PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA
O PARADOXO DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL EM DIREITO À SAUDE:
UMA DESCRIÇÃO SISTÊMICO-PRAGMÁTICA (LUHMANN PEIRCE) NUM DIÁLOGO COM MARCELO NEVES
DOUTORADO EM DIREITO
São Paulo
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA
O PARADOXO DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL EM DIREITO À SAUDE:
UMA DESCRIÇÃO SISTÊMICO-PRAGMÁTICA (LUHMANN PEIRCE) NUM DIÁLOGO COM MARCELO NEVES
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à Faculdade de Direito da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
com Estágio Doutoral Sanduíche na
Universidade de Estudos de Macerata, Itália
(Bolsista CAPES), como exigência final para
obtenção do título de Doutor em Filosofia do
Direito e do Estado, sob a orientação da
Professora Doutora Clarice von Oertzen de
Araujo.
São Paulo
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Banca Examinadora
_____________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução
total ou parcial desta tese, por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
São Paulo, 30 de outubro de 2013.
____________________________
Fernando Rister de Sousa Lima
Como retribuição pelo irrestrito e incondicional
apoio à realização da presente pesquisa,
dedico-a:
no campo acadêmico, aos Professores
Marcelo Neves e Clarice von Oertzen de
Araujo;
no âmbito pessoal, à minha mãe, Dra. Zuleica
Rister, ao meu pai, Luiz Antônio de Souza
Lima, aos meus irmãos, Dr. Lucas Rister de
Sousa Lima e Dra. Cibele Rister de Sousa
Lima, à minha tia, Nilza Maria Rister, e à
minha noiva, Profa. Dra. Karenine M. Rocha
da Cunha.
AGRADECIMENTOS
Primeiro, agradeço a Deus, Pai amado e misericordioso, por esses anos
repletos de orientação, oportunidades e, sobretudo, proteção. O pouco que me
tornei é graças ao muito que me proporcionou. Desculpe por ainda ser tão pequeno.
Tenho fé que um dia hei de orgulhá-lo. A Jesus Cristo, irmão protetor e guia; sem o
seu exemplo de resignação e sabedoria, com certeza, a minha jornada seria penosa
e injustificável.
Sinto-me extremamente honrado em ter obtido o meu Doutorado no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da prestigiosa Faculdade de
Direito da PUC/SP, instituição na qual já lecionaram juristas de renome como
Adilson Dallari, Agostinho Neves de Arruda Alvim, Celso Ribeiro Bastos, Geraldo
Ataliba, Hermínio Alberto Marques Porto, José Frederico Marques, Leda Boechat
Rodrigues, Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior e,
no campo político, o sempre governador André Franco Montoro.
E, na condição de professores titulares, lecionam com grande maestria e
com lapidar significado Arruda Alvim, Celso Antônio Bandeira de Mello, Dirceu de
Mello, Fábio Ulhoa Coelho, Luiz Alberto David Araujo, Marcelo Figueiredo, Marco
Antônio Marques da Silva, Maria Garcia, Maria Helena Diniz, Nelson Nery Jr.,
Oswaldo Henrique Duek Marques, Paulo de Barros Carvalho, Pedro Paulo Teixeira
Manus, Roque Antônio Carrazza, Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Wagner Balera.
Ainda, com o grande privilégio de ter realizado um Estágio Doutoral
Sanduíche na centenária Universidade de Estudos de Macerata - UNIMC1, onde fui
contemplado com a honraria de conviver e discutir com sociólogos do direito, do
porte de Alberto Febbrajo e Vittorio Olgiati. Enquanto o primeiro é um entusiasta da
teoria dos sistemas, com uma respeitada produção teórica, mas sem nunca deixar
de buscar ver além dos confins da verbalização sistêmica, o segundo é
propriamente um crítico, um descrente do potencial luhmanniano de descrever a
sociedade atual, pois completamente diversa da vivida, sentida e narrada por Niklas
1
Sobre a centenária Universidade de Macerata, ver o seguinte site: http://www.unimc.it/it/ateneo/lanostra-storia/unimc-dalle-origini-a-oggi.
Luhmann. A ambos agradeço, encarecidamente, pela confiança, pelos diálogos e
pela amizade. Maestri, grazie mille!
No Departamento de Mutamentos Sociais, Comunicação e Instituições
Jurídicas, boa parte da pesquisa bibliográfica foi levantada, bem como inúmeros
“insights” ali surgiram, e na quietude do centro histórico que remonta ao próprio
Período Medieval foram desenvolvidos.2 Lá, ainda contei com a atenção da zelosa
bibliotecária italiana Stefania Porfiri, sempre pronta para auxiliar.
Ambas as situações (cursar Doutorado em Filosofia do Direito e do
Estado na PUC/SP e pesquisar na Itália) foram fruto da generosidade e da confiança
de algumas pessoas, das quais destaco o Professor Emérito Paulo de Barros
Carvalho e os diligentes funcionários Rui, Rafael (Pós-Direito) e Soraia (Setor de
Bolsas).
Com esse mesmo cerne, exalto a doação irrestrita dos brilhantes
Professores Marcelo Neves e Clarice von Oertzen de Araujo. O primeiro, durante
quase dois anos antes de me tornar seu orientando – formalmente falando –,
recebeu-me por diversas vezes em seu apartamento para discutir, comentar e ajudar
na construção de um projeto de doutoramento. A segunda, a seu turno, com a
circunstância da impossibilidade de o primeiro continuar como orientador formal, em
razão da sua transferência para a Universidade de Brasília - UNB, de igual modo,
recebeu-me de braços abertos, com muito entusiasmo e dedicação irrestrita.
Ainda, sobre o meu período de Doutorado Sanduíche na Itália, agradeço
ao Professor Marcelo Pereira de Mello, da Universidade Federal Fluminense - UFF,
pelo prestigioso auxílio na coleta das assinaturas, bem como na recepção em
Macerata. E, especialmente, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa, sem a qual não seria viável a
minha permanência em regime de dedicação exclusiva na Itália.
Enquanto doutorando, tive a grata oportunidade de cursar duas profícuas
disciplinas obrigatórias com os Professores Tercio Sampaio Ferraz Júnior e Willis
2
Para localizar o Departamento de Mutações Sociais, Comunicação e Instituições Jurídicas, ver
http://www.unimc.it/dipcom.
Informações
sobre
a
Provincia
di
Macerata,
ver
http://www.turismo.provinciamc.it/home.asp?l=1,
em
especial
o
vídeo:
http://www.turismo.provinciamc.it/multimedia.asp?l=1. Para uma descrição parcial, de um
interpretante emocional, sobre Macerata, eis: “Macerata è cosi: la propria dulceza della perfezione.”.
Santiago Guerra Filho, as quais contribuíram demasiadamente para a formação do
meu pensamento: dois mestres de gerações distintas, que, entretanto, exemplificam
duas máximas da melhor academia: leitura e humildade.
Também agradeço a chance de fazer parte do Grupo de Estudos em
Direito, Análise, Informação e Sistemas (GEDAIS), coordenado pelo Professor
Márcio Pugliesi, cuja generosidade e simplicidade valorizam sobremodo o seu
cabedal intelectual.
No exame de qualificação, tive a oportunidade de contar, além dos
Professores Marcelo Neves e Clarice von Oertzen de Araujo, com a distinta
participação da Professora Mara Regina de Oliveira, que fez questão de grafar suas
críticas construtivas e, com o mesmo vigor, os pontos fortes do trabalho, o que foi
fundamental para a continuidade segura da pesquisa.
Pontuo, no contexto da comunidade puquiana, a oportunidade ímpar de
firmar e desenvolver laços de amizade com o Dr. Ricardo Tinoco de Góes, Juiz de
Direito com alma de filósofo, a ponto de tê-lo, no melhor ideário italiano, como um
“fratello academico”.
Agradeço ao Professor Guilherme Leite Gonçalves, pela disponibilidade
de ler o trabalho durante o seu período de Pós-Doutorado na Alemanha. Contar com
a sua generosidade é sempre um privilégio.
Em Araçatuba, além da minha família, já homenageada, sempre pude
contar com a colaboração de meus estimados colegas de escritório, Dra. Maria
Beatriz Crespo Ferreira Sobrinho e Dr. Fábio Garcia Sedlacek.
Ainda, na terra dos araçás, pela paciência, confiança e lealdade,
agradeço ao Magnífico Reitor Bruno Toledo, à Pró-Reitora Sílvia Cristina de Souza e
à Professora Lia Mara Malinski Gandra.
Mesmo não tendo participação direta na confecção do presente estudo,
mas,
seguramente,
sem
eles,
não
teria
chegado
até
aqui,
agradeço,
sentimentalmente e repleto de nostalgia, aos meus primeiros orientadores,
respectivamente da monografia de conclusão de curso de bacharelado e da
dissertação de mestrado, Paulo Napoleão Basile Nogueira da Silva e Nelson Luiz
Pinto.
Agradeço, igualmente, os exemplos inatingíveis e a amizade singular
sempre externada em abundância à minha pessoa, dos Mestres e amigos: Arruda
Alvim e Cassio Scarpinella Bueno, constantemente presentes no meu pensamento e
no meu coração.
Por fim, mas não menos importante, ao amado Instituto Takemussu, na
pessoa do Sensei Wagner Bull, dos Professores Alexandre Bull, Márcio Miura, Nei
Tamotso Kubo, Roberto Matsuda, Alexandre Borges, Sidnei Coldibelli, Edgar Bull,
Wagner Consoni, Ademar Montenegro Júnior, João Rodrigues Bonvicino (meu
Senpai) e da secretária Sumiko Arai Kajihara, que, por meio do melhor Aikido, tem
me ajudado a viver melhor e contribuído para, a cada dia, tornar-me uma pessoa
mais e mais feliz.
Cada nome lembrado aqui, direta ou indiretamente, contribuiu para que
esta Tese viesse à tona. Por essa razão, recebam todos meu caloroso e sincero
muitíssimo obrigado.
“Que
o
homem
seja
guiado
pelo
conhecimento e pelo sentimento. Dosados em
sintonia com a mente e o coração, pois,
ambos, quando juntos e equilibrados, são
poderosos, mas, no entanto, quando
separados ou utilizados desequilibradamente,
podem ser letais.”
RESUMO
LIMA, Fernando Rister de Sousa. O paradoxo da atuação do Supremo Tribunal Federal
em direito à saúde: uma descrição sistêmico-pragmática (Luhmann - Peirce) num
diálogo com Marcelo Neves. 2013. 223f. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
A Constituição Federal de 1988 garantiu a todo indivíduo o direito à saúde. Porém, a
incapacidade do governo brasileiro em concretizar esse direito fomentou uma avalanche
de ações judiciais, justamente para buscar a sua efetividade social. Mundialmente, essa
postura de intervenção foi rotulada como ativismo judicial. No Brasil, a questão tomou
proporções inimagináveis, o que colocou o Judiciário no centro do palco dos debates
sobre políticas públicas. E o Supremo Tribunal Federal (STF), como guardião da
Constituição Federal e como topo da estrutura do referido poder, surge como peçachave desse novo desenho institucional do princípio da separação dos poderes. Nesse
sentido, a pesquisa, que tem como escopo identificar se a atuação do STF em direito à
saúde resulta em efetividade ou em simbolismo, realizou-se mediante investigação
teórico-empírica; a teórica foi conduzida pelo processo dedutivo. Centrou-se a coleta de
dados em teóricos sociais, com destaque respectivamente à teoria dos sistemas de
Niklas Luhmann, a qual foi utilizada na identificação da racionalidade jurídica, da
inclusão social, da complexidade, da contingência, da justiça, do papel dos tribunais,
dos sistemas jurídico e político. No plano teórico, a conceituação da expressão
“simbólico” é extremamente rica, a tal ponto de rotineiramente se encontrar confusão
semântica; para evitá-la, o trabalho adota a tese desenvolvida por Marcelo Neves, no
seu livro “A Constitucionalização Simbólica”, em que desenvolve debate em torno do
simbolismo das normas constitucionais. Para a pesquisa empírica, por meio dos
métodos de pesquisa, utilizou-se investigação documental, coletada de precedentes
judiciais do STF. O estudo dos acórdãos foi promovido por meio da “Pragmática” de
Charles Sander Pierce. Com efeito, o resultado da pesquisa se configurou num
paradoxo: constatou-se que o STF, numa visão restrita à justiça dos litigantes, busca
uma ilusória efetividade do direito à saúde, a qual resta simbólica, porquanto julga sob
uma racionalidade exclusivamente adjudicatória, negando-se a ver a questão, portanto,
de forma distributiva como uma distribuição de riqueza, o que, numa perspectiva macro,
provoca o risco da corrupção do sistema político por obrigar a Administração Pública a
distribuir riqueza que, muitas vezes, não existe, bem como exclui a maioria da
população que não tivera acesso à referida Corte ou que indiretamente é prejudicada
pelos recursos desviados da saúde para cumprir suas decisões.
Palavras-chave: Direito à saúde. Supremo Tribunal Federal. Paradoxo.
ABSTRACT
LIMA, Fernando Rister de Sousa. The paradox of the Brazilian Supreme Court role on
the right to health: a systemic-pragmatic (Luhmann-Peirce) description in a dialogue with
Marcelo Neves. 2013. 223p. Thesis (Doctorate in Law) - Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2013.
The Brazilian Federal Constitution of 1988 guaranteed to all citizens the right to health.
Nevertheless, the Brazilian government inability to solidify this right fostered a huge
amount of legal actions precisely to pursuit social effectiveness. All over the world, this
interventionist conduct was labeled as juridical activism. In Brazil, this issue gained
unimaginable proportions and has set the judiciary in the center of the discussion stage
about Public Policies. And the Brazilian Supreme Court (STF – Supremo Tribunal
Federal), as guardian of the Federal Constitution and as the top one in the structure of
that power, arises as key of this new institutional design of the Principle of Separation of
Powers. In that context, the research has as its aim to identify if the STF performance on
the right to health results in effectiveness or in symbolism. It was made by a theoretical
research and an empirical investigation. The collect of data was centered in theoretical
sociologist, with respective prominence given to the Niklas Luhmann´s Theory of
Systems, which was used in the identification of legal rationality, social inclusion,
complexity, contingence, justice, and the roles of Courts, the Legal and the Political
Systems. In the theoretical reference, the conceptualization of the expression: “symbolic”
is extremely rich. To a point that routinely semantic confusion is found; to avoid it, this
work embraces the thesis developed by Marcelo Neves in his book: A
Constitucionalização Simbólica (The Symbolic Constitutionalization), in which he
develops a debate about the symbolism of constitutional norms. For the empirical
research, by the methods of research, a documental investigation was made, collected
from Brazilian Supreme Court´s leading cases. The study of these sentences was
sponsored by the Pragmatic of Charles Sander Pierce. In effect, the research result
arranged a paradox. It was found that the Brazilian Supreme Court, in a point of view
restricted to the litigants, searches for an illusory effectiveness of the right to health,
which is symbolic, inasmuch as the judge from a rationality exclusive adjudicatory,
denying to see the issue, therefore, as an distributive issue, as a matter of distribution of
wealth, which, in a macro perspective, causes the risk of corruption in the political
system for forcing the public administration to distribute a wealth that, sometimes, does
not even exist, as well as excluding most of the population, that does not have access to
this Court or that indirectly are strained considering the diverged resources from the
public health to accomplish its decisions.
Keywords: Right to Health. Brazilian Supreme Court. Paradox.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Semiose peirceana................................................................................. 109
Figura 2 – Aplicação da tríade de Peirce ................................................................ 116
Figura 3 – Materialização da tríade peirceana exposta no item 10.6. ..................... 118
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Evolução dos gastos da União com a compra de medicamentos em
atendimento a ordens judiciais ................................................................................ 184
Gráfico 2 – Evolução dos gastos da União para auxiliar estados e municípios ...... 186
Gráfico 3 – Evolução dos gastos da União para atender ordens judiciais ............... 187
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Primeiro dia da Audiência Pública .......................................................... 99
Quadro 2 – Terceiro dia da Audiência Pública ........................................................ 101
Quadro 3 – Quarto dia da Audiência Pública .......................................................... 103
Quadro 4 – Quinto dia da Audiência Pública ........................................................... 104
Quadro 5 – Sexto dia da Audiência Pública ............................................................ 105
Quadro 6 – Classificação dos argumentos dos ministros paradigmas em
direito à saúde ......................................................................................................... 121
Quadro 7 – Decisões proferidas pelo STF .............................................................. 179
Quadro 8 – Nome e custo dos medicamentos mais concedidos judicialmente
em desfavor da União ............................................................................................. 185
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 18
PARTE I
SEPARAÇÃO DOS PODERES, COMPLEXIDADE E CONTINGÊNCIA
SOCIAL
1 SEPARAÇÃO DOS PODERES, ABUSO DE PODER E INSTABILIDADE
SOCIAL ..................................................................................................................... 29
2 ESTADO-JUIZ, DIREITO E POLÍTICA .................................................................. 35
3 COMPLEXIDADE E CONTINGÊNCIA SOCIAL NO PROCESSO DECISÓRIO,
NO CONTEXTO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES .................... 39
PARTE II
DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM DIREITO À
SAÚDE – POR UMA LEITURA PRAGMÁTICA DOS PRECEDENTES
JUDICIAIS
4 COLETA DE DADOS EMPÍRICOS ........................................................................ 54
5 SEMIÓTICA JURÍDICA.......................................................................................... 58
6 PRAGMÁTICA JURÍDICA ..................................................................................... 61
7 PRAGMÁTICA JURÍDICA COMO METODOLOGIA ............................................. 62
8 RELATÓRIOS DE PESQUISA DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL EM DIREITO À SAÚDE ....................................................... 64
8.1 PREMISSAS GERAIS ......................................................................................... 64
8.2 RACIONALIDADE JURÍDICA NA MICROJUSTIÇA ............................................ 66
8.3 LUGARES-COMUNS NA MICROJUSTIÇA ........................................................ 68
8.4 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES EM DIREITO À SAÚDE ........... 68
8.5 DIREITO À SAÚDE COMO BEM INDISPONÍVEL .............................................. 70
8.6 FORÇA VINCULANTE DAS NORMAS PROGRAMÁTICAS ............................... 71
8.7 LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DIREITO À SAÚDE ................ 72
8.8 LINHAS DE RACIONALIDADE ADOTADAS EM DIREITO À SAÚDE ................ 73
8.9 RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES PÚBLICOS ........................... 78
8.10 FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO INCLUÍDOS NA LISTA DA
ANVISA E NO ROL DAS FARMÁCIAS PÚBLICAS .................................................. 80
8.11 EXTENSÃO DO CONCEITO DE DIREITO À SAÚDE ...................................... 83
8.12 SUPERAÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL ................................................... 84
8.13 MINISTROS PRÓ-ATIVOS ............................................................................... 88
8.14 MINISTROS PARADIGMAS EM DIREITO À SAÚDE ....................................... 89
8.15 AUDIÊNCIA PÚBLICA: “JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE” .............. 98
9 A SEMIOSE COMUNICACIONAL NOS PRECEDENTES ANALISADOS .......... 106
10 A SISTEMATIZAÇÃO DO MATERIAL EMPÍRICO PELAS CATEGORIAS
PEIRCEANAS ......................................................................................................... 112
PARTE III
RACIONALIDADE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM DIREITO À
SAÚDE: SIMBÓLICA OU EFETIVA?
11 CONSTITUCIONALISMO SOCIAL E SUPREMA CORTE ................................ 129
12 POSITIVAÇÃO DO DIREITO E DIREITO À SAÚDE ......................................... 135
13 DIREITO À SAÚDE E COMPLEXIDADE SOCIAL ............................................ 139
14 ATUAÇÃO SIMBÓLICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ...................... 143
15 ATUAÇÃO EFETIVA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ........................... 147
16 ADJUDICAÇÃO E SIMBOLISMO ..................................................................... 150
17 INADMISSIBILIDADE E SIMBOLISMO............................................................. 157
18 SÚMULA VINCULANTE E ORÇAMENTO PÚBLICO ....................................... 158
19 ACOPLAMENTO ESTRUTURAL E SUPREMA CORTE .................................. 164
PARTE IV
RESULTADO DA PESQUISA – O PARADOXO BRASILEIRO:
EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE, RUPTURA DO SISTEMA POLÍTICO,
JUSTIÇAS DISTRIBUTIVA E COMUTATIVA
20 PESQUISA E FALIBILIDADE ............................................................................ 169
21 SIGNO E IDEOLOGIA ....................................................................................... 171
22 ADAPTAÇÃO JUDICIAL E SISTEMA IMUNOLÓGICO .................................... 174
23 ATIVISMO JUDICIAL E ATUAÇÃO SIMBÓLICA ............................................. 180
A TESE – O PONTO CEGO DO SISTEMA ............................................................ 189
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 195
APÊNDICE A – PLANILHA DAS DECISÕES ANALISADAS ................................ 217
INTRODUÇÃO
“Toda convivência humana é direta ou indiretamente cunhada pelo
direito.”.
(NIKLAS LUHMANN)3
(i) A significação das palavras não é um processo estático. Muito pelo
contrário, como processo cultural por excelência, o sentido concebido às palavras é
de constante alternância, com nítida contingência. Por vezes, inclusive, conferem-se
sentidos opostos, como exemplo, tem-se a palavra formidável, cuja significação
etimológica é ligada a pavoroso, diabólico, assustador, entretanto, o seu uso no dia
a dia trouxe o sentido de maravilhoso, fantástico. Nessa idêntica situação, também
bárbaro, cujas denominações grega e romana eram ligadas aos estrangeiros, para,
a partir daí, assumir o sentido de rude, inculto. No Brasil, o cenário semântico é
outro, denota a ideia de ótimo, excelente.4
Sem embargo das aludidas considerações, o processo de significação
igualmente pode ser observado pela perspectiva estática, como é o caso deste
trabalho. Sob esse enfoque, quando se acresce àquele fenômeno linguístico-cultural
a imprecisão conceitual e/ou a tipicidade aberta, ambos mui comuns na legislação
contemporânea – neste último caso com destaque para a Constituição Federal –,
proporciona-se uma complexidade interpretativa. Assenta-se uma zona mais ou
menos definida sobre as hipóteses possíveis de serem seguidas.5 Da mesma forma,
na doutrina, fulgura-se o talho de conceitos indefinidos lançados pelo direito posto.
3
Sociologia do direito. Tradução Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983a. v. 1. p. 7.
Sobre compreensão comunicativa a partir da construção cultural, ver VOLLI, Ugo. Manual de
semiótica. Trad. Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Loyola, 2007. p. 32-33. O mesmo autor aponta
justamente o conceito de significação como riqueza de sentido: “Chamaremos de significação essa
condição de riqueza de sentido.”. Cf. VOLLI, 2007, p. 18. As palavras citadas como exemplos no bojo
da tese (formidável e bárbaro) foram extraídas de CIPRO NETO, Pasquale. Português passo a
passo. Barueri: Gold, 2009. v. 1. p. 38-39. No campo da filosofia política, Montesquieu asseverou a
respeito da diversidade de significados outorgados à palavra liberdade, conforme, respectivamente,
tradução e no original em francês. MONTESQUIEU. O espírito das leis. 3. ed. Trad. Cristina
Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 165; MONTESQUIEU. De l´esprit des lois. Paris:
Guarnier Frères, 1973. Tome I.
5
Sobre grau de imprecisão e discricionariedade no enfoque dos princípios, ver NEVES, Marcelo da
Costa Pinto. Entre Hidra e Hércules. Princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. Brasília: UNB, 2010. p. 23-51, especialmente, p. 24-25, 27-28. Sob outras
premissas, CARRIÓ, 1972, p. 29.
4
19
Daqui por diante, conceitos valorativos começam a ocupar espaço no
ordenamento. Caberá, então, ao intérprete pontuar o seu alcance.6 Isso pode
aparecer sob a veste de uma evolução ou novidade apontada pelos doutos como um
novo ideário. Hans Kelsen, porém, levantou essa questão, por outras palavras,
quando tratou das molduras possíveis. Haveria, nessa linha de pensamento, várias
hipóteses admissíveis de aplicação das normas e, mais, todas defensáveis. Por sua
vez, o ato de decisão seria um ato do aplicador de natureza política, contudo.7
(ii) Especialmente nesse cenário hermenêutico, a tese busca identificar
qual a semântica conferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao princípio da
separação de poderes quando solve litígios oriundos de violação ao direito à saúde,
a fim de mapear se a sua racionalidade tem uma índole meramente simbólica ou
realmente de efetividade. Abordou-se a possibilidade jurídica da aplicação das
normas de direito à saúde num diálogo intrínseco com a Suprema Corte brasileira;
melhor, com a verbalização das suas decisões, posto que o direito pontua-se
também por sua linguagem, num perfeito sistema comunicacional.8
6
NEVES, 2010, p. 13-23, notadamente p. 15, 19, 22. ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência
jurídica: teoria e crítica. Noeses: São Paulo, 2011. p. 104: “[...] Para ser um sistema eficiente, o direito
trabalha com classificações gerais. Ou seja, a linguagem normativa, ao longo de sua história, vem
desenvolvendo uma especial capacidade para elaboração de paradigmas e modelos genéricos.”. À
luz de outro referencial teórico, ver GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Curso de derecho
administrativo. Madri: Civitas, 1974. v. 1. p. 293.
7
KELSEN, Hans. A teoria pura do direito. 6. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p. 390-395. Para a aplicação da lei como ato de vontade, ver COELHO, Fábio Ulhoa.
Para entender Kelsen. 3. ed. 3. tir. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 62-63. Doravante, em razão de
nova proposta filosófica comunicacional, não só se perquirirá sobre o conceito da separação dos
poderes, porém, sobretudo, sobre sua utilização, numa nítida revolução pragmática, ou como prefere
Manfredo A. de Oliveira: reviravolta linguístico-pragmática. Cf. OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta
lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 415-419. Num
prisma histórico, pontuando, objetivando os traços evolutivos da filosofia da linguagem, de Platão à
pragmática transcendental, ver OLIVEIRA, 2006. p. 11-14, 117-338. Para a linguagem como criadora
da realidade, ver FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3. ed. São Paulo: Anna Blume, 2007. p. 131135.
8
No sentido do Direito pontuado e estudado por meio da sua linguagem, ver ARAUJO, 2011, p. 7, 29,
31, 103. Para direitos subjetivos, no contexto da causalidade, ver VILANOVA, Lourival. Causalidade e
relação no direito. 4. ed. rev. atual. e ampli. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 58.
20
(a) ENQUADRAMENTO TEÓRICO: DIREITOS SOCIAIS X PODER JUDICIÁRIO
a.1 A sociedade de consumo própria da Pós-Modernidade, herança da
Modernidade, impulsionada pela Revolução Industrial, fomenta a evidente
desigualdade econômico-social, cuja consequência também é a avalanche de ações
judiciais propostas em face do Estado. O indivíduo pleiteia o cumprimento por parte
do poder público da sua promessa constitucional de igualdade (CF, art. 5º, caput). A
partir desse contexto, os movimentos sociais tentam cunhar a igualdade econômica
mínima aviltada incessantemente pela inércia estatal. Ante a sua provocação, o
Poder Judiciário atua constantemente na resolução dos litígios de cunho social, ora
numa conservadora interpretação da separação dos poderes, ora na busca da
efetividade dos direitos.9
a.2 Nesse arranjo sociológico de observação da atuação jurisdicional,
identifica-se que a postura do juiz ligada estritamente à lei acaba por privilegiar a
interpretação rígida da separação de poderes. Ela torna-se um dogma, com ligação
histórica ao período Pós-Revolução Francesa. Neste preciso momento histórico, a
parcialidade dos juízes fez com que a burguesia disseminasse a ideia de magistrado
como mero instrumento de aplicação da legislação.10 A bem da verdade, naquela
época, o poder jurisdicional estava nas mãos do senhor territorial ou do rei, porém,
aos poucos, ambos foram substituídos pela nação, materializada no artigo 3º da
9
Essa parcela do Judiciário, que decide em favor da efetividade, é apontada por José Eduardo Faria
como heterodoxa, minoria, crítica e politizada, cf. FARIA, José Eduardo. Introdução: o judiciário e o
desenvolvimento sócio-econômico. In: _____ (Org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. 1. ed.
4. tir. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 11. Para ver o Judiciário como um poder político, ZAFFARONI,
Eugenio Raul; TAVARES, Juarez. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1995. p. 78-81, 92. Sobre a conduta omissiva como fato jurídico e, como tal, dando
origem a efeitos jurídicos, ver VILANOVA, 2000, p. 65.
10
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 11-13. Numa crítica à
formação dos operadores do direito como a grande responsável pelo não questionamento dos
dogmas, em desprezo à natureza do Direito, ver FARIA, 2005, p. 21. Eis a versão original em francês:
“Article XVI. Toute Société dans laquelle la garantie des Droits n'est pas assurée, ni la séparation des
Pouvoirs déterminée, n'a point de Constitution”. Cf. FRANCE. Assemblée Nationale. Déclaration
universelle des droits de l'homme (1948-1998). Disponível em: <www.assembleenationale.fr/histoire/dudh/1789.asp>. Acesso em: 27 jan. 2011.
21
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “O princípio de toda
soberania reside essencialmente na nação.”.11
a.3 Em razão desse ambiente político-social, a construção teórica da
separação dos poderes foi muito mais um projeto político do que propriamente
jurídico, porquanto se temia pelo excesso de poder. Por esse ensejo, como
expressamente afirmou Montesquieu, lutava-se para coibir o despotismo real,
inibindo um poder pelo outro e, aos poucos, gradativamente, desembocou-se no
fortalecimento do Estado Liberal, mesmo sem poder aferir com segurança se foi
essa a intenção do filósofo francês em comento.12
Contemporaneamente, conforme faz menção
Marcelo
Neves,
na
perspectiva tradicional do Estado Democrático de Direito, a decisão judicial é
estritamente vinculada à lei.13 Nesse definido sentido, poder-se-ia afirmar: o decorrer
dos anos mostrou que a neutralização do Poder Jurisdicional o afastou de suas
bases sociais e dos valores éticos. Em dias hodiernos, indaga-se: realmente
aconteceria essa mencionada neutralidade?
a.4 A jurisdição tem função de cognição. Inicialmente, conhece fatos que
lhe são levados pelo processo judicial. Depois, regressa cognitivamente ao sistema
do direito para verificação da tipificação a ser dada ao fato. Durante esse processo
cognitivo, depara-se com duas situações: (i) há previsão para o dado fático no
ordenamento. Neste caso, caberá ao juiz aplicar tal base legal ao caso concreto,
dando vida à norma abstrata, o que o afasta de um mero aplicador da lei; (ii) não há
remissão expressa ao problema, deve-se, nessa situação, procurar remissões
implícitas e principiológicas, para chegar, até mesmo, a adotar caminhos utilizados
11
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito constitucional. São Paulo: Manole, 2007. p. 399. Eis, no
original: “Le principe de toute Souveraineté réside essentiellement dans la Nation.”. Cf. FRANCE.
Assemblée Nationale. Déclaration universelle des droits de l'homme (1948-1998). Disponível em:
<www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asp>. Acesso em: 27 jan. 2011.
