O menino de seu avô
perfil
Itinerário afetivo revela a trajetória ímpar de um homem das artes
Por Micheliny Verunschk
Josias Saraiva Monteiro Neto foi batizado com o nome de um avô e tem fascinação pela vida
e obra do outro, que ele praticamente não conheceu, mas que mobiliza sua atividade criativa
atual. Pedro Teófilo Batista, pai de sua mãe, morreu quando o menino tinha apenas 2 anos, mas
as histórias em torno dele foram suficientes para que estivesse sempre presente na vida de Josias.
“Todos na família falavam desse homem inventivo, criativo, quase fabuloso. E também me falaram
que éramos muito apegados. Que quando eu chorava só ele conseguia me acalmar”, conta.
Quem vê Josias, aos 21 anos de idade, ainda com seus longos cabelos de adolescente, nem
imagina a empreitada que ele abraçou. Com amor, obstinação e, sobretudo, disciplina, esse
estudante de jornalismo vem resgatando a trajetória de Batista, uma espécie de Leonardo
da Vinci pernambucano, ao mesmo tempo que revela uma página esquecida, e pitoresca, do
cinema nacional.“Meu avô foi uma das pessoas, talvez a única, que trabalharam em praticamente
todos os níveis da cadeia do audiovisual em Pernambuco desde o fim da década de 1950. Ele
fundou e administrou um cinema, foi diretor, cenógrafo e repórter cinematográfico, trabalhou
com animação e também em comerciais, entre outras coisas. Foi um dos responsáveis pela
montagem da TV Gazeta, em Maceió, Alagoas, em 1975. Quando se fala, porém, em registros
históricos, não existe uma linha sequer sobre sua importância.”
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Em família: Batista (o primeiro à esquerda) posa para foto do aniversário do neto | imagem: arquivo pessoal
Aviador
de formação, cineasta, fotógrafo, inventor, desenhista e arquiteto, mas, sobretudo,
um apaixonado por cinema, Batista
fundou no Recife, em 1967, a Nacional
Filmes do Brasil, estúdio que produziu,
naquele mesmo ano, seu primeiro longametragem, A Virgem dos Lábios de Mel. Anos
antes, em 1955, Batista já havia projetado e
fundado, no bairro do Arruda, o Cine Olympia, que exibiu na capital pernambucana
clássicos como Os Pássaros (1963), de Alfred
Hitchcock, Os Três Mosqueteiros (1948), com
Gene Kelly e Lana Turner no elenco, entre
outros filmes.
Em 1969, o cineasta dirigiu mais um longa,
sobre a história do Brasil, intitulado O Gigante que Desperta. Para esse filme chegou
a construir uma caravela em tamanho real
num estúdio no Bairro do Recife. Nenhum
de seus filmes chegou a ser exibido, no entanto Batista deixou um arquivo impressionante. São roteiros, storyboards, panfletos,
centenas de croquis de cenários, diagramas
de composição cênica, recortes de jornais,
fotografias. A única coisa que seu neto ainda não encontrou foram os negativos das
obras, embora saiba, por meio da documentação existente, que elas foram realizadas.
Os dois filmes foram fotografados por Firmo
Neto, referência do cinema nacional da fase
conhecida como Ciclo do Recife [ver box].
No fim dos anos 1970, Batista criou mais
uma produtora, a Filmerama. Não chegou a
produzir nenhum filme com o novo empreendimento, mas deixou roteiros adaptados
de A Ilha Perdida, romance de Maria José Dupré, autora também de Éramos Seis, e outro
intitulado Fausto, o Amor e o Diabo, baseado
na obra de Goethe. Seu fascínio por ficção
científica extrapola a grande tela, tanto que
planejou invenções que, na época, seriam
dignas de Os Jetsons, famosa série de animação futurista da década de 1960. Uma
delas foi uma lanchonete inteiramente automatizada, desde a produção até o atendimento. Localizada na Avenida Conde da
Boa Vista, uma das mais movimentadas
da capital pernambucana, tornou-se
um ponto agitado durante alguns meses de 1974.
