CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL NO ATENDIMENTO EDUCACIONAL À SURDOCEGUEIRA Maria Angela Bassan Sierra (CAP) - [email protected] Marieuza Endrissi Sander (NRE) - [email protected] Introdução Com a compreensão de que alunos surdocegos, assim como qualquer indivíduo, constituem-se historicamente como sujeitos humanizados, é que o Centro de Apoio Pedagógico para Atendimento ao Deficiente Visual, CAP-Maringá, com o apoio da Secretaria de Estado e Educação – SEED e Departamento de Educação Especial e Inclusão Educacional – DEEIN e do setor de Educação Especial e Inclusão Educacional do Núcleo Regional de Educação de Maringá, iniciou a orientação do atendimento especializado a alunos com surdocegueira. No Estado do Paraná, a educação das pessoas com deficiência visual e surdocegueira é realizada no ensino regular, com apoio de professor especializado e também do guiaintérprete. Com a proposta da educação inclusiva, a formação acadêmica dos professores, em geral, e também da educação especial, na maioria das vezes realizada de forma aligeirada, tem deixado muito a desejar, principalmente, em relação às especificidades do atendimento ao deficiente visual e ao surdocego. Dentre os trabalhos do CAP-Maringá, a ação de capacitação continuada aos professores que atuam com essas deficiências, tanto no ensino comum como na educação especial, tem sido um dos principais objetivos, assentada na Teoria Histórico Cultural e no método materialista histórico e dialético. A título de oferecer alguns subsídios a respeito do método materialista histórico e dialético trazemos conceitos importantes destacados por Facci e Silva (1998). O primeiro diz respeito ao fato de que todas as mudanças da sociedade ao longo da história produzem também mudanças na consciência e no comportamento dos homens. As relações sociais do homem são determinadas pelo modo de produzirem a vida material. O segundo conceito é que as ações do homem em sua vida social são mediadas pelo uso de instrumentos, e que este trabalho instrumental o diferencia dos animais. Pela atividade mediada pelo uso de instrumentos o homem transforma a natureza e a transformando, transforma-se a si mesmo. O terceiro conceito é que o uso de instrumentos e signos como mediadores é fruto da evolução histórica do homem e que - as funções psicológicas superiores são resultado da interação do indivíduo, mediadas pelos signos e instrumentos. Portanto, podemos apontar o quanto nosso desenvolvimento está diretamente relacionado com a natureza e a qualidade das mediações que realizamos ou das quais participamos, do quanto aprendemos a fazer uso dos instrumentos e é essa capacidade que segundo Vigotski e Luria (1986), é indicadora do nível de desenvolvimento cultural da mente da criança. Duarte (2000, p. 111) pontua a importância do trabalho educativo: [...] o trabalho educativo estará possibilitando que o indivíduo possa ir além dos conceitos cotidianos, possa ter esses conceitos superados por incorporação pelos conceitos científicos e assim possa conhecer de forma mais concreta, pela mediação das abstrações, a realidade da qual ela é parte. Partindo da premissa do referido autor, atribuímos ao bom ensino e a mediação docente, a chave para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, tais como: memória, atenção, percepção, raciocínio, funções que diferenciam o homem dos animais. E sobre FPS, Barroco (2007, p. 247) esclarece: Por funções psicológicas superiores [ou funções corticais superiores, funções psíquicas superiores, funções culturais], entendem-se aquelas de origem social, que só passam a existir no indivíduo ante a relação mediada com o mundo externo (com pessoas e com aquilo que elas criam: objetos, ferramentas, processos de criação e de execução, etc.). Como exemplo, podese destacar a fala e o pensamento abstrato, a atenção voluntária, a memorização ativa, o planejamento, etc. [...]