12
FARIA, 2005, p. 22. Respectivamente, ver na tradução e no original em francês, MONTESQUIEU,
2005, p. 166-167; MONTESQUIEU, 1973, p. 166-167. Inclusive, também é similar a lição de James
Madison em O Federalista, cf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, Jonh.The federalist
papers.Trad.Cid Knipell Moreira.New York: Mentor Book, 1961, p. 320-323.
13
NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 191. Ao término da tese, espera-se que sejam delineados pontos de compreensão
que auxiliem, temporalmente falando, a responder à eterna dúvida da neutralidade ou não do juiz, ao
menos no que diz respeito ao STF.
22
por outros dispositivos em situações semelhantes, em nítida analogia. Não obstante
eventual lacuna, isso não exime o magistrado de julgar; caber-lhe-á o ônus de
judicializar o fato lacunoso, incluindo-o no direito posto por meio de sua decisão.14
a.5 Além do já explicitado nos parágrafos anteriores, a análise também se
legitima em razão do completo desprestígio conferido pela pesquisa acadêmica
brasileira à formação dos juízes e, em decorrência disso, do seu modo de julgar à
luz de estudo não positivista. Eugenio Raúl Zaffaroni detecta esse descuido, ao
apontar que nas universidades latino-americanas pouco se estuda o Poder Judiciário
ao arauto da abordagem sociológico-política. 15
Além do mais, o preenchimento dessa lacuna teórica poderia dar
supedâneo à atuação do administrador público, de tal sorte que, se seus atos
estiverem moldados à racionalidade do STF, o número de novas demandas há de
minguar gradativamente.
Por fim, essa objetivação da forma de atuar da Corte Suprema, pode
servir de fonte intelectual aos operadores do direito, de modo geral, sobretudo
advogados, promotores públicos e juízes. Eis, pois, a oportunidade de fazê-lo neste
lavor, enquanto Estado-juiz, delimitado à Suprema Corte, numa investigação teóricoempírica.
14
VILANOVA, Escritos jurídicos e filosóficos. São Paulo: Axix Mundi/IBET, 2003. v. I. p. 463.
ZAFFARONI, 1995, p. 22, 26, 28, 30-31. Sobre a escassez de pesquisas empíricas, ver
LUHMANN, 1983a, p. 7: “[...] As pesquisas empíricas no campo da sociologia do direito podem ser
contadas nos dedos [...].”. A respeito da necessidade de estudar-se a forma de pensar com vistas a
um objeto de estudo, especificamente fundamentado no rompimento filosófico entre pensar e ser, ver
OLIVEIRA, 2006, p. 35. Ademais disso tudo, o registro da advertência de Georg Jellinek, da
impossibilidade de admitir-se uma única perspectiva de explicar o Estado, nesse aspecto é válido. Em
complemento à ideia, Miguel Reale menciona a necessidade de estudar o Estado na totalidade das
suas dimensões, como grande fomentador de uma nova ciência do Estado, com substrato de
realidade em embate à teoria excessivamente ficcional. (Teoria do direito e do Estado. 5. ed. 3. tir.
Saraiva: São Paulo, 2005. p. 125). E, ainda, a construção histórica da dogmática jurídica, descrita
pela refinada pena de Tercio Sampaio Ferraz Jr., aponta para um risco do seu afastamento da
realidade, mormente em razão de pautar-se em abstração, dito sob outro verbete: ficção,
impulsionando a teorização a voltar-se às classificações e às delimitações conceituais, numa rede de
abstrações construídas, numa discrepância inicialmente intencional do dado empírico, porém, que
aos poucos se torna tão abrupta que desvirtua a própria razão de ser do direito, num divórcio entre a
praxis e a teoria inconciliável. Cf. FERRAZ JR., 2007, p. 81.
15
23
(b) METODOLOGIA DA PESQUISA
b.1 O Estado de bem-estar social pressupõe o exercício de função
compensatória e distributiva para conferir o mínimo de igualdade econômica,
materializada nos direitos fundamentais clássicos, com destaque para os sociais,
interesse primordial desta tese. Seu pressuposto é a inclusão generalizada da
população nas prestações ofertadas pelos sistemas sociais parciais; o inverso
designa-se como exclusão, com ela a sua marginalização.16 Com isso tudo, a
cidadania tem na igualdade o seu ponto nevrálgico, entendida como instrumento de
inclusão social numa perspectiva jurídico-política, apontada numa diversidade de
direitos postulados em face do Estado.
A semântica sobre os direitos sociais é fruto de uma evolução não
rigorosamente linear em diversos momentos históricos, muito fomentada pelas
revoluções burguesas, cada vez mais sob uma maior abrangência conceitual.17
Nesta perspectiva, as dúvidas sobre a atuação do Estado surgem nas mais diversas
variáveis, notadamente ligadas à economia e à formação de um Estado Social. Pois
bem. Diante desse cenário, o custo de um efetivo Welfare State é colocado em
xeque, notadamente pelo atual panorama econômico mundial, o que invariavelmente
impulsiona o repensar do papel estatal.18
b.2 A originalidade da pesquisa decorre da mescla da abordagem
dedutiva com a analítica do tema, extraída da coleta de dados interdisciplinar,
aplicada aos precedentes jurisdicionais, a resultar numa análise hodierna da
racionalidade da separação dos poderes. De todo o exposto, merecem destaque a
relevância social e a atualidade de se desenvolver investigação mediante coleta de
dados bibliográficos, de nítida opção interdisciplinar, e a sua interface com a
jurisprudência do STF.
16
NEVES, A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 76. LUHMANN,
Nicklas. Teoria politica nello Stato del benessere. A cura di Raffaella Sutter. Milano: Franco Angeli,
1983b, p. 58, 59.
17
NEVES, 2006, p. 175.
18
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico. In: FARIA,
José Eduardo (Org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. 1ª ed. 4. tir. São Paulo: Malheiros,
2005. p. 32.
24
b.3 A pesquisa realizou-se mediante investigação teórica-empírica. A
teórica foi conduzida pelo processo dedutivo. Centrou-se a coleta de dados em
teóricos sociais, com destaque respectivamente para a teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann, utilizada na identificação da racionalidade jurídica, da inclusão social, da
complexidade, da contingência, da justiça, do papel dos tribunais e dos sistemas
jurídico e político.
Ainda, no plano teórico, a conceituação da expressão: “simbólico” é
extremamente rica, a tal ponto que rotineiramente se encontra confusão semântica;
para evitá-la, o trabalho adota a tese desenvolvida por Marcelo Neves, no seu livro
“A Constitucionalização Simbólica”, em que desenvolve debate em torno do
simbolismo das normas constitucionais.19
b.4 Toda escolha, decisão de modo geral, provoca riscos, mesmo porque,
escolhe-se uma coisa em detrimento de outra, quiçá quando se tem a pretensão de
aplicar teorias, como aspira esta tese, pensadas para realidades completamente
diferentes da periferia na qual o Brasil está situado, mormente ao pautar como
arauto da agenda a inclusão social, numa realidade moldada pela desigualdade,
materializada por bolsões de miséria e riqueza que convivem, esbarram-se, com
tanta intensidade, que são praticamente aceitas como normais, levando ao pior
sentimento possível: a indiferença.
Por isso tudo, a utilização de tais metodologias deve ser exercida com
prudência para se atentar para as peculiaridades sociais e históricas em que serão
contextualizadas, como é o caso desta pesquisa de doutoramento.20
19
Sobre a constatação da ambiguidade da expressão simbólica, ver NEVES, Marcelo da Costa Pinto.
A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 5-22, sobretudo p. 5: “[...] Ao
contrário, estamos diante de um dos mais ambíguos termos da semântica social e cultural, cuja
utilização consistente pressupõe, portanto, uma prévia delimitação do seu significado, principalmente
para que não se caia em falácias de ambigüidade.” e p. 18: “[...] Dessa maneira, o modo simbólico,
além de implicar a ‘nebulosa de conteúdo’ no nível semântico, depende de uma postura pragmática
determinada do utente do texto, sendo assim radicalmente contextualizada.”. Ainda sobre a
ambigüidade da expressão simbólica, ver NEVES, Marcelo da Costa Pinto. A força simbólica dos
direitos humanos. Revista Eletrônica de Direito de Estado. Salvador, n. 4, p. 1-35,
outubro/novembro/dezembro, 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em:
25 out. 2011, p. 2.
20
No caso da teoria dos sistemas, para tal advertência, ver VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria
dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 325.
25
b.5 Sem embargo da preocupação relatada linhas atrás, o choque dessa
teorização, proveniente de países tidos como centrais, com os precedentes do
tribunal constitucional, instaurado num país de periferia, já amainaria a diferença
social mencionada, até em razão da redução na escala de observação, como pontua
Orlando Villas Bôas Filho, escorado em Luhmann e em Campilongo, haja vista que
se deixaria de lado a generalização, cujo enfoque se atém ao sistema social parcial
no todo, para, doravante, observar sob uma abordagem recortada, quase que micro
se comparada àquela.21
b.6 Para a pesquisa empírica, por meio dos métodos de pesquisa,
utilizou-se a investigação documental, coletada de precedentes judiciais do STF.22
Como advertido antes, o estudo dos acórdãos foi promovido com base na
“Pragmática” de Charles Sander Peirce. Aqui, como estudo, entende-se a forma de
aproximação do objeto.23 A abordagem a ser feita no material empírico, por meio do
pragmatismo, é a qualitativa, a fim de compreender o sentido forjado pela Suprema
Corte ao problema em análise.
Dessa forma, tem-se um projeto de pesquisa qualitativo, conduzido pelo
estudo de casos qualitativos, com o fito de proporcionar uma direção específica aos
procedimentos de pesquisa, mesmo como “estratégia de investigação”. Partiu-se do
21
VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 331, 333, 375-376. Para os seus fundamentos, ver CAMPILONGO,
Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 163169 e LUHMANN, Niklas. EI derecho de Ia sociedad. Traducción Javier Nafarrate Torres. 2. ed.
México: Universidad Iberoamericana, 2005, p. 381-386.
22
Sobre os métodos de pesquisa, ver CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa. Métodos qualitativo,
quantitativo e misto. 3. ed. Porto Alegre: Artmed. 2010, p. 40, 41. No Brasil, Antônio Joaquim
Severino usa a expressão “técnicas de pesquisa” (Metodologia do trabalho científica. 23. ed. rev. e
atual. São Paulo: Cortez, 2007. p. 124-126) e Sergio Vasconcelos de Luna o verbete “procedimentos
de coleta de informação” (Planejamento de pesquisa. Uma introdução. São Paulo: EDUC, 2006. p.
58-60). Especificamente no seio da Sociologia do Direito, a respeito de pesquisa documental, ver
TREVES, Renato. Sociologia del diritto. Torino: Enaudi, 1996. p. 293.
23
Como dito, estudou-se as decisões por meio da Semiótica, em razão de se acreditar que cada vez
mais, torna-se cabal a necessidade de fazer-se filosofia no direito, compreendida como a
transposição de estudos filosóficos: da filosofia pura, para dentro do direito. E é justamente o que têm
feito os estudos de semiótica jurídica, em que se parte de pressupostos filosóficos, neste caso, os da
linguagem, com escopo de estudar as normas jurídicas, com destaque, na doutrina brasileira, para
Paulo de Barros Carvalho e Tercio Sampaio Ferraz Jr. Ademais, a Semiótica pode ser dimensionada
basicamente sob três aspectos: sintático, pragmático e semântico, proclamados, com o vagar
necessário, ao mote da tese, na Parte II.
26
particular (análise dos julgados) para uma perspectiva geral (a racionalidade do
STF).24
(c) OBJETO DE INVESTIGAÇÃO
c.1 A decisão judicial também é resultado da carga psíquica do seu
prolator, adquirida na sua formação ética e social, e, depois, polida pela formação
intelectual recebida na Faculdade de Direito e mediante seleção por concurso
público – nos casos de juízes de carreira –, além de influenciada pelos anos de
exercício da judicatura. Sobre o concurso de ingresso na magistratura, em que
pesem algumas variantes, é ainda produto das sociedades do século XVIII, logo,
sem o dinamismo e a complexidade inerentes à época atual,25 apesar de o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) ter dado um grande passo para o aperfeiçoamento do
certame, por meio de recente decisão em que obriga a inclusão, entre outras
disciplinas, no respectivo edital, de filosofia e sociologia do direito. Pois bem, pelo
exposto, identifica-se que já no ingresso na carreira, inicia-se o interesse a respeito
da forma de raciocinar do Poder Judiciário e sua interface com a sociedade
hipercomplexa.
c.2 Na Modernidade, Niklas Luhmann negou categoricamente a
‘racionalidade jurídica” mediante a conquista de valores outrora concebidos como
imutáveis.26 Em seu amplexo, a multiplicidade de escolhas sociais prepondera. Falase em sociedade complexa. É possível esperar uma operação de seletividade em
que os sistemas parciais escolham os valores que sua comunicação pontuará.27
24
Sobre os projetos de pesquisa qualitativos, suas estratégias e métodos de pesquisa, ver
CRESWELL, 2010, p. 25-47, sobretudo, p. 26, 35, 37-38, 40 e SEVERINO, 2007. p. 118-119.
Especificamente no seio da sociologia do direito, a respeito de pesquisa qualitativa, ver TREVES,
1996, p. 204-205.
25
DALLARI, 1996, p. 21.
26
LUHMANN, Niklas. La differerenziazione del diritto. A cura di DE GIORGI, Rafaelle. Milano: Mulino,
1990b. p. 348.
27
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Governo representativo “versus” governo dos juízes: A
“autopoiese” dos sistemas político e jurídico. Belém: UFPA, 1998. p. 56.
27
A partir dessa seleção, a generalização dessas expectativas será o
possível de fornecer ao sistema social global, não mais. Luhmann rotulou o seu
trabalho de “funcionalismo-estrutural”, justamente para destacar o seu contraponto
ao ideário parsoniano denominado de “estrutural-funcional”. Com esse intuito,
propôs uma nova teoria de análise da sociedade, que contém um aspecto
metodológico, redefinindo o conceito de função, e um teórico, voltado a um novo
conceito de sistema.28
No que diz respeito ao conceito de sistema, primeiro desconsidera
completamente a ideia de valores ontológicos, como frisado anteriormente. A
estabilidade não mais será feita por um axioma imutável, cuja consequência também
é a exclusão de outros valores. O sistema deverá buscar essa estabilização dentro
de um ambiente mutável, em que as outras possibilidades são quase certas. Por
isso, a estabilização será feita num jogo comunicativo entre o sistema e o ambiente.
Desta maneira, antes de tudo, a teoria luhmanniana funcional-estrutural é uma
proposta sistema/ambiente.29
Nesse cenário sistêmico, os juízes são os responsáveis pelo fechamento
sistêmico, na essência. Numa última análise, com o surgimento da lide, o que é lícito
ou ilícito, quem decide são eles. Cabe-lhes a difícil missão da “última palavra”, cujo
estudo é o fito central deste trabalho: a sua forma de atuar. Por essas máximas,
impende indagar: como julga a Suprema Corte brasileira em direito à saúde: pela
efetivação do direito à saúde ou pela atuação simbólica?
c.3 Por isso mesmo, novas indagações exsurgem: no contexto políticosocial pátrio, a Suprema Corte teria uma postura de altivez? Entender-se-ia como
seu objetivo efetivar os valores contemplados pela Constituição Federal,
notadamente o direito à saúde, e até mesmo, quem sabe, ideologicamente, praticarse-ia a sua concretização-normativa; ou, ao contrário disso, atuar-se-ia em favor da
preservação da competência do Poder Executivo, num rígido apego à separação de
poderes, em apoio, deste modo, à tese de que a efetivação dos direitos sociais é um
resultado exclusivo das políticas públicas e, como tal, não afeita à sua intervenção?
28
FEBBRAJO, Alberto. Funzionalismo struturale e sociologia del diritto nell´opera di Niklas Luhmann.
Milano: Giuffrè,1975. p. 29, 30.
29
FEBBRAJO, 1975, p. 37, 38.
28
Pretende-se, nestes termos, esgrimar em torno da resolução da seguinte pergunta:
qual racionalidade jurídica em direito à saúde prevalece no STF?
c.4
Pelo
prisma
da
teoria
dos
sistemas,
como
mencionado
superficialmente antes, no que diz respeito ao direito, a função será a garantia das
expectativas normativas ao longo do tempo. O sistema do direito, por meio de sua
reiteração comunicativa diferenciada, garantirá a credibilidade social dos valores
inseridos nas normas jurídicas. Assim, a função não é um tipo particular de relação
causal: define-se a função independente da causalidade.30 Deste modo, a tese não
trata de uma objetivação das causas motivadoras da tomada de decisão, em que o
resultado seria oriundo de uma causa que teve como decorrência lógica o fato final
observado.31
De outra banda, aqui, quase como uma fotografia, faz-se um corte ou,
precisamente, um recorte: desconsideram-se momentaneamente o futuro e o
passado. Objetiva-se uma extensão cognoscível – ou seja, determinados acórdãos
do STF –, para responder o objeto de pesquisa da tese, na perspectiva sistêmicopragmática.
30
FEBBRAJO, 1975, p. 34, 35.
VILANOVA, 2000, p. 7: “1. Natureza não é um complexo de coisas enormemente diversificadas que
compõem o nosso mundo circundante. É um complexo de fatos segundo invariações causais. Ela
mesma, a natureza transforma-se em cultura, se as leis causais passam a ser suportes de
objetivações de valores.”. Também VILANOVA, 2000, p. 59: “Mas a palavra ato conota o dado
imediato íntimo, o ato psíquico em que a norma se constitui. O ato íntimo, não exteriorizado em
conduta (ação/omissão), [...]”. Mutatis mutandis, transportado esse plexo ideário para o Direito,
especificamente no seu processo histórico de diferenciação, cujo resultado materializou-se na sua
positividade, conclui-se: ao observar a sua construção histórica, ou mesmo sociológica, não raro,
encontra-se causalidade sociocultural como fator preponderante desse processo. Sobre causalidade,
ver VILANOVA, 2000, p. 57, 59: “Para se entender a causalidade especificamente jurídica, há de se
ter em conta esse mínimo de ontologia: o direito é uma realidade com duas dimensões. Uma é
factual, no sentido largo do termo: compõe-se de fatos do mundo físico e de fatos de conduta interhumana. Outra é a objetivação de significados normativos.”. A respeito do processo de significação à
perspectiva filosófica de Edmund Husserl, ver OLIVEIRA, 2006, p. 45. A respeito da causalidade sob
a abordagem da filosofia política com pertinência ao trabalho, ver, respectivamente, tradução e no
original em francês, MONTESQUIEU, 2005, p. 11-17; MONTESQUIEU, 1973, p. 7-13.
31
29
PARTE I – SEPARAÇÃO DOS PODERES, COMPLEXIDADE E
CONTINGÊNCIA SOCIAL
H´ ςαρ τυραννις αδικιας µητηρ εϕυ
“O poder absoluto gera injustiça”
(Dionísio, 4 K-S)32
1 SEPARAÇÃO DOS PODERES, ABUSO DE PODER E INSTABILIDADE SOCIAL
1.1 Em rigor, pela análise bibliográfica a respeito da separação dos
poderes, depois da preocupação com o abuso do poder, talha-se o nítido temor com
a própria estabilidade do poder. Buscou-se uma forma de continuidade do exercício
do poder, sobretudo porque os povos, detentores inicialmente da soberania, eram
completamente instáveis. Não havia, pelo crivo da consciência popular, garantia de
continuísmo e de respeito aos pactos livremente convencionados, como fruto, por
exemplo, da própria democracia. Naquele momento histórico, eram duas as
preocupações de primeira ordem: (i) abuso de poder; e (ii) fortalecimento das
instituições.
Esse processo evolutivo não se realizou de forma hegemônica e
uniforme. Ao contrário disso, ocorreu de modo heterogêneo e desuniforme, em
momentos temporalmente diversos e geograficamente opostos, com extensão desse
ideário aos regimes constitucionalistas representativos. E não foi diferente no Brasil,
onde, na época do Império, o Poder Moderador tentou outorgar credibilidade ao
país, mesmo em desfavor do controle do abuso do poder.33
32
TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 468.
O autor proporciona, nesse texto, um breve mas bem pontual relato histórico, com espírito críticodescritivo, sobre o tema. Cf. LOPES, 2006, 15-23. Ver, a respeito da utilização de Montesquieu e
Constant na sociedade brasileira, sob a égide do Poder Moderador, WOLKMER, Antonio Carlos.
História do direito no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 148, 149. A respeito do Judiciário
como poder neutro, a fim de dar estabilidade e de permanecer imune a pressões para garantir os
direitos individuais e o mercado, indica-se CAMPILONGO, 2002, p. 27, 35, 37. Para um breve relato
da formação do STF e da influência do Poder Morador, ver VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal
33
30
1.2 Essa necessidade de estabilidade e de contenção ao abuso do
poder desembocou na separação de poderes como máxima liberal. Os países tidos
como civilizados deveriam adotá-la expressamente em suas respectivas Cartas
Magnas, sob pena de o texto em questão não ser considerado uma Constituição,
conforme previu inclusive o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem,
posteriormente inserido na Constituição francesa, de 3 de setembro de 1791.34 Eis
um ambiente propício à construção de novos paradigmas. Foi exatamente o que
ocorreu.
A burguesia, com os excessivos desmandos dos representantes do
absolutismo, viu-se fortalecida para pregar a liberdade inquestionável do indivíduo
diante do Estado, valor este que o povo mais carente nunca usufruíra, mas, como
vinha num pacote repleto de novos ares, acabou legitimando socialmente a
estudada divisão como instrumento ortodoxo de castração dos poderes públicos em
favor do valor econômico disseminado pela burguesia em detrimento do nascimento
outrora em voga.35
Federal. Jurisprudência política. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 114-119; com o mesmo intento,
contudo, num trabalho histórico, ver RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal
Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. t. I. p. 1-14. É lúcida a observação de
IANNI, Octávio. A idéia de Brasil Moderno. 1. ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 13:
“[...] Aos poucos, o manto monárquico recobriu muitas inquietações e desigualdades, criando a ilusão
de que o poder moderador resolvia de forma benigna a maior parte dos problemas criados com o
escravismo, as nações indígenas, a questão agrária, as diversidades regionais. Muitas inquietações
se apagaram em diferentes lugares, dando oportunidade aos arranjos da conciliação pelo alto.”. Para
uma brevíssima análise, porém abalizada, a respeito do Poder Moderador no Império e sua
corrupção, ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. 25ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 167.
34
Article XVI - Toute Société dans laquelle la garantie des Droits n’est pas assurée, ni la séparation
des Pouvoirs déterminée, n’a point de Constitution. Cf. FRANCE. Assemblée Nationale. Déclaration
universelle des droits de l'homme (1948-1998). Disponível em: <www.assembleenationale.fr/histoire/dudh/1789.asp>. Acesso em: 3 fev. 2011. Eis a tradução livre: “Artigo XVI. Uma
sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes
determinada, não tem Constituição.”. A Constituição Francesa, de 3 de setembro de 1991, adotou o
texto na íntegra. Ver, nesse sentido, SILVA, 2007, p. 109: “Tornou-se, com a Revolução Francesa,
um dogma constitucional, a ponto de o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789 declarar que não teria constituição a sociedade que não assegurasse a separação de
poderes, tal a compreensão de que ela constituiu técnica de extrema relevância para a garantia dos
Direitos do Homem, como ainda o é.”.
35
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2004. p.
63, 66-67, 73, 138. Sobre a função judiciária restritamente apegada à lei, ver CAMPILONGO, 2005, p.
45. Pontual a crítica de Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico “Raízes do Brasil”, sobre a
forma acrítica que os intelectuais brasileiros assimilam ideários teóricos. Cf. HOLANDA, 2006, p. 155:
“É freqüente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que alimentam, ao
mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as
convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por
uma roupagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. [...].”.
31
Com o decorrer dos anos, porém, aquela necessária manutenção da
liberdade e da estabilidade das instituições já não mais aparentava ser tolhida com a
alteração da rígida técnica de separação dos poderes, desenvolvida pelo idealismo
liberal. Ao contrário disso, nessa hipótese, como bem assentado por Paulo
Bonavides, novos valores políticos, menos formais, paulatinamente tomam lugar no
jogo democrático, inclusive para trocar as palavras separação e divisão por
distinção, coordenação e colaboração.36
Também, sob o crivo da crítica a Montesquieu, Hegel discordou da
separação em questão quando ela se aproxima da visão do filósofo francês, para, no
entanto, legitimá-la como unidade do poder em proximidade com o pensamento de
Rousseau, num nítido enfoque organicista de interdependência como poderes
coordenados e não separados.37
1.3 Submerso no cenário brasileiro, consoante aponta José Reinaldo de
Lima Lopes, após o fim do Império, esse condão de resguardar a estabilidade
institucional – acima mencionada – aos poucos foi passado ao STF. A par disso, não
demorou para a citada Corte enfrentar julgamentos ligados à liberdade e a questões
semelhantes. Nessa mesma linha ideológica, a influência do Poder Moderador,
cunhado por Benjamin Constant, é clara por atender aos anseios dos Estados
fomentadores desse plexo, notadamente em razão de sua observação identificar um
contraste entre o liberalismo e a democracia dos antigos em relação aos modernos.
Sua adoção resultou num forte manancial à desqualificação de parte da doutrina de
Rousseau.38
36
BONAVIDES, 2004, p. 64-65. Para um diagnóstico parecido, ver CAMPILONGO, 2002, p. 38-39 e
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p. 109: “Hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do
Estado contemporâneo impôs nova visão da separação de poderes e novas formas de
relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente
se prefere falar em colaboração de poderes, [...]”.
37
BONAVIDES, 2004, p. 134. Sobre Hegel, ver COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 305-328. Para um apanhado das idéias de Rousseau, ver PIÇARRA,
Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional. Um conjunto para o estudo
das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, Faculdade de Direito de Lisboa, 1989. p. 125-139.
38
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos sociais. Teoria e prática. São Paulo: Método, 2006. p. 1921, 29-31. Nesse texto, o autor relata que essa pretensão de instabilidade foi anseio dos mais
diversos povos, materializado em discurso de Simão Bolivar ou na refinada pena de Hamilton em seu
Federalista 78. Em parecido diagnóstico, ver IANNI, 2004, p. 13-14. Em especial, sobre Benjamin
Constant (1767-1830), indica-se BOBBIO, Norberto. Liberalismo y democracia. México: Fondo de
32
Como consequência disso tudo, fortalece-se o regime liberal, num nítido
enfoque burguês ou, como preferem, liberalismo forte; leia-se: liberal-individualista,
com o condão de, agora, amparar os interesses da elite agrária e do clientelismo
imperial, e não do burguês na semântica europeia, porquanto o cenário cultural era
diverso daquele fomentador do levante das armas para atacar a nobreza.
No Brasil, os valores liberais foram empregados para servir aos interesses
da oligarquia rural e, no mesmo intento, dos vinculados/agregados ao Estado
perdulário português. Pode-se afirmar que o processo liberal brasileiro surgiu pela
vontade dos governantes – que continuaram no poder após a sua implantação, grifase – e não de um caminho revolucionário, e talvez por esta razão chegou a conviver
até mesmo com a escravidão.39
1.4 Com efeito, acredita-se que a separação dos poderes foi forjada em
razão da necessidade histórica, embasada essencialmente, conforme a concepção
de Estado almejado pela classe então dominante, num claro litígio social, no qual os
atores, via ideários, duelaram para, ao final, prevalecer uns em desfavor de outros. A
sua semântica é artificial, contingente, construída por valores sociais em alta no
momento. Nesta mesma linha de raciocínio, o STF, corte responsável pela outorga
de sentido às normas constitucionais, pode, sim, conduzir-nos à nova visão do
princípio
republicano,
tão
festejado
em
alguns
períodos
temporalmente
determinados, cujas atuais críticas ofertadas a ele, notadamente encampadas pelos
defensores da efetividade dos direitos sociais, estimulam o seu repensar.40
Cultura Económica, 1996. p. 8-9 e BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco
Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 8-9.
39
Em diagnóstico sobre a utilização da cultura jurídica produzida nos séculos XVII e XIII, na
engenharia do regime burguês e na adequação dos valores liberais à realidade brasileira,
respectivamente, ver WOLKMER, 2007, p. 29, 94, 96, 98. A respeito de o liberalismo brasileiro ter
sido implementado pelos donos do poder, ver HOLANDA, 2006, p. 160: “[...] Na verdade, ideologia
impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente
esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda,
confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os
governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural
e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios,
os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo de luta da burguesia contra os
aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou
decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados
nos livros e discursos.”.
40
BONAVIDES, 2004, p. 52, 65. Mesmo com toda tradição e pretensão de estabilidade, o Direito não
está imune da influência ferrenha da complexidade social. Em outras palavras, a complexidade social
33
Por consectário lógico desse processo histórico de contendas políticosociais, o Poder Judiciário – o poder cunhado por excelência para exercer o seu
sacerdócio em sintonia com os valores liberais – se vê completamente pressionado
por pleitos sociais de todas as ordens, motivados pelas transformações sociais e
tecnológicas, porém, grande parte em razão da ineficiência das políticas públicas,
mesmo em atender as necessidades básicas, quiçá na concretização dos direitos
das gerações posteriores, especialmente os sociais. Por isso tudo, o Estado-juiz é
conclamado a adotar uma nova postura, em cuja consequência também se enfileira
a nova modelagem da tripartição dos poderes.
De resto, o debate chegou à Suprema Corte, em consonância ao descrito
na Parte - II desta tese, com o escopo de (re)desenhar um poder inicialmente
talhado ao Estado Liberal, em cujo proceder, no entanto, deve toldar-se para cumprir
o seu mister no Estado Social41, inserido num contexto histórico-social de constantes
ingressa fortemente no ambiente social do Direito. Nesse escólio, confirma novas possibilidades, as
quais se instauram em razão de novas decisões, provenientes de seleções e algumas até delineadas
por lutas políticas; com elas, surgem novas escolhas, cuja alternância semântica é quase um
processo natural, sobretudo quando é gradativo, sem fortes rupturas. Cf. LUHMANN, 1983a, p. 225,
226, 228. No debate (ou duelo) social entre a nobreza e a burguesia no que diz respeito à separação
dos poderes, ver GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 168. Escamoteia-se, ainda, que o próprio projeto de modernidade, construído sob
a égide ético-filosófica que legitimou o técnico-produtivo, é fruto do culto de axiomas proveniente de
um choque de forças, cujo vencedor foi a burguesia em detrimento da aristocracia, para, em razão
disso, dar supedâneo ao denominado mercado capitalista, à razão instrumental e ao Positivismo
Jurídico. Cf. WOLKMER, 2007, p. 30, 92, 93; VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 59, 61, 65, 66, 69;
GRAU, 2000, p. 167-168. Em paráfrase a Max Weber, simplesmente a sociedade desencantou-se. A
respeito, ver VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 59- 71. HABERMAS, Jügen. O discurso filosófico da
modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 3-5.