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Josias, hoje: desejo de reencontro com o avô | imagem: Beto Figueiroa
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Listas de inventos de Pedro Teófilo Batista, avô de Josias | imagem: Ricardo Bolognini
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Croquis desenhados por Batista | imagem: Ricardo Bolognini
Sociedade do cinema silencioso
Audiovisual pernambucano do início do século XX: história a descobrir
Paixões em comum
Há cerca de três anos, Josias realiza um trabalho minucioso de pesquisa e catalogação
do material deixado por Batista. Ele conta
que, no início, a visão que tinha do avô era
mitificadora, chegando mesmo a colocálo na categoria de “gênios injustiçados” da
humanidade. No entanto, à medida que foi
aprofundando sua investigação, pôde ter
uma postura mais crítica e realista. Para Josias, a personalidade excêntrica de Batista,
que também propagou uma filosofia espiritualista denominada Cosmocracia, o desacreditava. E isso talvez explique seu esquecimento até aqui.
“Todo esse empreendimento tem como
ponto de partida o desejo de reencontro
com meu avô e o reconhecimento de mim
nele. Tudo o que faço são formas de manter
contato, de dialogar com essa pessoa referencial. Reconheço-me nele. Somos muito
parecidos. Uma das grandes surpresas foi
descobrir que muitos dos livros que li ele
leu também. Gostaria de assistir com ele
aos filmes de Tarkovski, como Solaris (1972),
por exemplo. Saber o que ele acharia de Soy
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Cuba, o Mamute Siberiano (Vicente Ferraz,
2005). Medir até onde iriam nossos interesses comuns.”
As paixões compartilhadas por avô e neto
já sinalizam que irão render frutos. Mesmo
sem Batista ter sido conhecido ou finalizado
seus projetos, Josias conseguiu como poucos chamar a atenção da imprensa do seu
estado. Organizou, em junho, uma coletiva
com os principais veículos de mídia impressa e apresentou Batista a Pernambuco. Os
passos seguintes não são menos ousados.
Josias escreve um livro a seu respeito e pretende, em 2009, quando se comemoram os
80 anos do cineasta, montar uma exposição
com o vasto material que tem em mãos. A
produção de um documentário também
está em pauta. Muito embora ainda não
disponha dos recursos e parceiros necessários para dar vida aos projetos, Josias parece ter herdado a energia de Batista. “Sua
história tem uma enorme capacidade
de mobilização. Acredito nisso e
farei tudo como ele faria.”
Imagine a seguinte cena: homens de chapéu, mulheres elegantes, fila na porta de um
cinema. Dia de estréia e todos ansiosos pelo
filme que daí a pouco vai começar. A fachada
enfeitada de bandeirolas e, pelo chão, folhas
de canela espalhando um perfume adocicado no ar. Uma bandinha entretendo o público antes do início da película. O que parece
ter sido retirado de um filme como Um Dia
para Relembrar (James Foley, 1995) acontecia, de fato, no Cine Royal, em Pernambuco
do início do século XX, e é apenas um indicativo de como é antiga a relação de amor
entre o pernambucano e a sétima arte.
Produzir filmes no Brasil nunca foi uma tarefa fácil. Menos ainda nos tempos do cinema
mudo. Portanto, não é difícil imaginar as dificuldades de fazer cinema em Pernambuco
naquela época. Mas era feito e com qualidade. O chamado Ciclo do Recife, iniciado em
1923, produziu, ao longo de oito anos, nada
menos do que 13 longas-metragens de enredo e mais sete filmes de flagrantes da realidade. Desses longas, um dos mais conhecidos foi Aitaré da Praia (1925), com direção de
Gentil Roiz.
Aitaré foi uma obra pioneira em levar os temas nacionais para o cinema, pois, até então,
o Brasil tentava copiar o star-system americano. A narrativa do filme gira em torno de um
pescador, sua amada e os conflitos entre valores tradicionais e modernidade, embates
ainda presentes no imaginário do atual cinema pernambucano. Outro êxito de bilheteria
e de crítica, A Filha do Advogado (1926), de
Jota Soares, chegou a ser exibido em mais
de 20 cinemas do Rio de Janeiro, então capital federal.
Durante esse período dourado, as produtoras
se multiplicaram. Aurora-Film, Vera Cruz-Film,
Planeta-Film são alguns dos nomes que fizeram essa história, além de diretores e produtores como o próprio Gentil Roiz, Firmo Neto,
Jota Soares, Edison Chagas. Eclético, esse ciclo produziu desde Filho sem Mãe (1925), filme perdido de Tancredo Seabra sobre a saga
de um cangaceiro, até História de uma Alma
(1925), de Eustórgio Wanderley, baseado na
biografia de Santa Teresa de Lisieux. Encerrado em 1931, com filmes inacabados de Alfredo Carneiro, o Ciclo do Recife é só a ponta de
um roteiro que se iniciava e que iria mostrar
sua cara novamente no Ciclo do Super-8, de
1973. Mas aí já é outra história.
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