contestar sua
honra, embora não podia negar que o temor abria um vazio em sua mente. Mas isso
simplesmente acontecia porque estava se apaixonando perdidamente por ele.
Fora, o dia estava cinza e rude, como seu próprio humor.
—Como ficou seu vestido?
A pergunta a devolveu ao presente. Esboçou um meio sorriso que não chegou a seus
olhos e respondeu com facilidade.
—É lindo.
274
—Vai me deixar vê-lo antes da festa? — Ele seguia entretido com suas joias.
—Sua avó me mataria se o fizesse. E Bethia a seguiria. Dizem que equivale a meu vestido
de noiva, já que nos casamos por procuração.
—Esperarei então. Estou certo de que não me decepcionará. Quanto a estas bijuterias, já
decidiu quais usará? —Acariciou a borda do cofre com o dedo do meio.
Eleanor se fixou em sua mão elegante, no comprimento dos dedos. Os mesmos que
tinham percorrido sua pele levantando ondas de prazer e que queria de novo sentir em seu
corpo. Desejava-o. Embora fosse insano deixar de lado essa outra realidade não resolvida,
porque muito bem podia estar vivendo com um assassino.
Ele pigarreou e se aproximou. O aroma de seu perfume chegou até ela. Pegou a
gargantilha de ouro e a mostrou.
—Era de minha mãe — explicou.
Não se importava nada com a joia. Não podia concentrar-se em nada que não fosse seu
perfil, seu nariz, seus lábios.
—Com brincos combinando? Eu gostaria de dispor das joias da família, mas não é
possível porque as estão restaurando. Talvez queira ir a Londres e escolher algo. Poderia te
acompanhar, se o desejar — ele insinuou, riscando uma linha desde seu ombro até o
cotovelo que provocou em Lea um tremor.
—Não é necessário, obrigado. —Esticou o braço para deixar a prisão de seus braços e
livrar-se de sua carícia e lhe mostrou um par de brincos pequenos— Estes servirão.
A mão de Ellis ficou suspensa no ar. Fechou o punho, dolorido por sua reação.
—Lea…
—Estou muito cansada. Desculpe-me com sua avó pelo jantar, por favor.
275
Ellis inchou o peito e expulsou o ar lentamente. Desejava mais que tudo no mundo ficar
ali, envolvê-la em seus braços, beijá-la, fazer amor e esquecer-se da morte de Sugar e das
tragédias da vida. Mas não era um estúpido: Lea o estava dispensando com toda a
elegância. Inclinou-se, beijou ligeiramente seus lábios e se encaminhou à porta.
—Direi que subam uma bandeja. Boa noite.
—Boa noite.
Antes de sair, ainda teve tempo de dizer:
—Tenho duas surpresas reservadas para você amanhã. Espero que sejam de seu agrado.
—Com certeza serão. — ela tentou parecer grata, mas sem muita convicção.
Quando ele se foi, Eleanor colocou a mão na boca e ruminou sua inquietação. Agachouse para recuperar a nota e voltou a lê-la. Sacudindo-se em silenciosos soluços a aproximou
da chama de uma vela e depois abriu a janela e atirou os restos.
Um momento depois, Sonia chegou com um pouco de jantar e um ponche quente. Em
completo silêncio, depositou a bandeja, saudou e partiu. Lea mal provou um bocado, mas
bebeu o leite, despiu-se e se meteu na cama.
Repensou sobre os pesadelos ou as visões que tinha estado tendo desde que chegou ao
castelo. Tinham que ser uma advertência, já não lhe cabia dúvida. Por que a incitava a ir à
torre sul? Isso a intrigava. Sempre pensou que tinha um sexto sentido para as percepções
intangíveis, talvez sobrenaturais, e agora se reafirmava essa ideia.
Ela não era uma mulher fraca nem estúpida. Cedo ou tarde descobriria o mistério que se
encerrava entre aqueles muros. Só devia estar preparada e ter os olhos bem abertos.
O cansaço acabou por vencê-la e adormeceu.
Cliff lhe apareceu no sonho. Uma aura dourada o rodeava. Depois foi se transformando
em figura demoníaca. Seu rosto se apagava, encurvava-se seu corpo até adquirir uma forma
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retorcida que se aproximava dela com as mãos convertidas em garras… Eleanor gemeu e se
revolveu entre os lençóis. Gritava pedindo ajuda, mas ninguém a ouvia. O monstro a
tomava entre seus braços, arrancava-a de sua cama e a conduzia através de um túnel
escuro, muito escuro, escada acima até uma porta que se abria chiando. Encontrava-se na
torre e o temporal de neve e chuva a enchiam de frio e quase não podia ver.
O espantoso ser no qual se converteu seu marido a empurrava para a beira da torre e ela
mal podia resistir. Caiu de joelhos e ele seguia arrastando-a para a escuridão…
A ponto de ser jogada no vazio, gritava desesperadamente… Então, despertou.
Sobressaltada, banhada em suor, seu olhar alucinado varreu cada canto do quarto.
Estava sozinha. Suspirou entrecortadamente e passou as mãos pelo rosto.
—Só foi um sonho ruim — ela disse em voz alta.
Já clareava o dia quando se levantou, com um cansaço infinito e o medo agasalhado
ainda em seu peito.
Capítulo 36
Lea não desceu para tomar o café da manhã e Bethia, que estranhou sua ausência, não
demorou em procurá-la em seu quarto.
—Santa Mãe de Deus! — ela pôs uma mão na testa dela— O que te ocorre menina?
Eleanor sabia que não tinha bom aspecto. As olheiras tinham se aprofundado e tinha os
olhos inchados.
—Não é nada. Tive uma noite ruim.
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—É algo que está se repetindo com frequência. Podia ter me avisado. Não tem febre,
mas está exausta.
—Estou dizendo que não é nada.
—Não está doente?
—Não, Bethia. É só cansaço.
—Vou te trazer o café da manhã. E um chá.
—Só quero um café bem forte.
—Um chá— a outra insistiu— E um par de pãezinhos.
Lea não a contradisse porque sabia que era inútil. Quando retornou e dispôs tudo sobre
a mesinha, esforçou-se em comer um pouco e bebeu a metade do chá. Sem prestar atenção
ao bate-papo animado de Bethia, entregou-se a suas hábeis mãos, que prenderam seu
cabelo em um coque e a ajudaram a vestir-se.
Quem a punha de sobre aviso? Ou talvez tentassem deixá-la louca? Era isso o que tinha
acontecido com a duquesa anterior? Assustou-a alguém até o ponto de fazê-la perder a
razão? Podia ser Cliff um assassino? Tinha tido algo a ver com a morte de Sugar? Havia…?
—Bom dia, senhoras.
Deu um pulo ao ouvir sua voz. Bethia os deixou sozinhos imediatamente. O sangue de
Eleanor empreendeu uma amalucada corrida. Seu marido vestia unicamente umas calças
negras, botas reluzentes e uma camisa branca com o pescoço aberto que deixava
descoberta boa parte de seu peito moreno. Cativada, recordou o sabor de sua pele, seu
tato. Refez-se e lhe devolveu a saudação.
—Você está ficando preguiçosa — ele a arreliou de bom humor— Eu a estive esperando
para tomar o café da manhã. Encontra-se bem?
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Ela não quis contestar. Cliff furtou um dos pãezinhos e deu uma dentada.
—Não descansei.
—Por culpa da tormenta?
—Sim — ela mentiu.
Cliff não ignorou o fato de que ela parecia se esquivar de seu olhar. Ele a pegou pelo
queixo obrigando-a a levantar o olhar.
—O que está acontecendo Lea?
—Estou cansada. Acho que voltarei a me deitar.
Ele soube que mentia. E que voltava a rechaçá-lo. Mas o aceitou porque sabia que a ela
podia ultrapassar o que aconteceu. Só tinha que lhe dar tempo.
—Então mostrarei sua primeira surpresa mais tarde.
Lea tinha se esquecido por completo de seu comentário na noite anterior. Fez um
esforço por serenar-se e esboçou um beicinho lisonjeador.
—Preferia que fosse agora. O que é?
Ele não quis lhe dar pistas, mas lhe deu uma piscada, enlaçou sua cintura e desceram.
Eleanor mascarou sua negativa predisposição e deixou que a guiasse. Sentia uma frouxidão
nas pernas e tinha a garganta seca. Cada terminação nervosa de seu corpo saltava quando a
tocava. De boa vontade teria dado meia volta e se recolhido em seu quarto.
Mas então se encontrou com uma cesta no meio do hall, adornada com um enorme laço
verde. Interrogou Cliff com os olhos e ele assentiu.
Intuiu o que podia haver no interior, mas precisava vê-lo: era um cachorrinho branco, o
mais bonito que já tinha visto. Agitava-se e fazia uns ruidinhos muito engraçados, entre
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gemidos e gorgolejos, com uns olhinhos suplicantes que olhavam para todo lado. Ela o
pegou nos braços e o aconchegou contra seu peito, e o cachorrinho latiu e lambeu sua mão.
Lea se virou para seu marido. Cliff sorria tão satisfeito que fez com que ela se sentisse
culpada. Era esse o homem do qual duvidava? A quem em Londres apelidavam de o Duque
Diabo?
Ellis pegou o animal que pareceu protestar e quase desapareceu entre suas grandes
mãos. Fez-lhe uns afagos, o devolveu, e o cachorrinho se aconchegou a ela colocando o
focinho em seu colo.
—Você gostou?
Lea se encontrou perdida, porque no semblante de seu marido refletia a quietude que
lhe faltava. Não havia sombras esquivas, só satisfação apaixonada.
—É lindo. Obrigado.
Chamou Sonia e lhe entregou o bichinho.
—Lhe dê um pouco de leite morno, por favor.
—Sim, milady.
Uma palma masculina deslizou por suas costas. Seu calor atravessou o tecido do vestido
e se expandiu até sua nuca. Quente e tão próximo, entregou-lhe seus lábios e se apertou a
ele.
—Obrigado — repetiu.
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Capítulo 37
—Hoje não posso lhe dedicar tempo. Diga à senhora Wildes que tudo está perfeito.
Tenho certeza que pode dar os últimos toques no vestido sem mim — Lea pediu a Bethia
antes de entrar na biblioteca onde foi sentar-se no braço da poltrona que seu marido
ocupava.
Cliff deixou de lado os documentos que estava revisando.
—Como sabia que eu gosto de mascotes? Também lhe disse isso seu cocheiro-espião?
—Não. Foi Bethia. Eu diria que começa a gostar de mim. — ele rodeou a cintura
feminina, sentou-a sobre seus joelhos e a beijou.
—Temos que lhe pôr um nome.
—Em quem?
—No cachorrinho. O que você acha de Bubby?
—O cão é seu, milady.
281
Lea se abandonou pouco a pouco ao contato dos dedos que desenhavam linhas em suas
costas. Ele parecia absorto em seus pensamentos e ela teria gostado de conhecê-los. Sabia
tão pouco dele… quanto mais o olhava, mais atraente ele lhe parecia. Vendo-o, se esqueceu
da condenada nota que tinha recebido. Que fácil tinha sido apaixonar-se por aquele homem
que, a princípio, pareceu-lhe taciturno e distante, intrigante e perigoso. Doía que ele não a
correspondesse de igual modo, mas tudo chegaria com o tempo, estava segura. No
momento, iria se conformar com o pouco que lhe entregava. Essa linha de pensamento a
levou a lhe confessar, em um arranque de sinceridade:
—Eu te amo.
Cliff não disse nada, só a olhou intensamente. Lea percebeu que tinha acabado de expor
seus sentimentos, mas já não havia retorno. A pura atração física se tornou em algo mais
profundo e o amava, essa era a verdade.
Ellis levantou para dirigir-se à porta. Eleanor ficou em suspense. Fora um impacto tão
grande o que tinha lhe confessado que sentia que agora fugia? Safado! Ela não tinha pedido
nada em troca.
Mas ele não partiu, mas sim fechou a porta com chave. Quando se voltou para olhá-la, o
coração de Lea se acelerou. Compreendeu suas intenções e se escondeu atrás da poltrona.
—Não pensa…? —Ele assentia e seguia aproximando-se devagar, como um predador,
enquanto tirava a jaqueta— Cliff é de dia. E estamos na biblioteca!
—Ninguém vai interromper-nos, senhora.
Isso era mau, pensou ela. Porque não tinha ânimo para opor-se. Que demônios! É que
também não queria. Na verdade, estava desejando perder-se em seus braços.
Brincalhona, esquivou-o e alcançou o refúgio da mesa. Ellis concordou em participar de
uma brincadeira que ambos sabiam onde iria terminar. Seu olhar se tornou luxurioso e
durante uns minutos se entreteve em jogar de gato e rato.
282
—Vou apanhá-la.
—Eu vou avisá-lo que sou muito boa em me esquivar, excelência — ela brincava— Meus
irmãos raramente conseguiam me pegar.
—Eu não sou um de seus irmãos.
—Ha!
—Vou apanhá-la. E quando o fizer… — ele fez uma curva para a direita para despistá-la e
contornou a mesa com rapidez pelo lado contrário. Ela deixou escapar um gritinho
misturado com uma risada zombadora e escapou com mestria— Quando a pegar, vou
cobrar todas as dívidas amorosas que me deve.
Ela sentiu suas pulsações acelerarem. Sabia que não tinha escapatória e o escutar dizer
isso lhe agradou. Mas ia fazê-lo desejar o que ela mesma desejava. Insinuou para um lado e
quando ele voltou para ali o enganou com um movimento rápido e se afastou de novo. Cliff
acabou abraçando a poltrona, tropeçou e quase caiu de bruços; e ela deixou escapar uma
gargalhada.
—Quando te apanhar — ele repetia— vou tombá-la sobre o tapete, despir o seu corpo
inteiro e ficará a minha mercê.
Enquanto ele expressava suas intenções, ia tirando a camisa e ela foi embargada pela
vontade de render-se e fundir-se com ele para que fizesse exatamente isso. Eleanor salivou
ante toda aquela extensão de pele morena e soube que estava a um passo de quebrar
todas as suas reservas para acariciá-lo.
—Senhora — ela o ouviu dizer com voz rouca— o jogo terminou.
Umedeceu os lábios, repentinamente secos e abriu muito os olhos quando o viu
descalçar-se e abrir a dianteira das calças.
—Vai ficar nu?
283
—Como Deus me trouxe para o mundo.
—É um pagão.
—E você uma bruxa que me enlouquece.
Lea o observava extasiada, respirava entrecortadamente, tinha que segurar-se para não
ir até ele e tocá-lo. Mil e uma perguntas borbulhavam em sua cabeça. Podia haver se
apaixonado por um assassino? Seu coração lhe dizia que não.
—Tire o vestido, Lea.
Um abafamento pintou as bochechas de Lea de vermelho. Cliff se mostrava perante ela
sem pudor algum e completamente excitado. Sem uma palavra, começou a lutar com os
colchetes, mas seus dedos tremiam tanto que não acertava. Deu-lhe as costas e ele se
apressou a ajudá-la. Inclinou-se para beijar cada porção de pele que ia descobrindo e mal
abaixou seu vestido que ficou abarrotado em seus quadris.
Eleanor ofegava com o toque das mãos de seu marido em sua cintura, que a despiam
apressadamente. Parecia-lhe que estavam fazendo algo indevido, clandestino, mas os
dedos masculinos a estimulavam, excitavam, avivavam a chama que a consumia. O vestido
e a anágua caíram em um sussurro de tecido que se prolongou com um suspiro de
liberação.
Cliff fez que se virasse para deleitar-se com uma visão que lhe tirava o fôlego.
—É linda.
Isso lhe soou como uma oração e se sentiu assim, perfeita e única. Quando tentou tirar
as meias, ele a deteve.
—Deixa-as — ele lhe pediu como o menino que solicita uma guloseima— Assim está
perfeita. E muito erótica.
284
Lea corou ainda mais. Nunca tinha imaginado a si mesma tão lasciva e sensual.
Umedeceu os lábios quando ele abrangeu seus seios e os pesou nas palmas de suas mãos.
—Deus! —gemeu o duque.
Tomou um em sua boca e varreu as defesas de Lea, que se arqueou para ele,
oferecendo-se. E Cliff se apoderou de sua entrega, deixou-se arrastar pelo desejo que o
consumia, saboreou, lambeu e sugou sem trégua.
Ela não ficou quieta. Acariciou-lhe os ombros, as costas, percorreu suas coxas, procurou
suas nádegas e as apertou o aproximando ainda mais dela. A demonstração viril de sua
excitação contra seu ventre a fazia rodar para a loucura.
— Eu também quero te tocar.
Cliff inspirou com força, segurou-a pelos ombros e olhou seu rosto avermelhado. Soltou
o ar pouco a pouco, seu membro palpitou enfurecido e o devaneio de render-se às carícias
de Eleanor o embriagou. Devorou sua boca cheia e depois se deitou no tapete.
Lea navegou por uns segundos em um mundo imaginário onde se apagavam seus
princípios e seus escrúpulos. Seu marido se oferecia, pedindo que abandonasse qualquer
trava moral, que desfrutasse de seu corpo. Ela sentiu-se um pouco desleal, mas ele lhe
parecia tão excitante que sucumbiu. Ajoelhou-se ao seu lado e estendeu suas mãos para
deixá-las paradas em seu peito. Encontrou-se em um cenário extraordinariamente
libidinoso e desavergonhado. O corpo de Cliff estava tenso, e gotinhas de suor corriam por
sua testa, mas não se moveu, esperando que fosse ela quem tomasse a iniciativa. Lea se
inclinou e lhe lambeu um mamilo.
Ele retinha o ar. Tê-la nua ali, sobre ele, e estar quieto a mercê dela, ia matá-lo. Elevou os
olhos para o teto e cravou as unhas nas palmas da mão quando os lábios femininos
deixaram um rastro ardente que desceu até seu ventre. Lea o beijava ao redor do umbigo,
nos lados, massageava suas pernas, a parte interior de suas coxas. A dor nos testículos se
285
fazia insuportável. Precisava entrar nela, esvaziar-se, mas aquela feiticeira, em sua
inexperiência, estava-o levando a loucura. Iria se comportar como um colegial se não
pensava em outra coisa, assim se esforçou para fugir usando sua mente o quanto antes…
«Tenho que ir à feira do gado…»
Lea depositava pequenos beijinhos em seus joelhos.
«Espero me reunir com o encarregado das reformas da ala leste…»
A boca dela se entretinha em suas coxas…
«Devo desenvolver meu discurso perante a Câmara…»
… e ia se aproximando de sua virilha.
—Lea, por Deus! —soluçou sem poder conter-se mais, elevando o corpo e apoiando-se
sobre os cotovelos.
—Não terminei excelência — ela respondeu com desinibida malicia.
Ellis era devorado por um fogo interior. Seu membro pulsava dolorosamente exigindo
satisfação. Infernos! Tivesse acabado ou não com semelhante tortura, ele era incapaz de
suportar mais se não quisesse derramar-se agora mesmo. Febrilmente a agarrou pela
cintura, deitou-a e se colocou em cima. Abriu as pernas de Lea com um joelho e se enterrou
nela.
Eleanor o abraçou, elevou à pélvis, uniu-se a ele. Paixão contra paixão, pele contra pele,
boca contra boca. Os embates de ambos se aceleraram, procuraram a culminação e a
encontraram juntos.
No topo do prazer ela gemeu sem pudor e ele balbuciava seu nome.
286
Capítulo 38
Estavam-na sacudindo. Protestou e abriu os olhos.
—Lea…
—Hummm…
—Vamos acorde. —O fôlego de Cliff fazia cócegas em seu pescoço— Simpson chamou
duas vezes e vão pensar mal de nós.
Eleanor despertou de repente e se sentou. Seu marido estava deitado ao seu lado, sobre
o tapete, e ainda estava completamente nu. Ela ruborizou-se, esticou a mão para alcançar
sua anágua, cobriu-se e teve que apelar a todo o seu controle para atrever-se a olhá-lo no
rosto.
Não conseguia acreditar que tivessem feito… que tivessem estado… Se levantou e subiu
a roupa pelas pernas.
—Uma vista deliciosa — ele ronronou centrando sua atenção no triângulo entre suas
pernas, lamentando que o tecido o cobrisse.
—Levante daí, caramba! — ela insistiu, procurando o resto de sua roupa.
Ele seguia em uma pose relaxada, reclinado sobre um cotovelo, nu, como um deus
pagão. Sem poder deixar de olhar seu marido e nua também do meio corpo para acima, ela
não pôde dissimular um breve inchaço de seus mamilos, que ele captou muito satisfeito.
287
Lea o exortou a mover-se, recolheu o vestido e o passou pela cabeça. Depois começou a
procurar seus grampos, espalhados por todos os lados. Prendeu o cabelo e tentou arrumálo dignamente.
O duque se esticou como um felino e suspirou.
—Você se importaria em me ajudar, Cliff? Não quero nem pensar o que vão falar os
criados.
Ellis não se importava nem um pouco com que a criadagem fosse fofocar. Se pudesse
escolher, ficaria ali indefinidamente, desfrutando de sua mulher. Mas se levantou
agilmente, encontrou um par de grampos e a ajudou a recolocar o cabelo sem deixar de
sorrir como um safado.
O toque de uma nova chamada fez Eleanor dar um pulo, enquanto Cliff colocava as
calças. Razoavelmente coberto, abriu a porta antes que ela pudesse detê-lo.
—Sim, Simpson. O que houve?
—Chegaram milord. Faz momento — anunciou o mordomo, rígido como uma tábua, sem
atrever-se a desviar os olhos de seus sapatos— Os fiz passar para o salão verde.
—Peça que nos desculpem uns minutos mais.
Fechou a porta e se manteve de pé, com os braços cruzados sobre o peito. Eleanor
estava agora vermelha escarlate, porque se Simpson havia forçosamente imaginado um
escândalo ao vê-los encerrados na biblioteca, Cliff acabava de confirmá-lo abrindo a porta
meio vestido.
—Quem chegou? — ela deu-lhe as costas para que abotoasse os colchetes.