41
CAMPILONGO, 2002, p. 27-32. CAMPILONGO, 2005, p. 30-35, 44, 46-47. FARIA, 2005, p. 52-54,
56, 62-63, 65. Para um mapeamento das alterações na sociedade brasileira e sua influência no Poder
Judiciário, ver LOPES, José Reinaldo de Lima. 4. Crise da norma jurídica e a reforma do judiciário. In:
Direitos Humanos, direitos sociais e justiça. 4. tiragem. Organizador José Eduardo Faria. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005, p. 69-72, 82-83, 85: “O que se coloca como problema básico do Judiciário
hoje já não é apenas o julgar conforme a lei. Estamos diante de um quadro mais complexo. As
demandas sociais são explosivas na situação brasileira e o que está em cheque não é apenas o
Judiciário, mas é todo o Estado, toda a composição política da sociedade brasileira. [...] O que está
em discussão é quem deve ficar mais rico e quem deve ficar mais pobre.”. Com o desiderato de
observar as mudanças sociais no Brasil, a partir de 1988 até os primeiros anos da década de
noventa, sob o viés da Sociologia do Direito e da Política. Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. O
direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000b. p. 53-65. Eis a transcrição de um
trecho da página 59: “O correlato social da paralisia decisória – ou das decisões de difícil
implementação e aceitação – é a inviabilidade do consenso. Um sistema representativo
irresponsável, num contexto de erosão das identidades populares coletivas, só faz alimentar a
fragmentação do Estado e da sociedade. A ineficácia e irracionalidade decorrentes desse
estilhaçamento institucional resulta não apenas em impasses decisórios e na incapacidade do Estado
tornar efetivas suas leis, mas, igualmente, na crença de que, nessas condições, os ‘pactos sociais’,
os projetos que ultrapassem a mera administração diária das crises, as práticas que resgatem o
34
alternâncias, no qual a sociedade – num processo reflexivo – inúmeras vezes foi
impulsionada a se repensar para originar novas interpretações ou mesmo ideários já
conhecidos, todavia, apresentados sob nova roupagem, consoante expôs Octávio
Ianni.42
No mais, com a observação de que, ao contrário da história recente do
Brasil, onde as alterações políticas, sociais e institucionais ocorreram especialmente
pela vontade e atuação das elites econômicas, e por que não, do escol de
intelectuais daquele momento, como se conclui no estudo dos preceptivos de Sérgio
Buarque de Holanda. As alterações institucionais atuais são muito mais provocadas
pelo altíssimo número, cada vez maior, de demandas judiciais propostas por
cidadãos oriundos das classes menos favorecidas, quer individualmente, quer por
meio dos movimentos sociais.43
interesse coletivo e o bem público são de árdua viabilização.”. Numa visão geral, no entanto, o texto
descreve de forma bem cética e provocadora um dos momentos cruciais da nossa recente
democracia, cujo enredo acabou, em parte, por fomentar o debate sobre o papel até então atuado
pelo Judiciário e, especialmente, o porvir.
42
IANNI, 2004, p. 7: “Em cada época marcante da sua história, a sociedade brasileira tem sido levada
a pensar-se novamente. É como se ela se debruçasse sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita,
imaginosa. Não só se formulam novas interpretações como se renovam as anteriores. Podem mesmo
recriar-se idéias antigas, parecendo novas.”.
43
O historiador Sérgio Buarque de Holanda identifica o processo evolutivo brasileiro com nitidez,
conforme se nota nos trechos aqui colados: HOLANDA, 2006, p. 73: “Na monarquia eram ainda os
fazendeiros escravocratas e eram filhos de fazendeiros, educados nas profissões liberais, quem
monopolizavam a política, elegendo-se ou fazendo eleger seus candidatos, dominando os
parlamentos, os ministérios, em geral todas as posições de mando, e fundando a estabilidade das
instituições nesse incontestado domínio. Tão incontestado, em realidade, que muitos representantes
das classes dos antigos senhores puderam, com freqüência, dar-se ao luxo de inclinações
antitradicionalistas e mesmo de empreender alguns dos mais importantes movimentos liberais que já
se operaram em todo o curso de nossa história.”. Nas páginas 160: “É curioso notar-se que os
movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo;
foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quando sentimental. Nossa
independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política
vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade.
[...].”, e 161: “[...] Saint-Hilare, que por essa época anotava suas impressões de viagem pelo interior
brasileiro, observa que, no Rio, as agitações do liberalismo anteriores aos 12 de janeiro foram
promovidas por europeus e que as revoluções das províncias partiram de algumas famílias ricas e
poderosas. [...].”.
35
2 ESTADO-JUIZ, DIREITO E POLÍTICA
2.1 Aos olhos do senso comum, a convicção do magistrado, ao julgar,
trata-se, em certo aspecto, do fruto da sua intuição ou de sentimento íntimo,
portanto, desvalido de um raciocínio elaborado, coerente e previsível, ao menos à
vista do citado senso – como grafado há pouco. Esse entendimento popular não
compreende a tomada de determinadas decisões que, à sua óptica, revoltariam,
como a soltura do cárcere de um perigoso criminoso. O leigo não entende o porquê
de tal decisão. Seu pensar é em outro sentido; ilustrativamente, por exemplo: se o
delinquente cometeu um crime e é perigoso, deixe-o preso, limpem-se as ruas.
Agora, quando o ato de subsunção da norma geral (extraída dos códigos
em geral, ilustrativamente) maneja uma cognição hermenêutica – tão usual
hodiernamente – que se afasta da exegese aspirada pela revolução burguesa, de
rígido apego à lei, a fruir numa nítida construção da norma jurídica propriamente,
segundo anotado por Marcelo Neves, e a importar numa “hierarquia entrelaçada”, a
irresignação social pode tomar índices altíssimos.
Em outra semântica, o discurso mais apurado, com olhar técnico,
identificará um processo dialético na formação do juízo decisional a desembocar na
soltura do réu. Por essas palavras, pode-se pensar num percurso que inicia no
particular, passa ao universal e depura no singular, sob a constante irritação do ético
e do jurídico na mente do julgador.44
2.2 Nessa mesma senda, segundo os preceptivos de Tercio Sampaio
Ferraz Jr., a dogmática jurídica é tecnologia decisional. É o caminho que o intérprete
44
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 289.
NEVES, 2006, p. 191. Interessante, todavia curioso, que sob o julgo do plano teórico da dogmática
jurídica processual (direito processual civil), os estudos tendem a direcionar o pensamento para a
seguinte premissa: a convicção do magistrado é motivada, influenciada, pelas provas processuais.
Mas, sem prejuízo do balanceamento desse axioma, essa postura normalmente vem contaminada
pela imagem de um Juiz burocrata, o que, em nosso sentir, hodiernamente parece a passos longos
cada vez mais fora de propósito. Na temática prova, ver na doutrina italiana contemporânea
TARUFFO, 1994, p. 377-378, 390, 393, e na clássica CARNELUTTI, Avv. Francesco. La prova civile
– Parte generale (Il conceito giuridico della prova. Roma: Athenaeum, 1914. p. 11, 15, 29, 86. Já
naquele momento histórico, no século passado, são lúcidos os dizeres carneluttianos, p. 86: “17.
Mezzo di prova è dunque, anzitutto, la percezione del giudice. [...].”.
36
segue até o momento de aplicação da norma ao caso fático. Nesse processo,
cumprem-se regras processuais, entre elas a fundamentação das decisões, a
resultar na argumentação levada a público quando grafada na decisão, a entoar o
percurso intelectual do seu prolator. Sem embargo disso, faz menção Ferraz Jr.: “No
âmago do julgamento esconde-se a convicção, o pensar convicto, não o método
(motivação).”. Completa ainda o seu raciocínio ao opinar que se do contrário fosse,
os computadores poderiam julgar e não os homens. Dessa forma, a convicção do
magistrado é, em certa medida, um ato individual e subjetivo, o qual tão só toma
ares de objetividade no momento da construção da motivação.45
2.3 No alicerce democrático moderno encontra-se a opinião da maioria
como suficiente, aos menos artificialmente, para cunho decisório. Ela cunhará os
caminhos do Estado. Descarta-se a unanimidade. É tida como improvável. A maioria
é o consenso possível sem, no entanto, destruir a minoria. E, nesse plexo ideário
democrático, a positividade do direito assumiu um status significativo: a divergência,
disputa, entre o bem e o mal tem local bem definido. Doravante, as rivalidades entre
o melhor caminho, ou mesmo do valor correto, cinge-se no parlamento. No entanto,
com a escolha, o axioma é tomado como certo, consequentemente é positivado. A
partir daí, somente é direito o posto por uma decisão e alterável por outra. É um
direito artificial, fruto da democracia, como forma de redução da complexidade
social; muitas opções eram possíveis, porém se escolheu a “x”.46
45
FERRAZ JR., 2009, p. 293. No enfoque do Direito Processual Civil, é comum nos depararmos com
a assertiva de que as provas servem para verificar se determinados fatos, levados a litígio, são ou
não verdadeiros, para, a partir dessa constatação, dirimir-se a lide, mediante decisão. No entanto,
encontra-se sólido trabalho dogmático, com apelo zetético, na doutrina italiana moderna, da lavra de
Michele Taruffo, em que se assenta o simplismo daquela afirmação; quando, por esse estudo,
constatam-se, logo de plano, choques culturais e técnico-jurídicos na sua valoração, e, sem embargo
disto, o problema da sua valoração tornar-se-á um dos temas mais complexos e intricados da teoria
geral do processo, quando a dificuldade da sua valoração rompe o cenário do Direito, a fim de buscar
guarida em campos não tão ortodoxos como a Psicologia, a Epistemologia e a própria lógica em
concepções não tão usuais para cenário jurídico. Nessa linha, ver TARUFFO, Michele. La prova dei
fatti giuridici. Dott. A. Milano: Giuffrè, 1992. p. 2-3.
46
CAMPILONGO, 2000, p. 19: “Seria possível – a partir do conceito de direito enquanto conjunto de
regras primárias de conduta, de um lado, e regras secundárias de adjudicação, reconhecimento e
câmbio, de outro lado -, por exemplo, identificar a regra da maioria como um mecanismo apto a
mudar o ordenamento jurídico: uma regra secundária de câmbio que aumentaria o dinamismo das
transformações no ordenamento jurídico: uma regra secundária de câmbio que aumentaria o
dinamismo das transformações no ordenamento jurídico. Nas sociedades tradicionais o costume
antigo exigia a unanimidade dos ‘chefes de família’ para as liberações comunais: uma regra própria
das sociedades estáveis. Com o advento do Estado moderno e, posteriormente, com as revoluções
37
Em razão disso, constrói-se o direito inicialmente pelo consenso da
maioria, para, em seguida, o Estado-juiz materializar a norma geral abstrata em
norma concreta específica, tendo como ponto de partida as escolhas já realizadas
pelo sistema político. Essa positividade conota a autodeterminação do direito
(fechamento operacional). Paralelamente, associa-se a ideia de Constituição como a
garantia de diferenciação do sistema jurídico; seria, nesse enfoque, o limite cognitivo
de aprendizagem, quer do Legislativo, quer do Judiciário.47
2.4 Em linhas gerais, a política oferecerá ao direito as suas premissas
decisionais. Isto não significa, de forma alguma, uma relação de meio-fim. Nega-se
veementemente uma supremacia do primeiro sistema sobre o segundo. Por
consequência, ao segundo não restaria somente o mister de fazer cumprir as suas
determinações, conforme inclusive grafou Campilongo.48 Pois bem. Ele parte, sim,
de pontos de partidas concebidos como premissas decisionais, todavia, com base
em seu substrato, o sistema de direito reduzirá a nova complexidade oriunda das
várias interpretações possíveis e das relações entre as normas, inclusive para
opinar/decidir pela validade ou não das normas legais. A complexidade reduzida no
processo legislativo, regra geral, revigora-se na relação processual e reclama nova
decisão, obviamente sem descartar as decisões anteriores (leis) e a força vinculante
de cada espécie legislativa.49
liberais, a nova complexidade passou a exigir técnicas mais ágeis e eficazes, como o voto da
maioria.”.
47
NEVES, 2007, p. 69. A respeito da positividade como escolha valorativa, ver DE GIORGI, Raffaele.
Scienza del diritto e legittimazione. Lecce: Pensa Multimedia, 1998b. p. 79. Sobre a positividade como
fruto da evolução social, ver NEVES, 2006, p. 1. Agora, a respeito da positividade em termos de
decibilidade e de alterabilidade, ver NEVES, 2006, p. 79. O Brasil adotou, mediante sua Constituição
Federal, o regime democrático representativo, participativo e pluralista, de forte apelo social. A Magna
Carta, logo no artigo 1º, marca, com nitidez, o caráter meio e não fim da democracia brasileira. Tal
democracia se resume, em apertada síntese, na necessidade de efetivação dos valores de
convivência humana, materializados nos direitos humanos; sempre norteada pelo povo e para o povo,
conforme clássico conceito de Lincoln. Nesse diapasão, trata-se a democracia de um regime político;
por este, teoricamente, tem-se como o conjunto de instituições políticas reguladoras do poder e da
relação entre governo e governado. Cf. BOBBIO, 1985, p. 175 e SILVA, 2006, p. 19.
48
CAMPILONGO, 2002, p. 93. No contexto do moderno constitucionalismo italiano, sobre a relação
entre os poderes, com menção à função deles, ver BIN, Roberto; PITRUZZELLA, Giovanni. Diritto
costituzionale. 2. ed. Torino: G.Giappichelli, 2000. p. 75-80. No tema, para o constitucionalismo
espanhol, ver VILE, Roberto; PITRUZZELLA, Giovanni. Diritto costituzionale. 2. ed. Torino:
G.Giappichelli, 2000. p. 1-108. Nesse contexto, sobre a positividade do Direito, ver NEVES, 2006, p.
80-81, e, especialmente, da diferenciação entre Direito e Política, p. 85-87.
49
O sistema parcial da política forja-se por meio de reiterada comunicação binária do sistema político,
chega, como afirma Luhmann, a ser a autodescrição da política. Por isso, a operação é sempre
38
2.5 Em razão da unidade comunicacional diferenciada dos subsistemas
sociais, pontuada no item anterior, o sistema da política aglutina-se, forma-se, ganha
unidade, na exata proporção da reiteração comunicativa da binariedade:
governo/oposição. Sua operação origina decisões vinculantes à sociedade. Esta é a
função desse sistema: decidir vinculativamente à sociedade – é imprescindível
entender como isso funciona. A grande quantidade de escolhas possíveis fomenta a
complexidade social, a qual, a seu turno, motiva a contingência social. Formado
esse ambiente, necessário se faz reduzir a complexidade mediante escolhas dentro
das tantas possibilidades. E é exatamente esse o jogo democrático: partidos
representando os seus eleitores disputarão ou concordarão a respeito dos valores
morais que se devem transformar em conteúdos legais.
Tudo conduzido sob uma dicotomia comunicativa, o governo e a oposição
são a grande binariedade sistêmica, cada qual, em regra, com os seus interesses
em disputas, os quais, após a votação, sairão transformados em leis, segundo a
vitória política identificada na votação. O âmbito de cognição é amplo, notadamente
devido às altíssimas taxas de complexidade e de contingência sociais, que será
reduzido com a decisão. A partir da aprovação legislativa de determinado projeto de
lei, seu conteúdo vira lei, por conseguinte, ingressa na sociedade com força
vinculante. Por essa razão, o sistema do direito já parte de um nível menor de
complexidade; parte das normas já postas, positivadas, para desta forma aplicá-las
ao caso concreto, com nova redução de complexidade, num ato de pura
hermenêutica, que se misturarão num ato de interpretação comunicativa: fatos,
normas e princípios, consoante relatado no item 3 deste capítulo.
2.6 Nessa linha sistêmica de visualizar a sociedade é relevante uma
aproximação do poder a fim de contextualizar que os sistemas parciais do direito e
do poder podem ser observados como meios de comunicação simbolicamente
generalizados. Ambos os sistemas se servem do Estado Democrático de Direito
conduzida pelo próprio sistema parcial da política. Nesse sentido, ao contrário do que se aparenta, a
administração pública não se trata de um subsistema parcial autônomo. Toda a estrutura vinculada à
administração é oriunda, ramificada, do frisado sistema parcial. A respeito, ver MEDEIROS, Morton
Luiz Faria de. A missão política do Supremo Tribunal Federal: análise de sua importância como corte
constitucional para o controle do poder no Brasil. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, 2006. p. 17 e NEVES, 2006, p. 87.
39
para permitir uma comunicação ininterrupta, constante entre eles, no entanto, com
limites cognitivos torneados também pela referida forma de Estado. Nesse interagir,
comunicam-se e talvez por isso mesmo esse processo reclame ser regulado, sob
pena de insurgir a corrupção sistêmica, a qual levaria ao falecimento da unidade dos
sistemas em questão.
Na dicção de Marcelo Neves, esse processo se configura como um
cruzamento entre o poder e o direito sob a égide da reciprocidade comunicativa
controlada, a resultar numa necessária estruturação, com forte seletividade da
hipercomplexidade. Materializa-se a comunicação nos subsistemas acima referidos.
A precitada separação, ao mesmo tempo que limita o abuso, fortifica o uso pela
linguagem codificada, com a outorga de subsídio à realização da respectiva função
ao responder a complexidade por meio de comunicação adequada.50
3 COMPLEXIDADE E CONTINGÊNCIA SOCIAL NO PROCESSO DECISÓRIO, NO
CONTEXTO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
3.1 A complexidade fomenta a contingência, tanto no plano estritamente
social quanto no prisma jurídico. À medida que aumentam as hipóteses de escolhas,
muitos são os resultados possíveis. Hoje, escolhe-se a opção 1. Amanhã, opta-se
pela alternativa 2. Ambas igualmente corretas. Essa característica é típica das
sociedades modernas, o que resulta na necessidade de uma estrutura social
igualmente complexa. Trata-se de uma via de mão dupla: uma sociedade
hipercomplexa como a atual reclama uma estrutura adequada para solvê-la. Em
contrapartida, a estrutura da sociedade constituída em face das necessidades da
complexidade precisará deste mesmo emaranhado para a evolução estrutural, visto
50
NEVES, 2006, p. 91-92, 103, 105-106. Para um conceito de meio, simbolicamente generalizado,
sob o viés sistêmico, ver LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria della società. 11. ed.
Milano: Franco Angeli, 2003. p. 105-117. Sobre as relações entre Política e Direito, ver
CAMPILONGO, 2002, p. 24-25.
40
que a constante provocação por novas opções faz com que o sistema social parcial
emita novas comunicações com o condão de atender aos novos anseios.51
3.2 Postas essas considerações, verifica-se que o direito enfrentará
situações novas e em cenários sociais completamente diversos, com desafios
difíceis, para não dizer: outrora inimagináveis, de tal modo que cada vez mais, dia
após dia, a advertência assentada por Norberto Bobbio torna-se mais atual: “[...]
uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais
extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes
uma proteção efetiva. [...]”. Acresce-se: “[...] à medida que as pretensões aumentam,
a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil.”.52
Com efeito, ao direito restará a tarefa de elevar a sua carga de abstração
pela construção de uma elasticidade conceitual-interpretativa, a fim de abarcar
hipóteses completamente heterogêneas via reiteradas decisões, positivando-o a
cada escolha.53 Esse ato de novas escolhas também será feito pelo particular,
dentro da sua margem de poder, outorgada previamente pelo próprio sistema parcial
em questão. Apesar disso, sempre que houver dissenso entre os jurisdicionados,
quer pela prática de ilícito, quer pela discordância interpretativa do pactuado
contratualmente, restará ao Estado-juiz o escopo de decidir o que é ou não direito.
3.3 Além do mais, cotidianamente, as decisões estatais se deparam com
o princípio da separação dos poderes, cuja apuração da sua dimensão faz-se
imprescindível, até porque, sob o viés histórico, nota-se que a sua implementação
muito se cunhou pelo esforço teórico do constitucionalismo liberal, forjado por uma
das possíveis exegeses da filosofia política de Montesquieu e com a irrenunciável
(leia-se também importantíssima) atuação política da burguesia.
51
LUHMANN, 1983a, p. 15; NEVES, 2006, p. 15-16. Sobre a estrutura como redutora da
complexidade, ver FEBBRAJO, 1975, p. 46-47.
52
BOBBIO, 1997, p. 63. No original: “Scendendo infine dal piano ideale a quello reale, altro é parlare
di diritti dell´uomo, di diritti sempre nuovi e sempre piú estesi, e giustificarli com argomenti persuasivi,
altro è assicurare loro uma protezione effetiva. A propósito sara bene fare ancora questa
observazione: via via che le pretese aumentano, la loro soddisfazione diventa sempre piú difficile.”.
53
LUHMANN, 1983a, p. 15. No viés da concretude das normas constitucionais, conferir NEVES,
2007, p. 83-86.
41
Objetivou-se que um poder balanceasse o outro, num nítido equilíbrio, em
que cada qual tivesse a sua função e acabasse naturalmente limitando o exercício
do outro e sucessivamente. Então, um coibiria o outro, naturalmente. Uma
engrenagem pensada justamente com um só intento: proteger os interesses liberais
do abuso do poder, mediante a divisão do próprio poder e, sobretudo, pelo constante
choque do exercício de poderes entre si. 54
3.4 Ao crivo dessa abordagem, os tribunais estão localizados no centro do
sistema social do direito, enquanto a legislação e os contratos, ilustrativamente ora
elencados, estão na periferia. Sem embargo disso, todos fazem parte do sistema
parcial do direito, como já frisado, conhecido igualmente como sistema
funcionalmente diferenciado, que possui função específica a atuar no sistema social
global. E o seu centro de união, a sua identificação, é exatamente a sua
comunicação diferenciada, a materializar-se na sua binariedade sistêmica
(lícito/ilícito). A diferenciação comunicativa adquire papel-chave: sem ela não há
subsistemas.
3.5 Com o espeque de criar um artefato capaz de auxiliar no bloqueio de
eventual desdiferenciação, historicamente, pensou-se na separação dos poderes
como
instrumento
de
fortalecimento
da
diferenciação
comunicativa,
consequentemente de inibição do abuso de poder, a qual se configura, à vista do
ideário sistêmico, como desdiferenciação da comunicação. Aliás, para Luhmann, a
diferenciação representa o próprio Estado Democrático de Direito porque garantiria a
operação autônoma dos sistemas parciais em comento (política e direito) e não da
própria Administração Pública.55
Nesse mesmo sentido teórico, o Estado tem sido gradativamente alterado
conforme a própria complexidade social. O Estado constitucional é fruto da
diferenciação do sistema político como reação interna, diante da hipercomplexidade,
54
BIN; PITRUZZELLA, 2000, p. 75-80. Ainda, no atual cenário teórico italiano, a respeito do modelo
constitucional do Estado Liberal, ver VIGNUDELLI, Aljs. Diritto costituzionale. Prolegòmeni Princìpi
Dinamiche.Torino: G. Giappichelli, 1999. p. 40-41. No Brasil, indica-se BONAVIDES, 2004, p. 63-88.
Para um conceito de complexidade e de contingência, ver FEBBRAJO, 1975, p. 43, 47-49.
55
NEVES, 2007, p. 80-83; LIMA, Fernando Rister de Souza. Sociologia do direito. O direito e o
processo à luz da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Curitiba: Juruá, 2009b. p. 61-67; NEVES,
2006, p. 85, 89- 91.
42
como forma de uma ordem política. Esse Estado utiliza o direito, por meio da sua
positivação, como autolimitação do abuso do poder. A separação dos poderes surgiu
mesmo como limitador da força física do poder.56
No tema, cita-se o trecho escrito em italiano pelo próprio Luhmann: “Con
lo Stato costituzionale si era reagito alla differenziazio ne del sistema político. Come
differenziazione intera, però, era prevista una ‘divisione dei potere’ degli organi statali
con la funzione di limitare l´uso della forza física.[...].”.57 Diante disso, a separação de
poderes é o resultado comunicativo do processo reflexivo do sistema político,
provocado pela irritação do mencionado sistema pelo abuso do poder, sobretudo o
acontecido no Estado Absoluto, como fruto da positividade jurídica.58
3.6 O centro da evolução social é fomentado pela própria sociedade
mediante a sua complexidade. Na exata proporção da elevação da complexidade, os
problemas vão surgindo e, com eles, novas operações sociais são inerentes ao
próprio ambiente. Como frisa Luhmann, é uma relação dúplice: resolvem-se os
problemas via novas comunicações e, paralelamente, surgem novos problemas
inerentes a essa mesma comunicação, o que impulsiona a diferenciação
comunicacional. Tudo isso ocorre em razão da complexidade social. Desse
processo, surge a evolução, que não significa obrigatoriamente uma coisa boa, mas
tão só que há novo sentido dado à comunicação, ao menos se comparada à
anterior.59
3.7 Transportada essa perspectiva de análise para o direito, tem-se que
na idêntica proporção da complexidade interna ao sistema vinda do externo, o
subsistema em questão responderá com uma emissão comunicacional, isto é,
processa-se a nova comunicação, que irritou o sistema, transformando-a em
comunicação diferenciada com base no binário: lícito/ilícito, num processo operativo
a resultar na própria positivação do direito. Por isso tudo, a positivação do direito,
56
LUHMANN, 2007a, p. 18-19.
LUHMANN, 2007a, p. 19.
58
Da mesma forma, pode-se dizer, em relação aos direitos humanos e fundamentais, LUHMANN,
2007a, p. 32; NEVES, 2010, p. 118-119: “Os princípios constitucionais não podem ser concebidos
sem o fenômeno da positivação do direito na sociedade moderna. Isso significa que eles só surgem e
têm significado prático quando ocorre a diferenciação funcional como sistema social.”.
59
FEBBRAJO, 1975, p. 92.
57
43
para Luhmann, é uma conquista evolutiva provocada pela elevação da
complexidade, é fruto de um processo interno de reflexidade do sistema do direito,
rotulado de reflexividade da normatização, vista mesmo como mecanismo reflexivo
ideológico, uma vez que reclama valorar para depois selecionar.60
Essa reflexividade, obviamente interna ao sistema parcial do direito,
torna-se um caso particular quando diferencia, via comunicação, norma que servirá
à formação de outras normas, disposta na Constituição Federal. Segundo Luhmann,
neste caso, trata-se de uma padronização.61 Essa reflexividade voltada ao princípio
da separação dos poderes, mesmo que seja enfrentada incidentalmente no
julgamento do mérito do litígio, pode ser considerada como padronização nesse
mesmo espírito apregoado pelo mencionado autor, quiçá quando praticada pela
Suprema Corte.
3.8 Como fruto desse processo, o enunciado normativo, ao dar vida ao
texto legal, torna-se um ato de pura interpretação, cujo desenrolar pressupõe
circularidade comunicativa. Seu resultado é incerto, possíveis conjecturas sobre a
significação são meras expectativas, não obstante sempre estejam fixadas dentro da
binariedade do respectivo código. Mesmo com tal complexidade, a concretização é
imprescindível, uma vez que a ambiguidade/vagueza dos textos legais e a própria
necessidade de levar a cabo os programas teleológicos inseridos no direito
reclamam exegese da norma.
Em razão de que o julgamento, ao aplicar a norma ao caso concreto, é o
responsável por proclamar o sentido da norma, a gerar o já citado enunciado
normativo, chegou-se ao cúmulo de rotular o magistrado como legislador. Para esta
tese, o que se destaca é a constante dicotomia existente entre o legislador e o
julgador. Há entre ambos uma dupla contingência (ou contingência social), na qual
se encontra ego e alter, num incessante jogo comunicativo, a resultar numa
60
FEBBRAJO, 1975, p. 95, 97, 99-100; NEVES, 2007, p. 132: “Pode-se, de acordo com o modelo
sistêmico teórico, formular de maneira mais rigorosa: reflexividade como mecanismo no interior de um
sistema autopoiético implica que o processo referente e o processo referido são estruturados pelo
mesmo código binário e que, em conexão com isso, critérios e programas do primeiro reaparecem em
parte no segundo. Por conseguinte, não é suficiente, por exemplo, indicar a normatização da
normatização, pois a normatização religiosa ou moral da normatização jurídica, como também a
referência normativa de um padrão de ‘direito natural’ à emissão de norma jurídico-positiva não
representam, nesse sentido estrito, nenhuma reflexividade da produção normativa.”.
61
FEBBRAJO, 1975, p. 100-101.
44
incerteza quanto à compreensão da comunicação. A cognição de “alter” pode não
coincidir com a intenção pretendida. Sem embargo disso, o resultado sempre deverá
conotar um sentido implícito “alter quis dizer isso”.62
Durante esse processo interpretativo, a complexidade e a contingência
têm papel de destaque pelo dito linhas atrás, especialmente na exegese dos
princípios. Nele, o jogo comunicativo toma níveis mais elevados, inclusive chega às
construções comunicativas do Estado Moderno completamente mutáveis, em cujo
desenvolvimento sucede uma constante tensão entre programas normativos, valores
morais e outros tantos critérios que, no momento decisório, influenciam o seu
resultado.
Desse modo, a busca do sentido da norma constitucional pode alcançar
altíssimos índices de contingência, a influenciar na incerteza social a respeito dos
enunciados normativo-constitucionais. Obviamente, essa hermenêutica construtivista
não pode resultar em choque ou negação do texto legal interpretado, nem fazê-lo
como um sistema unitário do direito, haja vista que a sua aplicação deve ser feita
levando em consideração as demais normas, a constitucional especialmente, tudo
propriamente num sistema harmônico e coeso, até porque sistema sem coesão e
sem harmonia não é um sistema.63
3.9 Ao arauto desta pesquisa é precisa a construção conceitual sistêmica
a respeito das observações de primeira e segunda ordem. Por ela, tem-se que, no
primeiro caso, o processo de observação é feito pelo próprio sistema, propriamente
num processo implícito, em que os órgãos burocráticos estatais ligados à
Administração Pública rotineiramente aplicam as leis no controle da iniciativa
privada, como aduz Marcelo Neves. Dessa perspectiva operacional, exemplo típico é
62
NEVES, 2010, p. 19-22, 41, 95-96, 98, 100-101. Luhmann absorve da Teoria de Talcott Parsons a
idéia de dupla contingência. A atribuição de sentido, quer nos sistemas psíquicos, quer nos sistemas
sociais, sempre começará pela elevada complexidade, a fluir também na elevada contingência, até a
seletividade, com a diferenciação sistêmica, a resultar na própria formação dos sistemas. Sobre a
dupla contingência (doppelte Kontingenz), no cenário italiano, ver CORSI, Giancarlo; ESPOSITO,
Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann. Tradução Miguel
Romero Pérez y Carlos Villalobos. México: Universidad Ibero Americana, 1996. p. 67-68; no Brasil,
ver LIMA, 2012a, p. 4.
63
NEVES, 2010, p. 41, 95-96, 98, 100-101. Especialmente sobre a unidade do Direito, ver LIMA,
2012a, p. 29-30. BOBBIO, Norberto. Teoria dell´ordinamento giuridico. Turino: G. Giappichelli
Editore,1960. p. 69, 75. Por conseguinte, pode-se afirmar ser um pleonasmo a assertiva: sistema
harmônico e coeso.
45
o caso da fiscalização tributária: o agente tributário não questiona a validade da
norma; ao contrário disso, somente a aplica. Por outro lado, na observação de
segunda ordem, o aplicador quase que vê o processo aplicativo de cima para baixo,
num voo panorâmico – dito por outro vernáculo –, enfrentando questões como
validade, sentido e o seu próprio cumprimento. Nessa forma, torna-se cognoscível o
debate em torno dos princípios e mormente da interpretação das regras à luz deles,
o que propiciará uma contingência hermenêutica. Por esse jogo comunicativo,
fulgura-se o cunho reflexivo dos princípios, notadamente na formação dos
enunciados normativos, a resultar num ato de positividade materializada na
diferenciação funcional.