. Tratam-se de funções que permitem uma conduta geneticamente mais complexa e superior à dos animais, posto que planeja, consciente, intencional. Tudo isso implica em um reequipamento cultural para se estar no mundo. Vigotski (1997, 1989) em uma de suas obras, a Defectologia, Tomo V, afirma que as leis gerais do desenvolvimento são iguais para todas as crianças. Ressalta, - porém, que há peculiaridades na organização sociopsicológica da criança com deficiência e que seu desenvolvimento requer caminhos alternativos e recursos especiais para a aprendizagem. Baseada em Vigotski, Góes (2002, p. 100) declara que “diante da condição da deficiência é preciso criar formas culturais singulares, que permitam explorar caminhos alternativos de desenvolvimento, que implicam o uso de recursos especiais.” O ensino intencional, planejado, o bom ensino, deve fazer com que as pessoas, e aqui pensando na pessoa surdocega, sejam capazes de transformar os conceitos espontâneos (Vigotski, 1989) ou cotidianos (Heller, 2002) em científicos e tornarem-se homens culturais. E conforme afirma Vigotski (1989), o desenvolvimento do conceito espontâneo na criança deve atingir um determinado nível para que ela possa apreender o conceito científico e tomar consciência dele. Vigotski (1989, p. 93) explica que, Embora os conceitos científicos e espontâneos se desenvolvam em direções opostas, os dois processos estão intimamente relacionados. É preciso que o desenvolvimento de um conceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que a criança possa absorver um conceito científico correlato. Por exemplo, os conceitos históricos só podem começar a se desenvolver quando o conceito de cotidiano que a criança tem de passado estiver diferenciado, quando a sua própria vida e a vida dos que a cercam puder adaptar-se à generalização elementar no passado e agora, os conceitos geográficos e sociológicos devem se desenvolver a partir de esquema simples aqui e em outro lugar. É com essa visão que o CAP-Maringá tem pensado a educação tanto das pessoas cegas como surdocegas, fazer com que as vivências cotidianas, os conceitos espontâneos se transformem e sejam incorporados como científicos é também nosso objetivo. Relato de Experiência - Vamos relatar a experiência com uma aluna surdocega, com trinta e dois anos de idade, matriculada no Centro de Atendimento Especializado em Surdocegueira – CAESC e no Centro Estadual de Educação de Jovens e Adultos Professor Manuel Rodrigues da Silva – CEEBJA-Maringá, no programa de ensino fundamental na disciplina de língua portuguesa. Conforme depoimento da mãe, a aluna apresentou perda de visão desde os 10 meses de vida, devido a problemas de saúde como diabete, problemas cardíacos e artrite reumatóide juvenil. Aos dois anos de idade submeteu-se a uma cirurgia oftalmológica recuperando parcialmente a visão. Com o passar do tempo perdeu totalmente a visão e constatou-se também a perda auditiva. Aos seis anos de idade iniciou a escolaridade no ensino regular já com apoio do Centro de Atendimento Especializado Para Deficientes Visuais – CAEDV, onde aprendeu o Braille, Soroban, Atividades da Vida Autônoma, dentre outras atividades. Neste período a aluna possuía algum resíduo auditivo. Com o passar do tempo começou a perder o interesse em aprender, não querendo mais ler, escrever, participar das atividades escolares. Por meio de exames audiológicos, constatou-se que a aluna estava com uma perda auditiva profunda. Com os problemas de saúde agravados, praticamente cega e surda e sem um local especializado e sem profissionais habitados para atendê-la, a aluna abandona a escola. Em 2006, aos trinta anos de idade, a aluna é matriculada no CAESC, um dos primeiros Centros abertos no estado do Paraná. Para que esse trabalho acontecesse o CAP - Maringá, juntamente com a equipe de educação especial e inclusão educacional do NRE de Maringá, empreenderam esforços para a abertura do CAESC, seleção e capacitação do profissional para atender a aluna surdocega, sendo que esse atendimento era realizado três vezes na semana. O objetivo inicial do trabalho foi estabelecer uma forma de comunicação com a aluna. Foram feitas experiências com as diversas formas de comunicação: Sistema Braille, LIBRAS tátil, alfabeto