—É a segunda surpresa da qual lhe falei.
Lea esperava algo mais, possivelmente uma pista, mas ele não parecia disposto a soltar
nada.
288
—Subirei para me trocar.
—Eu gostaria de repetir.
—Morda sua língua!
Ele se afastou e ela passou ao seu lado deixando no ar um sutil perfume que seduzia o
duque a perguntar-se se não devia retê-la e mandar ao diabo os recém chegados. Deu de
ombros e recolheu sua roupa e suas botas. Depois, subiu as escadas de dois em dois
degraus até sua própria antecâmara. Trocou-se e saiu ao mesmo tempo em que Eleanor o
fazia do seu com o aspecto de uma mulher que não havia feito nada errado. Ela pôs um
vestido creme e prendeu seu cabelo em um rabo que apertava uma fita amarela.
Simplesmente, linda.
—Perfeita para receber visitas — ele a elogiou, rodeando sua cintura e caminhando a seu
lado.
—Solte vadio — ela lhe deu um tapinha— É perigoso.
—Eu, senhora?
Seguiram em silêncio, mas antes de entrar no salão onde os aguardavam a fez virar-se e
a beijou. Por um momento, ela se esqueceu da visita, mas depois pôs as mãos no seu peito
e o afastou.
—Agora não.
—Mais tarde?
Ela mordeu os lábios. Cliff tinha a expressão de um menino que planeja alguma
brincadeira.
—É incorrigível, não é? E em Londres acreditam que é um tipo ajuizado. Se soubessem…
Viver para ver!
289
—Querida — ele encolheu um ombro e elevou a mão para lhe acariciar os lábios,
inchados de seus beijos— até o duque de Ormond pode perder a sensatez se lhe oferecem
uma ninfa nua em sua própria biblioteca.
—Calado! —Tampou-lhe a boca, sufocando sua atitude risonha— Onde está sua avó? E
Robert? Não me encontro com ânimo para lutar agora com uma visita.
—Minha avó foi visitar uma antiga amiga no povoado e meu irmão se prestou a
acompanhá-la. —ele amarrou a cara— Uma saída francamente inoportuna, porque vou
necessitar de ajuda.
Bethia chegava correndo, segurando a barra do vestido para não tropeçar. E tinha um
sorriso de orelha a orelha. Dedicou uma reverência a Ellis e lhe disse:
—Obrigado, excelência.
Eleanor não perdeu a troca de olhares entre eles. O que estava havendo ali? Sua aia
parecia encantada com seu marido do qual, não fazia muito, não parava de reclamar. Não
teve tempo de perguntar, porque Cliff abriu a porta e lhe deu passagem.
As cinco figuras que aguardavam se levantaram como uma só e Lea estourou em um
grito de júbilo antes de lançar-se aos braços de um deles, que a estreitou contra seu peito.
—Papai!
Cliff se manteve em um segundo plano enquanto sua esposa abraçava a cada um dos
convidados e Bethia os saudava efusivamente. Invadiu-lhe um golpe de inveja ao observar o
ambiente festivo da família. Lea passava de um braço para outro e ria. Um tipo loiro, alto e
sem dúvida atraente a elevou no ar e deu voltas com ela. Se não soubesse de quem se
tratava ele teria ficado abalado.
Depois de um momento, sua esposa voltou a lhe dedicar sua atenção. Tinha os olhos
alagados em lágrimas de agradecimento e nesse preciso instante Cliff soube que poderia
290
dar a vida por aquela rebelde escocesa. Qualquer coisa para fazê-la feliz. Ela estendeu a
mão e ele a pegou.
Houve uma espera silenciosa durante a qual o duque enfrentou os rostos dos recém
chegados.
—Meu marido.
A apresentação direta e enfática de Lea encheu o peito de Ellis.
—Neal McKenna, excelência — se apresentou o primeiro que abraçou à moça,
estendendo a mão. Cliff a estreitou com força— Meu pai, Dauly McKenna e meus filhos,
Sean, Ian e Jaimie.
—Cavalheiros bem-vindos a Hallcombe House.
Lea lhe passou um braço pela cintura e grudou a seu lado. Foi um ato reflexo que o
duque agradeceu profundamente porque se encontrava um tanto incômodo. Ele, que tinha
conversado com os homens mais importantes do reino e visitado o salão do trono em
repetidas ocasiões, sentia-se fora de lugar. Afinal agora não estava em frente de algum
ministro, mas diante da família de sua esposa, e recaíam sobre ele cinco pares de olhos que
observavam cada um de seus movimentos.
Pigarreou e lhes indicou que sentassem enquanto Simpson fazia sua aparição trazendo
um carrinho com bebidas e algumas delícias gastronômicas e Bethia se retirava
discretamente.
—Graças a Deus que chegamos a tempo para a festa — grunhiu o patriarca dos
McKenna, alto, ainda robusto e elegante— As estradas inglesas são realmente terríveis.
—Avô…
—Eu não disse nada que não seja verdade. Na realidade, a Inglaterra não tem muitas
coisas das que se gabar. —Desafiou sem recato ao duque.
291
Lea corou, mas Cliff soube contornar o temporal. Recostou-se no assento e cruzou as
pernas com um ar do mais relaxado.
—Minha avó já me advertiu sobre seu humor ácido, laird, assim não vai ser fácil que eu
entre no ardil.
O mais novo dos McKenna não economizou um comentário distendido.
—Parece-me, avô — ele advertiu com os olhos cravados nos de seu cunhado— que
acaba de encontrar com a fôrma de seu sapato.
Neal se removia em seu assento. Enquanto ao seu redor a conversa girava a propósito
dos últimos acontecimentos na Europa e Lea intervinha com algo mais, ele tentava situar a
personalidade de seu genro. A acolhida do duque tinha sido sincera, tinha que admitir que
as propriedades de Ormond eram mais suntuosas do que ele esperava e sua filha parecia
feliz. Sim, a via radiante. Estava mudada. Encontrava-a… mais mulher. Indiscutivelmente, o
matrimônio tinha lhe assentado bem. E não era alheio aos olhares entre ambos e o modo
no qual Clifford Ellis atendia cada sugestão de Lea.
Foram abordando temas de atualidade e, inevitavelmente, ao assunto mais quente da
vida do castelo. O duque os pôs em dia dos incidentes sem ocultar um só detalhe. Nem
sequer sua antiga relação com Sugar Bryton.
Decidiram então continuar a conversa tomando uma taça em outro salão, circunstância
que Lea aproveitou para desculpar-se e sair, atitude que mudou o semblante de Ellis.
—E diz excelência — Neal perguntou— que a polícia suspeita de você?
—Não exatamente. Pelo que sabemos, qualquer um pôde cometer o assassinato. Mas o
juiz Murdock e eu não mantemos boas relações. Faz tempo que eu interferi em um de seus
negócios e não me perdoou isso. Infelizmente, tomou muito interesse pela investigação.
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—Eles se apóiam em indícios sólidos ou somente eventuais, excelência? —quis saber
Sean.
Cliff olhou para seu cunhado mais velho e lhe agradou o que viu. Sean era um tipo
bonito, como todos os McKenna, muito seguro de si mesmo, um pouco arrogante e,
certamente, bastante orgulhoso. Viu nele seu próprio reflexo e não lhe coube dúvida que
tinham muitas coisas em comum.
—Meu nome é Cliff para a família e os amigos, Sean.
—O levaremos em conta.
—Não há nada concreto — continuou Cliff— Sugar era uma moça um tanto… amalucada.
Se tiver que fazer caso dos falatórios da criadagem, a quem interroguei por minha conta,
tinha relação com um par de indivíduos, algo que não pude comprovar ainda.
—Pôde ser o assassino alguém estranho ao castelo? —interveio Ian.
—Hallcombe House está isolado e guardado. O mais provável é que qualquer pessoa
alheia a casa chamasse a atenção.
—No que podemos ser de utilidade? —ofereceu-se o mais novo dos McKenna— Conte
conosco, é claro. Isto afeta também a Lea.
—Agradeço-lhe isso, Jaimie, mas, sinceramente, não me ocorre o que podemos fazer
exceto esperar que a polícia ate os cabos.
—Minha neta está segura? —interveio Dauly.
Cliff assentiu. Apesar de seu cabelo branco e das rugas que sulcavam seu rosto, o laird
conservava a estrutura e o fascínio que tantas vezes sua avó comentou. Não era estranho
que Samantha Ellis tivesse estado apaixonada por um homem que ainda mantinha traços
imponentes.
293
—Todos os que trabalham aqui contam com minha confiança. Mas contratei os serviços
de dois agentes da Bow Street. Lea não sabe, e espero que não lhes ocorra mencioná-lo,
mas será vigiada as vinte e quatro horas do dia.
—Não quero pensar em sua reação se souber por terceiras pessoas - pensou Neal em voz
alta.
—Não tem por que sabê-lo.
—Esses agentes são de confiança?
—Por completo. Tenho bons contatos e pedi os melhores. Se farão passar por dois novos
criados de apoio para a festa.
Dauly McKenna estalou a língua.
—Não confio muito nos policiais ingleses.
—Nem eu em um embusteiro escocês! —respondeu-lhe uma voz bem timbrada, fazendo
todos darem um pulo.
Samantha Ellis os observava da entrada. Ficaram em pé e Cliff elevou uma prece ao céu
para que sua avó não arruinasse a noite. Se insistisse em sua ameaça permanente de matar
Dauly McKenna assim que o tivesse na frente, iriam ter problemas. Desejou como nunca
que não tivesse aparecido, pelo menos até que ele pudesse havê-la preparado para a visita
dos familiares de Lea.
A duquesa viúva atravessou a sala absolutamente altiva. Com as costas muito retas, o
queixo ligeiramente elevado e jogando faíscas pelos olhos, seu caminhar gracioso
monopolizou a total atenção do laird ancião. Ao chegar a sua altura, desafiaram-se em
silêncio, com essa intensidade de duas almas complexas que não se sabe bem se se atraem
ou se repelem, ou talvez ambas as coisas de uma vez.
294
—Segue tão repugnantemente de boa aparência como quando era jovem, condenado
escocês do demônio - a ouviram dizer em um auditório no qual parecia haver-se detido o
tempo.
—E você tão descaradamente bonita… embora com a mesma língua viperina. Pensei que
os anos abrandariam seu caráter, mas vejo que me equivoquei. Quando se comportará
como uma verdadeira dama, Sam?
—Nem morta, McKenna! —explicou ela. Sentou-se em uma das poltronas e evitou as
apresentações— Ninguém vai oferecer-me uma taça?
Foi o próprio McKenna quem se preparou para servi-la. Com uma garrafa na mão a
interrogou em silêncio e esta, arqueando uma sobrancelha, assentiu imperceptivelmente. O
escocês serviu então brandy em um copo e lhe acrescentou um pouco de água. Quando o
entregou, a dama não pôde evitar um ar de saudade.
—Ainda se lembra.
—Não esqueci nem um segundo do que passamos juntos, Sam.
—Descarado! —Para assombro de Cliff, sua avó corou enquanto pigarreava evitando os
olhos do escocês— Cliff, Robert foi para Londres. Para o caso de surgirem problemas com
seu tio. Quero que Irish esteja na festa embora eu mesma deva ir procurá-la.
—Não acredito que se oponha.
—Esse desgraçado seria capaz de não respirar e afogar-se só para chateá-lo e sabe. —
Deu um gole em sua taça e enrugou o nariz— Perdeu a mão, Dauly; eu gosto mais suave.
—Carreguei-o de propósito, milady. Pela surpresa, já sabe…
—Não esqueci que jurei te matar se voltássemos a nos encontrar, Dauly. Não me tente.
—Anos atrás você adorava o que eu fizesse.
295
—Anos atrás era uma estúpida romântica. E você, um bucanero de seis pence.
—Que conseguiu arriar suas velas.
Cliff se encontrava aturdido em meio daquela guerra dialética. Nunca tinha visto sua avó
brincar e, por que não dizê-lo, namorar. Se ali não havia faísca, ele seria um monge.
—Bem — suspirou a dama, evitando a última ladainha do escocês— Já que está aqui com
toda sua prole, desembucha e conte o que acontece por essas terras selvagens. E você,
moço —virou seus olhos para o duque— vai me explicar o que é tudo isso dos dois agentes
da Bow Street.
Capítulo 39
Eleanor floresceu mais com a presença de sua família. Ela teria gostado de passar cada
minuto do dia com eles e, entretanto, estava a mais de três horas encerrada preparando-se
para o evento.
Ela banhou-se e Sonia — que fazia de cada etapa algo para surpreendê-la— tinha lhe
dado uma massagem com óleo perfumado que a relaxou; Bethia escovou seu cabelo até
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que o deixou brilhante e sedoso para depois trabalhá-lo em cachos que caíam emoldurando
seu rosto e acentuando sua juventude. Ambas tinham se esmerado, certamente.
—É uma maravilha, excelência — Sonia comentou alisando a saia do vestido—
Dificilmente acharia uma cor que favorecesse mais a senhora.
—Você gostaria de pôr algo no cabelo? —perguntou-lhe sua aia— Umas flores brancas,
talvez?
—Acho que não combinariam. Vocês têm certeza que estou bem? Os convidados
começaram a chegar, não é?
—O pátio está repleto de carruagens.
Bateram na porta e Bubby, que não tinha deixado de mexer em tudo, saiu correndo.
Ficou em duas patas e começou a arranhar a madeira ao mesmo tempo em que lançava uns
latidos melancólicos. Bethia o pôs de lado, abriu a porta e se encontrou com o duque.
—Sim, excelência? — ela perguntou fechando ligeiramente a porta para impedi-lo de ver
o interior.
—Posso entrar? —O cachorrinho atacou a barra de suas calças e ele se agachou para
pegá-lo nos braços.
—Temo que não, excelência. —Bethia ignorou a cara de espanto de Ellis— Como já sabe,
o vestido deve ser uma surpresa.
—Senhora Fallen…
—Excelência…
Cliff não forçou a situação porque a resmungona que tinha na frente não ia deixá-lo
passar, assim tirou uma caixa de sua casaca e a entregou junto com o vira-lata, que emitiu
um gemido queixoso.
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—Entregue isto a minha esposa, por favor.
—Sim, milord.
E ela lhe deu com a porta no nariz. Ao duque não restou mais remédio que soprar e
afastar-se para suas próprias acomodações. Embora Robert estivesse exercendo às vezes de
anfitrião, devia trocar-se e descer o quanto antes.
O conteúdo do estojo deixou Lea maravilhada: uma fileira dupla de pérolas perfeitas,
brincos combinando e um delicioso adorno de pérolas menores para o cabelo. Tanto Sonia
como Bethia se aproximaram para admirar o presente.
—Vou ter que reconhecer que ele tem bom gosto — Bethia não pôde deixar de
comentar.
Ajustou o colar em Lea, que seguia muda, e pendurou os brincos enquanto Sonia
colocava o enfeite no cabelo.
—Parece uma rainha, senhora — elogiou a jovem criada.
Conrad se pôs as ordens do duque assim que o viu entrar. Cliff tirou a jaqueta e quando
começava a tirar a camisa olhou a roupa disposta sobre a cama.
—O que é isso?
Conrad limpou a garganta, endireitou as costas e rezou para vários Santos. A ideia não
tinha sido dele, mas mesmo assim agora tinha que lidar com o duque.
—Seu traje, excelência.
Cinza.
Era cinza.
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Total e condenadamente cinza.
—E quem disse que vou pôr isso.
—Sua avó e sua esposa, excelência.
—Já vejo. Bem, Conrad, sou bem grandinho para escolher minha própria roupa, assim vá
se desfazendo dele. E pegue um de meus trajes.
—Não restou nenhum excelência — o valete respondeu com um fio de voz.
—O que disse?
—Que não há nenhum outro traje para esta noite, excelência. A duquesa viúva os
mandou retirar.
—Mas que demônios…!
—Ah, milord! Não me faça responsável por esta armadilha. Não pude me negar às
ordens da duquesa viúva. Sua avó deixou muito claro que você usaria este traje e não me
deixou opção.
—E onde se supõe que está toda minha roupa, homem de Deus? —exaltou-se Ellis.
—Excelência… o traje é perfeito. Pelo que sei seu alfaiate o confeccionou e o senhor
Dorwon conhece suas medidas.
—Já sei que ele tem minhas malditas medidas! Mas se supõe que é meu valete e não o
alcoviteiro de minha avó. Maldita seja! É que agora faz papel de espião para ela?
Conrad negou veementemente e ele se deu por vencido.
—Bom, deixe estar. Não posso sair pelado e não resta tempo. Não vou atrapalhar a festa
de ninguém. Mas elas me pagarão por isso.
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Conrad respirou aliviado e o ajudou a trocar-se. Quando acabou de atar sua gravata se
retirou prudentemente.
—Assentou-lhe esplendidamente, excelência, se me permite opinar.
—Claro. —Cliff se aproximou do espelho. A cor cinza pérola, de um tom quase idêntico
ao de seus olhos, o fazia parecer menos severo e até mais jovem. Conrad estava certo—
Reconheço que não está mau. Mas terei um bate-papo com a bruxa da minha avó e com
minha querida esposa.
—Sim, excelência.
—Claro que terei — ele ainda teimou, admirando seu traje— Eu juro isso.
O salão principal, que Samantha tinha mantido fechado até essa noite, já fervia de
animação. Felizmente, a dama tinha dado amostras de moderação nesta ocasião e
unicamente enviou convites a uma centena de pessoas: a nata da aristocracia de Londres e
alguns amigos pessoais. Apesar de tudo, para Cliff parecera uma multidão.
Os criados tinham feito um excelente trabalho, e inclusive ele podia observar o brilho dos
lustres e o reflexo das barras dos vestidos das damas no chão de mármore polido. Eles
tinham trazido para lá algumas estátuas e junto às janelas que davam para o jardim
colocaram vasos de flores brancas.
—Esplêndida — elogiou uma voz junto ao ouvido de Samantha.
—O que esperava Dauly, execrável escocês? —ela respondeu sem virar-se, mas com um
sorriso nos lábios— Eu sempre fiz bem estes festejos.
—Não me referia à festa, Sam, mas a você.
Ela, para seu pesar, sentiu um comichão descer pelas costas ao som da lisonja e do
diminutivo. Virou-se para lhe responder algo ácido, mas não pôde. Dauly McKenna usava o
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traje típico da Escócia. E lhe caia maravilhosamente. O olhar dela vagou pelos sapatos, as
meias que embainhavam umas pernas ainda fortes, o kilt confeccionado com as cores de
seu clã: vermelho, verde e negro. O sporran pendurado sobre seu ventre liso.
—Está bonito, escocês — admitiu— Bendito seja Deus! Ainda pode deslumbrar.
Dauly sorriu e seus dedos acariciaram seu queixo.
—Somente me interessaria deslumbrar a uma mulher.
—Com certeza que sim — ela murmurou coquete.
—Já sei que segue querendo me matar, mas que tal se deixar nossa guerra para melhor
ocasião e me concede a primeira dança? Eu não gostaria de ter que lutar depois com as
moscas que farão procissão para pedir sua vez.
Samantha viu que Cliff se aproximava e guardou a resposta, o deixando de propósito
com a dúvida.
O duque saudou o escocês e beijou a dama na bochecha, notando o estranho uniforme
dos criados: vermelho escuro com abotoaduras douradas para os garçons e aventais e
toucas brancas para as criadas. Seu mundo estava de pernas pro ar e não gostava da
sensação de estar sendo dirigido.
—Suponho que sua vestimenta, laird, não seja uma imposição de minha avó - ele lhe
disse em tom mordaz.
—Eeeeeh… pois, não, claro.
—Parabéns. Ao menos alguém pôde escolher ao seu gosto.
—Não sei do que se queixa. Está mais bonito do que nunca. Deu seu presente a Eleanor?
—Não me permitiram entrar em seu quarto, mas o entreguei à senhora Fallen.
—Ah, sim. Bethia seguia minhas recomendações.
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—Pergunto-me se dentro de cem anos poderei governar minha própria casa, grandmère.
—Pode ser que sim, moço, pode ser que sim — brincou a dama o golpeando no ombro
com o leque e arrancando uma gargalhada de Dauly.
Os temores da duquesa viúva em relação à aparição dos McKenna tinham sido
totalmente infundados. Os três jovens monopolizavam a atenção dos convidados e as
damas começavam a rodeá-los. Algumas elogiavam sua indumentária e outras, mais
atrevidas, faziam perguntas ou comentários sobre suas saias escocesas.
Do outro lado do enorme salão, Tina Mason conversava animadamente com Irish
Durham e outras duas jovens, Bela e Olivia, filhas do conde Sandfort. Um estalo de
gargalhadas fez que se voltassem.
—Parece que ali há animação.
—O que fazemos aqui então? Vamos — riu Tina, adiantando-se às outras moças.
Foram abrindo caminho até que Tina parou em seco ao reconhecer os irmãos de Lea.
Não pôde afastar os olhos do rosto bronzeado, varonil e atraente de um deles, aquele ao
qual enfrentou em Londres. Seu cabelo dourado lançava reflexos à luz dos lustres e teve
que aceitar que estava muito bonito.
—É certo que o sporran serve para segurar a saia? —quis saber uma das jovens que o
estava comendo com os olhos.
—Em certo modo, sim. Sabe mademoiselle? Debaixo do kilt não se leva nada — Sean lhe
esclareceu.
Houve um coro de gritinhos misturado com risinhos alvoroçados e a moça se desculpou
vermelha como uma romã.
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Tina engasgou. A um cavalheiro não teria ocorrido dizer algo semelhante, e sua opinião
sobre o escocês baixou vários pontos. Entretanto, tinha ouvido em outras ocasiões o que
ele acabava de confirmar e se perguntou… Se perguntou… Jesus! Sua imaginação era
indecente…
—Encontra-se bem?
—Não — ela respondeu a Irish, dando as costas ao grupo— Necessito de um copo de
ponche.
Sean não a perdeu de vista e foi atrás delas, deixando para seu pai e seus irmãos as
explicações aos curiosos.