3.10 Ao aplicar esse pensamento aos princípios constitucionais, o
intérprete se depara com um índice de profundidade reflexiva extremamente
elevado, em efetivas estruturas de reflexividade, nas quais se constrói a observação
de segunda ordem, cuja consequência lógica é a hermenêutica das regras em
circularidade, as quais são, por vezes, interpretadas ampliativamente, num nítido
balizamento de conteúdo como admoesta Neves. Este autor ainda adverte para o
perigo dos extremos da reflexividade principiológica, em razão de que, se é verdade
que regras rígidas demais podem chocar-se com uma sociedade complexa e
extremamente dinâmica, não é menos verdade que o excesso pode diminuir, e até
eliminar, a consistência teórica do direito, dando espaço à dominação de valores
radicais com origem burguesa, religiosa ou de quaisquer grupos moralistas
extremos.64
3.11 Não é de estranhar que essa artificialidade, retrocitada, garanta
espaço comunicativo para que existam decisões em sentido contrário emitidas por
outros representantes do Estado-juiz, nem, inclusive, que no futuro a mesma
autoridade reinterprete a regra antes enfrentada à luz do mesmo princípio, com
64
NEVES, 2010, p. 105-108, 110, 112, 118-119, 122, 134, 136-139, 154. Ressalta-se, que, dentro do
mundo luhmanniano, a observação é, em verdade, uma operação, em que se usa uma distinção para
indicar um lado e o outro lado dessa mesma distinção, com intuito de mostrar o outro lado. A base
disso tudo foi extraída de George Spencer Brown, para quem a base de toda construção é a
distinção. Sobre a observação (Beobachtung), na doutrina italiana, ver CORSI; ESPOSITO;
BARALDI, 1996, p. 117-121.
46
resultado diverso do primeiro caso julgado, em nítida materialização da dupla
contingência. É claro que a instabilidade em casos elevados pode gerar a
insegurança social e mesmo o desprestígio do direito diante da sociedade. Esse é o
risco do direito. Não há como se pensar num formato de sistema jurídico que
garanta a resolução das constantes demandas sociais, cada vez mais contingentes,
sem outorgar ao hermeneuta, in casu ao magistrado, poderes de reflexividade
outorgados propriamente pelos princípios.
Com a lucidez dessa alta artificialidade, positivaram-se os direitos
fundamentais como garantia de uma possível desdiferenciação do direito face às
possíveis interpretações pelo intérprete, a priorizar, por exemplo, valores morais em
desfavor de regras. Esta atitude pode desencadear o fortalecimento dos regimes
autoritários, de forte apelo ditatorial, de modo que a funcionalidade sistêmica seja
prejudicada quando direitos subjetivos são deixados de lado como a liberdade, ou
mesmo os direitos inerentes à personalidade, em favor de valores momentâneos,
ditados pelo novo governo, possivelmente militar de origem golpista, como a história
recente do Brasil mostra com clareza.65
3.12 À vista do manancial teórico sistêmico, o legislador seria “alter” e o
juiz estaria no lugar de “ego”. No caso da tese, ter-se-ia a Assembleia Constituinte e
a Corte Suprema, cada qual ligado comunicativamente com o seu subsistema
parcial de origem, respectivamente o político e o direito. Nestes termos, a
interpretação de uma Constituição oriunda de um Estado Democrático de Direito
reclamaria um choque harmônico entre princípios e regras, constante, incessante,
somente chegando ao fim na decisão final, em que se denota a tomada de lado, a
resultar na circularidade da relação entre normas e princípios.
Antes disso, no entanto, a Constituição Federal, como acoplamento
estrutural entre os sistemas jurídico e político, propiciará uma forte e ininterrupta
troca comunicativa entre si, em que um sistema influenciará o outro na tomada da
decisão. No caso do direito especificamente, encontra-se no processo comunicativo
judicial, inicialmente, uma argumentação formal atrelada às regras, para depois
65
NEVES, 2010, p. 144-145, 147-156. A ideia da reflexividade sistêmica controlada está em sintonia
com a autopoiese. Ver NEVES, 2006, p. 64-65.
47
adequá-la aos valores sociais sobrepesada com a retórica substantiva dos
princípios, como enfatiza Marcelo Neves em recente tese de titularidade, defendida
na Universidade de Brasília.66
3.13 O ato de tentativa de negação da dupla contingência por parte das
Cortes Constitucionais não se trata de negativa do valor axiomático da norma
constitucional. O inverso disso, o texto oriundo da interpretação é produto também
do texto constitucional. Por isso mesmo, fala-se em “produção de textos com base
em textos”. Trata-se de um processo circular, no qual aos ministros do STF, diante
do caso concreto, em que se põem pelas partes uma tese e uma antítese, cabe-lhes
emitir a síntese cujo enunciado normativo é fruto dessa circularidade, visualizada
pelo Estado-juiz inicialmente em face de determinada realidade fática descrita nas
peças processuais, para, em seguida, casá-la com um discurso formal, quer dizer,
aplicar as regras do direito àquela situação e, ao final, mesclar isso tudo com uma
retórica substantiva, de ordem principiológica – note-se que os princípios aqui
entram como tempero final, com o intuito de amoldar as arestas, e não vice-versa.67
3.14 Convém, ainda, trazer à baila o raciocínio anteriormente travado,
com ênfase na sua sobreposição ao princípio da separação dos poderes, mormente
quando é usado como retórica para a não efetivação do direito à saúde – objeto
central deste estudo. Essa forma de pensamento não poderia escusar a omissão
judicial, notadamente diante da violação da função do sistema parcial do direito, no
qual se tem como escopo central a garantia das expectativas normativas ao longo
do tempo, o que nada mais é que a assertiva: o direito propiciará que a sociedade
continue a acreditar na implementação do conteúdo das leis. E o direito tem feito,
em certa medida, o seu papel. A prova cabal disso é que a cada ano o número de
processos judiciais aumenta a passos largos. Em verdade, se não se confiasse no
direito, o crescimento do número de ações não seria em tais proporções.
66
NEVES, 2010, p. 156, 161, 172. Pontual a citação deste trecho da página 156: “[...] Na relação
entre alter (o legislador) e ego (o tribunal constitucional), cada um dos lados parte da linguagem e dos
critérios de cada um dos sistemas a que estão primariamente vinculados, a política e o direito. [...]”.
67
NEVES, 2010, p. 180- 181, 195. Oportuna a transcrição de NEVES, 2010, p. 181: “[...] A justiça diz
respeito ao processamento do paradoxo da decisão que seja, ao mesmo tempo, juridicamente
consistente e socialmente adequado, envolvendo simultaneamente o abstrato e o concreto, o geral e
o individual.”.
48
O direito não conseguirá, entretanto, solver todos os problemas sociais,
com a eliminação dos dissabores de uma vida complexa, sem um poder público
ainda efetivo e completamente tomado pela corrupção sistêmica. Por essa razão,
quando o julgador se depara com a separação dos poderes, no ato de julgar, como
limitador da concretização do direito à saúde, é preciso servir-se da sociologia
luhmanniana para lembrar primeiramente que os tribunais são os responsáveis pelo
fechamento operacional do direito em face da desilusão: incumbidos de dizer se a
conduta é conforme ou disforme ao direito. No tema, importa dizer se o ato em
questão de negação do direito à saúde é legal ou ilegal; dizer se há embasamento
normativo a legitimar a respectiva negação ao jurisdicionado do seu direito subjetivo
à saúde.
3.15 Ademais, deve o aplicador questionar se a sua perspectiva
hermenêutica sobre a separação dos poderes e a respeito da legalidade ou não da
conduta estatal de negativa da prestação à saúde, atende a função do sistema do
direito de garantir as expectativas normativas ao longo do tempo. Por decorrência
natural do exercício jurisdicional, no que faz pertinência com o suprarreferido
princípio, é salutar a preocupação em não incorrer no equívoco da politização do
direito, a qual tão só ocorrerá com a sua hipertrofia em favor da política, a se
materializar na negação do código binário do direito em favor da binariedade da
política, no citado exemplo.
Pois bem, um sistema submete o outro à sua decisão, portanto, a
negação de tutela jurisdicional, quando da não prestação estatal do direito à saúde,
igualmente pode incorrer a temida politização lembrada há pouco. Cada sistema tem
seu papel bem definido e para aferir com segurança até onde um sistema pode ir ou
não, impende mapear a natureza da respectiva comunicação, função, limite e sua
relação com os outros sistemas parciais em contato, como no caso do princípio da
separação dos poderes: política (Administração Pública).68
68
NEVES, 2010, p. 195, 205-207. Eis o seguinte trecho do autor, p. 195: “[...] Quando se fala de
judicialização da política e politização do direito pretende-se referir a um excesso, uma hipertrofia, em
detrimento, respectivamente, do Estado de Direito e da democracia. Nesses termos, a autonomia e o
funcionamento de ambos os sistemas ficam prejudicados. O jogo político entre governo e oposição,
assim como a relação circular de legitimação entre povo, público, administração (em sentido amplo) e
política, é afetado por excesso de intervenções judiciais (politização do direito). O judiciário fica
49
3.16 Como intróito, é bom relembrar que já tivemos a oportunidade, em
estudo escorado em Luhmann, de constatar que modernamente a unidade dos
sistemas sociais parciais, como o direito, dá-se em razão da unidade comunicativa,
reiterada sob uma só binariedade. Dito por outra forma, a constante emissão do
código lícito/ilícito trará à tona o sistema do direito: um sistema parcial inserido no
sistema social, a sociedade. Contudo, a quebra do código gera a sua corrupção,
cuja reiteração o leva à ruptura da unidade sistêmica.
Em outro sentido, também é certo que os sistemas são funcionalmente
diferenciados, ou seja, exercem cada qual um mister dentro da sociedade. Ao
sistema do direito resta a prestigiosa missão de manter as expectativas normativas
ao longo tempo. Por esse ideário, as comunicações sistêmicas devem ser emitidas,
obviamente sob o respectivo código, com a pretensão de lutar pela credibilidade
social
das
normas.
Com
a
produção
legislativa,
valores
morais
foram
institucionalizados, os quais se tornaram normas jurídicas e deste ponto em diante
sacerdócio do sistema do direito, a generalização congruente das expectativas
normativas.69
3.17 As fronteiras limítrofes do direito são exatamente o código do
sistema:
lícito/ilícito.
Elas
são
materializadas
na
dicotomia
luhmanniana
sistema/ambiente. Por este plexo, para ser considerada comunicação do sistema do
direito, há a irrenunciável necessidade de a comunicação ser diferenciada pelo
código, sob pena de simplesmente não ser comunicação jurídica. Ora, do enfoque
da decisão judicial, nota-se que esse processo interno da binariedade vem ao
encontro do verbalizado nesta tese, neste mesmo capítulo, nos itens 3.8, 3.9 e 3.16,
de cujo conteúdo se pode vislumbrar uma forma de construção de juízo decisional, a
fruir da decisão que estará sob a batuta da binariedade sistêmica.
Nesse mesmo diapasão, a relação com os outros sistemas parciais é
comunicativa, cada qual com sua respectiva função e forma comunicativa
diferenciada. É uma relação de igualdade, todavia, de funções bem definidas, e não
se iludam que, submerso nesse ambiente social hipercomplexo e contingente, o
direcionado muito estreitamente a fornecer respostas politicamente legitimadoras, vinculando-se
fortemente à diferença entre governo e oposição.”.
69
LIMA, 2012a, p. 102; NEVES, 2006, p. 10, 59, 60.
50
Poder Judiciário, no afã de solver os litígios, não venha a dar nova roupagem ao
princípio da separação dos poderes, uma vez que o próprio STF já assentou que
não se trata de um princípio provindo do direito natural, imutável, e sim como
definido na Constituição, por isso mesmo, passível de interpretação.70
3.18 No Brasil, hodiernamente, deparamo-nos com uma panaceia
principiológica, quer no plano teórico, quer na jurisprudência, muito em razão da
hipercomplexidade social e também da falta de consistência teórica da cultura
jurídica brasileira. Há um hábito de uso dos princípios, o qual, acrescido à grande
quantidade de opções possíveis do processo de interpretação normativo, leva-nos a
concordar com a conclusão de Neves de que se reclama de um julgador que saiba
lidar com o choque comunicativo entre regras e princípios no momento da
concretude da norma geral à norma individual. Com isso, repele-se a postura judicial
de apego estremado a ambos, seja às regras, seja aos princípios; o contrário levaria
à inconsistência jurídica e/ou à inadequação social da decisão.
Com o desenvolvimento desde pensamento, fica claro o alerta ao abuso
da ponderação diante do caso concreto, em cujo excesso escora-se parte de
respeitável doutrina, quer a constitucional, quer a filosófica, como uma salvação do
direito quando mais parece o seu fim, isso porque deixaria nas mãos do aplicador
quase que “um cheque em branco”, eliminando a consistência jurídica da decisão e
gradativamente a sua legitimidade política.
Noutro sentido, encontra-se melhor solução: o julgador deve partir da
leitura atenta dos fatos, enfileirando-se nos detalhes com mais vagar, depois ir ao
encontro do direito posto, das normas infraconstitucionais e constitucionais, com
destaque para regras positivadas que regulem diretamente, ou por analogia, a
situação a ser dirimida. Então, somente aqui se procuraria o choque comunicativo
com os princípios, aplicáveis ao caso, com o mote de serem guias interpretativos da
70
Para uma pontual constatação da evolução social das sociedades arcaicas às modernas, com
menção à unidade comunicacional, ver NEVES, 2006, p. 1-25, sobretudo, p. 23- 24. Ver também
LIMA, 2009b, p. 35-45 e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI 712/PA. Relator Ministro Eros
Roberto Grau. Brasília, DF. Julgado em 25.10.2007. Publicado em 31.10.2008. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=558553>. Acesso em: 16 out.
2013: “41. Não há que se falar em agressão à ‘separação dos poderes’, mesmo porque é a
Constituição que institui o mandado de injunção e não existe uma assim chamada ‘separação dos
poderes’ provinda do direito natural. Ela existe, na Constituição do Brasil, tal como nela definida.
Nada mais. [...].”. Passível completamente de exegese, pode-se deste enunciado inferir.
51
realidade social – mesmo como um instrumento de adequação social com limites
objetivos (as regras). Porém, os princípios nunca podem ser utilizados para desafiar
a função sistêmica, isto é, garantir as expectativas normativas ao longo do tempo;
sob outros olhos, eles serão guias, mas nunca poderão ser usados para ensejar a
não concretude das normas sob o viés de que interessa à tese.71
3.19 O poder é um meio de comunicação simbolicamente generalizado.
De fato, acaba por transmitir complexidade reduzida, da qual se pode deduzir um
caminho a ser seguido pelas próximas seleções. Dessa maneira, poder é
comunicação já com a complexidade reduzida, da qual se pode abstrair que as
próximas comunicações da sociedade serão influenciadas por ela. Cunha-se
exemplificar: “alter” (detentor do poder) entre as possibilidades cabíveis ao caso,
adere-se a uma delas; sua preferência influenciará o “ego” (submisso ao poder) não
só naquele caso específico, como também pode impulsionar novas decisões.
Estriba-se, por estas máximas, a relevância da compreensão dessa mensagem para
a continuidade da cadeia comunicativa. Dessa situação de interação estruturada,
aventa-se um símbolo, no qual se apoia uma unidade comunicativa, como
expressão de unidade catalisada, com base numa generalização simbólica
potencializada, visível no tradicional esquema binário luhmanniano, espaço onde se
organiza a interação dos valores com as operações binárias.72
3.20 Consoante se disse, o poder opera com seu código comunicativo.
Apesar disso, no Estado Democrático de Direito, o poder reclama de legitimidade
quando exercido em desfavor da legalidade. Seu código binário une-se ao
binarismo: legal/ilegal. Em razão dessa submissão à lei, garante-se a participação
71
NEVES, 2010, p. 219-222, 224-225. A tese é desenvolvida com base, inicialmente, numa metáfora
mitológica entre o conflito de Hidra e Hércules, em que se elegeu o juiz Iolau para resolver a questão,
eis um trecho da conclusão que ementa a tese, conforme NEVES, 2010, p. 219: “[...] o Estado
constitucional exige um juiz apto para enfrentar com sucesso, em cada caso, a relação paradoxal
entre regras e princípios jurídico-constitucionais: nem um juiz-regra (hercúleo) nem um juiz-princípio
(hidraforme). Na linguagem da teoria dos sistemas, poderia dizer-se: um juiz capaz de
desparadoxizar o enlace circular entre princípios e regras nos diversos casos constitucionais.
Chamarei esse juiz de Iolau.”. Sobre a generalização das expectativas, ver DE GIORGI, 1998b, p.
229-232. Precisamente sobre as expectativas normativas, ver DE GIORGI, 1998b, p. 230, 233-236.
72
LUHMANN, 2005, p. 5, 7, 11, 13, 14-16, 19, 48-49. MANSILLA, Darío Rodíguez. Introducción. In:
LUHMANN, Niklas (Org.). Poder. Traducción Luz Mónica Talbot. Barcelona: Anthropos, 1995. p. XXV.
52
daqueles que não exercem o poder, como também se ordena a cooperação nas
suas diferentes fontes. Acaba-se, assim, por obter um relativo consenso de valor.
Sem embargo disso tudo, muitas vezes, mesmo com seu exercício comunicativo, o
poder falece de efetividade social, o que o impende à dependência de outros fatores,
de tal sorte que a coerção torna-se de grande valia nas situações de
hipercomplexidade. Mais, o poder vinculado à norma jurídica apresenta-se como
técnica de uma democracia a ser implementada sob a moralidade constitucional.
A respeito da Constituição Federal como subsistema do direito, ventila-se
grande expectativa de os seus valores serem concretizados, não obstante as
reiteradas desilusões. Significa dizer: mesmo com o desrespeito aos seus
comandos, cabe ao direito buscar, por meio de comunicações diferenciadas, a
manutenção das expectativas normativas, mesmo que contrafactuais. Isso porque,
esse é o grande mote do sistema parcial do direito, quiçá quando se depara com a
norma das normas, a qual é a responsável pelo fechamento operacional, talhada
pela positividade moderna. Ainda assim, e talvez por isso mesmo, o fim primordial do
direito é almejar a mantença das expectativas, as quais, quando frustradas
provocam a reiteração comunicativa de decisões, pois que, desse ponto em diante,
o direito moderno é positivo, em cuja semântica se depara com o direito introduzido
por uma decisão e alterado por outra, propriamente num processo dinâmico e
altamente contingente.73
3.21 Esse processo circular dos valores inseridos pela Constituição no
direito, acrescido à rotineira troca de comunicação entre os tribunais, notadamente o
Constitucional, e as demais comunicações sociais, fulgura-se uma perspectiva da
autopoiese, em que as comunicações diferenciadas reproduzem a si mesmas e às
suas estruturas, num nítido espeque autopoiético, alimentado, nesse caso, pelas
normas constitucionais e pela sua interpretação na sua aplicação a uma situação
concreta, como por exemplo, no caso do princípio da separação dos poderes, cuja
73
LUHMANN, 2005, p. 69-70, 73, 114; NEVES, 2007, p. 67 69-71; NEVES, 2006, p. 87-95, 99-100,
192-193, 202, notadamente, p. 89: “No modelo teórico-sistêmico, o Estado de Direito pode ser
definido, em princípio, como relevância da distinção entre lícito e ilícito para o sistema político. [...]“ r
p. 90: “[...] Se, de um lado, o direito é posto basicamente por decisões políticas, de outro, a diferença
entre lícito e ilícito passa a ser relevante para os órgãos políticos supremos, inclusive para os
procedimentos eleitorais de sua escolha. [...].” e p. 95: “[...] O Estado de Direito não comporta a noção
de poder arbitrário e, por isso mesmo, está sempre a enfrentar o problema do poder ilícito.”.
53
exegese se pode dar ora em sentido restritivo, ora no âmago da concretude jurídicosocial.
De outra sorte, a norma constitucional enfileira-se como o grande limite
cognitivo de aprendizagem da comunicação jurídica, tal qual tudo se submete a ela.
Por isso, as outras normas hão de ser o fruto de sua vontade, interpretadas por
quem de direito. No caso brasileiro, o seu hermeneuta privilegiado é o STF.
Nessa hipótese de Constituição descrita como limite sistêmico, nos
termos assentados por Marcelo Neves, os direitos fundamentais (incluídos os
sociais) são impostos ao sistema em comento, na forma de garantias à
desdiferenciação. A partir da sua positivação, ao sistema político não mais caberia a
opção política de efetivar tais direitos ou não, de forma que a Administração Pública,
como parte de referido sistema, teria o ônus da sua efetivação social.
Nessa linha, quando é levada ao Estado-juiz eventual desilusão normativa
em razão de desprestígio do texto constitucional pela gestão pública, restar-lhe-á a
emissão de comunicação diferenciada, de modo a pretender o restabelecimento
factual das expectativas não realizadas, sobretudo em função do princípio da
separação de poderes. Deste modo, o Estado-juiz afigura-se como limitador do
poder político pela legalidade, bem como responsável pela garantia do exercício do
pluralismo dos poderes e da circularidade procedimental do Estado Democrático de
Direito, no formato alinhavado por Marcelo Neves. Por essas digressões, ecoa o seu
paradoxo: limita e garante ao mesmo tempo o poder.74
74
NEVES, 2007, p. 71-78, 80-2, 105-106, 185-196. Em especial, ver p. 105: “[...] Através dela, o
código do poder é associado ao código jurídico, procedimentos de decisão política são conduzidos
pela via do direito. [...] Envolve, portanto, a realimentação circular entre legislação e jurisdição. [...].”,
p. 106: “[...] Por um lado, a especialização constitucional das funções limita juridicamente o poder,
intensificando-o. Por outro, vincula o direito às decisões políticas, fortificando-lhe a autonomia. [...]”, e
p. 186: “Nesta perspectiva proponho uma releitura do discutível princípio da ‘separação de poderes’
como princípio da pluralidade e circularidade de procedimentos do Estado de Direito.”.
54
PARTE II
DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM DIREITO À
SAÚDE – POR UMA LEITURA PRAGMÁTICA DOS PRECEDENTES
JUDICIAIS
“As linguagens estão no mundo e nós estamos na linguagem [...].”
(Lúcia Santaella)75
4 COLETA DE DADOS EMPÍRICOS
4.1 Dentro da conjectura do trabalho, delineada na parte introdutória da
tese, destacou-se a interdisciplinariedade teórica da pesquisa, com ênfase no
enfoque sistêmico-pragmático. Por esse intuito, tem-se uma tese de não dogmática,
o que, por si só, legitimaria a análise dos acórdãos do STF desprovida de uma
eventual leitura dogmática, uma vez que se pretende identificar a ideologia
dominante nesta Corte, dentro do recorte epistemológico proposto e delimitada na
semântica do princípio da separação dos poderes.
A seu turno, as pesquisas empíricas podem trabalhar, entre outros, com
dois métodos de leitura das decisões, a saber: quantitativo e qualitativo. No primeiro,
por exemplo, usa-se a matemática como vetor central. Foram analisadas dez
decisões: cinco num sentido e o restante disperso em novas posturas. Com isto,
chega-se a um resultado com base no que a maioria decidiu e pronto:
quantitativamente se encontrou uma resposta. No segundo formato, não se levam
em conta como premissa maior os números e sim o conteúdo, a qualidade do teor
grafado nas decisões. Perde-se em uma visão macro, todavia, ganha-se em
qualidade nas observações feitas, por esse diapasão, com mais vagar. Por
conseguinte, cada abordagem tem a sua vantagem e a sua desvantagem: uma vê o
que a outra não vê e vice-versa.
75
Consciente disso, optou-se pela qualitativa,
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 13.
55
contudo sem reduzir a quantidade exageradamente, a fim de não perder, mesmo
que parcialmente, o olhar macro em detrimento absoluto do micro nem incorrer até
mesmo num certo subjetivismo do observador.76
4.2 Por obviedade, quanto ao que se refere acima, a despeito da
desconsideração da retórica do jurista representada pela dogmática, outorga-se a
essa verbalização o sentido de não pretender debater teses jurídicas. À luz disso,
deixa-se de lado a viabilidade ou não da construção jurídico-legal para se concentrar
na sistêmico-pragmática. Por isso mesmo, fecham-se momentaneamente neste
capítulo os olhos à sustentação jurídica, sem, no entanto, deixar de atentar para a
linguagem utilizada nos acórdãos. Muito pelo contrário. O vernáculo utilizado será a
própria matéria-prima a ser observada pela lente desta pesquisa teórico-empírica. 77
Pela leitura detalhada do material empírico, quase que visto com uma
lupa, com especial atenção aos lugares-comuns já demarcados dentro do plano
teórico da Tese “A Constitucionalização Simbólica” de Marcelo Neves –
notadamente no sentido ou não de concretude conferido ao direito à saúde –,
interpretar-se-á, dentro do contexto desenhado pelos acórdãos do STF pesquisados,
a semântica dada pelo STF ao princípio da separação dos poderes.
4.3 Sabe-se da dificuldade de pesquisar nessa mencionada seara
sociológica, seja pela própria carência epistemológica da teoria – aqui convém fazer
um parêntese: se a própria sociologia é uma ciência nova, que se dirá da sociologia
do direito, e exatamente por esse motivo são comuns as confusões de objeto e de
finalidade, como mapeou Georges Gurvitch, apesar de o panorama atual ser mais
otimista do que o apresentado pelo sociólogo em questão –,seja ainda pelo próprio
ceticismo dos operadores e pesquisadores do direito em aceitar que determinados
aspectos da sociedade fogem das suas lentes. Por conta disso, a alteração do
76
CRESWELL, 2010, p. 25-47, sobretudo, p. 26, 35, 37-38, 40. Na Sociologia do Direito, a respeito
de pesquisa qualitativa, ver TREVES, 1996, p. 204-205, 207. GURVITCH, Georges. Elementos de
sociologia jurídica. Tradução Jose M. Cajica Jr. Mexico: Elysan, 1948. p. 16-33, sobretudo p. 12, 16.
77
TREVES, 1996, p. 209-221. GURVITCH, 1948, p. 28-29. Na primeira página citada (28), o autor em
questão relata a proposta epistemológica de Max Weber em que se propõe como mister da
Sociologia a compreensão interpretativa das condutas sociais. No contexto da semiótica, ver
SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. Curso de semiótica geral. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p.
29: “[...] Para Peirce, seu objeto será o que é ou se apresenta no mundo real, sem questionar quais
as condições de possibilidade desse modo de ser.”.
56
“microscópio” (servindo-se desta metáfora) só agregaria ao fenômeno jurídico, com
possíveis contribuições até mesmo nos outros campos de estudo do direito, quer no
plano teórico, quer com a constatação de situações sociais causadas como efeitos
diretos ou colaterais do sistema jurídico, o que poderia ser levado em consideração
na elaboração de projetos de lei, no direcionamento das políticas públicas e na
tomada de decisões administrativas pelos tribunais e, nessa mesma linha, numa
perspectiva menor, a pesquisa sociológica poderia ajudar os magistrados na gestão
dos cartórios e da relativa previsibilidade das consequências sociais decorrentes de
seus posicionamentos.78
4.4 Agora, o trabalho focar-se-á na constatação de uma realidade já posta
no direito positivo, pelo STF, extraída da observação e do recorte para
demonstração da sua verbalização. Por esse prisma, adotando os critérios acima
mencionados, com destaque para a “Teoria da Constitucionalização Simbólica” de
Neves, após o levantamento dos precedentes, nos termos antes externados,
demonstrar-se-á a racionalidade jurídica da Suprema Corte brasileira. A forma de
aproximação do material observado é importante. Daí a sua escolha ser por demais
relevante para o resultado final da coleta de dados, ora concretizada neste capítulo.
Como o material a ser analisado é o vernáculo, para o exame das palavras usadas
num determinado contexto, o instrumento foi a semiótica jurídica. É quase intuitiva,
inclusive, a pertinência do uso da teoria dos signos a fim de extrair sentido do
manancial linguístico dos precedentes analisados, mesmo porque o seu propósito é
justamente o estudo dos signos, o que só é possível de se realizar em pesquisa
empírica, destarte a sua natureza fenomenológica.79
78
GURVITCH, 1948, p. 11-41.
GURVITCH, 1948, p. 29. Aqui, este autor descreve o ideário de Max Weber, em que se defendeu,
para a realização de pesquisa causal, o uso da interpretação dos significados, porém, focada na
compreensão subjetiva dos atores em análise. Ver, ainda, para o uso da Semiótica, no estudo dos
fatos sociais, ARAUJO, 2011, p. 93,95 e SILVEIRA, 2007, p. 21, 26. Nesta última página, o filósofo
semioticista fala das pretensões da Semiótica, das quais se depara exatamente com a análise de
uma inteligência no exercício do pensar. Eis um trecho pontual: “[...]. compreender mesmo que de
maneira totalmente hipotética, como procede uma inteligência em seu ato mesmo de pensar. Quanto,
pois, melhor conseguir detalhar esse ato, melhor alcançará aquilo que pretende conhecer.”. Ver,
ainda, SANTAELLA, 2006, p. 14: “[...] a Semiótica busca divisar e deslindar seu ser da linguagem,
isto é, sua ação de signo. Tão-só e apenas. E isso já é muito.”.
79
57
4.5 Submerso já nesse mundo teórico, identificamos que o direito é objeto
natural por excelência. Ele constrói uma realidade autônoma com base em sua
linguagem, porém, denota-se, por trás disso, todo um processo ético, moral e social
que se vê refletido nos interpretantes, os quais, no caso da tese, são as próprias
decisões analisadas. Desta forma, fica claro que o direito regula, trabalha e
representa relações sociais, com nítidas valorações, ou seja, existem valores
escolhidos pelos intérpretes. Cria-se, sob esse foco, um signo extraído de outro.
Ao partir da Constituição Federal, o Excelso Pretório se depara com um
signo, com toda uma carga valorativa, a qual a Corte usará como ponto de partida,
com o escopo de realizar uma semiose comunicativa, bem à moda de Peirce, num
diálogo de fases do ego, mesmo porque o signo reclama ser traduzido; em razão
disso a expressão não-ser de RotiTurin. Esse processo sempre está permeado por
valores, algumas vezes facilmente identificáveis, outras não. Por outras palavras, a
escolha pressupõe valores sociais, preferências, dos quais se extrairá uma
realidade, vista neste trabalho como racionalidade ou razão de julgamento.80
4.6 A observação das decisões judiciais desperta no observador, em
muitas situações, uma curiosidade pelo caminho escolhido pelo aplicador da norma
abstrata à norma individual. Esse interesse aumenta à medida que o resultado – o
decisum ou a ratio – afasta-se do previamente delineado pela doutrina dogmática. E,
apimenta-se consideravelmente esse anseio se for parte sucumbente na referida
relação julgada.