manual, alfabeto datilológico e Tadoma. Com o transcorrer do trabalho a aluna, já tendo uma forma de comunicação estabelecida, demonstra interesse em retornar aos estudos. No segundo semestre de 2009, a aluna é matriculada no CEEBJA-Maringá, recebendo o apoio de guiaintérprete para possibilitar sua comunicação com os - professores e colegas de turma. A guiaintérprete foi a segunda contratada no Estado do Paraná. Os resultados obtidos até então são animadores, pois a aluna tem demonstrado uma ótima aprendizagem e um alto grau de concentração e atenção, além de boa memória e força de vontade. O guiaintérprete tem utilizado com a aluna a LIBRAS, que no principio parecia algo muito distante da realidade dela, devido a identificação que a mesma tinha com o método TADOMA. A aluna adaptou-se a LIBRAS e tenta comunicar-se, porém ainda com dificuldades, pois encontra-se em período de aquisição da língua de sinais. No CEEBJA a aluna cursa a disciplina de língua portuguesa, utilizando material em Braille produzido e adaptado pelo CAP, com apoio da guiainterprete e realiza as atividades em Braille, na máquina Perkins. Fonte: Arquivo pessoal das autoras Considerações Pré-Finais Após a Psicologia Histórico-Cultural reconhecer a importância da ação educativa para a aprendizagem e para o desenvolvimento humano, transpondo as barreiras do determinismo biológico, possibilitando a intervenção, abre a possibilidade de acreditarmos na educação, principalmente a especial, por meio do processo de escolarização promove-se o avanço no desenvolvimento das crianças, criando novas zonas de desenvolvimento proximais. Por meio do estudo da Obra Fundamentos de Defectología, podemos perceber que um de seus pontos principais deve centrar-se na possibilidade de educação das pessoas comprometidas pela deficiência, mas não com um foco somente na reabilitação ou na educação profissional, que até então se concentrava no desenvolvimento de capacidades de essas pessoas pensarem e agirem consciente e planejadamente, - enfrentando desafios impostos pela sociedade, fazendo compensações ou supercompensações das áreas ou funções afetadas, partindo do que se tinha de íntegro. Nossa experiência tem demonstrado que a aluna tem um grande potencial de aprendizagem e que sua entrada no ensino regular quebrou muitas barreiras e preconceitos que os educadores tinham em relação às potencialidades das pessoas surdocegas. O processo de inclusão das pessoas com deficiência ainda é lento O conceito de necessidades especiais, que busca tirar o foco das condições ditas deficientes e mostrar uma visão mais processual educacional, pode dificultar a percepção de aspectos particulares da educação de pessoas com deficiência ou reforçar a associação entre problemas rotineiros da escola e os serviços da educação especial (Ferreira & Ferreira, 2004). Pela experiência com o trabalho e pelas bases teóricas que tem alicerçado nossa pesquisa, podemos identificar a importância do processo educativo para a formação de conceitos, para a humanização, para criação de vias colaterais, para propiciar a processo compensação e de supercompensação nas pessoas com deficiência. A criança com e sem deficiência, entregue a si mesma, não irá alcançar conceitos mais elaborados e complexos que lhe permitam compreender o mundo e junto a ele intervir de modo direto e indireto; não terá condições de imaginar o que não faça parte da sua realidade imediata. Com isso, entende-se que o mundo é proporcional às suas experiências, ficando por elas limitada. - Referências BARROCO, S. M. S. (2007). A educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. Tese de doutorado, Pós-graduação em Educação, UNESP, Araraquara, SP, Brasil. DUARTE, N. (2000). A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco: a dialética em Vigotski e em Marx e a questão do saber objetivo na educação escolar. Educação & Sociedade, ano 21, n. 71, jul. 2000. FACCI, M. G. D., SILVA, R. G. D. (1998). A crise da psicologia e questões metodológicas da escola de Vygotsky. 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