—Boa noite, senhoras.
Tina não teve mais opção que o encarar quando Bela e Olivia lhe devolveram a saudação.
—Boa noite, senhor McKenna. —Irish fez as apresentações correspondentes dando um
olhar de esguelha para sua amiga, cujo rosto tinha adquirido uma cor abatida— Pelo visto,
monopolizaram a atenção.
—Isso parece. —Sean se aproximou das jovens embora sua atenção se centrasse em Tina
— Milady é um prazer voltar a vê-la.
—Nunca o teria imaginado.
A resposta, um tanto arisca, não o desanimou. Seus olhos, tão parecidos com os de Lea,
escrutinaram os da jovem e desceram com todo descaramento até seu decote. Ela se
enrijeceu e embora tivesse querido afastar-se, não pôde mover-se. A personalidade forte
de Sean McKenna a apanhava. Era um insolente, um libertino. Embora terrivelmente
sedutor, acabou admitindo.
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—Eu gostaria de me fazer perdoar o deslize de nosso primeiro encontro — ele
murmurou com uma voz tão sensual que a ela lhe prenderam as palavras— Se me conceder
a primeira dança, juro ser para você seu cavalheiro mais devotado.
Tina abriu a boca. E voltou a fechá-la. Suas acompanhantes não perdiam nem um ápice
da conversa e o que ela podia fazer? Bela e Olivia não eram um modelo de discrição, e se
ela se negasse poderiam muito bem começar suas fofocas.
—Acredito que tenho minha caderneta de dança cheia, senhor — ela respondeu apesar
de tudo.
Irish suspirava e as outras duas alargavam o sorriso para o caso de ele lhes oferecer a
oportunidade. Sean não demonstrou o muito que o chateou sua negativa, embora tivesse
gostado de retorcer o esbelto pescoço daquela harpia.
—Eu adoraria lhe conceder essa dança — insinuou Bela.
—Eu as concedo todas — comentou Olivia, ridiculamente insinuante.
Sean aceitou o oferecimento de ambas e se desculpou até mais tarde. Embora o
dissimulasse, Tina não deixou de observar o andar felino do irmão de Lea e suportou com
estoicismo o bate-papo que empreenderam suas duas amigas assim que ele se afastou. Sim,
tinha o rosto de um anjo. Sim, tinha uns olhos incrivelmente formosos. E uns ombros muito
largos. E o porte de um leão. E…
—… ilhoso — afirmava Bela.
—O que?
—Dizia que é um cavalheiro maravilhoso.
—Quem?
—Vamos, Tina. — Olivia lhe deu uma ligeira cotovelada para que reagisse— Falamos de
Sean McKenna.
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—Sinto muito, estava distraída.
Cavalheiro? Que pouco elas sabiam. Podia dizer-se dele que era teimoso, orgulhoso,
irritante. Tudo exceto galante. Mas não podia negar que gostava do que via. Talvez até
demais.
Capítulo 40
Eleanor se segurou com firmeza no corrimão. Sonia e Bethia não tinham parado de dizer
que estava radiante. Inclusive a seca e avinagrada senhora Dumond, com a qual cruzou,
tinha a olhado fixamente e assentido com a cabeça.
Mas ela estava apavorada.
Todos esperavam sua presença, ela ia ser o centro da festa e Cliff a apresentaria
formalmente. Não queria deixá-lo em maus lençóis, mas assumir o papel de duquesa ainda
a fazia tremer.
Bethia a empurrou ligeiramente e sussurrou:
—Desça de uma vez, menina.
—Não posso me mover.
—Nenhuma McKenna fugiu perante as dificuldades.
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—Acontece que sou a primeira McKenna que se converte em duquesa. E tudo isto é
muito grandioso. Eu morro de medo de fazer algo errado.
—Seja você mesma.
Ergueu os ombros, rezou a todos os Santos escoceses e começou a descer devagar. Só
faltava tropeçar e cair. Não queria nem pensar nisso. Longe de oprimi-la, o pensamento
rearmou seu ânimo, mesmo quando as conversas começaram a enfraquecer e os
convidados foram prestando atenção nela à medida que se fazia presente. Todos os olhares
estavam fixos nela e se viu como Joana d´Arc a caminho da fogueira. Felizmente, distinguiu
seu marido abrindo caminho entre os convidados e se esqueceu de todo o resto. Céus! Que
atraente estava de cinza sem seu habitual rigor negro!
Cliff se manteve ao pé da escada. A admiração de seus olhos acabou por garantir a
segurança de Eleanor, que lhe deu de presente uma piscadela. Ele não esperou, cortou a
distância que os separava e abrangeu sua cintura com um braço possessivo.
—Está linda — ele elogiou, aproximando-a mais. O suave aroma que emanava dela lhe
açoitou de maneira inesperada, fazendo com que desejasse beijá-la.
—Você também está muito bonito com esse traje.
—Falaremos disso mais tarde — ele respondeu fazendo uma leve careta. Inchou o peito
com o orgulho de um pavão e se dirigiu a seus convidados— Damas e cavalheiros apresento
Eleanor Ellis, duquesa de Ormond.
Uma salva de palmas recebeu o anúncio, acabaram de descer e imediatamente se viram
cercados. Lea se lembrou dos conselhos de Samantha e não deixou de sorrir ao mesmo
tempo em que tentava recordar nomes e títulos.
Muitos dos convidados estavam ali por uma única razão: mexericar sobre a jovem
escocesa que se converteu na nova duquesa. Também não faltavam os que simplesmente
tinham ido para desfrutar da festa, já que fazia anos que Hallcombe House não se enfeitava
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para um evento social. Ambas as causas constituiriam um filão para posteriores rumores de
salão que amenizariam as noitadas durante os próximos meses. Mas, além disso, existia um
estímulo inigualável: a inimizade da duquesa viúva com Dauly McKenna. Nenhum só dos ali
presentes duvidava que o encontro entre ambos seria um evento.
Lea conhecia uns poucos convidados e tinha referências da maioria. Recebeu parabéns
sem reservas e até ela mesma se permitiu uma risada sem protocolo quando alguém
perguntou, em voz alta, como era possível que um ermitão como Ellis tinha podido casar-se
com uma jovem tão encantadora.
—Minhas pernas estão tremendo — disse a seu marido quando puderam ficar a sós.
—Está incrivelmente bonita. E é a inveja das damas.
—Só espero que as solteiras não me esfolem por ter roubado o homem mais atraente de
toda a Inglaterra.
Para Cliff foi uma surpresa, uma lisonja que não esperava. Sua esposa assim o
considerava? Inclinou-se e depositou um beijo breve em seus lábios como agradecimento.
Ela corou e deu uma rápida olhada ao redor, gemendo ao perceber que a carícia de seu
marido não tinha passado despercebida.
—Fica linda quando cora.
—Cale-se.
—Embora muito mais quando fazemos amor.
—Por favor…
—E eu adoro suas sardas.
—Cliff…
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—E sua boca — ele continuou, tentando esquecer que estavam em público— E seu
cabelo. E seus olhos quando está a ponto de…
Eleanor tampou sua boca, mas lhe escapou uma careta maliciosa.
—Me faça essas lisonjas quando estivermos a sós, mas não agora, por favor.
Ellis depositou um beijo no interior de seu punho e seus olhos cinza brilharam de
antecipação.
—Eu farei muito mais que falar o quão bonita é.
—É uma promessa?
Ele ia responder, mas se precipitaram alguns jovens que os rodearam solicitando uma
dança à anfitriã. Eleanor foi arrebatada e Cliff não encontrou forma de recuperá-la. Não era
de boa educação monopolizar a dama e ele devia obedecer às normas por mais que o
chateassem naquela noite, de maneira que se afastou em busca de uma bebida, ali onde
Irish e Tina conversavam com o visconde de Trent, o acompanhante de Clementina, e outro
cavalheiro alto ao qual não conhecia.
—Agrada-me que tenham vindo senhoras. Visconde… Senhor…
—Meu pai não pôs impedimento algum ante a carta que recebeu da avó. Quem sabe o
que dizia! —respondeu-lhe sua prima— Já a conhece.
—Seguro que alguma graça — brincou ele.
—É muito possível — confirmou Irish— Cliff, eu gostaria de lhe apresentar Kenneth
Brandon.
—É um prazer, excelência. —O jovem estreitou com vigor a mão que Ellis lhe estendia—
E quero lhe agradecer pessoalmente pelo interesse que me dispensou. Não esquecerei.
—Não há nada que agradecer. Aparentemente o conde de Lerstone o apreciou.
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—Bom… Eu tento servi-lo o melhor que posso. E ele acolhe meus pontos de vista de boa
vontade.
—Eu sei disso. Conforme ele diz, você tem excelente olfato para as finanças.
Ellis concedeu alguns minutos ao apaixonado de Irish e acolheu sua opinião sobre a
criação de cavalos para corridas, observando feliz que sua prima assentia a cada afirmação
do moço como se ele tivesse escrito as Sagradas Escrituras. Uns meses antes pouco lhe
importava se sua prima era feliz ou não, mas muitas coisas tinham mudado e tudo graças a
Lea. Agora, o conceito de família tinha adquirido para ele outra dimensão.
A conversa foi aproveitada pelo visconde que monopolizou Ellis por completo com a
proposta de um suposto negócio inigualável com equinos. Por cortesia, escutou uma
apresentação que começou a estender-se além do razoável. Para piorar a situação, sua
prima, Brandon e Tina se desculparam e se afastaram o deixando a sós com ele.
A sorte fez com que Sean se aproximasse deles.
—Posso falar um momento contigo, Cliff? É importante.
—É obvio. Conhece meu cunhado, Sean McKenna, visconde?
—Apresentaram-nos, sim — respondeu este sem dissimular o rechaço à interrupção.
—Bem. Desculpe-me, por favor. Desfrute da festa.
Sean o puxou pelo braço e o afastou.
—Espero que não tenha dado muita atenção a esse tipo — Sean disse quando
convenientemente afastados.
—Propunha-me um negócio.
—Também me propôs isso assim que fomos apresentados. Deve ter necessidade de
dinheiro. E o negócio é um fiasco.
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—O que é isso tão importante que tinha que me dizer?
—Na verdade, nada, mas me pareceu ver em seu rosto o aborrecimento e sua esposa
está rodeada por um bom número de moscas azuis. —Sean assinalou com o queixo para o
nutrido grupo de cavalheiros que formavam um círculo de pessoas envolta de sua irmã—
Acho que vai te dar trabalho recuperá-la.
—É muito possível que me bata em duelo com algum deles antes que acabe a noite —
grunhiu Cliff.
Sean se limitou a lhe dar uns tapinhas nas costas e dizer:
—Eu a resgatarei para você. Mas lembre-se que me deverá um favor, cunhado. Que eu
cobrarei.
O jovem se aproximou da roda de pessoas com ar garboso e Ellis refletiu que, embora
não quisesse reconhecê-lo, ter tantos homens bajulando sua esposa não o agradava. Era
ilógico, sabia. E muito pouco racional. Mas um desgosto esfaqueava seu peito ao vê-la sorrir
para outro homem. Se forem ciúmes o que havia ali agora, se repreenderia. Sofrê-los era
algo que nunca imaginou. Ele gostaria de tomar o posto de Sean que sem dúvida saberia
como afastar os admiradores babando, mas ele era o duque de Ormond e não lhe era
permitido comportar-se com vulgaridade e armar uma cena. Os maridos não
demonstravam ciúmes de suas esposas e as damas faziam vista grossa às paqueras dos
maridos. Assim era a sociedade e ele nada podia fazer por mudá-la.
Além disso, aquela era a noite de Lea, ela era a estrela da festa e ele desejava que
desfrutasse acima de tudo. Obrigou-se a conter-se, dispensou cuidados e sorrisos e não
recusou algo para molhar a garganta.
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Capítulo 41
O mestre de cerimônias anunciou o início do baile e os músicos tomaram posição na
pequena plataforma elevada em uma das laterais do salão. Cliff, virado para Eleanor,
observava-a de longe enquanto se esforçava em atender os comentários ou saudações de
seus convidados. Não muito longe dela, Sean McKenna abria caminho com escassa sutileza,
sem se importar com a etiqueta, indo ao resgate de sua irmã assediada por quem esperava
sua vez.
—Acho que esta é minha dança, excelência. —Sean enlaçou Lea e quase a arrastou à
pista deixando atrás de si um rastro de comentários.
—Eu os atenderei mais tarde senhores — prometeu ela por cima do ombro, respirando
aliviada. Depois, deu um pisão escondido em seu irmão— É um bruto.
—Querida, se não chegasse para tirá-la daí eles teriam te depenado.
—Sei me cuidar sozinha.
—Não me pareceu isso. Esse idiota de cabelo cor de cenoura estava a ponto de lhe cair
em cima.
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—Não diga tolices. Seria melhor que se dedicasse a procurar alguma moça bonita em vez
de me servir de acompanhante.
—Farei isso depois. Tenho uma promessa que cumprir.
—Que promessa?
—A resgatar e te entregar ao seu marido.
Lea deu um passo para trás para olhá-lo no rosto. Sean brincava. Porque seu marido não
tramaria semelhante tolice.
—Se por acaso não se recorda, sou a anfitriã e devo a nossos convidados.
—Pois seu marido não parece estar muito de acordo com a baba em suas saias
esvoaçantes.
Sean fez que girasse com um passo elegante, consciente de que eram o centro da
atenção.
—Quando vai se decidir a procurar esposa?
—E agora, que bicho a mordeu, garota?
—É o herdeiro do título, bonito, com fortuna e está na idade de se casar. Deveria
procurar uma boa moça, assentar a cabeça e se estabelecer em Farland Tower.
O ar de Sean se enevoou.
—O problema não é onde a não ser com quem. Isso das «boas moças» é uma frase feita.
E não tenho intenções de me amarrar a ninguém — enfatizou.
Eleanor se absteve de insistir limitando-se a seguir o ritmo. Em uma das voltas distinguiu
à duquesa viúva conversando animadamente com seu avô.
—O que você acha? Parece que terminaram por reconciliar-se.
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—Quando passei ao seu lado estavam discutindo.
—Discutindo? Então Samantha ganhará — assegurou Lea.
—Isso terá que ver.
Finalizou a música e Sean a levou até o duque que, imediatamente, voltou a tirá-la para
dançar.
Tina começava a irritar-se.
O visconde de Trent não lhe tinha dado mais atenção do que a um dos vasos de cerâmica
do salão. Expunha as virtudes de seu negócio a quem quisesse escutá-lo enquanto ela se
aborrecia terrivelmente. Começava a pensar que, oferecendo-se como seu par, aproveitouse dela para penetrar em Hallcombe House.
—Que tal se eu pegar uma taça de ponche? —ouviu.
Tina não precisou virar-se para saber de quem se tratava.
—Obrigado, não gosto.
—Um dança, então?
—Não.
—Já entendi. Está esperando que seu apaixonado deixe de lado seus negócios e a leve
para a dança. Permita-me que lhe diga que o visconde parece mais interessado nos cavalos
do que em você, milady.
Notava McKenna muito perto dela e isso a punha nervosa, mas não podia negar que ele
era muito atraente. Já o tinha achado quando se apresentou em sua casa procurando por
Lea. Ela não era uma namoradeira nem estava desesperada por encontrar um par; muito ao
contrário, sobravam-lhe pretendentes (nenhum tão galante quanto o escocês). Cavalheiros
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com título e fortuna (nenhum tão arrogante quanto Sean McKenna). Homens respeitáveis
que desejavam desposá-la (nenhum tão ousado e arrogante como aquele lobo de olhos
verdes).
—Sou bastante impertinente quando me zango — ele dizia, tão perto de seu ouvido que
arrepiou sua pele— e assim estava quando fui em busca de minha irmã. Lamento meu
comportamento e só quero que me perdoe.
—Eu…
Ela virou-se para enfrentá-lo e foi sua perdição. Ele sorria como um diabo e Tina se
apaixonou por sua boca.
—Lea já me perdoou. Será tão cruel comigo para não fazê-lo milady?
Pela Santa Cruz! Que mulher não absolveria uma atitude tão entregue? Galante e
simpático, ela não podia ser imune ao seu encanto.
—Uma dança — ela aceitou, desviando sua atenção antes que o rubor colorisse suas
bochechas.
Sean não tinha achado que ela abaixasse a guarda tão cedo, mas não esperou que
voltasse a içá-la; suavemente a segurou pela cintura e a guiou à pista. Um delicioso aroma
de jasmim a acompanhava e uma voz dizia a ele: «por que precisamente ela?»
Do outro lado do salão, um grupo de cavalheiros acolhia com regozijo o comentário de
Samantha Ellis.
—Digo a sério, senhores. Ele ganhou minha mão, mas eu pensava em deixá-lo plantado
no altar quando o sacerdote me perguntasse se o queria por marido.
Dauly interveio então:
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—Assim jurou me matar se voltasse a me ver quando já tinha decidido me deixar.
—Um cavalheiro alguma vez deve adiantar-se a uma dama, não acha? — ela sentenciou.
Cliff procurou pela enésima vez sua esposa entre a concorrência. Haviam voltado a
arrebatá-la logo que acabou sua dança e não pôde fazer nada por evitá-lo. Cada vez que
tinha tentado abordá-la, alguém se adiantava.
Em sua qualidade de anfitrião devia atender aos seus convidados de todas as formas,
mas começava a fartar-se de tantos cumprimentos por mais que, em sua maioria,
aproximassem-se dele para felicitá-lo por seu matrimônio. Do que servia ele estar casado
com uma beleza se não o deixavam desfrutar dela? Ia ser muito chato retornar à vida social
para poder satisfazer assim a Eleanor, mas ela parecia encontrar-se no sétimo céu
conversando aqui e lá, sempre atenta e sorridente. Para vê-la feliz ele iria de cabeça ao
inferno.
—Um centavo por seus pensamentos, cunhado — Ian ofertou, lhe entregando uma taça
de champanha.
Ellis aceitou a bebida e respondeu:
—Uma fortuna eu mesmo daria se soubesse por aonde vão.
Não deixava de seguir a elegante cadência com que Eleanor se movia pela pista.
Perturbava-lhe o modo em que seus sentimentos tinham mudado em tão pouco tempo. Até
conhecer Lea, a palavra «amor» que agora rondava sua cabeça com insistência era
unicamente algo que correspondia aos outros, não a ele. Amor. Condenada expressão. Ela
entrou sob sua pele sem ele perceber e agora lhe tomava todo o sentido, embora isso o
assustasse. Sim, o duque de Ormond, pontuado de frio e distante, tinha medo de não
corresponder a sua esposa como merecia. Ela tinha lhe confessado que o amava. O que
tinha feito ele, exceto orgulhar-se? Nem sequer tinha lhe respondido. É verdade que a
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desejava. Mas estava certo de que a queria, com ou sem sexo. Desfrutar do corpo de Lea
era só uma parte; o que ansiava era ter seu coração.
Sacudiu a cabeça e prestou atenção em Ian.
—Como você está indo?
—Espero que a noite melhore — ele respondeu, assinalando disfarçadamente uma
jovem.
—Eu achava que estava atrás das saias de lady Virginia.
—Muito perigosa. Anda procurando marido. A cedi alegremente a lorde Benetton.
Segispolo Benetton. Que barbaridade! Tem um nome horrível.
—Eu sei, seus avôs mantiveram uma azeda disputa porque ambos queriam que o rapaz
levasse seu nome. Como não entraram em um acordo se decidiram pelo do bisavô.
Ian não deixava de observar seu cunhado. Estava descobrindo nele um humor ácido que
nem suspeitava e que era gratificante.
—Deveria resgatar minha irmã das garras desse aldeão com o qual está dançando.
—Lorde Moregan é um bom amigo. E não devo monopolizar minha esposa, Sean já a
resgatou antes.
—Eu o farei de novo se me deixar montar esse garanhão negro que tem. É o mais bonito
que vi em minha vida — ele propôs.
O duque assentiu e o escocês cruzou entre os bailarinos. Viu que falava com Moregan,
enlaçava Lea e foram se aproximando.
—É sua vez, cunhado.
Ian, sorrindo, soltou sua irmã e fez uma graciosa reverência deixando o campo livre.
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—Por que me parece que você e esse malandro fizeram um trato? Agora você confabula
com meus irmãos?
—Vai custar-me deixá-lo montar Darkness, mas era a única forma de poder dançar com
você sem ficar em evidência como um marido ciumento. E o que é pior, ainda não sei o que
Sean vai exigir em troca de seu resgate anterior.
—Só estou cumprindo um papel, excelência — ela respondeu, descobrindo uma nova
faceta nele que adorava.
—O que você acha de esquecer seu papel de anfitriã durante, digamos… uma hora?
Seus olhos brilharam. O rigoroso duque de Ormond estava lhe propondo escapulir de
sua própria festa?
—Sejamos sérios, Cliff.
—Ao inferno com isso, minha senhora! Estou excitado desde que a vi descer as escadas.
Perder-se com ele era uma proposta apaixonante. Seduzia-lhe brincar de transgressora.
Estava cansada de dançar e um interlúdio com seu marido não deixava de ser muito
sugestivo.
—Em seu quarto ou no meu, excelência?
—Repitamos na biblioteca — ele convidou malicioso— Eu adorei o… — repentinamente
ele ficou calado e sua atenção se centrou em uma das pessoas que entrava no salão.
Lea também os viu: Thomas Fergusson acompanhado de duas mulheres. E uma delas era
a última pessoa a que esperava ver essa noite. Como disse Tina que se chamava? Amélia
Hossman? Quem diabos a havia convidado? Como tinha a indecência de apresentar-se ali
sendo sabido por todos que tinha sido amante de seu marido? Não restou alternativa que
aproximar-se e recebê-los.
Lea saudou efusivamente Thomas e agradeceu sua presença.
317
—Nós sentíamos sua falta Tom.
—Não tanto como eu, duquesa. Quero lhe apresentar a minha prometida, lady Melanie
Jackson.