Ocorre, no entanto, que o julgamento racional pode ser visto como um
quebra-cabeça, em que o magistrado realiza um processo de racionalidade, com o
encaixe mental dos fatos ofertados pelas partes, no direito posto. Porém, a sua
razão fundamental – responsável pela tomada de posições ideológicas dentro do
processo – é ligada umbilicalmente ao seu sentir, num ato mesmo subjetivo. Tal
racionalidade é intitulada, em regra, como convicção. Configura-se como sentimento
íntimo, próximo da intuição, a qual o ordenamento jurídico obriga que seja
demonstrada na decisão, com o nome de convicção racional. Todavia, daquele
80
ARAUJO, 2011, p. 7-9, 15. TURIN, Roti Nielba. Introdução ao estudo das linguagens. [Aulas]. São
Paulo: Annablume, 2007. p. 47-52.
58
momento inicial, quase que responsável pelo resultado final, pouco se afere,
segundo lição de Tercio Sampaio Ferraz Jr.81
5 SEMIÓTICA JURÍDICA
5.1 O direito, entendido como um conjunto sistêmico comunicativo,
permite que os fenômenos jurídicos sejam estudados sob a abordagem semiótica.82
É imperioso ressaltar, outrossim, que ambas as abordagens assumidas nesta tese –
teoria dos sistemas e semiótica jurídica – têm forte fundamentação comunicacional.
Elas solvem o sistema jurídico como comunicação, cada qual, obviamente, com as
suas peculiaridades teóricas, oriundas de sua base fenomenológica.83
Ao presente capítulo, ademais, interessa que a semiótica consiste num
manancial teórico embasado em signos que se relacionam entre si. A semiótica é a
ciência dos signos. Pode-se rotulá-la como ciência, vez que delimita o seu campo de
estudo num dogma propriamente, com estirpe de interpretá-los.84 No caso, o
respectivo objeto de estudo são os signos – signo aqui entendido como tudo aquilo
capaz de transmitir significado, em cujo desenrolar acaba incorrendo na linguagem.
Por esse motivo, a semiótica é a ciência da linguagem, qualquer que seja a sua
natureza (verbal ou não verbal). Na medida em que algo se configura como
linguagem, torna-se um objeto de investigação pelo método semiótico.85
81
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 294300. Num outro contexto, porém, interessante ao mote do parágrafo, Aristóteles, por sua filosofia da
linguagem, aponta que a decisão seria uma decisão da alma e não da linguagem porque só a
primeira (alma) compreenderia a transcendência do discurso, conforme. OLIVEIRA, 2006, p. 30. Para
Edmund Husserl a intuição é o início do conhecimento humano. Para a metafísica ocidental, é a
primeira recepção de um ente singular e real, conforme OLIVEIRA, 2006, p. 40-42.
82
ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Semiótica do direito. Quartier Latin: São Paulo, 2005. p. 17.
83
Para a comunicação como unidade do sistema jurídico à perspectiva luhmanniana, ver LIMA,
2009b, p. 35-61. À óptica da Semiótica, ver ARAUJO, 2011, p. 63.
84
SILVEIRA, 2007, p. 20: “[...]A Semiótica é, com efeito, uma ciência da Forma e nesse sentido o é
da necessidade. Quase, portanto, aqui também quer dizer o que no latim significava, ou seja, a modo
de.”.
85
VOLLI, 2007, p. 13: ”Há algumas décadas usa-se chamar de semiótica a disciplina que se ocupa
dos signos, do sentido e da comunicação.”. SANTAELLA, 2006, p. 7-14, especialmente, p. 12, 14.
SILVEIRA, 2007, p. 18-19.
59
Nessa mesma plêiade, relembra Lucia Santaella86, a origem grega da
expressão semiótica ‘semeion”, propriamente signo. Daí o porquê da expressão
“ciência dos signos”. Estudam-se os fenômenos que possam gerar significado ou
sentido.
Com esse esteio, a semiótica apresenta três dimensões possíveis de
serem perquiridas: a semântica, a sintática e a pragmática.87 Em síntese: a primeira
tem como mote a significação da mensagem. De outro modo, no viés jurídico, o
aspecto sintático pode ser definido como o feixe relacional entre as normas jurídicas,
como observa Clarice von Oertzen de Araujo.88 Cuida-se de estruturas e sua relação
lógica. Por fim, a pragmática observa o comportamento das partes no processo
comunicacional, com enfoque na sua reação diante aos signos. Como os utentes se
comportam frente aos signos, dito de outro modo, é o mister da pragmática.89
Mesmo porque, com a linguagem, o homem talha uma nova realidade com a
atribuição de valores de acordo com um dado momento histórico. Neste condão, as
mutações sociais fazem com que o mesmo vocábulo, já conhecido, assuma nova
semântica.90
5.2 Em emblemático texto, Roman Jakobson aventou a impossibilidade
de ocorrência de uma análise sobre qualquer fato sem o uso da interpretação – no
caso do texto em comento aplicado a uma conferência interdisciplinar. Passa-se à
frente, nesse sentido, uma visão de mundo do fato descrito. Por conseguinte,
86
SANTAELLA, 2006, p. 7: “O nome Semiótica vem da raiz grega semeion, que quer dizer signo.
Semiótica é a ciência dos signos.”, e p. 13: “[...] A Semiótica é a ciência que tem por objeto de
investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de
constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e sentido.”. PIGNATARI,
Décio. Semiótica & literatura. Cotia: Atêlie Editorial, 2004. p. 39: “Para Charles Sander Peirce, a
lógica não era senão um outro nome possível para a Semiótica, a teoria geral dos signos, definida por
ele, de modo mais explícito, como uma doutrina quase-necessária ou formal dos signos.”.
87
Para a tríplice divisão dos estudos semióticos, ver VOLLI, 2007, p. 27; ARAUJO, 2005, p. 163-184.
88
ARAUJO, 2005, p. 25, 167, 175.
89
CASTRO JR., Torquato da Silva. A pragmática das nulidades e a teoria dos atos jurídicos
inexistentes. São Paulo: Noeses, 2009. p. 32; VILANOVA, 2000, p. 11. Para um detalhado estudo da
problematização do conceito de pragmática, ver DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão.
São Leopoldo: Unisinos, 2006. p. 27-53.
90
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p.
247. Por um conceito de pragmática, ver DASCAL, 2006, p. 33: “Resumindo, o que proponho definir
como a tarefa da pragmática é o estudo do uso dos meios lingüísticos (ou outros) por meio dos quais
um falante transmite as suas intenções comunicativas e um ouvinte as reconhece. O objeto da
pragmática, portanto, é o conjunto de dispositivos semióticos direta e especificamente relacionados à
transmissão dos significados do falante. [...]”.
60
insurge o “princípio da complementariedade”, de cujo escopo se infere a relação
entre o instrumento de observação e a coisa observada.91
Ainda, segundo o mencionado linguista, reclama-se observar a linguagem
em toda a sua complexidade, numa dimensão unitária. No entanto, segundo bases
antropológicas, a linguagem e a cultura se implicam mutuamente. A seu turno, a
linguagem é parte da cultura; em verdade, um caso particular dessa subclasse de
signos. É, por assim dizer, parte fundante da cultura, instrumento principal da
comunicação informativa. Nesse contexto teórico, qualquer ato de fala afeta uma
mensagem e seis elementos relacionados entre si: código, emissor, receptor,
mensagem, canal e contexto.92
5.3 Diante do exposto, assenta-se que a relação entre o instrumento de
observação e a coisa observada acaba por complementar a leitura dos signos com a
cultura, numa relação propriamente de complementaridade. A linguagem é
expressão da cultura; faz parte como fundadora da cultura, na verbalização de
Jakobson. Nesse sentido, a linguagem é a expressão simbólica por excelência: os
demais sistemas dela se originam. Por isso mesmo, o direito é linguagem, visto que
é também comunicação social.93
E o direito, como grafou Clarice von Oertzen de Araujo, tem um intento
egoísta porque, via palavras, quer modificar a realidade, num nítido processo de
substituição do real pelo verbalizado. Deste modo, o direito é um código artificial,
com a descrição e a atribuição de valores a condutas determinadas por ele próprio.94
O sistema jurídico forma-se mediante o uso da linguagem; apodera-se do seu
conteúdo para, a partir deste processo, obter subsídio à sua Constituição. No
entanto, a sua positivação é embasada sob o viés técnico; a sua linguagem é
técnica e, com o condão de prescrição de condutas, trabalha no plano do “deverser”.95
91
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. 22. ed. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 15-20.
JAKOBSON, 2001, p. 15-20.
93
JAKOBSON, 2001, p. 15-33.
94
ARAUJO, 2005, p. 17-19.
95
ARAUJO, 2005, p. 18, 20-21.
92
61
6 PRAGMÁTICA JURÍDICA
6.1 No dia a dia do fórum, o discurso jurídico volve-se com as mais
inusitadas decisões. Algumas decisões com exegeses da legislação pouco
compreensíveis; outras, quando a própria base legal do pleito é reconhecida pelo
julgador, nega-se a sua aplicação, justificada num subjetivismo a beirar o abuso de
autoridade. Ao observar o processo de subsunção da norma abstrata pelo Estadojuiz, conclui-se que a prática forense é repleta de decisões sobre o significado das
palavras. Ao julgar, por exemplo, a validade de uma cláusula contratual,
obrigatoriamente, precisar-se-á indagar ou entender automaticamente o que é um
contrato.
Esse processo, que é feito no contexto pragmático, com a efetivação de
um significado gradativamente chega até a semântica e vice-versa, de modo que se
eternize o processo comunicativo. É, pois, um procedimento natural e quase que
indivisível, cujo desenrolar estende-se desde a observação do discurso até as
questões fundamentais do cálculo lógico, com passagem à cognição, daí o limite à
semântica.96
6.2 Sem embargo desse infinito processo comunicacional, a partir do
ingresso de ação, a lide reclamará ser solvida por meio da decisão judicial. As partes
levam, via petição inicial, contestação etc., os seus valores a respeito da justiça
aplicável ao caso concreto. Ou, dito por outra forma, uma parte, representada por
seu advogado, coloca a sua visão sobre a subsunção dos fatos à norma, enquanto o
outro litigante narra o seu olhar a respeito da aplicação da legislação à situação em
comento. Denota-se, pelo contexto, que os valores antagônicos se contrapõem
quando insurge a disputa entre os litigantes. Consequentemente, acaba sendo o
escopo processual solver o duelo, mediante a escolha de um ou mais valores, ou
mesmo da melhor hermenêutica. A decisão positivará uma escolha, a qual pode
agradar ou não as partes.97
96
97
CASTRO JR., 2009, p. 35, 52.
ARAUJO, 2005, p. 40.
62
Trata-se de uma tomada de postura frente a valores de justiça conflitantes
ou exegeses diferentes de uma mesma situação concreta que originou a disputa.
Para a escolha, contudo, o julgador realizará um processo cognitivo complexo no
qual serão levados em consideração, em grande escala, valores, como é o exemplo
do formato de atuação jurisdicional, ligado umbilicalmente ao conceito e à extensão
do princípio da separação de poderes. Tais decisões verbalizam unidades
elementares conhecidas como normas jurídicas, resultado de um processo
hermenêutico que opera utilizando o material já anteriormente positivado, como num
círculo, em cuja última análise se materializa um ordenamento dinâmico. Por este
sentido, o direito se produz via decisão.98
6.3 Dentro dessa plêiade relacional, pode-se delinear uma relação a se
iniciar com o suporte fático; melhor, a partir dele, do contato da mente do intérprete
com o suporte fático tem início a semiose. Com este contato, a mente gera um
segundo elemento, intitulado de signo. No caminho entre o contato da mente até a
emissão do signo, tem-se, nessa linha, um ato de percepção propriamente. No
cenário jurídico, por sua vez, esse processo é apimentado com as aspirações das
partes, externadas em suas peças processuais, e com os aspectos culturais que
influenciam demasiadamente os intérpretes nesse sistema de alinhamento do signo
ao objeto. Consoante descrição de Peirce, isso ocorre na forma de um diálogo
localizado, sob esse cerne, no pensamento do intérprete, de tal sorte que, com o uso
da inteligência, sempre se está aberto à nova alimentação, mediante leis, fatos ou
quaisquer outros signos, configurando-se como uma evolução semiótica.99
7 PRAGMÁTICA JURÍDICA COMO METODOLOGIA
7.1 Clarice von Oertzen de Araujo trouxe ao cenário jurídico estudo crítico
sobre o fenômeno da incidência jurídica como tese de livre-docência defendida no
98
99
ARAUJO, 2011, p. 33.
ARAUJO, 2011, p. 130, 132, 135, 136, 138-39, 144-146.
63
Departamento de Teoria e Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo. Dentro
da sua refinada abordagem, entre outros temas, interessa a esta tese de doutorado
o debate em torno do signo, do qual se abstrai que ele sempre representa um
significado. Da leitura do signo, surge um significado para o intérprete. Desta feita,
as normas jurídicas também são símbolos, em cujo significado se regem as relações
sociais, mas, no entanto, a sua significação não se exaure na interpretação do
intérprete. Ao contrário disso, a interpretação das referidas normas trata-se de
processo
incompleto,
que
se
depara
com
a
continuidade
do
processo
comunicacional pelo próprio interpretante ou pelos próximos, quando for o caso.
Diante disso, conforme a situação, a interpretação jurídica pode
configurar-se como um processo sempre em andamento. Daí que, ao enredo da
pesquisa, identificar a simbologia em torno da separação dos poderes consiste em
diagnosticar dentro da relação comunicacional dos ministros da Suprema Corte qual
o sentido outorgado ao citado princípio, na concretude do direito à saúde. Por esse
cenário, o STF pode ser descrito, ao menos sob o julgo da semiose comunicacional
da pragmática jurídica, como mente coletiva do sistema jurídico.100
7.2 A legislação é descrita, dentro do manancial teórico da semiótica,
como um material simbólico, haja vista que o seu texto tem o nítido escopo de
representação. Tudo porque, quando o receptor da norma adquire contato com o
seu conteúdo, cria-se na sua mente um significado. Em consequência, o mesmo
signo é capaz de dar subsídio às mais diversas interpretações. Ademais, no
caminho da norma geral e abstrata para a concreta, que consiste no produto final de
um processo complexo, utiliza-se nova nomenclatura: se lá, inicialmente, falava-se
em signo, com o mencionado processo, doravante, faz-se referência a índice.
Nesta tese, na linha exposta no parágrafo anterior, observa-se a
concretude da norma geral abstrata à norma concreta, dentro da jurisdicização dos
fatos no âmbito do STF, com a consciência de que a apuração valorativa extraída
somente tem validade dentro do direito, em razão de que o plexo comunicacional de
cada sistema é muito específico, delimitado, e só possível de exegese dentro do
100
ARAUJO, 2011, p. 17-19, 21.
64
respectivo contexto, mesmo sendo um fato social, uma vez que se trata de relações
intersubjetivas resultadas nos acórdãos e nas decisões monocráticas analisados.101
7.3 No momento da interpretação das leis, no que concerne aos fatos
postos ao STF, o processo comunicacional de aplicação da norma ao caso concreto,
dirimindo, com a decisão, o litígio – ao menos reduzindo naquele momento a
complexidade processual ao pôr fim àquela fase processual e em alguns casos à
própria disputa – produz uma semiose; daí se extraindo que o significado dessa
ação e reação é um resultado interpretativo a redundar na continuidade do
ordenamento jurídico. Este resultado, que apenas num determinado momento é tido
como produto final, propriamente como o objeto em observação desta pesquisa, tem
sim uma causa possível de ser cognoscível no seu processo decisório. Entretanto,
não se trata de processo rigidamente causal, movido por leis rígidas, quase que
naturais, mas sim formado por diversas variáveis, dentre as quais se destaca o
axioma ideológico motivador do intérprete.102
8
RELATÓRIOS
DE
PESQUISA
DA
JURISPRUDÊNCIA
DO
SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL EM DIREITO À SAÚDE
8.1 PREMISSAS GERAIS
8.1.1 Os acórdãos analisados foram coletados do sítio eletrônico do
STF103, especificamente no link de jurisprudência. Para a busca, foram escolhidas as
expressões: “direito à saúde” e “separação dos poderes”, primordialmente de forma
isolada e, em seguida, em conjunto. Esse procedimento de pesquisa foi utilizado
inúmeras vezes em momentos temporais completamente diversos. Na escolha das
decisões a serem pormenorizadamente tratadas na tese, preliminarmente, optou-se
101
ARAUJO, 2011, p. 29, 32, 34, 93.
ARAUJO, 2011, p. 122, 126.
103
Site do STF: <www.stf.gov.br>.
102
65
por dois critérios: (i) temporal, de ordem objetiva; (ii) enfrentamento do direito à
saúde pela óptica explícita, ou implícita, da separação dos poderes, de natureza
subjetiva, uma vez que a escolha da decisão reclamou da lente do observador,
especialmente na visão implícita.
Na primeira escolha, como regra inicial, optou-se por acórdãos publicados
entre o início de 2009 e o fim de 2012, com o condão de outorgar ares de atualidade
à pesquisa. Depois disso, sem menoscabo do marco temporal, ganharam espaço no
material coletado, acórdãos anteriormente julgados e identificados como relevantes
à compreensão do raciocínio travado naqueles estudados. Gradativamente, a
quantidade de julgados anteriores à baliza temporal traçada agigantou-se, a ponto
de o padrão inicial não mais se tipificar. Por outro lado, restou, no viés metodológico,
ainda incólume o outro padrão inicial de pesquisa como critério investigativo: “direito
à saúde” e “separação dos poderes”.
Ademais, mesmo com escopo de objetivar a pesquisa, é inegável que, na
escolha final dos precedentes analisados, acabou-se, de certo modo, por subjetivar
a sua coleta. Neste aspecto, o pesquisador fez escolhas de ordem pessoal, não
obstante, sempre tenha se pautado por buscar o tratamento da temática pesquisada
criticamente.
8.1.2 Do material coletado, não se excluiu determinado grupo de técnicas
processuais, como por exemplo, agravo regimental e pedido de suspensão de
segurança ante o entendimento de que a sua mantença traria riqueza à pesquisa, a
resultar num material heterogêneo da perspectiva procedimental dos julgamentos.
Bem por isso, foram analisados acórdãos de julgamento de recursos extraordinários,
de agravos regimentais por indeferimento de recurso extraordinário, de pedidos de
suspensão de tutela antecipada, de ação cautelar e recurso ordinário em mandado
de segurança.
Após a escolha desses critérios de seleção, a coleta final resultou em
setenta e um acórdãos, os quais foram lidos, relidos e, por fim, estudados
minuciosamente, um a um. O resultado é o avante escrito. Desse universo,
escolheram-se vinte decisões que tiveram papel significativo no resultado da
66
pesquisa. Os pontos principais destes julgados foram transcritos em notas de
rodapé.
8.2 RACIONALIDADE JURÍDICA NA MICROJUSTIÇA
8.2.1 À luz do proposto na pesquisa, pela análise dos precedentes,
conclui-se, numa visão micro – porque restrita aos processos admitidos, quer dizer,
conhecidos pelo respectivo tribunal –, no sentido de uma racionalidade bem definida
da Excelsa Corte em favor da efetividade do direito à saúde no que diz respeito à
justiça adjudicatória, de tal sorte que dos setenta e um acórdãos estudados somente
três não são no diapasão da sua concretização. Exemplo do âmago efetividade pode
ser extraído da Ação Cautelar n. 2836/SP, na qual o Ministério Público, com a
finalidade de atender a necessidade de efetivação do direito público subjetivo à
saúde, ingressou com ação civil pública munida de pedido de liminar, a qual foi
deferida em primeiro grau e cassada em segundo grau de jurisdição.
Em razão da decisão desfavorável em segundo grau, o Ministério Público
interpôs recurso extraordinário, que foi admitido na origem. Antes, porém, da
chegada do recurso ao tribunal, portou a sua solicitação de medicamentos de
vultoso valor econômico in limine mediante técnica cautelar diretamente ao STF. Em
juízo de cognição sumária, o relator restaurou a medida liminar concedida pelo juízo
de primeiro grau. A decisão teve como fundamento a efetividade do art. 196 da
Constituição Federal, de cujo teor se serviu a fundamentação do acórdão.104-105
104
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Cautelar n. 2836/SP. Relator
Ministro Ayres Britto. Requerente: Ministério Público do Estado de São Paulo. Requerido: Fazenda
Pública do Estado de São Paulo. Brasília, DF. Julgado em 29.03.2011. Publicado em 04.04.2011.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AC%24%2ESCLA%2E+E+283
6%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/mfqc643>. Acesso em: 16 out.
2013. Trecho do julgado, p. 2: “2. De acordo com a inicial, o autor ajuizou ação civil pública com a
finalidade de obrigar o Município de Ribeirão Preto e o Estado de São Paulo a fornecer a Edson Luiz
Carlos, pessoa ‘carente de recursos econômicos’ e ‘portadora de gravíssima moléstia (CID G47-3)’, ‘o
aparelho CPAP (Continuous Positive Airway Presure), juntamente com umidificador e eventual
reposição.’”.
105
Trecho do mesmo julgado, p. 2: “8. Assim constitucionalmente qualificada como direito
fundamental de dupla face (direito social e individual indisponível), a saúde é tema que se insere no
67
De fato, a efetividade dessa técnica processual não usual reforça a tese
de que o STF tem a forma de julgar bem delineada, ao menos finalisticamente
falando, o que permitiu mapear com relativa segurança a sua racionalidade, as suas
variáveis e, enfim, contextualizá-la no âmbito social global, conforme se expõe na
Parte III.
8.2.2 De outra forma, no diapasão da não efetivação do direito à saúde,
exemplifica-se com acórdão no qual o Ministério Público do Estado de Minas Gerais
interpôs recurso extraordinário com o objetivo de reformar a decisão do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais (TJMG), que nega o seu pleito, que pretendeu, mediante
impetração de mandado de segurança, o fornecimento de medicamentos. É
verdade, no entanto, que o acórdão não entrou no mérito do direito à saúde. O
referido tribunal não recebeu o recurso por entender que nos autos não havia
elementos que denotassem a veracidade das alegações do autor, e mais, que
eventual provimento configuraria uma revalorização das provas colacionadas nos
autos, o que encontra óbice já materializado por súmula.106
âmbito de legitimação do Ministério Público para a propositura de sua defesa. 9. À derradeira, tenho
que a espera pelo julgamento de mérito do recurso extraordinário (que ainda não foi enviado ao
Supremo Tribunal Federal) pode acarretar graves prejuízos à saúde do interessado Edson Luiz
Carlos.”.
106
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 843160/MG. Relator Ministro Luiz
Fux. Agravante: Ministério Público de Minas Gerais. Agravado: Departamento Municipal de Saúde
Pública – DEMASP. Brasília, DF. Julgado em 28.06.2011. Publicado em 03.08.2011. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+8431
60%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/jw6wqbq>. Acesso em: 16
out. 2013. Trecho do julgado, p. 2: “Ab initio, observo que não se revela cognoscível, em sede de
Recurso Extraordinário, a insurgência que tem como escopo o incursionamento no contexto fáticoprobatório engendrado nos autos, porquanto referida pretensão não se amolda à estreita via do apelo
extremo, cujo conteúdo restringe-se a fundamentação vinculada de discussão eminentemente de
direito e, portanto, não servil ao exame de questões que demandam o revolvimento do arcabouço
fático-probatório dos autos, face ao óbice erigido pela Súmula 279/STF de seguinte teor, verbis: ‘Para
simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário’. [...] Ora, não há como saber se os
medicamentos indicados são eficazes – ou os mais eficazes – ao tratamento de que teria
necessidade o impetrante. Na verdade, sendo de natureza particular, os documentos apresentados
não oferecem suporte suficiente para o acolhimento da postulação. Ademais, não se vê nos autos
requerimento da dispensação de tal medicamento por via administrativa, não se podendo dizer que
houve a negativa de fornecimento do mesmo. [...] Enfim, sem ignorar o direito à saúde consagrado no
art. 196 da Constituição da República, não se há, porém, permitir ao Judiciário, sem o mínimo de
prova necessária, imiscuir-se na função administrativa, determinando a distribuição indiscriminada de
medicamentos.’ (fls. 153/154) [...] Ex positis, nego seguimento ao agravo de instrumento com
fundamento no disposto no artigo 21, § 1º, do RISTF.”.
68
8.3 LUGARES-COMUNS NA MICROJUSTIÇA
8.3.1 Como parte do resultado da análise, traçou-se o mapa de alguns
lugares-comuns avistados na jurisprudência do STF, a saber: (i) a efetivação do
direito à saúde não se trata de violação ao princípio da separação dos poderes; (ii) o
direito à saúde é um direito público subjetivo indisponível; (iii) normas consideradas
programáticas
não
podem
ser
reputadas
como
promessa
constitucional
inconsequente; (iv) o Ministério Público tem legitimidade para postular em juízo o
direito à saúde; (v) temática enfrentada (julgada) à luz da adjudicação e não de um
problema distributivo; (v) solidariedade dos entes públicos (União, estados e
municípios) como responsáveis pela manutenção do direito à saúde; (vi) prestação
de tratamentos não incluídos na lista da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA); (vii) desqualificação da reserva do possível como desculpa para a não
efetivação do direito à saúde.
8.4 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES EM DIREITO À SAÚDE
8.4.1 A separação dos poderes, segundo a jurisprudência em comento, é
um dos pilares da democracia moderna. No entanto, consoante ainda o material
coletado, por vezes o Estado utilizou-se dessa premissa com o intuito de
deslegitimar a intervenção do Poder Judiciário, quando se mantém inerte e não
cumpre as suas funções. Mas, ao contrário da semântica outorgada outrora,
atualmente a Corte Suprema vê essa justificativa propriamente como uma
demonstração de acomodação política, daí não ser passível de se opor à efetivação
do direito à saúde pela atuação judicial, nos termos do decidido no Recurso
Extraordinário de n. 667.882/MG.
Nessa mesma senda transitou o Recurso Extraordinário n. 368.564/DF.
Nele, a União interpôs recurso extraordinário com pretensão de reforma de acórdão
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), que outorgou ao jurisdicionado o
69
tratamento da Retinose Pigmentar, em Cuba. Trava-se um longo e bem articulado
debate em que se defendeu o direito à saúde, com as seguintes conclusões: (i) é
sim um direito em desfavor do Estado; (ii) a reserva do possível é uma desculpa
que, ratificada, será usada para tudo; (iii) a separação dos poderes é um sinal de
acomodação política forjada na democracia moderna; (iv) insere-se no debate a
questão da esperança como fonte de cura.107-108-109-110-111-112
107
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 368.564/DF. Relator Ministro Marco
Aurélio. Requerente: União. Requerido: Maria Euridice de Lima Casale. Brasília, DF. Julgado em
13.04.2011.
Publicado
em
10.08.2011.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+368
564%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+368564%2EACMS%2E%29&base=bas
eAcordaos&url=http://tinyurl.com/k59qe3j>. Acesso em: 16 out. 2013. Trecho do julgado, p. 68: “O
que está havendo? A nossa jurisprudência é muito ampliativa quando se trata de tratamento à saúde.
Diga-se de passagem, jurisprudência que conta com a minha maior adesão. Desde que eu era
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, eu entendia que nós não poderíamos
negar, pelo Estado, o direito ao tratamento médico. Eu sempre entendi, portanto, desde o Tribunal de
Justiça, que nós não podemos negar o medicamento, o tratamento local; sempre temos de ter uma
alternativa para isso. E a jurisprudência do Tribunal, a Suprema Corte, assegura esse direito.”.
108
Trecho do mesmo julgado, p. 81: “O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) –
Estou desprovendo e mantendo o acórdão. O recurso é da União. Certamente, com esse tratamento,
a viúva não ficará mais pobre!”. Trecho, do mesmo julgado, p. 85: “O SENHOR MINISTRO MARCO
AURÉLIO (PRESIDENTE) – Essa denominada reserva do possível, no tocante ao Estado, leva-me à
indignação como contribuinte, como cidadão, como juiz, pois, se for realmente empolgada e aceita,
teremos desculpa para tudo, porquanto, desde que me conheço, o Estado, em que pese à grande
carga tributária, luta contra escassez de receita, mas luta porque tem despesas excessivas,
principalmente com a máquina administrativa e a dívida interna.”.
109
Trecho do mesmo julgado, p. 87: “O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO – [...] Bem, se os
direitos sociais, notadamente no campo da saúde, da educação, da assistência à adolescência e à
infância, são direitos de crédito contra o Estado, demandam prestação contra o Estado, desembolso
de recursos, é preciso atentar para o fato de que os recursos orçamentários são escassos e pesa
contra esses direitos uma cláusula da reserva financeira do possível. Mas eu entendo que essa
reserva financeira do possível seja uma desculpa cômoda por parte do Estado; é a mais cômoda das
desculpas.”.
110
Trecho do mesmo julgado, p. 94: “A questão da intervenção judicial em políticas sociais está
intimamente relacionada ao princípio da separação dos poderes, elemento central na acomodação do
desenho institucional das democracias modernas.”.
111
Trecho do mesmo julgado, p. 103: “O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – Senhora Presidente, peço
vênia para – muito embora tenha tomado conhecimento agora do voto Ministro Ricardo Lewandowski
– dizer que estou habilitado a votar. Tenho vários acórdãos proferidos no Superior Tribunal de Justiça
em recurso ordinário e em mandado de segurança. E eu me recordo uma vez que, foi uma passagem
interessante – muito embora ela seja jusfilosófica, mas ela interessa a todos nós, é sempre
engrandecedor trocarmos experiências -, eu tive a oportunidade, Senhora Presidente, de ter em mãos
uma obra de um prêmio Nobel de medicina, recente, Professor Jerome Groopman, cujo título é ‘A
Anatomia da Esperança’. Ele, como médico de pacientes terminais, uteísta e que recebera o prêmio
Nobel de medicina, então a cientificidade de sua tese foi mais do que aferida, afirma que a fé significa
o coração da cura. Ele, inclusive, explicita que as pessoas que têm esperança de viver conseguem
produzir determinadas substâncias que fazem-nas viver mais do que poderia se imaginar num
tratamento de paciente, como ele tratava, de órgãos vitais etc. De sorte que sou muito determinado
nessa questão de esperança. Nunca acreditei nessa versão de que a retinose pigmentar, no
tratamento de Cuba, não tinha cura. Pelo contrário, eu entendia que, se eles eram especialistas
nessa doença, deveria haver uma esperança com relação a essa cura. E na dúvida entre a
esperança do sucesso e o insucesso, fico com a esperança do sucesso, evidentemente. Acho que
70
8.5 DIREITO À SAÚDE COMO BEM INDISPONÍVEL
8.5.1 Ao arauto judicial, aventa-se a indisponibilidade de um bem com a
sua mantença mesmo diante de argumentos de difícil superação como a efetiva
escassez de recursos. Deste modo, não há recursos para o fornecimento de
determinado medicamento com o cerne de tratar doença rara. Não obstante esse
cenário, a Suprema Corte decidiu pela obrigação do seu fornecimento, mormente
porque a saúde é um bem indisponível. Com essa linha de decisão, constrói-se a
indisponibilidade do direito à saúde em desfavor da sua não concretude, de modo
que a União interpôs Agravo de Despacho Denegatório de Recurso Extraordinário
de n. 640722/SC em face de decisão do TJSC, em que se deferiu a outorga de
medicamentos ao autor.113
isso é um direito veiculável por meio de mandado de segurança; é, digamos assim, a função da Corte
Suprema tutelar essa dignidade da vida humana, como consectário dela, o direito à prestação da
saúde pelo Estado. Acompanho Vossa Excelência e o Ministro Marco Aurélio.”.
112
Trecho do mesmo julgado, p. 105: “5. Consectariamente, é vedado ao Poder Público e ao
intérprete do ordenamento jurídico – amparado em parecer técnico que desaconselha o
tratamento da ‘retinose pigmentar’ no Centro Internacional de Retinoses Pigmentária em Cuba
e na Portaria 763 que proíbe o financiamento do tratamento no exterior pelo SUS – antever
exegese que transponha a intangibilidade do direito à saúde consagrado na Constituição
Federal.”. Trecho do mesmo julgado, p. 110: “Dessarte, defronte de um direito fundamental, cai
por terra qualquer outra justificativa de natureza técnica ou burocrática do Poder Público, uma
vez que, segundo os ensinamentos de Ives Gandra da Silva Martins, ‘o ser humano é a única
razão do Estado. O Estado está conformado para servi-lo, como instrumento por ele criado
com tal finalidade. Nenhuma construção artificial, todavia, pode prevalecer sobre os seus
inalienáveis direitos e liberdades, posto que o Estado é um meio de realização do ser humano
e não um fim em si mesmo’ (in ‘Caderno de Direito Natural – Lei Positiva e Lei Natural’, n. 1. 1ª
edição, Centro de Estudos Jurídicos do Pará, 1985, p. 27). (grifo nosso)”.
113
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n. 640722/SC. Relator
Ministro Ricardo Lewandoski. Requerente: União. Requerido: Ministério Público Federal. Intimado:
Estado de Santa Catarina. Intimado: Município de Videira. Brasília, DF. Julgado em 24.05.2011.
Publicado
em
30.05.2011.
Disponível
em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22936567/recurso-extraordinario-com-agravo-are-640722sc-stf>. Acesso em: 16 out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 1: “1. A Constituição Federal, com
precisão, erige a saúde como um direito de todos e dever do Estado (art. 196). Daí a seguinte
conclusão: é obrigação do Estado no sentido genérico (União, Estados e Municípios) assegurar às
pessoas desprovidas de recurso financeiro o acesso à medicação necessária para a cura de suas
mazelas, em especial, as mais graves.”. Trecho do mesmo julgado, p. 1: ”2. O direito público subjetivo
à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela
própria Constituição da República (art. 196).”. Trecho do mesmo julgado, p. 1: ”3. O Poder Público,
qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira,
não se pode mostrar indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que
por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.”.
71
Na decisão em estudo, teve-se o direito à saúde como inviolável. Na
fundamentação, trouxe a lume diversas decisões, justamente para ratificar a sua
assertiva de que o STF já firmou posicionamento em favor da preservação do
referido direito como um direito público indisponível. Desta forma, é direito inviolável,
a resultar na obrigação do Estado (em sentido genérico) a garantia do fornecimento
de medicamentos com destaque para o atendimento de doenças graves.114
8.6 FORÇA VINCULANTE DAS NORMAS PROGRAMÁTICAS
8.6.1 No material empírico coletado, as normas programáticas tomam
contorno completamente diverso da composição clássica desenvolvida, na década
de 1940, por José Afonso da Silva. Nas decisões, parte-se, sim, do pressuposto de
que o direito à saúde está disposto em norma programática. Não obstante, a sua
interpretação não poderia resultar numa promessa inconsequente.
Essa assertiva é tida como uma premissa inconteste. Bem por isso, é
repetida como axioma numa grande quantidade de decisões, nas quais se repete,
por exemplo, nos julgados AI n. 662822/RS, AGR no RE n. 393175/RS, e,
ilustrativamente, transcreve-se trecho do RE n. 535145-MT:
[...] A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE
TRANSFORMÁ-LA
EM
PROMESSA
CONSTITUCIONAL
INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art.
196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes
políticos que compõem, no plano institucional, a organização
federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa
constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público,
114
Trecho do mesmo julgado, p. 1: “O agravo não merece acolhida. Isso porque, o julgado impugnado
encontra-se em harmonia com a orientação da Corte que, ao julgar o RE 271.286- AgR/RS, Rel. Min.
Celso de Mello, entendeu que o Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua
atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode se mostrar indiferente ao problema
da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave
comportamento inconstitucional. Salientou-se, ainda, no citado julgado, que a regra contida no art.
196 da Constituição tem por destinatário todos os entes políticos que compõem, no plano
institucional, a organização federativa do Estado brasileiro. No mesmo sentido, menciono as
seguintes decisões, entre outras: RE 393.175-AgR/RS e AI 662.822/RS, Rel. Min. Celso de Mello; RE
566.575/ES, Rel. Min. Ayres Britto; RE 539.216/RS, Rel. Min. Eros Grau; RE 572.252/RS, Rel. Min.
Cezar Peluso; AI 507.072/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa; RE 535.145/MT, Rel. Min. Cármen Lúcia;
AI 635.766/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.”.
72
fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade,
substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao
que determina a própria Lei Fundamental do Estado. [...].
Com efeito, o ideário, teorizado pelo citado autor constitucionalista, de
programas a serem cumpridos pelo Estado, como orientações que os governantes
devem levar em conta ao tomar as suas decisões, todavia, sem um vínculo efetivo
ao seu cumprimento, perde o seu sentido original. Em última análise, o tempo de
cumprir o “programa em direito à saúde” passou; a sua interpretação aproxima-se
muito mais das normas de eficácia imediata – também proposta por José Afonso da
Silva –, em que pese ainda serem chamadas pelo STF de normas de eficácia
programática.
8.7 LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DIREITO À SAÚDE
8.7.1 No que diz respeito à legitimidade do Ministério Público, chama a
atenção o julgamento do Agravo de Instrumento de Despacho Denegatório de
Admissão do Recurso Extraordinário n. 667882/MG. A tese do recorrente diz
respeito a legitimar o Ministério Público a ingressar com ação civil pública para
pretender a efetivação do direito à saúde. Liminarmente, o recurso foi conhecido e
provido na sua integralidade nos moldes do CPC, art. 544, § 3º.115 Convém relatar,
outrossim, que a técnica deste referido dispositivo processual, regra geral, só é
115
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 667882/MG. Relator Ministro Dias
Toffoli. Agravante: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Agravado: Município de Contagem.
Brasília, DF. Julgado em 02.02.2010. Publicado em 26.02.2010. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+6678
82%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/lex3hs5>. Acesso em: 16 out.
2013. Trecho do mesmo julgado, p. 2: “A irresignação merece prosperar. A jurisprudência desta Corte
fixou entendimento no sentido de que o texto constitucional qualifica o direito à saúde como individual
e indisponível, além das ações e serviços de saúde como prestação de relevância pública,
legitimando, portanto, a atuação do Ministério Público para a propositura da ação em sua defesa.”.
Trecho do mesmo julgado, p. 2: “Ante o exposto, nos termos do artigo 544, § 3º, do Código de
Processo Civil, com a redação da Lei nº 9.756/98, conheço do agravo e dou provimento ao recurso
extraordinário para declarar a legitimidade ativa do Ministério Público Estadual para o ajuizamento do
feito, determinando o regular processamento. Publique-se. Brasília, 2 de fevereiro de 2010. Ministro
DIAS TOFFOLI Relator”.
73
usada quando a questão está pacificada na jurisprudência; não se trata de
procedimento usual, rotineiro.
Aliás, com a premissa da possibilidade de o Parquet ingressar com
demandas cujo pleito é o direito à saúde, comenta-se também do Recurso
Extraordinário distribuído sob o n. 586.995/MG, em autos de ação civil pública,
interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em que se almejou a
concessão, pelo Estado, de tratamento caro e de difícil acesso (Fibrose Cística ou
Mucoviscidose). A solicitação foi deferida sob o fundamento de que a saúde é direito
de todos e dever do Estado, premissa constitucional arraigada na Carta da
República, art. 164.116-117
8.8 LINHAS DE RACIONALIDADE ADOTADAS EM DIREITO À SAÚDE
8.8.1 No mote da efetivação da saúde como lide adjudicatória, nos
julgamentos, insurgem três vertentes de raciocínio. É verdade que finalisticamente
buscam o mesmo cerne. Nesse aspecto, encontra-se a linha que reconhece que a
postura da Corte Suprema implementa políticas públicas quando há flagrante
inadimplência por parte do ente público, porém se respeitaria o poder discricionário
do gestor. No ponto, destacam-se os acórdãos relatados pela então Ministra Ellen
Gracie: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 734.487/PR e na
116
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 586995/MG. Relatora Ministra
Cármen Lúcia. Requerente: Estado de Minas Gerais. Requerido: Ministério Público do Estado de
Minas Gerais. Brasília, DF. Julgado em 21.02.2010. Publicado em 03.03.2010. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18314094/recurso-extraordinario-re-586995-mg-stf>. Acesso
em: 16 out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 2: “[...] ‘AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PACIENTES
PORTADORES DE FIBROSE CÍSTICA OU MUCOVISCIDOSE – INTERESSE DIFUSO – DIREITOS
FUNDAMENTAIS. 1) A saúde é direito de todos e dever do Estado e deve ser garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença. 2) O acesso às ações e
serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde é universal e igualitário. 3) A Fibrose
Cística ou Mucoviscidose é doença letal, de tratamento caro e difícil acesso, necessitando seus
portadores de assistência do Poder Público. 3) No reexame necessário, sentença reformada
parcialmente, prejudicando o recurso voluntário’ (fls. 720).”.
117
Trecho do mesmo julgado, p. 5: “[...] ‘A preliminar de existência de litisconsórcio passivo
necessário não merece prosperar, pois, como já citado anteriormente, a saúde pública há que ser
administrada pelos três entes federativos. Como já consagrado no texto Constitucional, a saúde é
direito de todos e dever do Estado, e, entre as diretrizes do sistema consagradas na Lei n. 8.080/90,
está o atendimento integral à saúde, seja ele preventivo ou curativo’. (fls. 723-725).”.
74
Suspensão de Tutela Antecipada n. 91, seguidos à época pelo também Ministro
Eros Grau, nos Agravos Regimentais nos Recursos Extraordinários de n.
367.432/PR e n. 603.575/SC.
Com efeito, essa racionalidade parte do pressuposto de que a
Constituição
Republicana, precisamente o
art.
226,
impõe
ao
Estado
a
implementação de políticas públicas com o escopo de sanar os problemas inerentes
ao direito à saúde. Isto, acrescido à inércia estatal, seria suficiente para legitimar o
Judiciário a implementá-las. Não há, tendo em vista essa postura decisional,
qualquer receio na implementação de políticas públicas, nem na expressa
confirmação dessa postura no teor do acórdão. Além da determinação do
fornecimento de remédios, também se ratificou requerimentos feitos em ação civil
pública pelo Ministério Público, com o pleito de ampliação do número de leitos em
hospitais públicos.
Das três linhas decisionais ou modos de decidir a questão, na
anteriormente esboçada, há pouca ressonância com a jurisprudência atual. Com a
aposentadoria dos Ministros Ellen Gracie e Eros Grau, a assertiva explícita de que
ao STF cabe realmente a missão de implementar políticas públicas praticamente
tendia a minguar. Entretanto, o Ministro Dias Toffoli tem adotado a tese em decisões
de sua relatoria, consoante se apreende das decisões em sede de Agravo
Regimental no Agravo de Instrumento n. 809.018/SC. Isso a despeito de que, se há
precedentes em que não se admite tal postura abertamente, todavia, o resultado do
decisum é muito similar ao que ratifica.
8.8.2 Existe, outrossim, uma segunda postura de decidir, cujo intento é
cumprir o art. 226 da Constituição Federal com a assertiva de que não se trata de
implementar políticas públicas, mas sim fazer cumprir as já existentes. Preza-se pela
sua efetividade. Por este viés, aos tribunais caberia meramente o propósito de
complementação de tais políticas, as quais por falhas não atingiram a população
como deveriam. Para compreender essa postura, reclama-se retornar à audiência
pública, realizada pelo então Presidente da Suprema Corte, Ministro Gilmar Ferreira
Mendes, por meio da qual se ouviu a voz de representantes da magistratura, da
75
Advocacia Geral da União, médicos, gestores públicos, acadêmicos e membros da
sociedade civil a respeito da judicialização dos problemas da saúde no Brasil.
Nessa importante audiência, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes obteve os
subsídios à formação da sua racionalidade jurídica na temática em estudo, a qual,
até os dias de hoje, manifesta-se pela efetivação das políticas públicas já existentes
e não pela sua implementação. Na prática, os entes estatais têm políticas públicas
nas mais diversas vertentes, contudo elas não funcionam como deveriam. Exemplo
disso é a distribuição de remédios de cuja implementação, mediante políticas
específicas, é praticamente um lugar-comum no poder público. Todavia, não é
incomum se afirmar a sua insuficiência para remédios de elevado valor.
Com base nessa racionalidade, o Ministro Gilmar Mendes relatou acórdão
no qual se julgou recurso de agravo regimental no pedido de suspensão de liminar
com intuito de conseguir a suspensão de decisão em mandado de segurança
interposto pelo Estado de Pernambuco. Embasado em sólida argumentação,
afastou-se a tese da reserva do possível a fim de dar efetividade ao direito à saúde,
mudando completamente o enfoque do debate para ressaltar que não se trata de
interferência judicial em políticas públicas, uma vez que, na maioria dos casos, elas
(as políticas públicas) já existiriam. Daí seria uma questão de efetivá-las, haja vista
as claras falhas em sua implementação.
O relator ainda acaba, em seu voto, por retirar a legitimidade de
desculpas por escassez financeira e propõe o debate no plano jurídicoconstitucional, como um direito inviolável. Textualmente, argumenta-se que questões
financeiras seriam secundárias diante do debate travado nos autos.118-119-120
118
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Liminar n. 47/ PE.
Relator Ministro Gilmar Mendes. Agravante: Estado de Pernambuco. Agravado: União. Ministério
Público Federal. Ministério Público do Estado de Pernambuco. Município de Petrolina. Brasília, DF.
Julgado
em
17.03.2010.
Publicado
em
30.04.2010.
Disponível
em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/9087061/agreg-na-suspensao-de-liminar-sl-47-pe>. Acesso
em: 16 out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 16: “O dispositivo constitucional deixa claro que, para
além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental de prestação de saúde por parte do
Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).”. Trecho do mesmo julgado, p. 21: “Assim,
levando em conta a grande quantidade de processos e a complexidade das questões neles
envolvidas, convoquei Audiência Pública para ouvir os especialistas em matéria de Saúde
Pública, especialmente os gestores públicos, os membros da magistratura, do Ministério Público, da
Defensoria Pública, da Advocacia da União, Estados e Municípios, além de acadêmicos e de
entidades e organismos da sociedade civil. (Grifo nosso)”. Trecho do mesmo julgado, p. 22: “Após
ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos setores envolvidos, ficou
constatada a necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no
76
Nesse mesmo escol, impende expor outra decisão em que a União
interpôs agravo regimental para pedir a suspensão da tutela antecipada concessiva
de medicamentos. Seguindo a mesma linha de outros pretórios, o Ministro Gilmar
Mendes negou a medida solicitada, servindo-se, do mesmo modo, da premissa de
que não se trata de judicialização dos temas ligados à saúde pública, mas sim de
falhas na efetivação dessas políticas públicas já existentes. A escolha discricionária
que cabia ao gestor já foi feita, todavia, erros na aplicação culminaram em violações
ao direito à saúde, a motivar demanda judicial e, sucessivamente, a intervenção da
Suprema Corte.121
8.8.3 Por fim, a terceira corrente assevera a tese de omissão estatal a
legitimar a intervenção judicial na efetivação do direito à saúde, bem como faz
menção à impossibilidade de ingerência judicial na discricionariedade da
Administração Pública. Essa verbalização mais parece pura retórica do que um
argumento dogmático – e, por isso mesmo, sem coerência interna ao sistema –, vez
que se tenta negar o óbvio. Primeiro, se não houvesse omissão administrativa,
reduzir-se-ia significativamente o número de problemas levados a juízo, sobretudo
Brasil. Isso porque, na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão
absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista
uma necessária determinação judicial para o cumprimento das políticas já estabelecidas. Portanto,
não cogita do problema da interferência judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla
discricionariedade de outros Poderes quanto à formulação de políticas públicas.”.
119
Trecho do mesmo julgado, p. 30-31: “Ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas
sociais e econômicas formuladas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Judiciário não está criando
política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. [...].”.
120
Trecho do mesmo julgado, p. 62: “O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: - Presidente, vou
acompanhar Vossa Excelência, sem dúvida, e não posso deixar de dizer da alta qualidade do voto
proferido, que certamente vai ficar marcado neste Tribunal. A questão da implementação de políticas
públicas tem sido tema de teses, artigos e revistas jurídicas em quadrinhos, pois poucas vezes se fala
do tema seriamente – o mesmo ocorrendo com o tema da ‘separação’ dos Poderes. Continuo a ser
um velho ‘hegeliano’, entendendo que o poder é uno e, quando ele se divide, ele deixa de ser poder.”.
121
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n.
175/ Ceará. Relator Ministro Gilmar Mendes. Agravante: União. Agravado: Ministério Público Federal.
Clarice Abreu de Castro Neves. Município de Fortaleza. Estado do Ceará. Brasília, DF. Julgado em
17.03.2010.
Publicado
em
30.04.2010.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2570693>. Acesso em: 16
out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 77: “Diante da relevância da concretização do direito à saúde
e da complexidade que envolve a discussão de [...]”. Trecho do mesmo julgado, p. 92: “Esse foi um
dos primeiros entendimentos que sobressaiu nos debates ocorridos na Audiência PúblicaSaúde: no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de
interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria
de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial
do efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes.”.
77
porque, pelos precedentes, é quase rotina uma omissão estatal no que diz respeito à
saúde. De outra forma, uma ação dolosa geraria outro tipo de pleito jurisdicional, o
que significa que a técnica judicial proposta seria outra, ou seja, sem a finalidade de
prestar, ofertar, determinado remédio ou tratamento. Esse argumento perde o seu
senso de pertinência objetiva. Segundo, a omissão do gestor público é, regra geral,
relacionada à sua escolha de alocar recursos em outro serviço estatal como, por
exemplo, educação, segurança etc. Não raro, omite-se na prestação da saúde, em
favor de outra prestação igualmente importante à coletividade. Não tem consistência
lógica o argumento de que se houve omissão, a atuação jurisdicional não significaria
violação à discricionariedade administrativa. A bem da verdade, as decisões em
comento estão revendo um critério distributivo-discricionário mediante um critério
adjudicatório-legalista. Desta forma, o raciocínio exposto por essa vertente da
jurisprudência do STF é fictício; afasta-se da realidade para ficcionalmente tentar
forjar um novo conceito dogmático de discricionariedade judicial. No entanto, por
óbvio, além do choque com a dogmática administrativista, não encontra guarida no
sistema social, a ponto de os precedentes se servirem disso como uma verdade, isto
é, um ponto de partida.
Diante de análise dos precedentes em torno dessa terceira corrente, em
destaque a decisão no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 665.764 Rio Grande do Sul, também se assenta que a efetivação do direito à saúde faz com
que a tradicional – ou liberal – interpretação da separação dos poderes seja
escamoteada a favor de uma forte interpretação adjudicatória, em cuja gênese se
encontram premissas de um Estado Social em que, entre outras: (i) cobra-se uma
atuação positiva do Estado; (ii) evidencia-se que normas programáticas não são
promessas inconsequentes; (iii) legitima-se o direito à saúde como direito público
indisponível.
78
8.9 RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES PÚBLICOS
8.9.1 Em outra perspectiva, é uniforme, dentro da jurisprudência
analisada, a responsabilidade solidária dos entes públicos. Sempre foi rotineiro os
poderes públicos esquivarem-se do ônus de fornecer uma saúde digna à população
com a desculpa de que não se trata de sua responsabilidade. Ilustrativamente, citase o caso das ações propostas em face dos estados-membros, os quais, em suas
defesas, alegam ser obrigação da União.
Não há, pelo exposto, chance desse subterfúgio encontrar eco na atual
linha adotada em razão da consistência da tese da solidariedade e, até o momento,
não há comunicação da alta Corte de Justiça em sentido diverso. Trata-se de uma
busca pela efetividade, consoante se pode concluir do Recurso Extraordinário n.
607.385/SC interposto com o mote de ver efetivado o respectivo direito à saúde com
a obtenção de medicação. A decisão teve como fundamento a tese de que a saúde
é dever de todos os entes federados. Cabe à parte escolher se move demanda em
face de um só, de dois ou dos três entes (município, estado e União). No caso em
comento, a autora pleiteou somente em face do Estado de Santa Catarina. A tutela
processual foi deferida.122
122
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 607.385/SC. Rel. Min. Cármen
Lúcia Requerente: Estado de Santa Catarina. Requerida: Elisa Meira Fernandes. Brasília, DF.
Julgado
em
19.04.2011.
Publicado
em
12.05.2011.
Disponível
em:
<(http://stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=88&dataPublicacaoDj=12/05/2011
&incidente=3814696&codCapitulo=6&numMateria=68&codMateria=3>. Acesso em: 16 out. 2013.
Trecho do mesmo julgado, p. 2: “A parte-autora ajuizou ação contra o Estado de Santa Catarina
objetivando o fornecimento de medicamento essencial ao tratamento da doença que a acomete. À luz
da jurisprudência recente do STJ, as três esferas federativas são solidariamente responsáveis por
realizar o direito à saúde, conforme se vê nas decisões abaixo transcritas: [...]. Por se tratar de
obrigação solidária, é possível exigir a prestação de qualquer um ou de todos os entes federativos. A
escolha cabe à parte-autora. No caso em tela, a parte-autora optou por acionar o Estado de Santa
Catarina, de modo que esse réu, e somente ele, deve integrar o pólo passivo da presente demanda.
(Grifo nosso)”. Também no prisma da garantia da solidariedade do direito à saúde entre os entes
públicos, ver BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 584652/RJ. Relator
Ministro Cezar Peluso. Requerente: União. Requerido: Produtos Veterinários Manguinhos LTDA.
Brasília, DF. Julgado em 07.08.2008. Publicado em 02.09.2008. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14771245/recurso-extraordinario-re-584652-rj-stf>. Acesso
em: 16 out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 2: “Ainda que assim não fosse, a recusa do Estado
em fornecer medicamento coloca em risco a saúde de paciente necessitado e representa desrespeito
ao disposto no art. 196 da Constituição Federal, que estatui ser a saúde direito de todos e dever do
Estado. Essa regra constitucional tem por destinatários todos os entes políticos que compõem a
organização federativa do Estado brasileiro.”.
79
Outrossim, no Recurso Extraordinário n. 641.916, a autora, com 78 anos,
interpôs o recurso com a pretensão de que os entes estatais (União, estado e
município) fornecessem diversos remédios com vistas a combater a diabetes, a
hipertensão, a catarata, a osteoporose, a tireoide e a arritmia cardíaca. O STF
concedeu o negado até então pelas instâncias anteriores via tutela antecipada, bem
como inseriu a União no polo passivo. Antes disso, a autora passou por um longo
processo, inclusive com seu recurso sendo negado na origem, o que motivou a
interposição de agravo de despacho negatório e, na sequência, agravo
regimental.123-124-125
Ainda, por meio de Agravo Regimental em Recurso Extraordinário de n.
271.286-8, o Município de Porto Alegre pleiteou a reforma de decisão que o obriga
ao fornecimento de medicamentos a cidadão portador do HIV. Serve-se o protesto
dos seguintes fundamentos: (i) não seria sua a competência e sim do Estado do Rio
Grande do Sul; (ii) afronta do princípio da separação dos poderes. Prevaleceu a tese
123
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 641916. Relatora Ministra Cármen
Lúcia. Requerente: Valentina Mikulski Babinski. Requeridos: União. Estado do Paraná. Município de
Curitiba. Brasília, DF. Julgado em 31.05.2011. Publicado em 08.06. 2011. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22935595/recurso-extraordinario-re-641916-pr-stf>. Acesso
em: 16 out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 2: “Alega que se ‘extrai da Constituição Federal que
a responsabilidade solidária alcança a implementação de políticas sociais e econômicas redutoras
dos riscos de doença, acesso universal às ações e serviços de doença, acesso universal às ações e
serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como o financiamento da saúde
pública com recursos de todos os entes integrantes da federação. [...] Por conseguinte, é manifesta a
responsabilidade da União e do Estado no fornecimento de medicamentos pleiteados na inicial,
mesmo quando a norma legal estabelece diretrizes para descentralização e a administração atribui ao
Município o desempenho dessa atividade no âmbito do SUS’ (fls. 103/105)”.
124
Trecho do mesmo julgado, p. 3: “A agravante ajuizou ação objetivando o fornecimento de
medicamentos no Juizado Especial Federal Cível de Curitiba/PR, em 9.10.2007, contra a União, o
Estado do Paraná e o Município de Curitiba. Narrou na petição inicial que: ‘A autora é portadora de
hipertensão, diabetes Mellitus, tipo 2, Osteoporose e artrose e insuficiência da tireoide, e catarata,
além de arritmia cardíaca crônica. Como com idade avançada, 78 anos de idade, necessita com
urgência dos medicamentos abaixo indicados: 1. Para hipertensão, medicamento Aradois, 50 mg, 1
cp uma vez por dia; 2. Para Diabetes Mellitus tipo 2, medicamento acarbose, 50 mg, 1 cp, três vezes
ao dia; 3. Para a osteoporose, medicamento Cálcio caps de 1.000 G, 1 cp ao dia e Sulfato de
Glicosamina, caps de 300 mg, 1 cps ao dia; 4. Para insuficiência da tireóide, medicamento Puran T4,
100 CG, 1 cp ao dia.; 5. Para catarata nos olhos, necessita do medicamento Lumigan (colírio) 0,03%
e Lacrifilm (colírio). [...] Além destes medicamentos, a autora necessita de fitas para glicemia (exame
da diabetes), fita advantage, num total de 25 ao mês e seringas para aplicação de insulina BD, num
total de 30 ao mês. O Estado do Paraná negou a medicação, com a justificativa de que não
pertencem ao Programa de Medicamentos Excepcionais. O único fornecido é o Puran T4.’ (fls. 175177)”.
125
Trecho do mesmo julgado, p. 6: “Pelo exposto, defiro a antecipação dos efeitos da tutela recursal
para incluir a União no pólo passivo da ação ajuizada na origem, o que importa na competência do
juizado especial federal para o caso, e determinar o fornecimento imediato dos medicamentos
indicados na petição inicial até o julgamento final do feito (art. 273 do Código de Processo Civil e art.
21 inc.. V, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal) (fls. 140-148, grifos nossos).”.
80
de que são solidárias as entidades públicas no que diz respeito ao direito
indisponível à saúde. Por essa tese, com fulcro no art. 196 da Constituição Federal,
o recurso foi improvido. O acórdão utilizou-se de vasta sustentação teórica.126-127
De outra banda, menciona-se que é preocupante a grande parte das
ações em trâmite em desfavor de municípios que, na maioria, não têm condições de
assumir tal ônus, especialmente porque recebem a menor fatia da verba
orçamentária, ínfima se comparada à dos respectivos estados e à da União.
8.10 FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO CONSTANTES NA LISTA DA
ANVISA E NO ROL DAS FARMÁCIAS PÚBLICAS
8.10.1 Na miríade racional da Suprema Corte, deparamo-nos com a
ruptura de obstáculos recentemente tidos como intransponíveis pela jurisprudência,
de tal sorte que novos tratamentos ainda não inseridos na lista da ANVISA podem
ser feitos, desde que haja comprovação da necessidade ao caso em questão. Por
126
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 271.286-8 –
RS. Relator Ministro Celso de Mello. Agravada: Cândida Silveira Saibert. Agravada: Dina Rosa Vieira.
Agravante: Município de Porto Alegre. Brasília, DF. Julgado em 11.09.2000. Publicado em
24.11.2000. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/779142/agregno-recursoextraordinario-re-agr-271286-rs>. Acesso em: 16 out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 1.413:
“Aduz o ora agravante, ainda, que a decisão agravada, ao deixar de observar ‘a repartição de
competência para operacionalização dos serviços de saúde, como forma de gestão financeira de
recursos, afronta o princípio federativo da separação dos poderes, bem como o artigo 198 e seu
parágrafo único da Constituição Federal, que responsabiliza as três esferas federativas pelo
financiamento, ações e serviços de saúde.’ (fls. 574) (Grifo nosso)”. Trecho do mesmo julgado, p.
1.418: “[...] entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito
subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5, caput e art.
196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário
do Estado [...]”. Trecho do mesmo julgado, p. 1.419: “Cumpre não perder de perspectiva que o direito
público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade
das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente
tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem
incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir,
aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar. (Grifo nosso)”.
127
Trecho do mesmo julgado, p. 1.421: ”Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o
reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração
constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido,
especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como
prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de
prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. (Grifos nosso)”.
81
estes precedentes, o que se reconhece é que a evolução da medicina tem sido
muito mais ágil do que a burocracia estatal pode acompanhar.
Com isso, o Poder Judiciário e o próprio Estado, por meio de agências ou
órgãos ligados à saúde, podem reconhecer que, em um caso específico, faz-se
necessário servir-se de outro medicamento ou tratamento ainda não praticado pelo
Estado brasileiro, mas que possui o aval da comunidade científica e pode trazer
benefícios ao doente. Com o mesmo intuito, tratamentos já disponíveis na rede
privada e não praticados pelo poder público, seja pelo alto custo, seja pela inovação
tecnológica, quando necessários ao tratamento do jurisdicionado, serão arcados
pelo Estado.
O Recurso Extraordinário com Agravo de n. 635.381/RS interposto pelo
Estado do Rio Grande do Sul pretendeu a reforma de acórdão proferido pelo
Tribunal de Justiça do referido estado, em que se concedeu o fornecimento de
medicamentos não constante no rol das farmácias públicas. O acórdão assentou a
obrigatoriedade
de
os
três
entres
federativos
fornecerem
medicamentos
solidariamente. Como fundamento, asseverou-se que o direito à saúde deve ser
respeitado pelo Estado.128
Ademais, mediante a interposição de Recurso de Agravo de Instrumento
n. 817.241/RS, o Estado do Rio Grande do Sul fitou que seja reformada decisão que
o obriga a fornecer gratuitamente medicamento não constante no rol das farmácias
públicas. A tese da Suprema Corte é que, não obstante o caráter programático do
art. 196 da ordem constitucional em vigor, cabe, sim, ao Estado – aqui incluídos
União, estados e municípios – fazer valer tal direito diante de iminente risco de se
perder a vida.129
128
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n. 635381/RS. Relator
Ministro Joaquim Barbosa. Requerente: Estado do Rio Grande do Sul. Requerido: Valzumiro Zanatta.
Brasília, DF. Julgado em 23.02.2011. Publicado em 05.04.2011. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18674902/recurso-extraordinario-com-agravo-are-635381-rsstf>. Acesso em: 16 out. 2013. Trecho do mesmo julgado, p. 1: “Consolidou-se a jurisprudência desta
Corte no sentido de que, embora o art. 196 da Constituição de 1988 traga norma de caráter
programático, o Estado não pode furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do
direito à saúde para todos os cidadãos. Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à vida,
de medicamentos que não esteja na lista daqueles oferecidos gratuitamente pelas farmácias públicas,
é dever solidário da União, do estado e do município de fornecê-lo.”.