Eleanor acolheu as mãos de uma preciosidade loira entre as suas. Era miúda, uma
mulher esperta, e de olhar franco. Agradou-a imediatamente.
—Obrigado por vir.
—Há alguém mais a quem deve conhecer — a preparou seu marido.
—Já nos vimos antes, embora não fomos apresentadas — respondeu notoriamente
contrariada.
Cliff lhe lançou um olhar rápido. Demônios! Sabia que teria que lhe dar muitas
explicações pela presença de Amélia ali, era consciente disso, mas a condessa era uma
amiga de verdade e o que tinham entre eles era importante.
Lea contemplou que era uma mulher muito linda, de traços aristocráticos e elegantes,
com uma cútis perfeita. Seus olhos, grandes e profundos, gotejavam perspicácia. Vestia um
modelo azul escuro que ressaltava seu busto e sua estreita cintura e usava primorosamente
seu cabelo em um coque alto que estilizava seu esbelto pescoço. Era lógico que sua
presença monopolizasse a atenção dos homens, incluída a de seu marido. Caiu no engano
de comparar-se e achou a si mesma desfavorecida.
—Lady Amélia Hossman, condessa viúva de Leisser — a apresentou Ellis.
Ambas se inclinaram gentilmente, mas avaliando-se sem contemplações, como duas
mulheres sabem fazer. Para Eleanor a situação pareceu embaraçosa. A esposa e a examante frente a frente. Ou talvez eles seguissem entendendo-se?
—É um prazer, excelência.
—Alegra-me que tenha podido vir a nossa festa, condessa Leisser.
318
—Amélia, por favor. Cliff e eu somos velhos amigos.
Lea sorriu como se estivessem lhe cravando alfinetes nos rins.
—Seja bem-vinda. Espero que se divirta. Terá que nos desculpar, entretanto, é o
inconveniente dos convidados.
—É claro. —não escapou a Eleanor um rápido trocar de olhares entre a condessa e Cliff.
—Antes de tudo temos que falar Mely — cortou Ellis— Querida, estarei contigo em um
minuto — ele disse a Lea— Não se esqueça de nosso acordo pendente.
Eleanor ficou encalhada os vendo afastar-se, sem conseguir acreditar que ele a tivesse
deixado plantada. Quis dissimular sua decepção, mas uma e outra vez seu olhar se dirigia
para a saída do jardim, por onde tinham desaparecido.
—Ciumenta? — se aproximou seu irmão Jaimie.
—Mais intrigada.
Jaimie se inclinou para lhe dizer ao ouvido:
—Você é muito ruim mentindo danadinha. Seus olhos a delatam.
—Não diga asneiras.
—Vamos princesa. Está falando comigo. Eu a conheço.
—Está bem. Estou ciumenta sim — ela admitiu.
—Não deveria preocupar-se por essa mulher, seja quem for. Seu marido está louco por
você, só tem que vê-lo, e asseguro que tem uma boa razão para ausentar-se.
—Ao jardim?
—Ao jardim ou onde seja. Os assuntos privados devem tratar-se privadamente.
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Lea ia responder, mas aconteceu algo inesperado: Tina esbofeteou Sean. Exclamações de
surpresa paralisaram os casais mais próximos atentos ao desenvolvimento do incidente.
—Volte a aproximar-se de mim, McKenna, e juro que lhe darei um tiro — trovejou a voz
da jovem.
Antes que alguém pudesse reagir, Clementina Mason deu as costas a Sean e se afastou
com sua dignidade hasteada como uma bandeira e deixando um ambiente perplexo a suas
costas.
320
Capítulo 42
Os convidados cochichavam agrupando-se ao redor de Sean e Trent, que havia resolvido
mostrar-se como um cavalheiro ofendido.
—Certamente, visconde, eu não recusarei um duelo.
Lea cambaleou e Trent sofreu um sobressalto, porque não era, nem de longe, a resposta
que esperava do escocês.
—Bom, eu…
—Quando e onde, senhor? — Sean insistia.
Eleanor teve vontade de quebrar algo na cabeça de seu irmão. Por todos os infernos! Estava
arruinando sua festa e obrigando Trent a aceitar um desafio.
—Não acredito que se deva chegar a… — começava Trent a desculpar-se enquanto sua
testa se cobria de suor— Aceitarei sua palavra de que somente foi um mal-entendido,
McKenna. Somos cavalheiros.
—Eu não sou um cavalheiro, Trent.
—E eu não penso desafiar ao cunhado do duque de Ormond.
Sean deu um passo para ele, mas Lea se interpôs entre os dois.
—Rogo-lhes que deem por finalizada esta irritante cena, senhores. Se nenhum dos dois
sabe comportar-se, podemos prescindir de sua presença em Hallcombe House.
Trent aproveitou para desculpar-se com ela e dar o fora. Sean, pelo contrário, lançava
fogo por seus olhos. Mas conhecia sua irmã e sabia que o melhor era retirar-se. Fez uma
reverência exagerada e se afastou. Gradualmente foi diminuindo o interesse dos
321
convidados pela briga, e estes retornaram ao baile ou aos grupinhos, embora Eleanor
soubesse que a cena ia provocar fofocas.
Jaimie alcançou seu irmão nas escadas que subiam ao andar superior.
—Posso saber o que houve? Nossa irmã vai te esfolar.
Sean deu de ombros, como se não desse importância ao fato de ter armado um
escândalo, mas seus dedos não se apoiavam, mas sim se agarravam ao corrimão
contradizendo sua aparente calma.
—Já me conhece.
—Estou começando a pensar que não.
—Não foi tão grave.
—Neste ambiente, sua briga com Trent será a fofoca durante muito tempo.
—Por mim que se estenda até que o inferno congele. Não estarei aqui para escutar.
Volto para a Escócia.
—O que houve? — Lea perguntou a sua amiga Tina, que acabava de pedir sua capa e sua
carruagem.
—Não tem importância.
—Não pode ir agora.
—Não vou ficar aqui nem um minuto mais. Sinto por você, mas se voltar a ver seu
irmão… — ela sacudiu seus cachos ao mover a cabeça— Peça desculpas por mim ao seu
marido. Boa noite.
322
Lea a viu aceitar sua capa e afastar-se sem encontrar palavras para detê-la enquanto
notava que a ira crescia em seu peito.
—Um dia destes vou matar Sean — disse a Irish— Arruinar minha festa e fazer com que
Tina se aborreça… Definitivamente acredito que lhe darei um tiro.
—A quem vai matar? —quis saber Cliff, que chegava nesse momento, muito atento ao
rosto acalorado de sua esposa.
Irish foi explicando e ele ia assentindo sem mostrar sinais de pesar. Muito ao contrário,
se diria que lhe faiscava o olhar.
—Fofoca assegurada para os próximos meses.
—Lamento — se desculpou Lea.
—Lamenta? Por quê? Senhora, a festa vai ser um êxito, em parte, graças a seu irmão. Os
escândalos são o molho deste tipo de celebrações.
Eleanor esteve a ponto de lhe dizer, então, que ele tinha contribuído notavelmente
também. Nenhum dos convidados tinha sido alheio a sua retirada ao jardim em companhia
daquela que foi sua amante. Irada, não perdeu a ocasião para afastar-se dele sem
responder.
—Deveria se manter afastado até que se acalme. —Jaimie falava com suas costas— A
chegada da condessa e a cena de meu irmão a irritaram demais.
—O que houve com Mely?
—Assim é Mely. Um diminutivo muito familiar para chamar essa dama.
—Está tentando me dizer algo?
—Lea está ciumenta.
—Está brincando?
323
—Não. E acredito que vai necessitar de uma boa desculpa.
—Não estou acostumado a dar explicações. A condessa de Leisser é uma boa amiga e
tínhamos um assunto a tratar.
Jaimie deu de ombros, deu uns tapinhas em suas costas e se foi tão discretamente como
chegou deixando Cliff com suas reflexões. Se contasse a Lea sobre sua conversa com Amélia
iria estragar tudo e desejava surpreendê-la.
No momento, era melhor mantê-lo em segredo. Mas não podia permitir que sua esposa
conjeturasse coisas absurdas, de modo que caminhou resolutamente até a pista.
—Permite-me um momento, lorde Millors?
O par de Lea cedeu galantemente. Cliff envolveu a cintura de sua esposa, mas ela cravou
os calcanhares no chão.
—Isso foi uma grosseria.
—Tenho que falar com você e não posso esperar.
— Já acabou com a condessa Leisser? Decidiu que agora sim tem tempo para mim?
Jaimie havia dito «ciumenta»? Diabos! O que estava era enfurecida.
—Dancemos senhora. Estão nos olhando.
—Não disse que os escândalos são o molho das festas?
Cliff podia jurar que ela tinha vontade de esbofeteá-lo. Pegou-a pelo braço e saíram da
pista. Ela sorriu aos convidados com os quais cruzou, mas se soltou de um puxão assim que
estiveram a sós e se dirigiram à biblioteca.
—Temos que falar Lea.
—Não é o momento. Talvez mais tarde.
324
—Por favor.
O tom de Cliff não deixava lugar a uma negativa, assim o seguiu a contra gosto. Quando a
porta se fechou atrás deles se virou para repreendê-lo, mas Cliff não lhe deu tempo,
estreitou-a contra seu peito e a beijou. Ela escapou e quando conseguiu tentou recompor
suas ideias.
—Assim está com ciúmes de Amélia.
—Foi sua amante, não?
—Foi sim — ele admitiu— Mas isso já faz muito tempo, quando Mely acabava de
enviuvar. E eu não tinha te conhecido.
—Ela não tem uma boa reputação.
— Eu também não tenho. Por favor, sente-se. —Esperou que ela se acomodasse e se
sentou no braço da poltrona— Amélia é uma mulher que superou muitas dificuldades.
Casaram-na muito jovem. E o maldito Leisser era um desgraçado que a humilhava e
maltratava. Eu a ajudei a suportar aquela etapa, só isso.
—Convertendo-a em sua amante?
—Não. Isso aconteceu depois de que enviuvou. Mely sempre teve uma grande
integridade, embora seja verdade que não se adapta às normas estabelecidas, o que lhe
casou muitas críticas.
Lea se remexeu e alisou sua roupa, reticente em enquadrar à condessa em outra
perspectiva que não fosse à de rival.
—O que aconteceu com o conde? Como morreu? Você o matou?
—Teria gostado, mas não.
325
Lea precisava acreditar nele. Era seu marido e parecia sincero. Mas ainda martelava em
sua cabeça a maldita nota que tinha encontrado. E se estava enganada com ele? E se lhe
entregava seu coração e ele o devolvia destroçado? E se realmente… havia algo escuro em
seu proceder em relação à morte da duquesa e de Sugar?
—Assim ela já não é sua amante…
—Não tenho mais que uma amante, Lea, e é você. — Atraiu-a para ele e inalou o aroma
de seus cabelos, depositando um beijo breve em sua cabeça— Querida, juro que…
—Não jure. Não o faça.
—Lea, me olhe. — ele pôs um dedo sob seu queixo e a obrigou a elevar o rosto. Em seus
olhos se refletia uma dúvida que lhe arrancava uma parte da alma— Olhe-me e me diga se
me acha tão estúpido para procurar nos braços de outra mulher o que entreguei a você. Eu
te amo, duquesa.
Lea ficou sem fala. Ele era sempre parcimonioso em palavras, nunca tinha se justificado
com ela até esse ponto. Observou o seu olhar, que encontrou limpo e sincero e se despojou
de suas reservas.
—Você me ama?
—Você duvida? Não posso lhe explicar como ocorreu. Inclusive lutei contra esse
sentimento. Eu tinha medo, Lea. E ainda tenho. Mas sim, a amo.
—Eu acredito que me apaixonei completamente quando cheguei aqui, e você parecia
temível, me olhando daquele modo frio e desdenhoso.
—Acho que o fazia para me proteger. Assombrou-me. Esperava uma moça insípida e me
apresentou todo um caráter, desinibido e corajoso que foi demolindo minhas defesas.
Lea se aconchegou contra ele. Tinha sonhado tanto com essas palavras que a sorte a
embargava.
326
—Você disse que não acreditava no amor.
—E não acreditava. Nem sequer sei se saberei te amar como merece. Só sei que a
necessito a cada instante, a cada momento do dia e da noite.
Ela apoiou a bochecha em sua perna. Ao lado de Cliff se encontrava na glória, amava-o e
acabava de ouvir uma singela declaração que supunha o fim da angústia que a estava
matando. Sim, sentia-se feliz. Só uma suspeita ofuscava sua alegria. Porque se seu marido
era um homem íntegro… quem estava tentando perfurar sua confiança nele? Por quê? Que
inimigo devia enfrentar?
—Cliff… Conhece alguém que o odeie tanto a ponto de caluniá-lo?
—É possível — ele assentiu, franzindo levemente o cenho— Sou um duque. Nunca
estarei livre de armadilhas. Por outro lado, criei alguns inimigos, tanto entre a aristocracia
quanto no Parlamento… — ele se calou porque também os tinha procurado entre os
delinquentes e os assassinos— A que vem essa pergunta?
—Eu recebi uma nota.
Cliff aguardou em silêncio e esperou uma explicação. Mas a cabeça de Lea embaralhava a
conveniência de lhe contar toda a verdade porque, talvez, estivesse abrindo a caixa de
Pandora.
—E bem? O que dizia essa nota? — aventurou-se Cliff já que ela mantinha seu silêncio.
—Insinuava que Mariam morreu quando Sugar apareceu em sua vida. E que ela tinha
morrido quando cheguei. E que eu, portanto, podia ser a seguinte…
Um silêncio espesso se apropriou da biblioteca. Logo ele se levantou, blasfemou e ficou
de pé, de costas para ela, rememorando seu passado com Mariam, os temores que lhe
assaltavam. Nada que tivesse a ver com a situação presente, mas que o induzia a ficar em
guarda.
327
—Ainda tem essa carta?
—Eu me livrei dela. Queimei-a.
Teve consciência então que chegava até eles a música e os sons do salão. Seus
convidados estavam se divertindo enquanto ele se debatia entre a incerteza e a descrença.
Quem podia o odiar tanto para querer semear a discórdia entre ele e sua esposa ou acaso
tramar algo contra ela? Desejou que a maldita festa acabasse, que todos partissem.
—Cliff, me conte — ela rogava— Sou sua esposa. Eu te amo. Mas não podemos viver
com a sombra de Mariam entre nós. Preciso saber o que aconteceu.
Ellis se esticou. O que podia contar? Que tinha sido um marido detestável? Que nunca
tinha lhe dado a atenção que merecia? Que talvez por isso acabasse louca e se suicidou?
Até então nunca se confessou com ninguém, exceto com Amélia. Mas Lea tinha razão, não
podia seguir fugindo de uma culpa que o atormentava e o fazia despertar algumas noites
com o fantasma da morte de Mariam o acossando. Aquilo não devia interpor-se entre eles
dois.
—Ela me falou de seus medos — ele se justificou, com a vista perdida nas sombras do
jardim— Uma vez me disse que havia visto estranhas figuras que lhe falavam e que a
perseguiam durante a noite. Ruídos que a aterrorizavam. Eu não dei atenção. Não tinha
tempo para iniciar uma cruzada que pusesse fim a suas fantasias.
—Talvez não fossem fantasias, Cliff. Ao menos, não acredito que as minhas tenham sido.
Lembrou muito bem de como tinham revisado as acomodações de Lea. Podia tratar-se
de uma coincidência, mas agora esta tomava as cores de um verdadeiro pesadelo. Porque
sua falecida esposa, assustada como era, acreditou nas aparições e acabou desequilibrada.
Assim o tinha acreditado. Não era o caso de Eleanor, racional e decidida. Se a tinham
acossado as mesmas estranhas manifestações, com padrões desenhados para infundir o
temor, então enfrentava um inimigo. E estava entre eles.
328
—Na noite em que Mariam morreu — ele continuou dizendo aproximando-se de novo
dela e sentando — cheguei tarde. A vazão de seu romance chegou a meus ouvidos e meu
estúpido orgulho me levou a me ausentar. Quebrei a cabeça me perguntando se o filho que
esperava era realmente meu ou do homem com o qual estava me enganando.
—Não pode se culpar por não ter estado ao seu lado.
—Eu necessitava que ela mesma me confessasse sua culpa — seguia ele— Fui a sua
antecâmara, irritado, decidido a fazê-la falar. Não estava. Ouvi ruídos no final da galeria. A
porta de acesso à torre estava aberta e a tormenta açoitava o castelo. Foi um mau augúrio.
Corri para a torre. Não me atormenta afirmar que apesar de odiá-la, nesse momento corri
como um condenado, louco de apreensão. —ele voltou a olhar para Leia com os olhos
cheios de lágrimas— Não cheguei a tempo de evitar a tragédia. Mariam estava na borda da
torre, com meio corpo já no vazio. Acho que gritei, não sei. Logo a vi cair, perder-se entre a
névoa, na escuridão.
Lea o abraçou pela cintura, tentando consolá-lo.
—Morreu sem poder me tirar dessa dúvida espantosa. Nunca poderei ter certeza se
morreu levando meu filho nas vísceras ou ao filho de outro. O desgraçado se suicidou
quando soube da morte de Mariam; só então soube quem era.
—Sinto muito.
—Sugar veio como consequência de tudo isso. Uma jovem bonita, melosa, e estava
sempre ali onde olhasse. Suponho que me deixei levar porque necessitava de alguém em
quem me refugiar.
—Não é necessário que me conte mais.
—Mas eu quero fazê-lo, Lea — ele a abraçou com mais força— para que não fique
nenhuma dúvida entre nós.
329
—Eu já não as tenho, Cliff.
—Você é um coração puro, querida. E eu um espírito ressentido que…
—Eu te amo. —elevou-se nas pontas dos pés e o beijou— Não se atormente se culpando
por algo que você não poderia remediar. É um homem honesto, embora um pouco… Bom,
muito arrogante. Não me importa sua relação com Sugar. Como disse Bethia, era um
homem viúvo que não tinha jurado celibato e tinha todo o direito do mundo de ter uma
amante.
—Nem sequer foi isso. Sugar não foi a não ser uma via de escape, meu amor. Algo ao que
me aferrar quando fraquejava. Minha mãe nos deixou quando eu era um menino. O que
pode fazer uma criatura para que sua mãe o abandone? Eu a amava mais que tudo e me
falhou, como me falhou Mariam. Por isso me entrincheirei, por isso não queria acreditar
outra vez no amor, doía muito. Mas eu não matei Sugar, Eleanor.
—Cheguei a duvidar, sabe? —confessou-lhe— Na noite da ocorrência chovia, apareceu
ensopado sem mais e sua cama estava sem desfazer. Lamento.
—Não dormi em casa porque fui falar com Richmond para que se livrasse do duelo com
Robert.
—Agora sei. Acredito que até Bethia confiava mais em você que eu mesma.
—Sua aia? Mas se aproveita a menor oportunidade para me criticar.
—Sim, mas é que é difícil para ela reconhecer que tomou carinho por um inglês.
Nos olhos de Cliff cintilou uma ameaça de bom humor, mas não abandonou o fio de seu
discurso.
—É obvio que a nota que lhe enviaram era anônima.
—É obvio que sim. Cliff tem que ser alguém de Hallcombe House.
330
Ele assentiu, porque já tinha chegado à mesma conclusão.
—Amanhã mesmo nos mudaremos para Londres. Não quero que permaneça um
segundo a mais entre estes muros.
—Mas esta é minha casa! Nossa casa!
—Está decidido Lea. Se te acontecer algo eu…
—Não vai me acontecer nada. Eu não sou uma garotinha frágil como Mariam e
tampouco sou Sugar. Sabia que uma vez persegui o fantasma de Fiorel McKenna por toda
Ness Tower? Sei me cuidar, Cliff. Além disso, as aparições não me assustam muito, os livros
da senhora Preston me vacinaram.
—Querida, isto não é um jogo — grunhiu Cliff, amaldiçoando ter escrito histórias
dirigidas a um público que exigia novelas com um lado escuro. Aqueles livros eram uma
fonte de ganhos que destinava aos orfanatos, mas agora lamentava ter alimentado a mente
febril de sua esposa, que se acreditava uma heroína à caça de um fantasma ou, o que era
ainda pior, de um assassino— Tentam me ferir e, quem seja, sabe que você é meu ponto
fraco, que me podem fazer isso através de você.
—Mas Cliff, entre nós dois poderíamos…
—Fim de conversa, minha senhora — ele cortou um tanto brusco— Assim que a festa
acabe iremos daqui. Tenho uma casa em Londres e Amélia… — a testa de Lea se franzia—
Acho que agora não é necessário que guarde segredo: Amélia esteve arrumando essa casa a
meu pedido. Disso estivemos falando quando chegou. Queria te fazer uma surpresa.
—Então…?
—Ela teve uns problemas com a contratação do serviço. A casa esteve fechada durante
um longo tempo e eu queria saber como foram os acertos, quando poderia te levar a
Londres e te mostrar como minha esposa na sociedade, no teatro, na ópera, — o brilho de
331
suas pupilas já era um presente. Tê-la assim, a seu lado, feliz e entregue, era um luxo que
não queria perder por nada no mundo.
—Acho que terei que pedir desculpas à condessa.
—Se dará bem com ela, é uma mulher admirável. E agora, duquesa… Há outro assunto
que tratar. —Tomou-a em seus braços e a acomodou sobre a mesa.
—Cliff, não irá a… Não pode… A gente…
Podia. Por certo que podia.
Metros de seu vestido se enroscaram em sua cintura exibindo umas pernas esbeltas
embainhadas em meias de seda branca. As mãos de Cliff passearam de seus tornozelos até
a beira das ligas bordadas e seus olhos adquiriram o tom velado de um gozo antecipado. Ela
sabia que deviam voltar para o salão, mas seus dedos longos e urgentes que apenas a
roçavam faziam subir sua temperatura. Permanecer assim, absolutamente exposta, com as
pernas abertas, era descaradamente pecaminoso, era sexo em estado puro. E adorava.