129
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 817241/RS. Relator Ministro
Joaquim Barbosa. Agravante: Estado do Rio Grande do Sul. Agravado: Branca Odete Mendes
Acosta. Brasília, DF. Julgado em 30.09.2010. Publicado em 14.10.2010. Disponível em:
82
Outro caso célebre foi o Agravo Regimental na Ação Cautelar n.
2.267/PR, no qual a referida técnica jurídica pretendeu a reconsideração da decisão
agravada, no sentido de ratificar a solidariedade dos entes públicos da federação
para o fim de fornecer medicamentos. O agravo foi conhecido e provido. Restou
resguardado o direito à saúde sob o viés da solidariedade pública.130-131
Em sintonia com o fornecimento obrigatório de medicamento, mencionase ainda julgamento de acórdão no qual o Estado do Espírito Santo almejou
reformar decisão que inadmitiu recurso extraordinário mediante interposição dos
embargos de declaração132. Tal recurso buscava reformar decisão prolatada
inicialmente em mandado de segurança, cujo conteúdo garantia o fornecimento de
medicamento ao paciente. O recorrente tentou valer-se de um vício formal para não
cumprir a decisão que o obrigava à prestação do medicamento em questão.
De outro modo, o julgamento faz questão de assegurar a manutenção do
direito à saúde, representado pelo fornecimento da medicação requerida.133 Como,
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+8172
41%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/mby3qfa>. Acesso em: 16 out.
2013. Trecho do mesmo julgado, p. 1: “Consolidou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que,
embora o art. 196 da Constituição de 1988 traga norma de caráter programático, o Estado não pode
furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde para todos os
cidadãos. Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à vida, de medicamentos que não
esteja na lista daqueles oferecidos gratuitamente pelas farmácias públicas, é dever solidário da
União, do estado e do município de fornecê-lo.”.
130
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Ação Cautelar n. 2267/PR Relatora
Ministra Cármen Lúcia. Agravante: Valentina Mikulski Babinski. Agravado: União. Estado do Paraná.
Município de Curitiba. Brasília, DF. Julgado em 27.04.2011. Publicado em 04.05.2011. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18816013/agreg-na-acao-cautelar-ac-2267-prstf?ref=home>. Acesso em: 16 out. 2013. Ementa do julgado, p. 1: “DECISÃO AGRAVO
REGIMENTAL. AÇÃO CAUTELAR. RECURSO EXTRAORDINÁRIO ADMITIDO. RETENÇÃO NA
ORIGEM. COMPETÊNCIA DESTE SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECONSIDERAÇÃO DA
DECISÃO AGRAVADA. PEDIDO CAUTELAR: NATUREZA DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA
TUTELA
RECURSAL.
VEROSSIMILHANÇA
DA
ALEGAÇÃO.
FORNECIMENTO
DE
MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO.
ANTECIPAÇÃO DA TUTELA E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DEFERIDOS.”.
131
Trecho do mesmo julgado, p. 6: “O caso é de antecipação dos efeitos da tutela recursal, pois o
deferimento de efeito suspensivo ao recurso extraordinário não aproveitaria à Requerente,
sucumbente no Juízo singular e na Turma Recursal, conforme decidido por este Supremo Tribunal na
Pet 2.702-MC, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ 19.9.2003 [...].”.
132
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário n.
523756/ES. Relator Ministro Cezar Peluso. Embargante: Estado do Espírito Santo. Embargado:
J.T.D.O. Brasília, DF. Julgado em 21.01.2010. Publicado em 18.02.2010. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+523
756%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/mtnfvdj>. Acesso em: 16 out.
2013.
133
Trecho do mesmo julgado, p. 2: “DECISÃO: 1. Trata-se de embargos de declaração contra
decisão do teor seguinte: ‘1. Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal
83
por exemplo, foi julgado o recurso de Agravo de Instrumento em Recurso
Extraordinário de n. 607.381/SC, com o mote de reforma de decisão do tribunal local
que concedeu ao jurisdicionado a realização de tratamento médico custoso às
expensas da recorrente, o acórdão analisado manteve a decisão ante o argumento
de que o fornecimento de medicamento é direito fundamental; não caberia ao
Estado impor óbices.134
8.11 EXTENSÃO DO CONCEITO DE DIREITO À SAÚDE
8.11.1 Além disso, estendeu-se o fornecimento de fraldas descartáveis
como direito à saúde, garantindo-se aos necessitados o mesmo status constitucional
reservado à saúde. Nesse acórdão, o Ministério Público do Estado de São Paulo
ingressou com ação civil pública, com escopo de obrigar o Município de São Paulo a
fornecer fraldas descartáveis à adolescente portadora de paralisia cerebral,
tetraparalesiaespática e déficit cognitivo. O pleito foi deferido em primeiro grau de
jurisdição e depois mantido em segundo grau. Justamente por isso, o Município de
de Justiça do Estado do Espírito Santo e assim ementado: ‘MANDADO DE SEGURANÇA –
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – DIREITO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE –
PRINCIPALMENTE QUANDO DEMONSTRA A IMPOSSIBILIDADE ECONÔMICA DE ADQUIRÍ-LOS
– SEGURANÇA CONCEDIDA. 1 – O medicamento é adequado e indispensável à patologia do
impetrante, pois trata-se de medicação específica para o seu caso. 2 – A lei Fundamental estabelece
no seu artigo 196 que saúde é direito de todos e dever do Estado. 3 – Estando o direito à vida e à
saúde acima de quaisquer outros, é inadmissível a negativa do medicamento pelo Estado garantidor.
4 – Ordem concedida. (fls. 83). No recurso extraordinário, o recorrente alega violação ao disposto nos
arts. 2º, 5º, LIV, 196, da Constituição Federal. 5. Inadmissível o recurso. A recusa do Estado em
fornecer o medicamento coloca em risco a saúde de paciente necessitado e representa desrespeito
ao disposto no art. 196 da Constituição Federal, que determina ser a saúde direito de todos e dever
do Estado. Essa regra constitucional tem por destinatários todos os entes políticos que compõem a
organização federativa do Estado brasileiro.’”.
134
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 607.381/SC.
Relator Ministro Luiz Fux. Agravante: Estado de Santa Catarina. Agravado: Ruth Maria Rosa. Brasília,
DF.
Julgado
em
31.05.2011.
Publicado
em
17.06.2011.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+607
381%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+607381%2EACMS%2E%29&base=bas
eAcordaos&url=http://tinyurl.com/c4su8fe>. Acesso em: 16 out. 2013. Trecho do julgado, p. 209: “O
recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los
de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade
de custeá-los com recursos próprios. Isto por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente
federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido
pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional.”.
84
São Paulo interpôs o recurso, que resultou no acórdão ora analisado, com fulcro na
tese de que fraldas não estariam abrangidas pelo direito à saúde. Não se trataria de
direito à saúde, segundo o recorrente. Essa tese foi rechaçada. O recurso foi
improvido. Prevaleceu a interpretação extensiva ao direito à saúde com a mantença
da decisão anterior, a qual concedia à parte autora a prestação almejada.135-136
8.12 SUPERAÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL
8.12.1 No plano dogmático, o debate a respeito da possibilidade ou não
de efetivação do direito à saúde pelo Judiciário sempre teve como algoz o postulado
da reserva do possível. Resumidamente, significa dizer que os recursos são
escassos e as necessidades sociais infinitas. Desta feita, caberia ao Poder
Executivo a análise do que é mais importante. Nesta linha, o Estado-juiz não poderia
intervir nessas situações justamente porque não haveria recursos; seriam, pois,
escassos, o que obrigou o gestor público a concretizar a reserva do possível. Essa
forte defesa, reiteradas vezes utilizada como álibi, quer na jurisprudência, quer na
teoria, quer pela Administração Pública, é completamente desacreditada pela
racionalidade do STF. Isso porque, segundo a Corte, estar-se-ia a tratar de valores
constitucionais.
135
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n. 646.235/SP. Relatora
Ministra Cármen Lúcia. Requerente: Município de São Paulo. Requerido: Ministério Público do Estado
de São Paulo. Brasília, DF. Julgado em 01.08.2011. Publicado em 05.08.2011. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ARE%24%2ESCLA%2E+E+64
6235%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/mcc3do2>. Acesso em: 16
out. 2013. Trecho do julgado, p. 2: “O recurso extraordinário foi interposto contra o seguinte julgado
do Tribunal de Justiça de São Paulo: ‘Apelação Cível – Reexame necessário e recurso voluntário pela
municipalidade de São Paulo – Ação Civil Pública – Procedência para obrigar a Municipalidade a
fornecer fraldas descartáveis à adolescente com paralisia cerebral, tetraparesia espática e déficit
cognitivo – Preliminares de ilegitimidade afastadas – A proteção integral, de acordo com a inteligência
dos artigos 1º e 11, §2º, da Lei 8.069/90 (ECA), à adolescente necessitada, justifica o fornecimento
gratuito do item, de acordo com orientação médica – Inadmissibilidade de argumentos que vejam na
atuação do Judiciário, ao prestigiar direitos prioritários de crianças e adolescentes, indevida
intromissão na esfera de atuação do Executivo – Multa cabível nos termos do art. 213, §2º, do ECA e
aplicada com modicidade. Recursos desprovidos' (fls. 209).“.
136
Trecho do mesmo julgado, p. 2: “Assevera que ‘não há qualquer ligação entre fraldas e direito à
saúde e à vida’ e que ‘não sendo medicamento, não há que se falar em direito público subjetivo
oriundo diretamente da Constituição’ (fl. 328). (Grifo nosso)”.
85
O debate deve manter-se nesse nível e não se realizar em grau inferior,
no qual questões secundárias como as financeiras venham a tomar papel de
destaque, consoante afirma o Ministro Gilmar Mendes, entre outros, no Agravo
Regimental na Suspensão de Liminar n. 47/PE137. Ou mesmo em nível mais
ideológico, como faz o Ministro Marco Aurélio no RE 368.564-DF138, quando pontuou
a sua irresignação como contribuinte, cidadão e juiz pela inércia do Estado, com a
ironia de que a concessão do tratamento não deixaria a viúva mais pobre. Deste
mesmo acórdão, convém trazer à baila os enunciados postos pelos Ministros Ayres
Britto e Luiz Fux, nos seguintes termos: o Ministro Britto explana sobre a
comodidade da reserva do possível para o Estado. Tornou-se uma desculpa
cômoda.
8.12.2 Em sintonia, o Ministro Fux remonta ao seu posicionamento da
época que era Desembargador no TJRJ, depois Ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), para, enfim, como Ministro do STF, continuar a votar a favor da
efetividade da saúde, com a constatação de que a jurisprudência da Suprema Corte
é muito ampliativa quando se trata do tema. Vai mais além: traz ao debate a tese da
anatomia da esperança, a qual, nos dizeres do prêmio Nobel de Medicina, o
Professor Jerome Groopman, provoca nos pacientes a emissão de uma enzima que
pode prolongar a vida. Por adotá-la, o Ministro Fux é a favor de que o Estado
proporcione aos doentes todo tratamento que venha a alimentar essa esperança,
por estar estritamente ligada à dignidade da pessoa humana.
Noutro caso, em que a reserva do possível não encontrou êxito, o Estado
do Amazonas interpôs recurso extraordinário com fundamento na reserva do
possível, em face de acórdão que concedeu ao jurisdicionado o direito ao
137
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Liminar n. 47/ PE.
Relator Ministro Gilmar Mendes. Agravante: Estado de Pernambuco. Agravado: União. Ministério
Público Federal. Ministério Público do Estado de Pernambuco. Município de Petrolina. Brasília, DF.
Julgado
em
17.03.2010.
Publicado
em
30.04.2010.
Disponível
em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/9087061/agreg-na-suspensao-de-liminar-sl-47-pe>. Acesso
em: 16 out. 2013.
138
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 368.564/DF. Relator Ministro Marco
Aurélio. Requerente: União. Requerido: Maria Euridice de Lima Casale. Brasília, DF. Julgado em
13.04.2011.
Publicado
em
10.08.2011.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+368
564%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+368564%2EACMS%2E%29&base=bas
eAcordaos&url=http://tinyurl.com/k59qe3j>. Acesso em: 16 out. 2013.
86
fornecimento de medicação. Contudo, a decisão monocrática da Suprema Corte
analisada posiciona-se de encontro com a referida reserva do possível. Positiva que
a aludida reserva deve estar limitada ao atendimento do mínimo existencial.139
8.12.3 A reserva do possível não tem encontrado guarida nem mesmo
com os ministros mais conservadores no que diz respeito à atuação jurisdicional,
como o faz o Ministro Ricardo Lewandoski, de cuja lavra se destaca o Recurso
Extraordinário n. 628.293-DF140, quando se manteve a assertiva de que a reserva do
possível deve limitar-se ao mínimo existencial. Neste caso específico, o Estado do
Amazonas interpôs recurso extraordinário com o mote de ver reformado acórdão
que o obrigava a fornecer medicamentos.
Na sua fundamentação, o recorrente, com base na escassez de recursos
e na necessidade do chamamento da União ao processo, pretendia que seu pleito
fosse julgado pela Justiça Federal, o que foi indeferido, inclusive monocraticamente
pelo relator, com a justificativa de que o jurisdicionado pode exigir de qualquer dos
entes estatais a efetivação do direito à saúde e que essa solidariedade não pode,
nunca, ser utilizada como óbice à sua concretude. Chama atenção a decisão ter sido
proferida monocraticamente, o que denota como a questão é pacífica, mesmo que o
relator inicialmente julgasse o direito à saúde com preocupação de usurpação de
poderes.
No julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n.
393.175-0-RS141, a lide girou em torno do fornecimento de medicamentos gratuitos
139
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 628293/DF. Relator Ministro
Ricardo Lewandoski. Requerente: Estado do Amazonas. Requerido: Ministério Público do Estado do
Amazonas. Brasília, DF. Julgado em 02.08.2011. Publicado em 04.08.2011. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22925013/recurso-extraordinario-re-628293-df-stf>. Acesso
em: 16 out. 2013. Trecho do julgado, p. 2: ”O direito à saúde é direito constitucionalmente garantido;
A reserva do possível está limitada pelo atendimento do mínimo existencial; Sendo o direito a saúde
reconhecido como fundamental e de cunho positivo não pode o Estado fazer qualquer alegação para
o seu descumprimento.”.
140
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 628293/DF. Relator Ministro
Ricardo Lewandoski. Requerente: Estado do Amazonas. Requerido: Ministério Público do Estado do
Amazonas. Brasília, DF. Julgado em 02.08.2011. Publicado em 04.08.2011. Disponível em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22925013/recurso-extraordinario-re-628293-df-stf>. Acesso
em: 16 out. 2013.
141
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 393.175–O
– RS. Relator Ministro Celso de Mello. Agravante: Estado do Rio Grande do Sul. Agravada: Luiz
Marcelo Dias e outro (A/S). Brasília, DF. Julgado em 12.12.2006. Publicado em 02.02.2007.
Disponível
em:
87
para portador do vírus HIV. O Estado se serve do argumento da escassez de
recurso para negar o pleito de fornecimento da medicação. O decisum, relatado pelo
Ministro Celso de Mello, enfrentou a questão desqualificando os argumentos estatais
à luz da efetividade do direito à saúde, como corolário do direito à vida. Os
argumentos do Estado foram tipificados de mesquinhos e secundários diante do
problema proposto.142
Sobreleva também comentar mandado de segurança impetrado pelo
Ministério Público do Estado do Ceará, em que se pleiteou o fornecimento de
medicamento de elevado valor econômico para dois portadores de doença rara,
rotulada como Hemoglobinúria. Em sede de liminar, o mandamus foi deferido.
Consequentemente, o Estado do Ceará pleiteou a suspensão da medida ao
Presidente do STF sob o fundamento de grave dano à economia do estado
cearense, haja vista o elevado valor do tratamento. O acórdão decidiu no sentido de
que o alto custo de medicação, por si só, não é motivo hábil a fundamentar o
deferimento da suspensão da liminar.143-144
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+393
175%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+393175%2EACMS%2E%29&base=bas
eAcordaos&url=http://tinyurl.com/b53du76>. Acesso em: 16 out. 2013. Trecho do julgado, p. 1.524: “A
INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM
PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.”. Trecho do mesmo julgado, p. 1.525:
“DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, À PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À
PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O
ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de
programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos
fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, ‘caput’, e 196) e representa, na concreção do
seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente
daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de
sua essencial dignidade. Precedentes do STF. (Grifo nosso)”.
142
Trecho do mesmo julgado, p. 1.529: “Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no
exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente
causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica
como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art.
5º, ‘caput’ e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de
ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o
respeito indeclinável à vida e à saúde humanas. (Grifo nosso)”.
143
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Segurança n. 4304/CE. Relator Ministro Cezar
Peluso. Requerente: Estado do Ceará. Requerido: Relator do MS. Impetrante: Ministério Público do
Estado do Ceará. Brasília, DF. Julgado em 19.04.2011. Publicado em 02.05.2011. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28SS%24%2ESCLA%2E+E+430
4%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/luhdqpx>. Acesso em: 16 out.
2013. Trecho do julgado, p. 1: “Na origem, o Ministério Público do Ceará, impetrou mandado de
segurança, com pedido liminar, para garantir a Monique Sobreira de Carvalho Moreira e Tiago Moura
Sobreira Bezerra, portadores de doença rara denominada Hemoglobinúria.”. Trecho do mesmo
julgado, p. 2: “De acordo com o regime legal de contracautela (Leis nos 12.016/09, 8.437/92, 9.494/97
88
8.13 MINISTROS PRÓ-ATIVOS
8.13.1 Além do todo o relatado, indiretamente, a coleta dos dados
empíricos, por meio da pesquisa realizada no sítio do STF, denotou uma Corte de
Justiça voltada a julgar casos de interesse da sociedade. Ilustrativamente, vale citar
casos que ganharam grande repercussão na mídia: extensão do poder do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), cotas raciais em universidades públicas, aborto de fetos
sem cérebro e união civil de pessoas do mesmo sexo. Essa aproximação dos
grandes temas sociais fez com que o cidadão comum tivesse mais interesse em
acompanhar os julgamentos da Corte e, por conseguinte, buscasse entender a sua
forma de raciocinar. Tal interesse teve o seu ápice com o julgamento do mensalão, o
que proporcionou ao Supremo, nas palavras da imprensa: “um ano pop”. A
visibilidade mais que duplicou em 2012. As citações do STF na mídia tiveram um
acréscimo de mais de 116%.145
De resto, ventila-se ainda que a racionalidade do STF em direito à saúde
materializa a postura dos ministros de uma atuação pró-ativa, diversa dos contornos
tradicionais, ligadas propriamente a um magistrado inerte – quase compassivo, de
modo que não são poucas as críticas recebidas, também em razão dessa postura,
com a acusação de uma Corte política, seguida da pecha de usurpadora de poderes
do sistema político.
Sem menoscabo às premissas adotadas pelas críticas, no que diz
respeito ao objeto de pesquisa, sob o ponto de vista interno do direito, fulgura-se
e art. 297 do RISTF), compete a esta Presidência suspender execução de decisões concessivas de
segurança, de liminar ou de tutela antecipada, proferidas em única ou última instância, pelos tribunais
locais ou federais, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.”.
144
Trecho do mesmo julgado, p. 3: “Nesses termos, verifico que a Corte, no julgamento das STAS nº
244-AgR e 175 – AgR (Min. GILMAR MENDES, DJE de 30.4.2010) fixou parâmetros que devem
nortear o julgador na solução de conflitos que envolvem questões relativas ao direito à saúde. Dentre
os critérios fixados, destaco a vedação imposta à Administração Pública no tocante ao fornecimento
de medicamento que não possua registro na ANVISA. É que, conforme as informações prestadas
pela ANVISA, o fármaco SOLIRIS (eculizumabe) não possui registro no Ministério da Saúde.”. Trecho
do mesmo julgado, p. 4: “Ademais, o alto custo do medicamento não é, por si só, motivo suficiente
para caracterizar a ocorrência de grave lesão à economia e à saúde públicas, visto que a Política
Pública de Dispensação de Medicamentos excepcionais tem por objetivo contemplar o acesso da
população acometida por enfermidades raras aos tratamentos disponíveis.”.
145
FERREIRA, Flávio. Visibilidade do Supremo mais que duplica. Folha de São Paulo. A 10.
13.01.2013.
89
que a racionalidade em questão manteve-se precipuamente como jurídica. Neste
ensejo, ficou claro que há todo um arcabouço dogmático utilizado como supedâneo
da tomada de decisões. E isso porque, mormente nos acórdãos paradigmas, a
preocupação de se externar a forma de julgar e o porquê daquele decidir chega às
minúcias para uma decisão judicial.
8.14 MINISTROS PARADIGMAS EM DIREITO À SAÚDE
Dentro do material empírico coletado, denota-se claramente a luta
dialética em torno da natureza jurídica e da extensão do direito à saúde. Como
consequência desse processo, pouco a pouco, o ideário de saúde como programa a
ser atingido pelo Estado num futuro distante, quase que utópico, vai saindo de cena,
para, então, paulatinamente, adentrar o palco a busca pela sua concretude. Nessa
luta, o paradigma da separação dos poderes, num viés liberal, teve de ser rompido a
fim de se forjar um novo, mais próximo do social e participativo. No entanto, destacase que o seu torneio ainda está em franca ebulição. O futuro de como veremos a
relação entre os poderes republicanos é pouco previsível. Certas, porém, são a
elevada complexidade social e a sua contingência como fatores de influência
constante.
Ademais, reportando-nos ao instigante material coletado, chama atenção
o papel exercido por três atores igualmente importantes, os quais, por suas atuações
intelectuais e de liderança na Suprema Corte, romperam paradigmas e cunharam
novos valores de postura judicial diante dos demais poderes, de interpretação das
normas constitucionais programáticas, de direito público subjetivo indisponível, de
concretude da norma constitucional. São eles: os Ministros Celso de Mello, Marco
Aurélio Mello e Gilmar Ferreira Mendes.
90
8.14.1 Ministro Celso de Mello
O Ministro Celso de Mello foi nomeado em 30 de junho de 1989 como
Ministro da Excelsa Corte e empossado em 17 de agosto de 1989, oriundo da
carreira do Ministério Público do Estado de São Paulo. É o atual ministro decano da
referida Corte. No que diz respeito à pesquisa, identificou-se com um papel
fundamental na própria formação do conceito de direito à saúde como direito público
subjetivo indisponível e também no ideário de que as normas programáticas não
podem tornar-se promessa inconsequente.
Para compreender a magnitude da sua atuação, não é demais remontar à
guinada constitucional que pretendiam os constituintes de 1988, quando brindaram o
país com uma nova Carta Magna, repleta de direitos, conceitos novos e uma vasta e
conflitante base ideológica. Simbolicamente, forjou-se uma carta de direitos para
uma nação com uma ainda frágil democracia, pouco desenvolvimento e socialmente
heterogênea.
Exatamente nesse cenário, tomou posse José Celso de Mello Filho.
Discreto na sua vida pessoal e nas suas falas, gradativamente, o ministro foi
impondo ideologicamente uma nova racionalidade na forma de julgar o direito à
saúde e as normas programáticas. A bem da verdade, teve a lucidez de pensar fora
do seu tempo, ir além, propriamente forjando – numa construção histórica – o
conceito de direito à saúde indisponível, mesmo diante da incapacidade estatal.
Durante esse percurso, o Ministro Celso de Mello deparou-se com
paradigmas extremamente difíceis de serem rompidos, dos quais, é nítida e
necessária a constatação de que o STF é, sim, uma Corte de forte dimensão
política, consoante se aduz do julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n. 45/DF146. Consequentemente, há a constatação de que o
Poder Judiciário tem legitimidade para a implementação de políticas públicas,
quando configurada a abusividade da atuação ou mesmo da não atuação estatal.
Talha-se, nesse prisma, uma nova perspectiva ao conservador princípio da
separação dos poderes, como o próprio ministro grafa, no citado julgado:
146
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 45 – MC/DF. Relator Ministro Celso de Mello.
Brasília, DF. Julgado em 29.04.2004. Publicado em DJU 04.05.2004, p. 4-5. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm>. Acesso em: 20 set. 2013.
91
[...] parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto
dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos
gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado
Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se
mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos
respectivos preceitos constitucionais.
A influência do Ministro Celso de Mello nos julgamentos em direito à
saúde materializa-se reiteradamente nas decisões da Suprema Corte como
paradigma propriamente dito; quer dizer: um ponto de partida seguro, confiável e
respeitado.
São
inúmeros
exemplificadamente,
as
os
precedentes
seguintes
decisões:
nessa
Agravo
linha,
de
valendo
citar,
Instrumento
n.
507.072/MG147 – Relator Ministro Joaquim Barbosa, Agravo de Instrumento n.
597.182-AgR/RS148 – Relator Ministro Cezar Peluso e Agravo de Instrumento n.
607.646/SC149 – Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Nas três decisões, serve
como paradigma o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 271.286/RS da
relatoria do Ministro Celso de Mello. Dentro do material coletado, essa decisão, no
que diz respeito ao fornecimento de remédio, é lugar-comum, citado muitas vezes.
Nos acórdãos em comento, nos dois primeiros, legitimou-se o bloqueio de valores
dos cofres públicos a fim de assegurar o fornecimento gratuito de remédios. No
último, o ministro fundamentou decisão que garantia medicamento especial para
tratamento de doença conhecida como Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA).
O reiterado acórdão AgR n. 271.286-RS, relado pelo Ministro Celso de
Mello, foi proferido em 19 de setembro de 2000, num cenário racional muito adverso
se comparado ao atual da Suprema Corte. Naquele momento, ainda era forte uma
racionalidade voltada para a pouca intervenção do Poder Judiciário em direitos
sociais; mas é verdade, por outro lado, que o direito à vida já contava com um
147
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI n. 507.072 – MG. Relator Ministro Joaquim Barbosa.
Brasília, DF. Julgado em 30.05.2006. Publicado em DJU 03.08.2006. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+5070
72%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/omga9mt>. Acesso em: 16
out. 2013.
148
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgR n. 597.182– RS. Relator Ministro Cesar Peluso. Brasília,
DF.
Julgado
em
10.10.2006.
Publicado
em
DJU
06.11.2006.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+5971
82%2ENUME%2E%29+OU+%28AI%2EACMS%2E+ADJ2+597182%2EACMS%2E%29&base=baseA
cordaos&url=http://tinyurl.com/a8z6y88>. Acesso em: 16 out. 2013.
149
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI.n. 607/646 – SC. Relator Ministro Ricardo Lewandowski.
Brasília, DF. Julgado em 15.09.2006. Publicado em DJU 02.10.2006. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=189&dataPublicacaoDj=02/10/200
6&incidente=2387166&codCapitulo=6&numMateria=143&codMateria=3>. Acesso em: 16 out. 2013.
92
tratamento diferenciado. Enquanto isso, as demais perspectivas do direito à saúde
ainda eram vistas com reserva, ancoradas na aplicação do princípio da separação
dos poderes, em nítido viés liberal. O famoso decisum alude ao fornecimento de
medicamentos para combater a HIV/AIDS. Em síntese, o Ministro Celso de Mello
inseriu no debate processual daquele processo conceitos como direito público
subjetivo à saúde, acenando que a interpretação da norma constitucional
programática não pode transformá-la em promessa inconsequente, com o arauto de
garantir que o direito à saúde seja resguardado.
8.14.2 Ministro Marco Aurélio Mello
Marco Aurélio de Farias Mello foi empossado como Ministro da Corte
Suprema em 13 de junho de 1990. Teve rápida passagem na advocacia e no
Ministério Público do Trabalho. Atuou como juiz do trabalho de 1978 a 1981, quando
tomou posse como ministro no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Também, em
razão de sua atuação profissional anterior ao STF ter sido essencialmente ligada ao
direito do trabalho, ideologicamente sempre teve uma postura jurisdicional mais
voltada ao Estado Social do que ao Liberal. O assistencialismo sempre esteve
presente em seus votos e, por vezes, não procurou buscar consistência teórica em
seus votos, talvez por acreditar na simplicidade de escolha entre os valores em
litígio. Pautou-se o ministro muito mais pela busca de um fim que acreditava ser o
mais justo.
As atuações do ministro em direito à saúde tipificam-se como um
sentimento puro, de fundo ideológico. Sua postura é sempre em favor da concretude
do direito em comento, como se só existisse uma opção a ser escolhida, até por
esse motivo, despreocupada em demonstrar uma refinada justificativa constitucional.
Na verdade, tem um posicionamento rígido, irrenunciável, que contribuiu para a
formação da racionalidade atual da Suprema Corte. Seu papel foi importante porque
marcou uma postura ideológica forte em favor da quebra do paradigma da
separação dos poderes como máxima liberal.
Em sintonia com o exposto supra e à luz da releitura dos votos do Ministro
Marco Aurélio de Mello, os seus argumentos deparam-se com uma verbalização
93
emocional, chegando, em algumas situações, a um desabafo. Nota-se que nos
argumentos deste ministro, o homem da lei fica de lado para defender o
jurisdicionado que se sente injustiçado com as promessas constitucionais não
cumpridas, a ponto de se extrair dos seus votos máximas como: “a viúva não ficará
mais pobre”. No aspecto, vale transcrever:
’O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Estou
desprovendo e mantendo o acórdão. O recurso é da União.
Certamente, com esse tratamento. A viúva não ficará mais pobre!’.
[...] Essa denominada reserva do possível, no tocante ao Estado,
leva-me à indignação como contribuinte, como cidadão, como juiz,
pois, se for realmente empolgada e aceita, teremos desculpa para
tudo, porquanto, desde que me conheço, o Estado, em que pese a
grande carga tributária, luta contra escassez de receita, mas luta
porque tem despesas excessivas, principalmente com a máquina
administrativa e a dívida interna.150
8.14.3 Ministro Gilmar Ferreira Mendes
8.14.3.1 Antes do ingresso do Ministro Gilmar Ferreira Mendes no STF já
havia em curso nesta Corte o debate em torno do direito à saúde e da sua
concretude por meio de decisões judiciais, bem como uma racionalidade direcionada
no sentido da sua efetivação, quando omissos os demais poderes da República e
configuradas situações excepcionais. No entanto, não obstante o palco do debate
ser a Corte Constitucional, boa parte das discussões e das justificativas para a
concessão gravitava muito mais em torno do debate infraconstitucional do que
propriamente das discussões constitucionais, como se pode evidenciar nos Agravos
de Instrumentos n. 232.469-RS151 e n. 238.328-RS152, ambos relatados pelo Ministro
Marco Aurélio.
150
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 368.564/DF. Relator Ministro Marco
Aurélio. Requerente: União. Requerido: Maria Eurídice de Lima Casale. Brasília, DF. Julgado em
13.04.2011. Publicado em 10.08.2011, respectivamente, p. 81, 85. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+368
564%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+368564%2EACMS%2E%29&base=bas
eAcordaos&url=http://tinyurl.com/k59qe3j>. Acesso em: 16 out. 2013.
151
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de instrumento n. 232.469/RS. Relator Ministro Marco
Aurélio. Requerente: Município de Porto Alegre. Requerido: Loreni de Fátima Santos Serpa. Brasília,
DF.
Julgado
em
12.12.1998.
Publicado
em
23.02.1999.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+2324
69%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/nd7prs9j>. Acesso em: 16 out.