Cliff se atrasou na pele feminina, extasiado com seu tato.
—Não me faça esperar…
O duque de Ormond nunca tinha ouvido uma frase tão doce. Lutou com os botões de
suas calças, os dedos desajeitados e os batimentos do coração acelerados. Ele normalmente
não agia com pressa, estava acostumado a medir seus passos, mas ali, nesse momento,
conduziu-se com urgência.
Foi uma união rápida, de corpos ansiosos e agitados, ansiosos em excesso em saciar-se,
cobiçando a liberação. As torres de Hallcombe House podiam ter caído e eles teriam
permanecido alheios porque só eram conscientes da paixão de possuir-se, de saborear um
vínculo que acoplava seus corpos e suas almas.
332
Lea conseguiu retornar à Terra ao notar que seu marido a agasalhava. Escapou-lhe um
lamento por ter que voltar a ser mortal e se apoiou nele quando a desceu da mesa.
—Deveríamos ir pensando em fazer amor em uma cama, excelência — sussurrou.
Capítulo 43
Os McKenna partiram para Edimburgo ao amanhecer, exceto Sean, que tinha
desaparecido na metade da festa e adiantado sua volta. Surpreendentemente, lady
Samantha decidiu que fazia tempo que não visitava a Escócia e decidiu acompanhá-los,
pedindo, mesmo assim, que a mantivessem a par das investigações sobre o assassinato da
desgraçada criada. A dama estava rejuvenescida e parecia haver se reencontrado com um
passado —chamado Dauly— que resistia em relegar de novo ao esquecimento. Lea se
despediu deles com o coração dividido entre sua família e seu dever e prometeu visitá-los
muito em breve.
333
No meio da amanhã o fez Irish e logo em seguida Robert, embora algo relutante. Lea o
abraçou com força e arrumou as lapelas de seu casaco.
—Esperaremos sua carta. Lembre-se que prometeu escrever tão logo chegue a Paris.
—E vocês me mantenham a par do que aconteça aqui. Cliff, seriamente, eu acho que
deveria atrasar a viagem — ele insistia— Poderia precisar de mim.
—Não se atreva a dar pra atrás agora, Robert. Tem um sonho que cumprir: se converter
em pintor. —o instigou a subir na carruagem e fechou a portinhola— O inspetor Parrish
confirmou seu álibi no crime e o deixa com liberdade de movimentos.
—Mas e você?
—Prefiro confrontar o assunto sem ter que me preocupar com nenhum de vocês, Robert.
Vou levar a cabo minhas próprias investigações e quero ter as mãos livres, por isso animei a
avó a acompanhar os McKenna. Além disso, moço, estou louco por te tirar de vista uma
temporada.
O jovem assentiu, admitindo a brincadeira, e estreitou com força sua mão através da
janela.
—Nunca pensei que poderia me sentir tão próximo de você, Cliff. Nossas velhas
diferenças…
—Vá embora de uma vez. Em marcha! —gritou ao cocheiro.
Lea agitou a mão em sinal de despedida para a carruagem que se afastava fazendo
ranger o cascalho do atalho, e em seguida retornaram a casa. Cliff envolveu sua cintura e
ela descansou a cabeça em seu ombro, agasalhando-se mais na capa.
—Acha que aceitará me pintar quando tiver aprendido o suficiente? —murmurou com
um pouco de melancolia.
334
—Suponho que sim. Embora seja provável que quando o fizer seja já uma velhinha
encantadora.
—Oh, Cliff! — ela censurou sua brincadeira e voltou a rir.
Tanto Bethia quanto Sonia insistiam em que uma das duas devia acompanhar Eleanor,
mas a jovem sonhava em desfrutar a sós de seu marido.
—Afinal de contas, deve ser nossa lua de mel — ela disse— E terei a ajuda necessária,
embora sinta falta de vocês.
Amélia não achou inconveniente em indicar a Lea algumas das coisas que ela ia
necessitar durante sua estadia em Londres, e antes de cair à tarde já tinha nascido certa
afinidade entre elas.
—Deveria ficar sócia do LadyMask — a condessa a aconselhava a ponto de subir a sua
carruagem— Avise-me quando chegarem à cidade.
—O que é isso?
—Um clube privado. Exclusivamente de mulheres, é claro.
Cliff ouvia a conversa de passagem. Conhecia a existência daquele reduto onde algumas
damas se reuniam em vários dias da semana. Amélia tinha sido a promotora do clube. Os
homens tinham a entrada vedada, mas quase todos conheciam que temas e atividades se
levavam a cabo nele: a política externa, os direitos das mulheres, ou as necessidades
urgentes nos bairros mais desfavorecidos. As damas do Ladymask organizavam diversos
eventos com o fim de arrecadar recursos para suas obras sociais. Também se faziam
apostas, tanto ou mais elevadas que no White's, templo dos clubes masculinos. Certos
cavalheiros punham reparos a que suas esposas tivessem relação com a condessa. Sobre
tudo, não comungavam com o fato de que suas mulheres pudessem falar livremente de
335
assuntos que acreditavam privativos dos homens. E muitas damas criticavam o clube… já
que não faziam parte dele.
A ponto de partir, o delegado Parrish, cumprindo o combinado, se apresentou no
castelo, razão pela qual tiveram que atrasar sua saída. Os criados eram muitos, e as
maçantes perguntas de Parrish alongaram o interrogatório, assim já entardecia quando
puderam escapar de Hallcombe House.
Enquanto Leia se despedia de Bethia, Cliff aproveitou para aproximar-se das cavalariças e
dar uma olhada no potro. Encontrou Monty com o nariz metido em uns papéis que, tão
logo o viu aparecer, recolheu e guardou em uma pasta.
—O que tem aí?
—Não é nada, excelência. Como já está tudo preparado, fiz uma pausa.
—Me deixe ver.
Monty lhe entregou o que ocultava a suas costas, um pouco embaraçado. Cliff abriu a
pasta e encontrou com um monte de desenhos a lápis-carvão. Examinou-os devagar,
gratamente surpreso da qualidade dos traços. Eram retratos de criados em seus afazeres
diários: a senhora Fellini em frente aos fogões; Bethia costurando; Floresce Dumond de pé
ao final de uma escada; Simpson e Conrad conversando… Cada desenho tinha debaixo o
nome correspondente. Ele ficou apaixonado por um rosto sereno de imensos olhos e
cabeleira ao vento.
—Assim que é a Duquesa Vermelha, não?
O menino se ruborizou sem achar lugar para as mãos, que acabou por ocultar nos bolsos
da calça.
—No povoado todos chamam assim à duquesa, excelência. É por seu cabelo.
336
Sim, ele sabia por que tinha sido Owen quem tinha posto o apelido. Tinham lamentado
que ele e Alice não tivessem ido à festa, mas eles tinham se negado citando que ficariam
deslocados.
—Onde aprendeu a desenhar?
—Eu gosto desde que era pequeno milord. E seu irmão me deu algumas folhas quando
vinha de visita. Mas só pratico em meus momentos livres, sem desatender meu trabalho e…
—São realmente magníficos, Monty. —O moço corou ainda mais— Venderia-me o da
duquesa? Ficaria esplêndido emoldurado e sobre minha mesa de trabalho.
—Oh, não, excelência! —alarmou-se Monty— Quero dizer que… Bom, eu… Não quero
dinheiro, eu adoraria dar de presente a milady.
—Obrigado. O entregue você mesmo em nossa volta, está bem? —Revisou o resto das
folhas e lhe chamou a atenção um rosto roliço: Sugar Bryton— Eu gostaria de ficar com este
também.
—É claro excelência.
Cliff ficou com o desenho e lhe devolveu o resto.
—Cuide dos cavalos até minha volta, menino.
—Sim, excelência.
Ao sair, Cliff dobrou o desenho e o guardou na jaqueta.
Quando entrou no hall, sua esposa repartia as últimas instruções a Bethia e à
governanta.
—Ponham a trabalhar quantos operários necessite — ela lhe dizia— Que comecem pelas
salas de cima. Cortinas e tapetes. Desfaçam-se também dos edredons e das almofadas. Os
novos tecidos chegarão em um par de dias.
337
—O castelo vai parecer uma feira, excelência — protestava Flora.
—E vai gastar um dinheiro desnecessário — apoiava Bethia.
—Mas daremos trabalho a homens e mulheres do povoado e mudaremos um pouco este
mausoléu. —Descobriu seu marido atrás dela e se desculpou— Você me disse que podia
inclusive pintar o castelo de rosa se quisesse. Não mudou de ideia, não é?
—Poderia pintar o Parlamento de verde e eu a apoiaria.
Ela agradeceu seu comentário levantando-se e beijando-o na boca.
Separar-se tão cedo de seus familiares foi uma dura prova para Eleanor, mas já se
imaginava passeando a cavalo pelo Hyde Park, visitando lojas ou indo ao teatro. Mais que
tudo, desejava deixar atrás por uns dias os véus de névoa que envolvia o castelo. Ela
gostava de Hallcombe House, seus muros escuros, seus torreões, os jardins, a paz que se
respirava ao redor… Sobretudo, atraía-a o ar de mistério que rodeava o castelo e seus
segredos, que estava decidida a esclarecer. Mas também delirava por escutar música,
assistir a uma peça ou conhecer as atrevidas damas do Ladymask.
Antes de encaminhar-se a Londres deram um volta para visitar brevemente Owen e
Alice, interessar-se por seu estado e lhes fazer prometer que, se surgissem inconvenientes,
chamariam o médico pessoal de Ormond. Os meninos receberam a visita do escandaloso
Bubby como um presente do céu e imediatamente ficaram brincando de correr pela
cozinha, alimentando os latidos do vira-lata com seus jogos.
Enquanto Alice e Eleanor falavam, Cliff levou seu amigo à parte e entregou o desenho de
Sugar.
—Lamento ter que te pedir este favor, Owen, mas é importante. Preciso saber se ela se
encontrava com alguém.
338
Owen assentiu sem separar os olhos do esboço.
—Farei o que possa.
—Ficaria mais tranquilo se Alice se mudar para o castelo até que nasça o bebê.
—Já a conhece. É dura como pedra e ainda falta tempo para o parto. —Pegou o desenho
e o guardou— Eu avisarei se averiguar algo.
Já anoitecia quando se despediram, mas o trajeto era curto e Cliff esperava chegar a
Londres à hora do jantar.
Lea, agasalhada com as mantas e procurando manter Bubby quieto, empenhado em
aparecer pela janela e sem cessar de ladrar, nem se inteirou de que um par de homens a
cavalo seguia à carruagem. Ellis, pelo contrário, estava muito ciente deles. Ele tinha
assuntos dos quais ocupar-se em Londres, mas o reconfortava saber que os dois policiais da
Bow Street vigiariam cada passo de sua mulher.
339
Capítulo 44
A casa era um edifício de tijolos vermelhos e telhado escuro, situado em um bairro
tranquilo. Grande, quadrada e sóbria, Eleanor adorou imediatamente o jardim bem cuidado
que a rodeava e o caminho de pedra ladeado por sebes.
Um indivíduo alto, corretamente vestido, de idade indefinida e cabelo grisalho abriu a
porta antes mesmo que chamassem como se estivesse os esperando. Atrás dele, havia um
grupo de seis pessoas.
—Sejam bem-vindos excelências. Meu nome é Evans e sou o mordomo. Todos
desejamos que sua estadia na cidade seja muito agradável e estamos honrados de ter
entrado ao seu serviço.
Eleanor mal o escutava absorta na contemplação do solene hall presidido pelo escudo
dos Ormond: sobre um fundo branco, uma flor de lis que se entrecruzava no punho de um
sabre negro cuja lâmina era rodeada por uma banda azul. Embaixo, o lema familiar:
«Audácia, Justiça e Lealdade». Eleanor pensou que nunca uma ordem tinha sido tão
apropriada para um homem como seu marido.
340
Logo olhou para os dois esplêndidos lustres e a escada dupla de pedra. Do hall se abriam
dois corredores, uma a direita e outro a esquerda.
Cliff assentia em silêncio ao comprovar o aspecto que apresentava a casa. Fazia muito
tempo que não punha os pés nela e a lembrava fria e sem graça. Amélia havia feito um
trabalho formidável a arrumando.
—Obrigado, senhor Evans. E obrigado a todos os outros. —Como um só eles os
brindaram com uma reverência coletiva— Creio que encontraremos as dependências
confortáveis.
—Muito confortáveis milord. Tentamos que tudo ficasse ao seu gosto.
—Conseguiram. Senhor Evans, esta noite chegarão dois criados a mais — Ellis disse de
repente— Será amável em acomodá-los e lhes dar ocupação?
—Não pensei que se necessitasse de mais serviçais, milord… Encarregarei-me de tudo, é
claro.
—Obrigado.
—Jantarão agora, excelência?
—Algo leve seria bom. Uma bandeja com um pouco de frios e um caldo quente estará
bem. Faça que o subam ao quarto.
Evans bateu um par de palmas e todos os criados se dispersaram exceto dois deles que
saíram para se encarregarem da bagagem.
Lea, um tanto intrigada, perguntou:
—Não é suficiente ter seis pessoas a seu serviço por isso trouxe dois mais de Hallcombe
House? Milord, não pensava que fosse tão esnobe.
341
—Estou intrigado pelos acertos que Amélia fez na casa. —Evitou responder e ofereceu
seu braço— Vamos dar uma olhada?
Durante um bom momento percorreram as distintas dependências acompanhados pelos
lamentos de Bubby, que farejava o que já eram seus novos domínios. Dois salões, um
escritório, uma pequena biblioteca, uma salinha para o chá…
Eleanor deixou escapar uma exclamação ao sentir-se repentinamente elevada pega no
colo.
—E agora, senhora, já que em Hallcombe House não fiz as honras de um recém casado,
me permita a levar até nosso quarto como um marido amoroso.
Cliff subiu as escadas, pegou a galeria da direita e empurrou a primeira porta. O
cachorrinho penetrou entre suas pernas e ladrou ridiculamente, como se concordasse com
o que via. Também agradou Lea a amplitude do quarto, já iluminado por vários candelabros
e o fogo de uma lareira acesa.
—Demônio de mulher — ele murmurou.
O quarto tinha sido totalmente remodelado. As delicadas cortinas da cama com dossel
estavam abertas e permitiam apreciar uma antiga cabeceira de madeira esculpida com
cenas de caça recém restaurada. O edredom era branco e dourado, combinando com as
almofadas dispersas em uma graciosa desordem. Cortinas brancas com cordões e borlas
douradas e um tapete claro que cobria em parte as lajes escuras conferiam um ar acolhedor
e íntimo.
—É lindo — Lea murmurou.
—Este quarto era escuro. E impessoal. Acredito que ninguém tinha mudado nada desde
que meu bisavô vivia aqui. Mely fez um trabalho excelente.
—E teve que gastar uma fortuna.
342
—Certamente me arruinou — ele brincou— Mas valeu a pena.
Entraram os criados com os baús enquanto Leia inspecionava um quarto adjacente que
resultou ser um banheiro.
—Cliff, tem que ver isto!
Ele agradeceu o serviço aos criados, agarrou Bubby pela coleira e o pôs nas mãos de um
deles. Quando saíram, levando a intranquilo vira-lata, deu duas voltas à chave. Uniu-se a
Lea e grudando-a ao seu peito a beijou na cabeça.
—Acaba de expulsar meu cão ou só me pareceu isso?
Ele não respondeu. Estava muito ocupado acariciando as tentadoras curvas que tinha ao
alcance de suas mãos e, de passagem, admirando o trabalho feito. Onde existia um antigo
espelho havia agora outro de corpo inteiro que ocupava toda uma parede; tinha
desaparecido o velho conjunto de torneiras. O mármore esverdeado que antigamente
recobria as paredes tinha sido substituído por outro de cor rosa pálida. Cliff começou a
pensar que Amélia se excedeu nos gastos, mas achou tudo bem empregado ao receber no
pescoço o beijo insinuante de sua esposa que dizia:
—Vou encher a banheira.
Eleanor o olhou com malicia por cima do ombro, abriu a torneira e começou a
desabotoar a capa. Em um momento, ele estava disposto a sua ajuda. Tirou-lhe a capa, o
vestido, as anáguas, os sapatos, as meias… Ela se deixava levar, excitada à medida que
tirava suas roupas. A última coisa que queria era escapar de umas mãos que levantavam
nela línguas de desejo.
Cliff a envolveu em seus braços quando já estava nua e a ela se esqueceu
completamente da banheira, ansiando que a levasse para a cama. Mas se encontrou dentro
da banheira exatamente como havia dito. Suspirou resignada e se inundou na água quente.
Ao levantar-se viu Cliff desfazendo-se de suas roupas.
343
—Se apresse.
Ele ficou diante ela, completamente nu, consumido pelo apetite de unir-se a ela, mas
expondo-se à glutona curiosidade de sua esposa.
—Não sei se é justo que tenha tão esplêndido corpo. —Ela elogiou seu ego masculino.
Ellis se aproximou devagar. Era difícil respirar perante a visão de uns seios perfeitos, dois
montículos gêmeos e claros mal cobertos pela espuma.
—É tão linda…
Lea se sentia realmente assim. Ele conseguia que ela visse si mesma como única,
desejada, amada. Estendeu os braços que clamavam por ele e Cliff não se fez rogar. Meteuse na banheira fazendo transbordar a água, acomodou-se, a pegou pela cintura para
acoplar-se a suas costas. Essa postura lhe permitia ter seu pequeno traseiro sobre seu
membro excitado e, ainda, abranger seus seios, acariciar seu ventre ou brincar com o ninho
de cachos de sua virilha.
Lea se recostou e fechou os olhos, deixando-se mimar. As mãos de Cliff riscavam círculos
sobre sua pele, seduziam-na e relaxavam ao mesmo tempo.
—Me tome — ela exigiu, movendo-se sobre sua masculinidade, mais travessa e
desavergonhada do que nunca.
Quando saíram do banho, a água tinha esfriado. E o jantar também.
344
Capítulo 45
A quantidade de cartões de convites para todo tipo de eventos sociais tinha afligido
Eleanor. Ela tinha sido incapaz de desprezá-los, embora gostasse muito pouco ou na
verdade nada de ir a festas ou noitadas de piano porque queria desfrutar das atrações de
Londres. Felizmente Cliff era muito mais prático: ele atirou-as todas no cesto de papéis.
Mesmo assim, entre Cliff e a condessa que monopolizaram o tempo de Lea de tal modo que
não teve nem um minuto para fazer o que mais desejava: aproximar-se das livrarias e saber
se J. Preston tinha publicado algo novo. Restaurantes, cafés, uma extraordinária noite na
ópera, teatro de variedades nos subúrbios, lanche nos jardins de Vauxhall, corridas de
cavalo…
Depois dos primeiros dias, não houve forma de evadir-se da enchente de visitas que
começou a alagar a casa.
Lea estava com um humor do cão. Como duquesa, era impossível delegar suas
obrigações, assim suportou estoicamente às audiências. O duque de Ormond tinha sido
uma ovelha negra depois da morte de sua primeira esposa, mas parecia que agora voltava a
causar sensação. Certamente, por casar-se com uma escocesa cujo avô esteve na mira de
lady Samantha Ellis.
Por outro lado, Cliff tinha levado trabalho à cidade e se ausentou em repetidas ocasiões
para resolver seus assuntos. Lea chegou a pensar que era só uma desculpa para não ter que
atender às visitas.
Aquela tarde, entretanto, Ellis se encontrava em casa. Revisava e corrigia a
documentação e ela tentava centrar-se lendo. Não conseguia porque não deixava de
345
perguntar-se do que tratariam os papéis nos quais seu marido estava tão interessado. Sabia
que por suas mãos passavam importantes expedientes, mas sempre que estava
trabalhando com eles tinha a sensação de que estava lhe ocultando algo.
Cliff ouvia os bufados de Lea, então deixou o que estava fazendo, esvaziou sua taça,
fechou a pasta e a guardou na gaveta. Estava a ponto de fechá-la com a chave, como fazia
sempre que acabava o trabalho, quando ela fechou seu livro com um golpe seco.
—Você vai me contar o que há de errado?
—Acontece que estou furiosa. Muito furiosa! — ela exclamou.
—Não tinha notado.
—Não brinque! Esta casa parece uma sucursal de Trafalgar Square.
—Pensei que você gostaria de se misturar com a flor da nata de Londres.
—Devo ter recebido já a metade da cidade. Sozinha! —enfatizou— E dentro de pouco
teremos aqui ao conde de Penwood e a sua insípida filha.
—Podemos fugir.
—Continue zombando se quiser. — ela pegou o livro de novo, mas não o abriu— Nunca
sei se fala a sério ou de brincadeira. Você e seu condenado trabalho para a Coroa. Até os
trabalhadores do porto tiram seus dias de descanso.
Ellis se aproximou e a beijou nos lábios. Teve uma vontade inconfessável de esquecer
tudo, inclusive o epílogo da novela que estava concluindo, pegá-la nos braços e levá-la ao
quarto. Uma olhada no relógio o fez desistir.
—Está bem. Se não quiser receber Penwood, Evans nos desculpará. Sempre podemos
dizer que está indisposta.
—Não quero evitar minhas responsabilidades.
346
—Prometo que não haverá mais audiências. A propósito, amanhã é quinta-feira. Irá ao
Ladymask?
—Sim. — seu rosto se alegrou— Sabe as damas abriram uma aposta.
—Elas fazem isso?
—Você sabe muito bem que sim. Os homens não as fazem?
—E… sobre o que apostam?
—Nesta ocasião, sobre a identidade de J. Preston. Se é homem ou mulher.
—Já vejo.
—Eu joguei dez libras.
—Não foi você que disse a meu irmão que jogar era para tolos?
—Não pude resistir. As apostas estão dois a um a que se trata de um homem; dez a um a
que se trata de uma mulher.
—Aha. Acredito que deveríamos sair de Londres antes que adote o vício do jogo.
Lea corou e lhe acariciou o queixo.
—Não voltarei a fazê-lo. Mas esta vou ganhar. Pensei em comprar um presente para os
meninos de Alice. Eu gostaria de passar uns dias com eles a nossa volta. Já estou impaciente
para ver o bebê.
—Você gostaria de ter um?
Emudeceu, mas em suas pupilas reverberou um brilho especial. Ela tinha estado
acariciando essa possibilidade durante os últimos dias. Desejava um filho, mas o que ele
pensava?
347
Cliff esperava sua resposta, mas ela se calou. A euforia de uma possível gravidez e sua
consequência subiu uma cor rosada a suas bochechas. Para ele, sua posição o obrigava a ter
um herdeiro, mas significava uma enorme responsabilidade para a qual não sabia se estava
preparado. Não, depois do triste episódio de Mariam. Além disso, o aterrorizava que o
parto supunha um risco para a saúde de Eleanor.
—É possível que esteja…?
—Ainda não. E também não sei se você quer ter filhos — ela se atreveu a confessar.
—Querida. —Ellis se colocou de joelhos diante dela e beijou cada um dos dedos de suas
mãos, que agora estavam frios— Seria o presente mais extraordinário que poderia me dar.
—Desde que nossos filhos sejam tão bonitos como Jonathan e Carrie…
—Ainda mais, porque se parecerão com você.
—Bajulador.
—Realista. Mas mesmo que fossem feios como demônios os amaria, porque seriam seus.
—Quando os tivermos, quero eu mesma os criar.
—Meu amor, é uma duquesa. As duquesas dispõem de amas de leite.
—Minha mãe o fez nós quatro e tinha uma figura esplêndida. Oh, vamos! Não
deveríamos estar falando destas coisas, excelência.
Cliff se divertia com sua situação. Sentou-se no chão e apoiou a cabeça no colo de Lea.
—Portanto não há problema em falar destas coisas. Minha senhora nós estamos
casados, conheço seu corpo, fazemos amor com frequência e não tem que envergonhar-se.
Era verdade. Criar um bebê entre os dois era muito bonito. Desejou poder já o ter em
seu colo. Mas, sobretudo, gostava da ideia de ver Cliff com seu filho nos braços. Seria um
pai estupendo, disso sim estava segura.
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Cliff voltou a olhar o relógio. Disse-se que estava em sua casa, Lea era sua esposa e o
resto do mundo podia ir para o inferno. Levantou-se e a tomou nos braços.
—O que faz? Desça-me agora mesmo.
—Não o faria ainda que aparecesse por essa porta o próprio Satanás. Penso em levá-la
para a cama.
—E o que acontece com o conde Penwood e sua filha?
—Não me importam nem um pouco, querida.
Beijou-a escada acima, mas não pôde chegar nem na metade. Um pigarro de Evans o
impediu.
—Um cavalheiro pede para ser recebido excelência. Apresentou-se como o delegado
Parrish.
Ellis amaldiçoou mentalmente. O que queria agora esse sabujo?
—O faça passar ao salão pequeno. Vou em seguida.
A Eleanor não restou outro remédio que retornar ao escritório e a sua aborrecida leitura.
Animou-a, entretanto a carta que lhe entregaram da parte de Tina, mas ao lê-la ficou
desconcertada. Sua amiga dizia que precisava esclarecer certas dúvidas e que ia à Escócia.
Perguntava se seu pai aceitaria alojá-la e a sua dama de companhia em Ness Tower. Não era
necessário ser muito sagaz para adivinhar que a repentina viagem estava relacionada com
seu irmão Sean. Dobrou a carta e deixou escapar um suspiro. Tina estava louca. O que era
que pretendia? Não lhe tinha passado inadvertido que entre Tina e seu irmão tinha surgido
algo mais que a mútua antipatia que davam a entender, mas… ir à Escócia? Bom, não era
problema dela se esses dois queriam matar-se, pensou esboçando um sorriso.
Pegou papel e pena, respondeu a Tina e depois escreveu uma nota para seu pai lhe
advertindo da chegada de sua amiga. Que o destino seguisse seu curso, disse-se.
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Cliff entrou no salão e o policial ficou em pé de um salto.
—Sinto lhe incomodar, excelência, mas é importante. Podemos falar?
—Espero que seja breve delegado. Tenho assuntos que atender. Posso lhe conceder
somente uns minutos. Sente-se, por favor. Gostaria de uma bebida?
Parrish se acomodou de novo e aceitou o licor que saboreou com prazer. Não falou até
ver que o duque sentava em frente a ele.
—E bem, delegado…
—Não pude esclarecer nada em meus interrogatórios com seu pessoal — confessou—
Aparentemente, ninguém viu nem ouviu nada na noite em que mataram Sugar Bryton.
—E…?
—Você tem fama de homem duro, severo e… perigoso.
—Eu sei.
—Entretanto, seus criados não dão com a língua nos dentes. Ou os paga muito bem ou
realmente o apreciam.
—Espero que seja o segundo. Não sou miserável com meus colaboradores, delegado,
mas tampouco os pago para me defender com seu silêncio. Veio somente para me dizer
isso?
—Não. Não, claro que não. — remexeu-se, incômodo— Sou um policial. E devo
confessar, modestamente, que sou bom em meu trabalho. Cheguei à conclusão de que
você não tem nada a ver com o assassinato dessa moça.
—Alegra-me ouvi-lo. Mas isso não resolve a autoria de um assassinato em minha casa.
350
—O que tem o juiz Murdock contra você, excelência?
A pergunta pegou Ellis de surpresa.
—Por que pensa que ele pode ter algo contra mim?
—Não sou cego.
Ellis acabou sua taça de um gole.
—Murdock tentou apreender as propriedades de um bom amigo meu. E eu estraguei o
negócio. Digamos que ainda não o digeriu.
—Já entendo. — ele tomou outro gole e permaneceu com o olhar fixo no duque durante
um tempo que a Cliff pareceu eterno. Depois, com muita calma, aventurou— já pensou
excelência, que a morte de sua criada e de sua anterior esposa podem estar relacionadas?
—O que quer dizer?
—Que talvez, só talvez, lady Mariam não se suicidou.
Capítulo 46
A aparição do delegado deixou Eleanor em pânico. Desejava ardentemente que Cliff a
pusesse à par dos acontecimentos. Depois de despachar as cartas pegou um livro, mas era
351
incapaz de concentrar-se. Quase preferia que Penwood e sua filha se apresentassem de
uma vez.
Começou a dar voltas, muito intranquila para ficar quieta. Olhou os volumes das
estantes; nenhum lhe interessou muito. Reposicionou os objetos na mesa ordenando o
tinteiro e a pena, o abajur… Seus olhos ficaram cravados na gaveta, simplesmente aberta.
Cliff tinha se esquecido de fechá-la. Esticou a mão e a retirou imediatamente. Não queria
bisbilhotar nas coisas de seu marido. Afinal, que documentos guardaria ali? Segredos de
Estado? Algum discurso que deveria pronunciar perante a Câmara?
Ocupou a cadeira e brincou com a pena, mas a gaveta era um ímã para sua vista.
—O que tem de errado? —contradisse-se. E a abriu. Dentro, encontrava-se a pasta com a
qual ela o via trabalhar com frequência. Sua mão tremia e um sentimento de culpa enraizou
nela, mas a curiosidade era muito grande. Deixou-a sobre a mesa e acariciou com cuidado o
couro manuseado. Respirou fundo e a abriu.
E ficou tão fora de si que até deixou de respirar. Porque o que tinha diante dela era nem
mais nem menos que um manuscrito: Noite sem lua. «Por J. Preston.»
—J. Preston? —O sussurro de sua voz se perdeu preso em uma impressão frenética. O
cérebro de Eleanor começou a processar transmitindo palpitações a suas têmporas. Não
podia ser!— J. Preston! —Passou folhas. Leu, leu… Fechou a pasta de repente e passou as
mãos pelo rosto. Incrível! Sua escritora favorita não era outra a não ser o pseudônimo
utilizado por seu marido. O severo e cético duque de Ormond. Com razão o velhaco
defendia que não se tratava de uma mulher! Por que o tinha ocultado? Será que se
envergonhava de escrever histórias tão estupendas?
Frenética, revisou o resto da gaveta e achou a resposta em uma carta manuscrita por seu
marido. Era direta, mas não deixava margem à dúvida.
352
Peter:
Vou fazer a entrega do manuscrito Noite sem lua dentro de uns dias. Tal e como
combinamos, encomendo-te os acertos necessários para que os benefícios das vendas sejam
transferidos ao orfanato de St. Michael.
Com afeto,
CLIFF
Portanto assim estávamos. Ela sabia muito bem o que era o orfanato de St. Michael. As
damas do Ladymask tinham obtido uma grande quantia para o mesmo destino. E Cliff dizia
ao tal Peter, indiscutivelmente seu editor, que devia desviar os ganhos das vendas para o
asilo.
Ela ficou passada. Agora entendia o motivo pelo qual Cliff se mostrava tão relutante a
que ela ocupasse a biblioteca. Entendia por que guardava a pasta sob chave. Uma baforada
de amor tão profundo que lhe doía se expandiu por seu peito. E ela tinha chegado a duvidar
dele! Como pôde ter suspeitado em algum momento de estar casada com um homicida?
Deixou tudo como tinha encontrado e fechou a gaveta. Bem! Pensou. O duque tinha
direito a guardar seu segredo, não seria ela quem o exporia a luz.
—Isso sim — se disse ao mesmo tempo em que esticava os braços sobre a cabeça e
espreguiçava— eu estraguei a aposta no Ladymask.
Entretanto, ficou complicado esconder um sorriso travesso quando se encontrou com
Cliff, que se despedia do delegado Parrish. Conhecer a verdadeira personalidade de seu
adorado J. Preston acelerava suas pulsações.
353
Mas Ellis, o gesto hermético, nem se deu conta de seu estado de ânimo. Logo que
desapareceu o policial exigiu a presença dos dois novos criados que se incorporaram ao
serviço.
—Quero vigilância vinte e quatro horas do dia — ele lhes dizia— Se for preciso, peçam a
ajuda de algum homem a mais, mas a casa deve estar sob observação em todo momento. E
sempre que minha esposa saia, um de vocês a acompanhará.
—Cliff! O que significa isso de…?
—Agora não, Lea. Logo falaremos. Senhores ponham-se em movimento.
Ao mesmo tempo em que estes partiam, Evans aparecia com um envelope que entregou
ao duque.
—Cliff…
Sem lhe dar atenção, Ellis leu a nota.
—É de Owen.
—Alguma dificuldade com a gravidez de Alice? —interessou-se, relegando a um segundo
plano o impacto que lhe deu saber que os criados não eram a não ser guarda-costas.
—Não. É outro assunto.
—Que assunto?
—Contarei isso mais tarde, tenho que sair.
Ele já estava pondo o casaco que Evans, sempre atento, estendia-lhe. Mas a ela tantas
perguntas sem resposta a estavam deixando chocada. O que ocorria? Ele não pensava em
lhe explicar nada?
—Vai sozinho ou te acompanhará um de seus asseclas? —perguntou-lhe, já na porta,
claramente irritada.
354
Cliff ficou parado. Não teve dúvida alguma que a tinha aborrecido o fato de saber que ia
ser vigiada daí em adiante a cada passo que desse.
—São policiais da Bow Street.
—Bom é saber que temos sabujos em casa.
—Lamento se a desagrada, mas assim estão as coisas. E acatará minhas ordens. Nem
pense em escapulir, Lea, já não está sob a custódia de seu pai a não ser sob a minha.
—A sua e a desses policiais, não é? — ela respondeu com voz alterada.
—Também.
Ela o viu descer os degraus apressadamente e atravessar o caminho de pedra. Enquanto
o observava, a rebeldia despertou. Bateu a porta e subiu para suas acomodações
murmurando.
—Se consegui escapar de Edimburgo, nenhum policial de seis pence vai impedir que eu o
faça desta casa.
Infelizmente embora tentasse passar despercebida saindo pelas cozinhas, ali também
tinha sido posta vigilância. Esperaria sua volta e esclareceriam definitivamente a situação.
Não permitiria ninguém colado em seus calcanhares sem uma razão convincente. E, até
agora, ele não tinha lhe dado nenhuma.
355
Capítulo 47
Ellis teria dado tudo para estar à milhas de distância, mas não restava mais remédio que
enfrentar à mordacidade de sua esposa. Além de tudo, Eleanor não ia dar o braço a torcer
porque Parrish a tinha posto na linha de fogo: casou-se com Mariam e ela tinha morrido,
tinha mantido um caso com Sugar e também estava morta. Portanto, seria ingênuo não
pensar que alguém próximo estava por trás dos dois fatos e, em consequência, Eleanor
podia estar em foco. Estas eram as razões do delegado e assim as expôs.
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—Que tolice! —rebatia ela— A polícia sempre suspeita de algo. É seu trabalho. Mas eu
nada tenho a ver com sua anterior esposa. Nem com a senhorita Bryton. Além disso, sei me
cuidar sozinha.
—Lea, isto não é um jogo.
—Quem disse que era? Mas me nego a deixar que anule a privacidade de meus
movimentos sendo perseguida há todas as horas por seus homens.
—Não vão persegui-la, eles vão protegê-la.
Lea ficou o olhando fixamente. Depois de tudo, não podia se pedir a um homem que
pensasse mais que em curto prazo, porque lhes faltava intuição. Alisou a saia como para
impor uma pausa. Não podia negar que tinha conseguido assustá-la falando da
possibilidade de que se cometeu não um crime, a não ser dois, mas era uma hipótese que a
condenava a viver em liberdade vigiada. Estava inclusive decidida a levar uma arma como
medida adicional. Sabia usá-la, Sean tinha se encarregado de ensiná-la, embora
possivelmente devesse praticar um pouco. Acreditava ser capaz de disparar contra quem
tentasse atacá-la.
—Parrish suspeita de um homem? —perguntou— De uma mulher? Até onde devem
chegar seus asseclas em sua proteção? Deverão entrar comigo inclusive no reservado?
—Eleanor… escute…
—Não. Escute-me você, excelência. Se não soubermos de quem se trata, no caso de que
sejam fundadas as razões as quais Parrish faz referência, será inútil os ter grudados em
meus sapatos. Poderiam tentar me atacar longe daqui, na rua, em uma livraria, no clube…
Aproximou-se da janela deixando que ele admitisse o que acabava de lhe dizer. Fora, a
rua aparecia deserta, mal iluminada pelas chamas cintilantes das luzes. Capengando, um
sujeito de idade indefinida com sinais de embriaguez atravessava de uma calçada para a
outra. Ao longe, o latido queixoso de um cão e o eco difuso de um mascate oferecendo
357
rosquinhas punha contraponto ao adiantado da hora. Mas dentro, não se ouvia nem a
respiração de Cliff.
O duque queria entender os argumentos de Lea. Evitaria discutir com ela se possível, mas
sua proteção era inegociável.
—Prisioneira em minha própria casa… — ele a ouviu dizer— Porque não seria outra coisa
que uma reclusa, meu senhor, ou não é assim?
—Olhe-o como quer.
—Não vai mudar de ideia.
—Não. E volto a repetir mais uma vez: nem te ocorra tentar escapulir ou tomarei
medidas drásticas.
A decisão estava desenhada em seus olhos. Cliff era teimoso, mas ela era ainda mais e
não ia se deixar amedrontar. Nem sequer por ele. Que ele fosse seu marido não lhe dava o
direito de comandar sua vida.
—Está bem, como quiser. Se devo viver como uma prisioneira, eu o farei. Mas exijo uma
cela solitária. —E para que não houvesse maus entendidos, esclareceu— Quero dizer que
não se incomode em entrar em minha masmorra. Vou para a cama. Use seu próprio quarto,
ainda que… se o preferir, esse sofá parece muito confortável. Boa noite.
O duque demorou um pouco em reagir e admitir a situação. Era a segunda vez que sua
esposa o afastava como um empregado. Conseguiu acalmar-se e evitou ir atrás dela para
pôr os pingos sobre os is. Tinha algo mais urgente que fazer nessa mesma noite. Owen tinha
conseguido o endereço de um indivíduo ao que se viu com Sugar em várias ocasiões, um
tipo com o apelido de Açougueiro.
Chamou Evans e pediu seu casaco e uma carruagem. Iria fazer-lhe uma visita.
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Chovia e fazia frio. Não pôde evitar olhar para as janelas de seu quarto. A silueta de
Eleanor apareceu atrás das cortinas e a seus lábios veio uma fileira de imprecações. O
presumido e esporádico amante de Sugar podia ser muito bem o bode expiatório no qual
descarregar seu mau humor essa noite.
Nessa mesma hora e amparadas pela escuridão, duas pessoas se encontravam junto à
margem do rio que atravessava as propriedades de Hallcombe House.
Coryton pesou a bolsa que acabavam de lhe entregar e torceu a cara.
—Isto é bijuteria. Nem sequer vale a viagem.
—Dois candelabros de prata, um par de alfinetes de gravata com diamantes e uma
gargantilha de ouro. Bijuteria, diz?
—Prometeu-me as joias de Ellis.
—Sei, mas não estão no castelo, o duque as enviou a Londres. Terá que se conformar
com isto no momento.
—Não é suficiente — insistiu Coryton, embora não soltasse o saco— E não estou
disposto a esperar mais.
—Serão somente uns dias.
—Parece que não me entendeu bem, minha senhora. Ou tenho logo essas joias em meu
poder ou darei marcha ré.
—Têm tudo preparado?
—Ao contrario de você, eu cumpro com a palavra — ele assentiu, dando as costas a sua
interlocutora para prender o saco na sela— Mas tudo tem seu preço e eu sigo sem cobrar o
meu. Ande ou abortarei o plano e tirarei meu homem do meio.
359
—Confia nesse tipo?
—Não mais que em qualquer andrajoso capaz de vender sua avó por umas moedas; mas
além de entregar uma nota para lady Eleanor quando se encontrar a sós (pelo que sei esta
noite mesmo), não sabe nada e em nada pode nos comprometer.
—Só lhe peço um pouco mais de tempo. Pense no que vai ganhar quando tudo acabar.
O instinto dizia a Coryton que estava correndo muitos riscos, ainda mais agora que a
polícia estava no meio. Se eles pudessem chegar ao fio da meada, bem podiam chegar nele
até averiguar o que aconteceu com Julia Davenport, a antiga governanta. Mas sua cobiça
era muito forte e não tinha intenções de privar-se de uma fortuna em joias. Além disso,
todos os negócios têm seu risco. Olhou de esguelha à mulher. Com suas feições ocultas sob
a capa que a cobria por inteiro, ninguém podia dizer se era jovem ou velha, bonita ou feia
como o escroto de Satanás. Sim, ela protegia em princípio sua identidade de possíveis
curiosos quando a encontravam. Desde seu primeiro encontro, quando o encarregou de um
assassinato. Mas ele não tinha chegado a criar uma reputação por agir como um incauto.
Tinha mandado segui-la e sabia quem era. Com quem supunha essa puta que estava
tratando? Tampouco estava seguro de que, uma vez com as joias do ducado em seu poder,
não tentasse lhe dar um golpe. Era provável que já tivesse um modo de desaparecer com as
joias. Não restava outro caminho que arriscar-se á esperar um pouco mais, embora fosse
vigiar cada um de seus movimentos. E quando tivesse as joias… Um cadáver mais já lhe
importava pouco. Ela era ardilosa, mas uma mulher nunca poderia superar a inteligência de
um homem como ele.
—De acordo — ele concordou, verificando o nó do saco— Esperarei um pouco mais.
A mulher respirou com alívio. Uma rajada gelada fez que se cobrisse ainda mais com o
capuz. Pressentia o perigo nos olhos avaros de seu cúmplice. Longe de acovardar-se, sua
mente trabalhava a toda velocidade. O despojo vil que tinha diante era uma arma eficaz em
sua vingança. O chamariz para a duquesa estava preparado. Estava a ponto de obter seu
360
objetivo de ver o duque de Ormond preso e, talvez, executado. A um passo de arruinar sua
vida como ele tinha destruído a dela e a da pessoa que mais tinha amado no mundo. Sim,
confessou-se cheia de presunção: estava as portas de cumprir o juramento que fez muito
tempo atrás diante do cadáver de sua irmã. As malditas joias não lhe importavam, não eram
a não ser uma argumentação para conseguir a colaboração de Coryton. Tudo tinha saído
como planejou ao entrar no serviço do castelo. Absolutamente tudo, embora não tivesse
contado com algumas das mortes. Mas se tratava de simples peões em uma partida de
xadrez onde o final seria um xeque-mate no maldito Clifford Ellis.
Definitivamente, Coryton já não seria necessário.
Imerso na maré de seus pensamentos, Joseph Coryton se dispôs a montar.
—Esquecia de lhe dar uma coisa — ouviu que dizia a voz feminina.
Inclinou o corpo. Só teve tempo de perceber o brilho de um objeto que cortou o ar em
um silvo. Um objeto gelado que rasgou sua capa cravando-se em seu lado. Ele engasgou,
tentou defender-se, mas outra navalhada alcançou seus rins e a dor o deixou paralisado. A
terceira punhalada atingiu de novo seu corpo. Não pôde nem proferir um grito porque já
caía, embalado pelos braços da morte. Seus olhos, já anuviados, ficaram fixos em uns lábios
que sorriam em uns dentes paralelos, na careta de prazer sinistro de um rosto de mulher.
Um vômito de sangue, uma última convulsão e Coryton caiu de bruços com um epíteto de
despedida:
—Cadela…!
A mulher esperou o último estertor. Depois, como se tivesse todo o tempo do mundo,
revisou o cadáver para evitar qualquer identificação — relógio e anel incluídos— e lançou
tudo ao rio. Agarrou o cadáver pelos tornozelos e o arrastou até a margem da corrente.
Com um sarcasmo ritual, riscou o sinal da cruz no ar e disse:
—Descanse em paz, porco. —E o empurrou.
361
Os restos de Coryton provocaram um leve respingo, permaneceram uns metros
flutuando enquanto a corrente o levava rio abaixo e acabou por desaparecer. Antes
inclusive de perdê-lo de vista, a executora já estava desatando o saco de seu pagamento,
que dissimulou sob sua ampla capa.
Deu uma palmada no lombo do animal que relinchou e se afastou trotando.
A assassina acelerou sua volta aos muros de Hallcombe House. A fina garoa cobria os
campos e ela cantarolava uma antiga canção de ninar.
Capítulo 48
O relógio acabava de marcar uma hora.
Lea tinha ouvido os sons que avisavam a cada quarto a cada hora completa. E Cliff
continuava sem voltar para casa. Portanto, ela não tinha podido fechar os olhos,
debatendo-se entre seu amor próprio e a culpa por um comportamento que, agora, parecia
infantil.
Se seu marido não retornasse no término de uma hora, despertaria seus dois protetores
e sairia para buscá-lo ela mesma.
O que ele estava fazendo? O que era tão urgente para tirá-lo de casa de noite? O que
dizia a nota de Owen? Por que não tinha lhe contado nada? Era sua esposa. Por todos os
bucaneros de Fiorel McKenna!
Uns ligeiros golpes em sua porta a fizeram dar um pulo. Tal como estava de camisola,
atirou-se da cama e se apressou a abri-la, certa de que era seu marido embora não tivesse
ouvido nenhuma carruagem chegar.
362
Mas não era Cliff.
Evans, envolto em um grosso roupão, um pouco despenteado e com olhos
avermelhados, entregou-lhe um envelope fechado. Eleanor sentiu cortar a respiração. Se
Cliff lhe enviava uma nota é que não pensava em voltar.
—É do duque?
—Não, milady.
Passou pela cabeça dela a ideia abominável de que seu marido podia estar em alguma
casa de jogo clandestino alcançando a revanche por o haver excluído de seu quarto. Mal
podia controlar os nervos ante essa possibilidade. Rasgou o envelope enquanto perguntava:
—Quem trouxe uma carta a esta hora?
—Um rapaz, milady. Esmurrou a porta da cozinha até que lhe abrimos.
—Está bem. Vá para a cama, senhor Evans. Você não está com um bom aspecto.
—Obrigado, milady.
Eleanor fechou a porta, leu a nota e voltou a abri-la vítima de sua impaciência.
—Evans! —O mordomo mal tinha dado uns passos— Mande que aprontem a carruagem.
—Mas, excelência… — ele arregalou os olhos, já completamente acordado— A esta
hora?
—Agora mesmo, senhor Evans! Por favor.
O pobre homem assentiu e se dispôs a cumprir o ordenado, embora maldito fosse se
entendia o que acontecia.
—Uma coisa mais, Evans. Eu gostaria que isto ficasse entre você e eu se me entende.
—Claro milady.
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—Bem. Avise-me quando tiver preparado a carruagem. Ela encerrou-se no quarto e se
apoiou de costas na porta. Então e só então deixou que a adrenalina fluísse livremente.
Releu a carta, controlando o pânico que a arrepiava.
Se deseja evitar a prisão do duque e, talvez, sua morte, venha a Hallcombe House. É
importante que ninguém saiba por que minha vida corre perigo. Tenho provas de quem é o
assassino de Sugar Bryton e de todos os estranhos acontecimentos no castelo. Estarei a
esperando junto à capela. Por favor, venha o mais rapidamente possível.
Sem assinatura. Só um garrancho que podia ser um F.
Teve que esforçar-se para não cair de joelhos porque as pernas mal a seguravam. «Se
deseja evitar a morte do duque…» Analisou a letra, mas não era conhecida. E também não
parecia a mesma da nota anterior, os traços eram diferentes embora semelhantes. Fez dela
uma bola entre seus dedos. Um sexto sentido lhe dizia que podia tratar-se de uma
armadilha, que se ia a aquele encontro podia estar em perigo. Mas e se fosse verdade? E se
alguém tinha as respostas? E se a vida de Cliff dependia desse encontro? Sua segurança
pessoal ocupou imediatamente um segundo lugar.
Devia isso sim, burlar os asseclas da Bow Street, porque estava convencida de que o
senhor Evans já os teria avisado de que ela tinha pedido uma carruagem.
Rabiscou umas letras para Cliff, que deixou sobre o travesseiro e queimou a nota que
acabava de receber. Chegar a Hallcombe House não levaria mais de uma hora se punham os
cavalos a galope e podia estar de volta antes do amanhecer com as provas da inocência de
seu marido. Mas não queria o preocupar muito se não a encontrasse em casa.
364
Vestiu-se a toda pressa e em seguida remexeu entre a roupa de Cliff. Escolheu uma calça,
uma jaqueta, um chapéu e uma capa escura. Colocou tudo em uma pequena maleta, fez
farrapos de um dos lençóis e guardou uma tira junto com a roupa.
Desceu ao andar inferior, abriu a porta e esperou, com os nervos abalados, a chegada da
carruagem. Ao vê-la aparecer, pegou a capa que Evans lhe estendia e a jogou sobre os
ombros.
—Excelência, por favor… — ele rogava pálido como um morto.
—Vá para a cama, Evans.
Lea indicou ao cocheiro que tomasse a direção do Parlamento e subiu. Abriu um pouco a
cortina da janelinha e viu que os policiais da Bow Street já corriam para a parte traseira da
casa, às cavalariças. Imediatamente se desfez da capa e começou a tirar o vestido. Qualquer
um que a tivesse visto teria pensado que estava louca, mas Lea sabia muito bem o que
fazia, e o seguinte era despistá-los. Ao inclinar-se para pôr as calças, foi atacada por uma
sensação de medo e teve que se recostar um momento e fechar os olhos. Quando se
recompôs, acabou de vestir-se com a roupa de Cliff. Tal como tinha previsto, a calça
dançava em sua cintura estreita. Pegou a tira de lençol e a atou. Em seguida colocou a
jaqueta, recolheu seu cabelo sobre a cabeça e pôs o chapéu. A capa escura cobriu sua
ridícula indumentária, mas era disso que se tratava, de oferecer o aspecto de um garoto
mal vestido.
Deixou-se cair no encosto do assento presa de uma emoção agitada. Estava a ponto de
empreender uma arriscada aventura que transformava em coisa de criança a perseguição
do espírito de seu antepassado nos túneis de Ness Tower. E esta era muito mais perigosa.
A carruagem se aproximava do Parlamento, a suprema instituição legislativa da
Inglaterra, onde os Whigs e os Tories debatiam, opunham-se ou concordavam e onde seu
marido, como par do reino, ocupava muitas de suas horas.
365
Lea pôs a cabeça para fora e gritou ao cocheiro que a levasse a zona do porto. Pareceulhe que resmungava e não era para menos, não era um dos lugares mais recomendáveis da
cidade. Ia ser complicado encontrar outra carruagem àquelas horas, mas sabia que alguns
cocheiros cochilavam nas boleias com a esperança de fazer algum serviço de última hora
para os cavalheiros que frequentavam as casas de encontros. E as casas de encontros
estavam ali onde se dirigiam.
Com o coração palpitando dolorosamente, observou atrás da cortina: bêbados,
prostitutas e mesas de jogo em plena rua, junto a improvisadas fogueiras que a garoa
ameaçava apagar. Uma mistura de urina e restos de comida putrefata a obrigou a se
inclinar para trás e tampar a boca.
A carruagem freou quase em seco lançando-a contra o encosto, ouviu uma sonora
blasfêmia e voltou a andar. Pouco depois voltava a parar e Lea descobriu uma carruagem
livre. Saltou ao meio-fio, cortou a distância, levou dois dedos à boca —como seu irmão Ian
tinha a ensinado— despertando ao sonolento cocheiro com um estridente assobio, deu-lhe
instruções e desapareceu no interior. Ele estalou um chicote e os cavalos começaram a
andar.
Lea se recostou e soltou o ar. Ela deu um sorriso só de pensar que acabava de deixar
plantados seus perseguidores.
366
Capítulo 49
Ellis entrou na casa por volta das duas da madrugada, gelado, encharcado até os ossos e
com um humor de cão. Tinha sido impossível encontrar o Açougueiro. E ninguém pôde lhe
explicar.
Um senhor Evans desarrumado e envolto em roupão surgiu assim que fechou a porta e a
ele disparou todos os seus alarmes.
—Sua excelência… Milady… — O mordomo mal podia falar.
—O que aconteceu? Onde está minha mulher?
—Lady Eleanor - a voz de um dos policiais entrando como um furacão soou estrangulada
— nos enganou como a uns colegiais, milord.
Cliff soltou uma maldição. Como um possesso, andou de um lado ao outro do hall. Os
guardiões, com um ar humilhado, não abriam a boca.
O duque de Ormond queria cortar o pescoço de alguém, não importava de quem. Mas se
obrigou a acalmar-se porque se Lea tinha desaparecido no meio da noite de pouco ia servir
perder a calma.
—Quero um relatório detalhado — ele exigiu com cara de poucos amigos.
367
—Milady recebeu uma nota… — se explicava o mordomo.
—Pediu a carruagem - continuou um dos policiais— Fomos atrás dela em direção ao
Parlamento. Depois viraram para o porto. —Cliff sentiu que começava a espessar seu
sangue imaginando Lea por ali— Deram várias voltas e quando conseguimos alcançar sua
carruagem, só encontramos isto. E sua capa.
O outro policial lhe estendeu uma maleta de mão. Dentro havia um vestido de mulher
que Ellis identificou imediatamente. Não precisava que lhe explicassem nada, adivinhou em
um segundo o estratagema de Lea. Disfarçada!
Subiu as escadas de três em três degraus e seus temores se confirmaram diante do
armário aberto e de suas roupas remexidas. Um frio doloroso se alojou na boca de seu
estômago e se perguntou onde diabos teria ido. Estava o desafiando? Por uma simples
disputa? Passou as mãos pelo rosto, mexeu no cabelo, fungou como um touro enfurecido e
acabou se deixando cair na beira da cama. Os lençóis cheiravam a Eleanor e ainda estavam
quentes. O que era o que não se encaixava?
Então viu a nota.
Quase rasgou o papel em sua ânsia por saber o que dizia. Mas dizia muito pouco. Muito
pouco, maldita fosse Lea! Leu-o em voz alta, como se ao fazê-lo a mulher que amava com
toda sua alma lhe transmitisse as sensações com as quais tinha sido escrita.
Voltarei antes do amanhecer com as provas de sua inocência e as névoas desaparecerão.
Não me espere acordado.
Eu te amo,
Lea
368
Cliff sentiu pulsar as têmporas. Cada terminação nervosa de seu corpo mandava
ferroadas ao cérebro. A dor se intensificava a medida que passavam os segundos e uma
dúvida espantosa começava a tomar forma. Pegou papel e pena e rabiscou um par de
frases. Desceu ao andar inferior, onde tinham se concentrado os empregados.
—Algum de vocês sabe onde vive o delegado Parrish?
—Sim, excelência em...
Ellis o deteve com um sinal de sua mão e entregou a nota a um dos policiais.
—Faça chegar-lhe esta carta. Diga-lhe que é urgente. E você — se dirigiu ao outro— fique
aqui para o caso de minha esposa retornar. Faça o que for necessário o que for, mas que ela
não saia.
—E o senhor, milord, o que vai fazer? —perguntou o mordomo, cada vez mais nervoso.
—Seguir uma intuição, senhor Evans. Seguir uma intuição.
A tormenta não estourou, e quando Eleanor chegou a Hallcombe House a garoa tinha
cessado, mas o vento soprava e arrastava folhas e ramos, dificultando a visão do contorno.
Indicou ao cocheiro que se dirigisse para a ala sul e lhe ordenou que parasse a curta
distância do pequeno galpão que abrigava a capela. Pagou e aguardou que ele desse a volta
retornando para Londres. Depois, correu para os muros da pequena igreja. Exceto os já
cada vez mais distantes trovões e o vento não se percebiam som nem presença alguma.
Com a respiração acelerada, grudou-se ao muro e tentou espionar na escuridão ao redor
até recompor seu estado de ânimo. Caminhou com cuidado, medindo, quase às cegas, até
dar com a porta.
Estava entre aberta.
369
Um estremecimento a reteve frente à madeira corroída. Estava assumindo um risco, mas
o futuro e o bom nome de seu marido não tinham preço. Dela dependia esclarecer as
incógnitas que haviam encoberto Hallcombe House desde sua chegada. Nunca lhe faltou
decisão, mas reconhecia que ali, em plena noite, sozinha, indo ao encontro de um
desconhecido, receava cada vez mais com motivo. Estava em seu juízo perfeito? Não estaria
cometendo a maior das imprudências? Porque quem podia assegurar que a pessoa que
tinha lhe enviado a nota não era o assassino de Sugar Bryton?
Inspirou até que lhe doeu o peito e enquadrou os ombros. Fosse quem fosse o autor da
carta, estava disposta a enfrentá-lo. Inclusive o teria feito com o próprio senhor dos
infernos se isso significasse eliminar os obstáculos que conspiravam em atrapalhar sua vida
com Cliff.
Empurrou a porta, que foi se abrindo com um chiado que disparou seus temores.
A mais absoluta escuridão reinava no interior do minúsculo templo. Ao fundo, uma luz
amarelada cintilava em honra à presença perene do Todo Poderoso, e sua piscada
representava para ela uma âncora a qual aferrar-se. Rezou sem ser consciente do que fazia
e avançou devagar, esquadrinhando entre a escuridão, medindo a posição de uns poucos
genuflexórios. Os saltos de suas botas faziam eco sobre o chão de pedra. Aguçou o ouvido,
mas o silêncio seria espectral se não fosse pelos rugidos sibilantes do vento no exterior e o
batimento desenfreado de seu próprio coração.
—Milady…
Congelou-lhe o sangue e se virou para um e outro lado tentando localizar a fonte da
chamada. À direita do altar, junto à porta que dava à sacristia, acendeu-se a vacilante
chama de uma vela. E pôde distinguir quem tinha chamado dali.
O peso que tirou de cima fez com que respirasse aliviada. Ouviu sua própria voz como
um grasno.
370
—Por favor… Estava aterrorizada…
A portadora da chama se aproximou rapidamente. Tinha o rosto desfigurado e tremia.
Tanto, que mal podia sustentar a vela com a qual se iluminavam.
—Obrigado por vir, milady. Estive a ponto de partir, pensei que não daria atenção a
minha carta.
—O que é que…?
—Aqui não — a outra interrompeu— Acredito que me vigiam. E se for assim, nós duas
estamos em perigo.
—Quem nos vigia?
—O assassino.
Sua voz era um sussurro que atiçava o medo de Lea em um recinto quase sepulcral.
Aquelas quatro paredes absorveram a integridade com que chegou. Os claros e escuros que
provocava a chama em seu rosto assim o confirmavam, mas tinha ido para descobrir a
verdade, ou seja, e as perguntas queimavam.
—O assassino de Sugar?
—Não, milady. O assassino de lady Mariam, da governanta anterior e de Sugar Bryton —
assegurou com a convicção que suas mãos trêmulas não acompanhavam fazendo dançar a
chama— Enfrentamos a um sádico que quer a ruína de milord e a sua. Mas não falemos
aqui…
—Só me servem as provas — insistia Eleanor— De quem se trata?
—Não estou segura, excelência, por isso lhe mandei o recado. Encontrei umas cartas…
objetos… meu Deus foi horrível! — lhe escapou algo parecido com um soluço— Até há uma
mecha de cabelo!
371
Parecia a ponto de cair. Sempre a tinha visto conduzir-se com integridade, mas agora
fraquejava. A Lea sobreveio um acesso de pânico, apesar do qual tirou ânimo de onde não
havia para tranquilizar sua interlocutora pondo uma mão em seu ombro. Aquilo não podia
estar acontecendo, disse-se. Só um perturbado procedia assim, já não cabia dúvida. Um
assassino que colecionava lembranças de seus crimes como troféus? Tinha lido algo similar
em uma das novelas de J. Preston… Não, em uma das novelas escritas por seu marido,
retificou. Alguém tentava imitar, talvez, os crimes de Lágrimas Negras? Que loucura!
—Onde estão essas provas? — ela perguntou.
—No quarto da torre sul, milady.
Se a tivessem golpeado na cabeça, não a teriam atordoado tanto. Ela meio que
cambaleou vítima da evocação da maldita torre. A torre sul. O mistério de Hallcombe
House, suas visões, seus pesadelos noturnos, as mortes… Tudo parecia estar ligado a esse
ponto concreto.
—Por que ali?
—Não sei! Juro que não sei milady. Tive que fazer a limpeza e… Eu nunca gostei desse
lugar que permanece fechado desde a morte da antiga duquesa. Mas tive que ir e... —
Emudeceu ao ouvir um ramo quebrar-se no exterior e imediatamente depois golpear a
porta da capela. Ambas se viraram gritando em dueto— Saiamos daqui, senhora! Por Deus,
vamos!
Lea concordou, mas antes de fazê-lo deu dois passos até o altar de onde pegou um dos
candelabros. Brevemente guiou seus olhos ao Tabernáculo como se procurasse perdão pelo
furto. Em seguida se encaminharam à saída deixando para trás a capela, grudadas ao muro.
Correndo, como se todas as almas do inferno fossem atrás delas, atravessaram o espaço
que as separavam do muro sul do castelo, de onde chegaram às cozinhas. Entraram e se
fecharam. Estavam a um passo de sofrer um ataque de histeria. Só ouviam suas agitadas
respirações e o tragar convulsivo de suas gargantas.
372
Estavam enfrentando a alguém capaz de matar a sangue frio, não deveriam ir em busca
de ajuda? Pensava Lea. Mas quem a essa altura? Despertar à criadagem parecia coisa de
loucos quando não sabiam se entre eles estava o criminoso e podiam o pôr de sobreaviso.
Uma vez recuperado o fôlego, entraram na galeria que as levaria para o hall principal. A
tormenta se ouvia cada vez mais distante, e através das altas janelas já mal chegava o
estalar dos relâmpagos.
Com o máximo silêncio, foram subindo as escadas. Lea sentia que retardava o batimento
do coração com cada ruído, com o próprio chiado de seus pés arrastando-se sobre o tapete
que cobria os degraus de pedra. Se aquilo não acabasse logo, ia desabar. E ela se acreditava
uma heroína por ter bisbilhotado as galerias subterrâneas de Ness Tower! Não temia aos
espíritos, mas agora enfrentavam um ser real, de carne e osso. Os mortos não matam, mas
os vivos sim.
Tomaram depois a escada da torre sul tropeçando às vezes, sem deixar de dar rápidos e
instintivos olhares a suas costas. A vela se apagou e Lea ficou bloqueada de puro medo, mas
sua acompanhante a reacendeu com a mão pouco firme, lhe dando um pouco de calma.
Os degraus rangiam sob seus pés.
No andar de cima, a porta se negava a abrir-se. Aplicaram seus ombros juntas, uma e
outra vez, e a madeira cedeu com um lamento.
Lea foi primeira em sair, candelabro em riste, como se esperasse encontrar-se ali, cara a
cara, com o assassino. Um esfumado relâmpago mal iluminou o céu, uma estreita torre que
se elevava a sua direita e uma porteira. Essa devia ser a sala trancada. Deu uns passos
inseguros para ela e empurrou. Estava fechada. Em sua cabeça se amontoavam mil e uma
perguntas rugindo por obter resposta. Estava ali a solução? As provas, as cartas e os restos
de cabelo que dizia…?
373
Uma contração nervosa se alojou em seu cérebro esticando seus neurônios ao limite,
acelerando uma mensagem sensata que revelava o véu denso da cilada com a precisão de
um bisturi.
Seu coração parou de bater e um frio úmido se alojou em sua coluna vertebral. Ficou
com a mão aferrada ao trinco. Voltou-se devagar. Muito devagar. Suas dilatadas pupilas se
lançaram no rosto da mulher que agora exibia a careta da maldade em um sorriso sinuoso.
—Disse que não sabia ler… Sonia.
Capítulo 50
O rosto de Sonia se transfigurou.
374
Lea não se recordava de uma transformação tão desonesta nem tão cínica. Já não tinha
diante dela um rosto assustado, a não ser outro de olhar furioso que destilava um desdém
infinito. Controlava a situação e se vangloriava disso.
—Sei ler tão bem como você, milady — ela replicou com ironia— Por favor, solte o
candelabro.
Empunhava uma pistola cujo cano sinistro não deixava de apontar para Eleanor.
A boca da duquesa estava seca, e sua língua, áspera como um pano de chão. Teve que
pigarrear para que sua voz saísse.
—Assim é tudo uma armadilha. Não há cartas, nem provas, nem cabelos. Não há nada.
—É obvio que não! — ela ria enigmática— Para que eu ia querer esses troféus tão
macabros? Não. A sala está vazia. Que fácil foi enganar a todos! Que fácil! — ela desfrutava
em sua iniquidade— Vamos, me obedeça e deixe cair o candelabro, ele de pouco lhe
servirá.
Lea sentiu como uma bofetada a certeza da situação. O que podia fazer frente a uma
pistola? Abriu os dedos e o ruído seco de sua arma improvisada batendo no chão soou
como um salmo funerário. Pelo contrário, encontrar-se por fim frente a frente com a
origem de seus medos, serenou-a. Inalou ar devagar, acalmando a corrida acelerada de seu
sangue e começou a pensar com frieza.
—Por quê?
Era uma pergunta totalmente lógica e, entretanto, Sonia piscou como se a
surpreendesse.
—Por quê? Por vingança.
—Vingança do que? Contra quem?
375
—Contra o homem que arruinou minha vida. Contra seu marido, o altivo Clifford Ellis,
duque de Ormond.
Respondeu jogando os ombros para diante, com o rosto congestionado, cuspindo as
palavras. O que Cliff podia haver feito a aquela mulher para maquinar várias mortes com o
intuito de culpá-lo? Não teve que esperar. A resposta queimava nos lábios de Sonia.
—Ele matou minha irmã.
Os olhos de Eleanor se cravaram como dardos nos da outra, lunáticos e desequilibrados.
Estava louca. Cliff era incapaz de cometer semelhante monstruosidade. E ela o disse.
—Está desequilibrada.
Mal pronunciou a frase se deu conta da imprudência. Um sorriso malévolo distorceu o
rosto de Sonia, que levantou a pistola e a apontou à sua cabeça. Lea se negava a olhar o
buraco negro que a ameaçava.
—Retroceda. Vá para a beirada da torre. —Eleanor nem pestanejava. Não é que não
entendesse o que ela estava lhe ordenando, é que não queria entendê-lo porque era muito
aterrador— Agora!
O mundo se paralisou ao seu redor. Tudo parecia irreal, como se estivesse imersa em um
pesadelo.
Eleanor olhou para trás. Rapidamente. Para fixar em sua retina, uns passos mais à frente,
a beira do chão que pisava e a negra escuridão, um abismo insondável cujo final era um
poço mortal onde tinham acabado a infeliz Mariam e a pobre Sugar. Sua mente trabalhava
em vertiginosa velocidade. O que fazer? Como distrair essa demente? Alguém as teria visto
subir? Poderia esperar alguma ajuda? Onde tinha se metido, vítima de sua insensatez e de
uma auto-estima mal entendida?
—Vamos! Mova-se!
376
Retrocedeu muito devagar. Tinha que fazê-lo para não provocar que ela disparasse ou a
empurrasse. Seu pé já quase tocava a borda. Um passo mais, só um passo mais, e cairia no
vazio sem remédio. Mas não estava disposta a morrer essa noite. Porque amava Cliff e
desejava uma vida inteira ao seu lado. Não ia deixar fácil para essa psicopata, filha da puta.
O vento levou as nuvens e a lua envolvia suas figuras as tornando fantasmagóricas.
—Você deseja que eu salte.
—Isso. Você acabará como lady Mariam e como Sugar.
—O que fará se eu me negar? Vai disparar?
—Pode apostar que sim.
—Então seu plano fracassará. Perguntarão quem disparou em mim, procurarão pela
arma, rastrearão a origem da bala…
—Não seja estúpida! Para mim tanto faz que morra de uma ou outra maneira. Acabará lá
em baixo, como as outras mulheres que passaram pela vida de seu marido. Do mesmo
modo que minha irmã acabou! Quando encontrarem seu cadáver todo mundo apontará
para o duque. Três mulheres, três mortes. Muitas, mesmo para ele.
—Quatro — Lea realçou, porque tinha que ganhar tempo de alguma maneira, um tempo
que se esgotava— Quatro crimes, Sonia. Porque Julia Davenport também está morta e você
é a responsável, não é? O que te fez essa mulher? Como morreu?
—Bisbilhotava muito e estava a ponto de me descobrir — ela disse com desdém— mas
não me empurre esse cadáver, duquesa. Não a matei. Ao menos, não pessoalmente,
embora reconheça que dei a ordem.
—E a quem deu a ordem, filha da puta? —trovejou a suas costas uma voz viril carregada
de desprezo.
377
Sonia voltou seu braço armado para o intruso ao mesmo tempo em que proferia uma
exclamação de alarme.
Os joelhos de Lea quase se dobraram diante da visão de seu marido envolto em uma
capa escura, ameaçador como um ser vindo do inferno que avançou um par de passos
dividindo sua atenção entre ela e sua inimiga. Mas Sonia reagiu mirando-a para ela outra
vez.
—Se se mover, a mato!
Ellis se debatia entre sua cólera contida e o pânico que tomou conta dele. Todo seu ser
lhe pedia para jogar-se sobre Sonia e apertar seu pescoço até tirar para fora dois palmos de
língua, mas o retinha a vulnerabilidade extrema de sua esposa. Na presente circunstância
optou pela mesma estratégia que Lea tinha seguido: ganhar tempo, distrair a execrável
assassina; se conseguisse fazê-la baixar a guarda um segundo, somente um segundo, e ai
teriam uma oportunidade.
—Se foi à mandante, quem matou a senhora Davenport? —insistiu.
—Você devia conhecê-lo bem, porque ele sonhava em vê-lo morto, excelência.
—Devia? Sonhava? Por que fala no passado?
—Porque Joseph Coryton não é mais que um cadáver. Acreditou que poderia me
enganar. A mim! — ela rugiu— Pobre desgraçado. Nunca soube onde estava o limite de sua
cobiça.
—Assim que o tirou da frente.
—Que descanse em paz — resumiu com sarcasmo, desviando ligeiramente a arma.
Cliff não perdia um detalhe de cada piscada, de cada careta, de sua respiração agitada
conforme narrava suas maldades.
378
Por sua parte, Eleanor também se mantinha alerta, especialmente alerta em sua delicada
situação. Tinha adivinhado que seu marido tentava distrair Sonia para saltar sobre ela. Não
havia outro meio que entretê-la entre eles. Louca ou não, não poderia cobrir duas frentes
de uma vez. Deslocou-se muito devagar, afastando-se da beirada, aproveitando a
interrupção do duque.
—Cliff… — Sonia prestou toda sua atenção e se voltou para mirá-la.
—Retroceda ou nem sequer poderá despedir-se de seu marido.
Lea ignorou. Era um risco que devia correr porque, de outro modo, ela poderia cair no
vazio ou Cliff acabar com uma bala entre as sobrancelhas.
—Cliff, ela assegura que você matou sua irmã.
Ele calculava alternativamente as reações de Sonia e o tipo de arma que segurava com
determinação: uma pistola conhecida como «rotativa», capaz de disparar várias vezes sem
ter que ser recarregada. Usava-se no exército e era consciente de seu mecanismo.
Amaldiçoou sua má sorte, porque se fosse outro tipo de artefato teria provocado Sonia
para que disparasse e assim protegeria Lea, mas não era o caso. Quando ouviu sua esposa
ficou branco de susto.
—Sua irmã? Nem sequer a conheço.
—Madelaine Collingwood. Não lhe diz nada esse nome? —Ellis negou e isso a enfureceu
mais ainda— Bastardo! Nem sequer se lembra dela? —Avançou um passo para ele e elevou
a arma uns milímetros— Ela o amava!
—Eu afirmo que não sei de quem fala!
—Cornwall. Mansão de Fraülein Diermissen.
379
O cérebro de Ellis rebobinou. Tinha sido convidado de honra da dama alemã ao redor de
uma semana, período durante o qual uma moça procurava comprometê-lo fingindo
encontros casuais. Sim se recordava…
—Nunca seduzi essa jovem, e mais, mal nos falamos.
—Não. Nunca o fez. Mas ela se apaixonou como uma iludida por você e adoeceu ao
saber da notícia de suas bodas com lady Mariam. Perdeu a vontade de viver e acabou
atirando-se pela janela. Você a matou.
Eleanor mordia os lábios para não gritar. Mas o fez quando Sonia deu um passo atrás
para poder encarar melhor a ambos e se viu de novo frente ao buraco negro do cano.
—Já basta! Vá para a beira. E salte.
—Lea, não se mova! —gritou Cliff.
—Salte ou vai ver seu marido morrer aqui mesmo e em seguida a empurrarei eu mesma!
—E nessas condições, quem vai acreditar que ele me empurrou? — Eleanor a desafiou.
—Você acha que sou uma estúpida, não é? — ela pôs-se a rir retrocedendo um pouco
mais, sem perder de vista a nenhum dos dois— Se disparar nele e em seguida a empurrar
pensarão que tentou se defender e que caiu. É uma explicação coerente que, além disso,
resolve para a polícia três crimes de uma vez.
Seu tempo acabava. O oxigênio custava em atravessar a garganta fechada de Cliff. Para
uma louca, Sonia não deixava nada ao azar. Tinha pensado em tudo. Viu que avançava para
Eleanor sem deixar de apontar para ele e se disse que não cabia mais demora. Era agora ou
nunca. Tomou impulso no preciso instante em que sua esposa recuava para a beira da
torre. Eleanor escorregou e durante uns segundos eternos se esforçou para manter o
equilíbrio justo entre o limite da vida e o abismo.
Um grito pavoroso rasgou o espaço e desapareceu tragado pela escuridão.
380
Capítulo 51
Dedos como grilhões travaram no punho de Eleanor no último segundo.
Seu próprio peso caindo no vazio e o brusco puxão que a reteve transpassaram seu
cérebro apavorado. Seu corpo dançou no ar e no vaivém golpeou sua cabeça na parede. Um
grito angustiante rompeu em sua garganta e sua mão livre procurou por uma fresta,
qualquer fresta a qual agarrar-se com desespero.
381
Doía-lhe a cabeça e o lado, o pulso e o ombro, como estivessem arrancando seu braço e
um fio de sangue escorria por sua testa… Mas estava viva! Balançando-se no ar, a metros de
uma distância negra que a separava de uma morte certa, mas viva.
—Aguente, meu amor! —ouviu que Cliff lhe gritava.
Elevou seus olhos para ele e na escuridão pode ver umas pupilas febris e um rosto
contorcido pelo pânico que lhe provocaram um pranto histérico. A figura de Sonia se
desenhou nas costas de Cliff tão ameaçadora como um leviatã.
—Cliff, cuidado!
O aviso chegou tarde e o duque recebeu um terrível chute no lado que paralisou a
energia de seus músculos. Evitou um novo golpe inclinando o corpo o quanto pôde e
apertou ainda mais o pulso de Lea.
Sonia apontou para a cabeça de Ellis rindo como uma demente, a demente em que se
converteu. Um instante mais e o mataria. E Eleanor cairia sem perdão.
Foi precisamente então, acreditando que tudo estava perdido, enquanto se confessavam
um amor que não necessitava de palavras porque sabiam que iam morrer, quando chegou
até eles à última voz que esperavam ouvir.
—Abaixe a arma, Sonia.
Esta se virou como uma cobra, dilatando seus olhos pela pistola que, desta vez, apontava
para ela.
Floresce Dumond avançou um par de passos para a beira da torre sem tirar a vista dela,
obrigando Sonia a dar as costas para a escada.
—Abaixe a arma — ela repetiu com brutalidade— Sempre é melhor ir para a prisão que
receber um tiro.
Como resposta, teve uma risada rouca.
382
—Se me entregar eu acabarei na forca. Atire se tiver coragem, Flora, mas duvido que
tenha tempo de me matar antes que eu acabe com eles.
A governanta hesitava: mesmo que alcançasse Sonia não tinha certeza de que esta não
disparasse ao duque. A segurança de ambos estava em suas mãos. Não se atreveu a
disparar porque só podia retroceder fazendo com que Sonia avançasse para ela e Ormond
aproveitasse para içar sua esposa até a segurança.
Soltou sua pistola, elevou as mãos em sinal de rendição, e retrocedeu ainda mais. Como
tinha previsto, Sonia cortou a distância, elevou seu braço armado e a apontou à sua cabeça.
—Adeus, senhora Dumond. Minhas saudações a Satanás.
Seu dedo se crispou sobre o gatilho…
Seus lábios se curvaram em um sorriso sinistro…
Um tremendo golpe sacudiu a cabeça de Sonia. Seus olhos apagados queriam achar a
origem da intensa dor que a privava da visão e da vontade. Em câmara lenta, seus membros
inertes, suas pupilas arquivaram um rosto inesperado e uma mão que hasteava o
candelabro que Eleanor tinha perdido.
Bethia repetiu o golpe mais uma vez enquanto Flora se atirava para sua própria pistola e
a empunhava no chão. Mas já não precisava utilizá-la. À beira da torre, o corpo de Sonia,
enfraquecido, perdeu todo equilíbrio e sumiu no vazio.
A velha aia de Lea contemplou sua queda, a que acompanhou o eco sinistro da morte ao
bater no chão do pátio.
—Mande um olá a Lúcifer, filha da puta — se despediu a escocesa cuspindo na noite.
Os duques, imersos em sua batalha pessoal, debatiam-se em um combate sem trégua
agarrando-se à fé de sua natureza que combatia incansável para quebrar a pressão exercida
por Lea.
383
Cliff disciplinou toda sua energia represando-a aos seus braços. Bethia e Flora puxavam
as pernas do senhor de Ormond com a mesma determinação que este aplicava sobre os
pulsos de Lea. Palmo a palmo, os olhos dela foram se aproximando mais e mais, em um
esforço titânico que a arrebatou do abismo. Ao limite máximo da força e da tensão, Clifford
Ellis conseguiu que primeiro os seios, e depois o ventre, de sua esposa, arrastassem-se pelo
chão do torreão.
Não houve palavras. Só fôlegos sobressaltados que se elevavam entrecortados com uma
gratidão sem fim cujo destinatário era o céu.
Capítulo 52
Parrish esvaziou sua taça e aceitou um pouco mais de brandy.
—Obrigado. Estou de serviço, mas que demônios! Acredito que é uma boa ocasião para
saltar o regulamento — brincou, levantando um coro de afirmações cúmplices.
Ellis assentiu agradecido. Fechado o trágico capítulo, o que todos necessitavam era um
pouco de quietude. E o policial estava ali precisamente para isso: para pôr um ponto final a
certas questões. Para começar, Floresce Dumond, a suposta governanta desdenhosa e
antipática, não era a não ser uma eficiente policial com vários anos de serviço na lista de
nomes da Bow Street. Uma surpresa muito grata que aumentou sua figura aos olhos de
todo mundo, sem distinção.
—Começamos a suspeitar —contava Parrish— depois do desaparecimento de Lisa Wells,
excelência, uma moça que trabalhava para você.
384
—Apareceu afogada, sim. Sua morte nos comoveu claro. Mas fomos informados que
podia tratar-se de um acidente…
—… Se não fosse por um golpe na nuca provocado por um objeto agudo - acabou Parrish
— As pesquisas nos levaram até Sonia Collingwood, sua amiga íntima que, casualmente,
ocupou seu posto no castelo. A senhora Dumond se ocupou do caso e mergulhou até
averiguar sua verdadeira identidade. Perguntamo-nos então por que uma dama como ela
procurava servir em Hallcombe House.
—Você quer dizer que Sonia foi quem... A matou — o policial assentiu.
—Flora se mudou para Conwalls, fez perguntas, indagou. Assim soube do suicídio da irmã
de Sonia e do posterior desaparecimento desta. Mas não tínhamos provas e tínhamos que
as encontrar. Depois da morte de lady Mariam, nossas suspeitas se acentuaram e chegamos
à conclusão de que o motivo era tão velho quanto o ser humano: a vingança.
—Então, por que não a detiveram? —perguntou Eleanor.
—Sonia estava louca, excelência, mas era muito inteligente. Tinha sempre um álibi. Mas
não quisemos baixar a guarda. Quando Julia Davenport morreu decidimos que tínhamos
que atuar de dentro, e apresentamos a candidatura da senhora Dumond para ocupar seu
posto, contando com a agência de empregos que nos ajudou com as falsas referências.
—Sonia não matou minha antiga governanta, Joseph Coryton o fez - comentou o duque.
—Seu cúmplice, sim. Naturalmente, eliminou-o quando julgou que ele era um estorvo
para ela. Seu corpo hoje mesmo foi encontrado. Estávamos, então, ante um caso complexo,
excelência. Sonia Collingwood vivia com uma obsessão. Culpava-o da morte de sua irmã e
só pensava em vingar-se de você, não importava quantos tivesse que tirar da frente.
—E Sugar? —quis saber Bethia.
385
—Imaginamos, embora isto nunca saberemos, que foi como ela disse: era só um peão a
mais para culpar o duque de Ormond. —Desta vez falou a própria Flora — Lamento não ter
percebido que ia se servir dela até esse ponto. Remexendo em seus pertences, entretanto,
achei algo que me levou diretamente ao nosso psicopata: ópio. Sonia e ela ocupavam o
mesmo quarto, como sabem.
—E o que tem a ver o ópio em todo este assunto? — Bethia perguntou.
—Agora eu entendo. Era o que colocava no meu ponche, não é? —interveio Lea—
Dizendo que você o preparava.
—Sim. E estamos quase seguros que sob seus efeitos lady Mariam tirou a vida.
—Cansaço, sensação de peso, torpor, sonos inquietos e alucinações - concretizava
Eleanor— Todos os efeitos que eu sofria e que me impulsionavam para a torre. Por causa
da droga via vultos e ouvia ruídos e vozes fantasmais em meu quarto, ainda não entendo
como não percebi, suponho que entre o terror e o ópio me escaparam os detalhes. Era ela e
eu acreditei que se tratava de um espectro, tinha vantagem visto que jogava com meu
medo e minha letargia. Sonia enlouqueceu Mariam para que saltasse da torre e tentou
fazer o mesmo comigo. —Um calafrio sacudiu sua coluna vertebral— Não sabe como sinto
por ter duvidado de você, Flora.
—Não tem importância, excelência. Não me preocupava com isso. Com o que tive que
brigar foi com a desconfiança permanente de sua criada. —Sorriu para Bethia que escutava
muito orgulhosa— Não tive mais remédio que confiar nela quando vocês se deslocaram
para Londres, era como um cão de caça e começava a dificultar meu trabalho. Entre nós
mantivemos Sonia vigiada dia e noite, até onde foi possível, pois não conseguimos impedir
o assassinato de Coryton. Foi Bethia quem a viu entrar na capela e graças a ela você está
agora viva. Se não fosse por sua coragem, atiçando Sonia enquanto eu estava desprovida de
minha arma…
Lea esticou sua mão e tomou a de sua aia em um gesto que fazia inútil qualquer palavra.
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—Para todos os efeitos, para evitar complicações legais — particularizou Parrish— foi
Flora quem acabou com a vida dessa pobre desgraçada em cumprimento de seu dever. Para
Bethia fica a honra de ter salvado três vidas esta noite, excelência.
Epílogo
Já clareava quando Eleanor bocejou, saciada de carícias. O olhar ávido de Cliff se deleitou
com seu corpo nu. Tinha estado a um passo de perdê-la e seu coração ainda se
descontrolava cada vez que voltava para ele sua imagem pendurada no vazio. Talvez outra
mulher tivesse sucumbido, mas não sua esposa. Não sua duquesa. A escocesa que tinha
roubado o seu ser e inclusive sua alma, com um caráter como uma pederneira.
Não lhe perdoava que o tivesse mantido à margem de suas suspeitas quando achou que
podia estar sendo drogada, mas, dado a sua personalidade, teria que acostumar-se com que
não contasse para ele tudo aquilo que pudesse confrontar por si mesma. Na realidade,
orgulhava-se de que tivesse posto mãos à obra no desenredo do mistério, apesar de pecar
por ser imprudente.
—Amanhã quero ir ver Alice — ela murmurou meio adormecida, distraindo o fio de seus
pensamentos.
—Você quer dizer hoje, está amanhecendo, meu amor.
—O bebê está a ponto de chegar e quero que saibam por nós tudo o que aconteceu aqui.
387
—Faltam uns dias, teremos tempo para dar explicações. Durma.
Lea acomodou sua posição sobre seu amplo peito suspirando agradecida ao ser
agasalhada.
—Por que não confiou em mim? —perguntou ele sem mais.
—Sempre confiei em ti — ela respondeu com um bocejo— Ao menos, desde que soube
que tinha me apaixonado pelo duque mais arrogante da Inglaterra. —Se aconchegou em
seu calor— O que houve é que não podia tolerar amar um assassino. Como ia permanecer
sem dar um passo à frente?
—Mas não me contou todos os seus temores, exceto por uma vez que achou ver
estranhas alucinações. Por que o manteve em segredo?
—Não queria te alarmar, já sabe que me atraem os mistérios. Desembaraçar esses
fenômenos ocultos sempre será uma provocação muito forte para mim.
—Certo. Tudo isso estaria muito bem, se não fosse porque quase a levou a morte — ele
contestou— E eu teria me tornado um louco sem remédio.
—Porque me ama?
—Porque não posso nem quero viver sem você, minha escocesa rebelde — enfatizou
beijando seus lábios. Ela respondeu parcimoniosa e veementemente abocanhando Cliff com
um apetite carnal que retornava vigoroso.
—Prometo não manter nenhum outro segredo… — ela dizia, deslocando a mão em
círculos que desciam para sua pélvis— se você não me ocultar os seus.
—Eu não tenho segredos, meu amor.
Dizia-o com o convencimento de quem sabia que não existia outra mulher além dela, que
bebia os ventos, que enevoava seus sentidos, cujo corpo o transportava à beira do êxtase.
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Ela jogava com ele como uma gatinha mimosa, mas tirou as unhas ao afirmar:
—Sim, claro que tem. Um muito mais perverso que o meu. Eu evitava dar preocupações
silenciando minhas dúvidas e você, deliberadamente, escondia-me outro ego, por mais que
falamos disso em várias ocasiões, deixando que cogitasse sobre uma suposição falsa. Como
te ocorreu me manter às escuras todo este tempo sobre sua afeição literária? Seu segredo
vai me custar uma boa soma de dinheiro no Ladymask se alguma vez descobrirem a
verdade; isso sem contar com que os presumidos dotes femininos do autor, que eu
defendia, ficarão pelo chão. Vai me pagar por isso deixando que seja primeira a ler Noite
sem lua.
O formidável corpo do duque se remexeu e seus olhos cruzaram com os de Lea que,
agora, já não mostrava nenhum sinal de sono.
—Essa aposta foi absurda desde o começo, minha senhora. Ninguém vai ganhá-la e
ninguém terá que pagar porque não penso trazer nada à luz. Mais valeria que doassem esse
dinheiro para alguma obra de caridade. Desde quando sabe que escrevo com o pseudônimo
de J. Preston?
—Quem se importa? Só o que importa é que sou a mulher de um homem maravilhoso,
um pouco duro talvez, que se disfarça de escritor para ocultar sua faceta de benfeitor. Que
o amo com loucura e que vou demonstrá-lo esta noite, uma vez mais, já que se empenha
em não me deixar dormir.
Clifford Ellis, duque de Ormond, deixou-se cair sobre os travesseiros, pôs os braços sob a
cabeça e não ofereceu resistência.
—Não posso me opor aos desejos de minha dama, que conseguiu desterrar as brumas de
Hallcombe House para sempre.
Fim
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NIEVES HIDALGO