2013.
94
Nesses arestos, garantiu-se o fornecimento de medicamentos por parte
do Município de Porto Alegre, em que pese a argumentação do ente público
agravante, no sentido da não regulamentação legal da obrigatoriedade do
fornecimento dos remédios. Contudo, buscou-se fundamento na existência de outros
convênios entre os poderes públicos e em legislações estaduais, mesmo que
implicitamente, e, ao final do decisum, fez-se menção à Constituição Federal. Desse
modo, da sua leitura não se extrai uma elevada consistência “teórico-constitucional”
a respeito do litígio a ser dirimido.
Em similar contexto, enfileira-se o Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário n. 273.042-4/RS153, da relatoria do Ministro Carlos Velloso. Aqui, o
Município de Porto Alegre também leva seu pleito à Corte Suprema com o propósito
de imediatamente cessar a sua obrigação de fornecer medicamento ao recorrido sob
a justificativa de que a obrigação é do Estado do Rio Grande do Sul. O recurso,
igualmente,
foi
indeferido,
porém,
ainda
sem
uma
justificativa
em
nível
constitucional. Pelo seu teor, garantiu-se o direito à saúde, mas sem bem saber o
porquê; quase que numa perspectiva puramente ideológica. Com esse mesmo
diapasão, tem-se o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 255.627-RS (o
Ministro Nelson Jobim foi o relator), cuja fundamentação, além de não ter
consistência teórico-constitucional, inclinando-se por uma postura meramente
ideológica, mais próxima da comunicação política do que da jurídica, serve-se
meramente de precedentes similares, numa destacada simplificação da questão. Por
outro lado, extraindo-se a questão ideológico-político, a racionalidade se aproxima
do common law, todavia, numa versão mais empobrecida.
152
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de instrumento n. 238.328/RS. Relator Ministro Marco
Aurélio. Requerente: Município de Porto Alegre. Requerido: Ana Luiza Soares de Carvalho. Brasília,
DF.
Julgado
em
16.11.1999.
Publicado
em
18.02.2000.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+2383
28%2ENUME%2E%29+OU+%28AI%2EACMS%2E+ADJ2+238328%2EACMS%2E%29&base=baseA
cordaos&url=http://tinyurl.com/p39qk6b>. Acesso em: 16 out. 2013.
153
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 273.042/RS.
Relator Ministro Carlos Velloso. Requerente: Município de Porto Alegre. Requerido: Carlos Alfredo de
Souza Luize. Brasília, DF. Julgado em 28.08.2001. Publicado em 11.09.2001. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335726>. Acesso em: 16 out.
2013.
95
8.14.3.2 Outro aspecto notado nesse cenário “Pré-Ministro Gilmar” alude
ao fato de que a intervenção do Judiciário é bem definida em questões extremas,
como o tratamento de AIDS, conforme se pode ver no acórdão do Recurso
Extraordinário n. 236.644/RS154, que teve como relator o Ministro Maurício Corrêa. A
propósito, a Corte Suprema atuava em casos de vida e morte, situações extremas
que reclamavam o básico como remédio para a AIDS. Nesse cenário, já havia uma
racionalidade no apreço da concretude do direito à saúde, notadamente pelas
intervenções do Ministro Celso de Mello.
Em razão de todo o exposto, com o fito de analisar um julgado que
abarque as duas perspectivas, isto é, a da abordagem infraconstitucional (neste
caso aliada a pouca consistência teórico-constitucional) e a da busca da concretude
do direito à saúde em razão da visualização de casos de vida e morte, confere-se o
Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 259.508-RS155 (Relator Maurício
Corrêa), publicado em 16 de fevereiro de 2001. Ou ainda, quando o tratamento do
paciente exigia que ele ficasse em quarto separado, rotulado nos precedentes como
“Diferença de Classe sem Ônus para o SUS”; quer dizer: os médicos constataram
que era preciso que o paciente ficasse internado em quarto privativo e o doente
propôs pagar a diferença. Curiosamente, o Estado não aceitava essa situação.
Vedava-se o quarto privativo, mesmo com o pagamento do excedente. Há vários
acórdãos nessa linha, dos quais se destacam: Recurso Extraordinário n. 207.9707/RS (Relator Ministro Moreira Alves), Recurso Extraordinário n. 226.835-6/RS
(Relator Ilmar Galvão) e Recurso Extraordinário n. 255.086-8/RS (Relatora Ministra
Ellen Gracie).
154
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 236.644/RS. Relator Ministro
Maurício Corrêa. Requerente: Município de Porto Alegre. Requerido: Carlos Alberto Ebeling Duarte.
Brasília, DF. Julgado em 05.08.1999. Publicado em 03.09.1999. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+236
644%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/nmwr2n3>. Acesso em: 16
out. 2013.
155
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 259.508/RS. Relator Ministro
Maurício Corrêa. Requerente: Município de Porto Alegre. Requerido: Patrício Palácio de Souza.
Brasília, DF. Julgado em 08.08.2000. Publicado em 16.02.2001. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+236
644%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/nmwr2n3>. Acesso em: 16
out. 2013.
96
Desse quadro, exsurge as questões: qual direito à saúde foi garantido? O
de pagar a diferença? Por esse cenário também é possível se analisar o nível de
cidadania que se encontrava no Brasil.
Gilmar Mendes tomou posse como Ministro do STF em 20 de junho de
2002. Antes disso, porém, desenvolveu forte pesquisa acadêmica, especialmente
em direito constitucional. O magistrado cursou Mestrado e Doutorado na Alemanha,
e exercia a docência (ainda exerce), na mesma área, na Universidade de Brasília
(UnB), consoante se pode examinar do curriculum vitae disponibilizado no próprio
site do Tribunal156: Uma análise mais detalhada em seu currículo denota uma forte
formação acadêmica voltada justamente às questões constitucionais.
Além da atuação como ministro-julgador propriamente dito, Gilmar
Mendes deixou a sua marca no direito à saúde, durante o exercício da Presidência
do STF, seja pela importante convocação da audiência pública sobre judicialização
da saúde, seja pela construção teórica grafada nos julgamentos de recursos para
suspensão de segurança, suspensão de tutela antecipada e suspensão de liminar
de competência privativa da Presidência, como ofertado na Suspensão de Liminar n.
47-AgR/PE157 e na Suspensão de Tutela Antecipada n 175-AgR/CE158. No primeiro
caso, o então Presidente da Suprema Corte – Ministro Gilmar Ferreira Mendes –
convocou uma audiência pública para ouvir médicos, gestores públicos, membros da
sociedade civil etc., com o condão de coletar informações sobre o problema da
saúde e da sua judicialização no Brasil. A audiência ocorreu nos dias 27, 28 e 29 de
abril e 4, 6, e 7 maio de 2009.159 Pelo teor dos depoimentos colhidos de diferentes
156
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Gilmar Ferreira Mendes. Curriculum Vitae. 2008. Disponível
em:<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoComposicaoPlenariaApresentacao/anexo/
cv_gilmar_mendes_2008maio06.pdf>. Acesso em: 24 set. 2013.
157
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Liminar n. 47/ PE.
Relator Ministro Gilmar Mendes. Agravante: Estado de Pernambuco. Agravado: União. Ministério
Público Federal. Ministério Público do Estado de Pernambuco. Município de Petrolina. Brasília, DF.
Julgado
em
17.03.2010.
Publicado
em
30.04.2010.
Disponível
em:
<http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/9087061/agreg-na-suspensao-de-liminar-sl-47-pe>. Acesso
em: 16 out. 2013.
158
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada n. 175 AgR/CE. Relator
Ministro Gilmar Mendes. Agravante: União. Agravado: Ministério Público Federal. Clarice Abreu de
Castro Neves. Município de Fortaleza. Estado do Ceará. Brasília, DF. Julgado em 17.03.2010.
Publicado
em
30.04.2010.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610255>. Acesso em: 16 de
outubro de 2013.
159
Vide BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Audiências públicas realizadas. Judicialização do direito
à
saúde.
Disponível
em:
97
setores, concluiu-se que já existem inúmeras políticas públicas em direito à saúde,
nos mais diversos aspectos, de modo que não se trataria propriamente de
judicialização das políticas públicas, uma vez que já estavam em atividade (haviam
sido implantadas), mas sim da necessidade de intervenção do Judiciário quando
elas se mostraram inefetivas. Portanto, por meio de decisões judiciais, buscar-se-ia
a concretude social das políticas já em vigor e não haveria de se falar em sua
criação pelas decisões suprarreferidas.
Com a mesma importância histórica dada ao tema, o Ministro Gilmar
enfrentou a questão quando relatava os inúmeros casos de pedidos de suspensão
de decisões liminares. Dessa gama, destaca-se o Agravo Regimental na Suspensão
de Liminar n. 47/PE, oportunidade em que trouxe a lume uma vasta leitura sob o
tema, para forjar, dentro da Corte, o conceito de direito à saúde como direito
fundamental, o que invariavelmente produziu um aumento de consistência teórica ao
julgamento, influenciando sobremaneira os demais ministros nos novos julgamentos
sobre a mesma temática. Nesse sentido, aos olhos da tese, destaca-se como
relevante a assertiva do Ministro Eros Grau, no mesmo julgamento, em que
categoricamente afirmou, na página 62: “O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: Presidente, vou acompanhar Vossa Excelência [o Ministro Gilmar Mendes], sem
dúvida, e não posso deixar de dizer da alta qualidade do voto proferido, que
certamente vai ficar marcado neste Tribunal.”.
Com base no exposto, exorta-se que a racionalidade jurídica trata-se
mesmo de um processo de semiose comunicacional em favor de uma maturidade
constitucional inerente a países novos como o Brasil. Muito já se percorreu, mas a
situação social e sobretudo o porvir exigem que a caminhada continue, sempre, e
sempre.
<http://www.stf.jus.br/portal/audienciaPublica/audienciaPublica.asp?tipo=realizada>. Acesso em: 19
set. 2013.
98
8.15 AUDIÊNCIA PÚBLICA: “JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE”
8.15.1 Na condição de Presidente do STF, o Ministro Gilmar Ferreira
Mendes, com fulcro na Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o
processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação
declaratória de constitucionalidade perante a Suprema Corte, e no seu Regimento
Interno, alterado pela Emenda Regimental n. 29, de 18 de fevereiro de 2009, a qual
modificou parte dos artigos 13, 21, 154 e 363, convocou audiência pública para
buscar esclarecimentos de especialistas de diversos setores, a fim de forjar material
para dar supedâneo aos julgamentos de concretização do direito à saúde levados,
naquele momento, ao Tribunal Supremo, com destaque para: Suspensão de Liminar
n. 47, Suspensão de Liminar n. 64, Suspensão de Tutela Antecipada n. 36,
Suspensão de Tutela Antecipada n. 185, Suspensão de Tutela Antecipada n. 211,
Suspensão de Tutela Antecipada n. 278, Suspensão de Segurança n. 2.361,
Suspensão de Segurança n. 2.944, Suspensão de Segurança n. 3.345 e Suspensão
de Segurança n. 3.355, de competência da Presidência.
Para entender a dimensão e a interdisciplinariedade da proposta, é
recomendável transcrever e comentar as sessões, nos termos que foram
concebidas, consoante os quadros que seguem.
99
Quadro 1 – Primeiro dia da Audiência Pública
27 DE ABRIL DE 2009 – SEGUNDA-FEIRA
O ACESSO ÀS PRESTAÇÕES DE SAÚDE NO BRASIL – DESAFIOS AO PODER
JUDICIÁRIO
Sessão de Abertura: Ministro Gilmar Mendes, Presidente do STF;
Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, Procurador-Geral da República;
Ministro José Antônio Dias Toffoli, Advogado-Geral da União;
Leonardo Lorea Mattar, Defensor Público-Geral da União em exercício;
Alberto Beltrame, Secretário de Atenção da Saúde do Ministério da Saúde;
Flávio Pansiere, representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
Marcos Salles, representante da Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB;
Ingo W. Sarlet, Professor Titular da PUC/RS e Juiz de Direito;
Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Ministro do Supremo Tribunal Federal;
Encerramento - Ministro Gilmar Mendes.
Fonte: Supremo Tribunal Federal160
Como era de se esperar, o primeiro dia da audiência pública volveu-se em
torno de uma introdutória problematização do tema, com a preocupação de externar
uma visão geral da saúde fornecida (imposta) por meio de decisões judiciais. Em
síntese, concluiu-se que a saúde pública vem sendo redirecionada pelo Poder
160
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. O acesso às prestações de saúde no Brasil – Desafios ao
Poder
Judiciário.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cro
nograma>. Acesso em: 22 out. 2013.
100
Judiciário. De fato, a quantidade de decisões e, muitas vezes, a complexidade
logística e financeira das medidas determinadas e fornecidas ao jurisdicionado
(regra geral, medicamentos e tratamentos caros) impuseram outra lógica à
Administração Pública.
Pela leitura dos depoimentos transcritos, torna-se quase lugar-comum
que a forma como o Poder Judiciário tem atuado, acaba por prejudicar o universal
em favor do particular.
Exemplos nesse sentido há muitos, como o pedido de Suspensão de
Tutela Antecipada n. 198/MG161, indeferido pelo STF, no qual se pediu a suspensão
da decisão antecipatória dos efeitos da tutela jurisdicional concessiva de medida que
obrigou o Estado a arcar com um tratamento de doença rara e degenerativa no
importe de dois milhões e seiscentos mil de reais (R$ 2.600.000,00). Também se
citou o julgamento, pelo plenário da Corte, do Agravo Regimental na Suspensão de
Tutela Antecipada n. 223162, em que se decidiu no sentido de garantir ao
jurisdicionado o fornecimento de medicamento no importe de cento e cinquenta mil
dólares (US$150.000).
Durante as exposições dos convidados, o Professor Ingo Sarlet chegou a
afirmar que não existe, em termos quantitativos e qualitativos, atuação similar no
direito comparado.
Ao fim da sessão, ficou a ressalva de que é preciso repensar a forma de
garantir o direito à saúde.
161
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada n. 198/MG. Relator Ministro
Gilmar Mendes. Requerente: Estado de Minas Gerais. Requerido: Relator do Agravo de Instrumento
nº 2007.01.00.043356-3 do Tribunal Federal Regional da 1ª Região. União. Município de Belo
Horizonte. Brasília, DF. Julgado em 22.12.2008. Publicado em 03.02.2009. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28STA%24%2ESCLA%2E+E+19
8%2ENUME%2E%29&base=basePresidencia&url=http://tinyurl.com/obe847x>. Acesso em: 16 out.
2013.
162
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada n. 223/PE. Relatora Ministra
Ellen Grace. Requerente: Estado de Pernambuco. Requerido: Relator do Agravo de Instrumento nº
0157690-9 do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Brasília, DF. Julgado em 12.03.2008.
Publicado
em
18.03.2008.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28STA%24%2ESCLA%2E+E+22
3%2ENUME%2E%29&base=basePresidencia&url=http://tinyurl.com/aj28lcv>. Acesso em: 16 out.
2013.
101
Quadro 2 - Terceiro dia da Audiência Pública
29 DE ABRIL DE 2009 – QUARTA-FEIRA
GESTÃO DO SUS – LEGISLAÇÃO DO SUS E UNIVERSALIDADE DO SISTEMA
Abertura - Ministro Gilmar Mendes;
Adib Domingos Jatene, Ex-Ministro da Saúde e Diretor-Geral do Hospital do Coração em
São Paulo;
Osmar Gasparini Terra, Presidente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde –
CONASS
Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira, Procuradora-Geral do Ministério Público de Contas
do Distrito Federal, e Cátia Gisele Martins Vergara, Promotora de Justiça do Ministério
Público do Distrito Federal, representantes da Associação Nacional do Ministério Público
de Contas;
Vitore Maximiano, Defensor Público do Estado de São Paulo;
Jairo Bisol, Presidente da Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde;
Paulo Ziulkoski, Presidente da Confederação Nacional dos Municípios (apresentação em
PowerPoint);
Ana Beatriz Pinto de Almeida Vasconcellos, Gerente de Projeto da Coordenação Geral da
Política de Alimentos e Nutrição do Departamento de Atenção Básica do Ministério da
Saúde (apresentação em PowerPoint);
Cleusa da Silveira Bernardo, Diretora do Departamento de Regulação, Avaliação e
Controle de Sistemas do Ministério da Saúde (apresentação em PowerPoint);
Alexandre Sampaio Zakir, representante da Secretaria de Segurança Pública e do Governo
de São Paulo;
Encerramento - Ministro Gilmar Mendes.
Fonte: Supremo Tribunal Federal163
163
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Gestão do SUS – Legislação do SUS e universalidade do
sistema.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cro
nograma>. Acesso em: 22 out. 2013.
102
No terceiro dia de sessão, a atenção voltou-se para os números
apresentados pelo Presidente do Conselho Municipal dos Secretários Municipais de
Saúde. O Senhor Antônio Carlos Figueiredo Nardi apresentou um comparativo do
Brasil com os gastos ordinários com saúde nos EUA e a média geral dos países
desenvolvidos. A diferença é alarmante. Enquanto, no Brasil, gastam-se 8% do PIB
com saúde, os EUA gastam 15%. A média geral dos países desenvolvidos é 10%.
Por outro critério, tem-se que o valor per capita gasto no Brasil é de
setecentos dólares (US$ 700), enquanto nos EUA é de sete mil e quinhentos dólares
(US$ 7.500). A média dos países desenvolvidos fica entre três mil e cinco mil dólares
(US$ 3.000 e US$ 5.000).
Como escusa, é fácil proferir a assertiva de que o Brasil ainda é um país
em desenvolvimento e que tais comparativos não são adequados a nossa realidade.
Em que pese essa justificativa, fica a indagação: o ativismo judicial, no viés da
concretude da saúde, tem aceitado essa ressalva? Não.
103
Quadro 3 – Quarto dia da Audiência Pública
4 DE MAIO DE 2009 – SEGUNDA-FEIRA
REGISTRO NA ANVISA E PROTOCOLOS E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS DO
SUS
Abertura - Ministro Gilmar Mendes
Dirceu Raposo de Mello, Diretor-Presidente da ANVISA (apresentação em PowerPoint);
Geraldo Guedes, Representante do Conselho Federal de Medicina;
Luiz Alberto Simões Volpe, Fundador do Grupo Hipupiara Integração e Vida;
Paulo Marcelo Gehm Hoff, representante da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo,
do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo e da Faculdade de Medicina da USP
(apresentação em PowerPoint);
Paulo Dornelles Picon, representante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do
Hospital de Clínicas de Porto Alegre (apresentação em PowerPoint);
Claudio Maierovitch Pessanha Henrique, Coordenador da Comissão de Incorporação de
tecnologia do Ministério da Saúde (apresentação em PowerPoint);
Janaína Barbier Gonçalves, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul;
Sueli Gandolfi Dallari, representante do Centro de Estudos e Pesquisa de Direito Sanitário;
Leonardo Bandarra, Presidente do Concelho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça
do Ministério Público dos Estados e da União;
Encerramento - Ministro Gilmar Mendes.
Fonte: Supremo Tribunal Federal164
164
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Registro na ANVISA e protocolos e diretrizes terapêuticas do
SUS.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cro
nograma>. Acesso em: 22 out. 2013.
104
Quadro 4 – Quinto dia da Audiência Pública
6 DE MAIO DE 2009 - QUARTA-FEIRA
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE – INTEGRALIDADE DO SISTEMA
Abertura - Ministro Gilmar Mendes;
Maria Inês Pordeus Gadelha, Consultora da Coordenação–Geral de Alta
Complexidade do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde
(apresentação em PowerPoint);
Jorge André de Carvalho Mendonça, Juiz da 5ª Vara Federal de Recife;
Luís Roberto Barroso, representante do Colégio Nacional de Procuradores dos
Estados e do Distrito Federal e Territórios;
Valderilio Feijó Azevedo, representante da Associação Brasileira de Grupos de
Pacientes Reumáticos (apresentação em PowerPoint);
Heloisa Machado de Almeida, representante da ONG Conectas Direitos Humanos
(apresentação em PowerPoint);
Paulo Menezes, Presidente da Associação Brasileira de Amigos e Familiares de
Portadores de Hipertensão Arterial Pulmonar;
Raul Cutait, Professor Associado da Faculdade de Medicina da USP, Médico
Assistente do Hospital Sírio Libanês, Ex-Secretário de Saúde do Município de São
Paulo;
Encerramento - Ministro Gilmar Mendes.
Fonte: Supremo Tribunal Federal165
165
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Políticas públicas de saúde – Integralidade do sistema.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cro
nograma>. Acesso em: 22 out. 2013.
105
Quadro 5 – Sexto dia da Audiência Pública
7 DE MAIO DE 2009 – QUINTA-FEIRA
ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA DO SUS
Abertura - Ministro Carlos Alberto Menezes Direito;
Josué Félix de Araújo, Presidente da Associação Brasileira de Mucopolissacaridoses
(apresentação em PowerPoint);
Sérgio Henrique Sampaio, Presidente da Associação Brasileira de Assistência à
Mucoviscidose (apresentação em PowerPoint);
José Getulio Martins Segalla, Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia
Clínica;
José Aristodemo Pinotti, Professor Titular Emérito da USP e Unicamp, Ex-Reitor da
Unicamp e Ex-Secretário de Saúde do Estado de São Paulo;
Reinaldo Felipe Nery Guimarães, Secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da
Saúde (apresentação em PowerPoint);
Antonio Barbosa da Silva, representante do Instituto de Defesa dos Usuários de
Medicamentos (apresentação em PowerPoint);
Ministro Carlos Alberto Menezes Direito - Intervalo;
Ciro Mortella, Presidente da Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica;
Débora Diniz, Fundadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero - ANIS;
Ministro José Gomes Temporão, Ministro de Estado da Saúde;
Encerramento - Ministro Gilmar Mendes.
Fonte: Supremo Tribunal Federal166
166
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Assistência Farmacêutica do SUS. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cro
nograma>. Acesso em: 22 out. 2013.
106
Outrossim, comenta-se que dois participantes da audiência pública,
posteriormente, tomaram assento no STF, na condição de novos ministros da Corte:
Ministro José Antônio Dias Toffoli167 e Ministro Luiz Roberto Barroso168. Ambos
participaram da audiência em razão de suas atividades já estarem ligadas ao direito
à saúde naquele momento. Portanto, a experiência anterior e o conhecimento
adquirido na referida audiência servirão como base intelectual e ideológica para que
os ministros contribuam com a racionalidade jurídica da Suprema Corte na temática.
9 A SEMIOSE COMUNICACIONAL NOS PRECEDENTES ANALISADOS
9.1 Sob o julgo da semiótica, com ênfase em Peirce, vislumbra-se na
ação um dos pontos nevrálgicos da observação dos fenômenos sociais. Por isso,
estudar o direito com tal consciência proporciona à pesquisa um olhar do significado
social, em cujo conteúdo a tese alicerça-se. Desta feita, onde houver ação há
significação social.169
Então, com base na premissa de que toda ação gera um significado
social, a tese parte do pressuposto de que as atuações jurisdicionais do STF,
materializadas nos acórdãos perquiridos, têm um significado social. E, à tese, tal
semântica interessa quando esbarra no princípio da separação de poderes. Dessa
forma, o julgamento final, a tomada de decisão propriamente dita, passa por todo um
procedimento intelectivo anterior, no qual cada passo sinaliza gradativamente o
caminho
167
a
ser
escolhido
dentro
das
opções
possíveis
numa
semiose
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. [Audiência pública contou com a participação do Ministro José
Antônio
Dias
Toffoli
e
Ministro
Luiz
Roberto
Barroso].
Disponível
em:
<www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Luis_Roberto_Barroso.pdf>.
Acesso em: 14 out. 2013.
168
O tema do Direito à Saúde foi enfrentado pelo Ministro Barroso em sua sabatina no Senado
Federal. Conferir em: <www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/06/05/video-vivemos-a-epocada-tolerancia-diz-barroso-em-sabatina-no-senado/videos/2013/06/video-em-sabatina-no-senadobarroso-diz-acreditar-na-tolerancia/>. Acesso em: 14 out. 2013.
169
ARAUJO, 2011, p. 43, 65; SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. A comunicação de um ponto de
vista pragmaticista. Cognitio 2. São Paulo, Educ-Angra, v. 1, n. 1, 2001. p. 203: “Essencialmente
mediado por signos, conclui-se que todo pensamento é de natureza interpretativa. Sequer o autoconhecimento ou a consistência de si far-se-ão no imediato da intuição.”.
107
comunicacional.170 Apesar disso, quando o ato resulta num produto final – a decisão
–, a linguagem utilizada adquire significação própria, conforme a sua valoração no
seio social.
À luz da semiose peirceana, o processo decisório judicial centra-se na
interpretação conferida pelo intérprete ao ato, a qual é guiada por componentes
culturais e sociais ligados ao momento histórico em que esteja inserido e sua carga
psíquica adquirida pelos anos de formação acadêmica e familiar, pela convivência
social, bem como, ou talvez, mormente, pela eventual base teórico-filosófica que o
influencie, seja implícita, seja explicitamente.171
9.2 Esse valor social outorgado ao ato tem relativa conotação subjetiva
pelo intérprete. Isso porque os axiomas fomentadores da sua realização são
oriundos de um conjunto de fatores, como alguns dos citados no parágrafo anterior.
Não obstante essa cética constatação, inclusive por ser esse o condão da tese,
diante da coleta de dados teóricos, os quais serão novamente trazidos a lume na
parte subsequente do trabalho com o vagar necessário, e da extração de dados
empíricos ora comentados, o processo de racionalidade jurídica, historicamente
estudado, não é estático. Ao contrário, é dinâmico, forjado por valores sociais,
culturais e econômicos, a resultar numa base axiomática, no caso, dos ministros do
STF.172 Portanto, trata-se de uma exegese infinita, em constante realimentação. É
verdade, por outro lado, que é possível fotocopiar essa racionalidade, tornando-a
estática, analisada, interpretada e descrita num momento estático, como nesta
pesquisa.
170
SILVEIRA, 2001, p. 203: “Para Peirce, em todos os momentos de sua obra, o conhecimento deve
ser considerado semiose, e todo pensamento a que nos é possível ter acesso, compartilha dessa
mesma natureza.”; SILVEIRA, 2001, p. 204: “A potencialidade inerente à semiose, assim como a
ausência de qualquer imediatez naquele processo, reforça a necessidade de interpretação da própria
personalidade. Nada é representado que não exija a referência à experiência, nem que essa seja a
de nós mesmos. De nós mesmos, portanto, exige-se um trabalho mediado de signos e um tempo
para que desenvolvam os interpretantes.”.
171
ARAUJO, 2011, p. 21-23, 34.
172
SILVEIRA, 2001, p. 208: “[...] A experiência do pensar é uma experiência do contínuo, antes
mesmo que qualquer análise identifique a natureza dessa temporalidade. Assim também, mesmo que
se possa vir a poder medir-se ou comparar-se qualidades, inclusive a que se responsabiliza pela
semiose, essa última permanecerá sendo um contínuo, cujo fluir jamais se reduzirá aos limites de
uma representação conceptual, necessariamente abstrativa.”.
108
9.3 A semiótica busca no método indutivo – parte do particular para o
geral – um instrumental de pesquisa para descrever as formas ideais dos signos
investigados, os quais só são passíveis de interpretação se coletados na sua forma
empírica. Nos acórdãos, o material empírico da pesquisa se identifica com uma
inteligência científica que sempre está reaprendendo por meio da experiência.173
Demais que, sob o julgo do instrumental semiótico peirceano, o processo
de formação do signo é dividido, melhor, analisado com enfoque em três elementos:
signo ou representamen (sempre representa algo a alguém); interpretante (ideia sob
o signo a ser transmitida do objeto); objeto (do signo). A esse processo
comunicacional de formação do signo, cunhado obrigatoriamente pelos três referidos
elementos, de forma incessante, ininterrupta e constante, dá-se o nome de semiose,
conforme se exemplifica na Figura 1, seguinte.174
173
SILVEIRA, 2007, p. 21: “A Semiótica é uma ciência rigorosa, construtora de formas ideais, pelas
quais por via dedutiva e, portanto, a modo de necessidade, demonstrará suas conclusões. [...] Com
efeito, seu objeto – os signos – pertence ao universo fenomênico e só alcançado em suas
manifestações empíricas. É necessário observá-lo onde quer que se manifeste e tal manifestação,
distinguindo-se da pura produção da razão, dela independe, esconde-se e dissimula-se. Jamais, pois,
a Lógica terá totalmente exposto a sua explicação, mas precisará buscá-lo no universo da
experiência e construir sobre ele hipóteses que o expliquem.”; SILVEIRA, 2001, p. 204, 212.
174
SILVEIRA, 2007, p. 30-31, 34-35; PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3. ed. Tradução José
Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 194: “[...] O Objeto de um signo é uma coisa:
seu significado, outra. Seu objeto é a coisa ou a ocasião, ainda que indefinida, à qual ele deve
aplicar-se: Seu significado é a idéia que ele atribui àquele objeto, quer através de mera suposição, ou
como uma ordem, ou como asserção.”.
109
Figura 1 – Semiose peirceana
INTERPRETANTE
SIGNO
OBJETO
Fonte: Elaborado pelo autor
9.4 Por meio da tese, talha-se uma abordagem estática, sociológica, de
instrumental semiótico, que tem a pragmática como metodologia, com o mote de
chegar à semântica, com a ressalva de serem partes de um mesmo processo, cujo
resultado analítico pode caracterizar-se com as seguintes proposições.
(i) A semiose comunicacional é um processo infinito, ininterrupto,
exatamente por isso contingente, em que o interpretante ocupa papel de destaque.
Por essa assertiva, os conceitos não são estáticos, mas sim dinâmicos, artificiais, a
depender de novos processos hermenêuticos, em cujo resultado assentará os seus
novos lineamentos. Para ir além, esses conceitos são capazes, dentro da semiose,
de se transformar, adaptar-se.
(ii) A pragmática alimenta a semântica e vice-versa. Por esta razão, temse um processo comunicativo em que os utentes conotam novos signos, a
110
desembocar numa nova semântica. Descreve-se, neste sentido, uma semiose,
mesmo em sintonia com a epistemologia de Peirce.
(iii) Existe sim, dentro da base de dados extraída nesta perquirição, uma
racionalidade definida em relação ao princípio da separação dos poderes,
propriamente numa semântica.
(iv) Como resposta central do problema a ser solvido neste trabalho
acadêmico, depara-se, nos termos das transcrições ofertadas há pouco, nas notas
de rodapé, com uma racionalidade jurídica voltada à efetividade social do direito à
saúde, nos casos efetivamente julgados, entretanto, numa exclusiva justiça
adjudicatória. Por esse cenário, a exegese do princípio da separação dos poderes é
a concretude quando analisada pela questão micro, ou seja, focada exclusivamente
nos direitos dos jurisdicionados que tiveram a sorte de conseguir a proeza de que o
seu recurso vença os dois juízos de admissibilidade. No entanto, o véu da ilusão que
cobre essas decisões deve ser retirado para que novas balizas formem o seu
desenho institucional. Do contrário, a ideia de um simbolismo-álibi toma fôlego, de
tal sorte que novos valores, notadamente o solidarismo, o qual foi recentemente
inserido na massa dialógica pelo Ministro Luiz Fux, torne-se meramente um álibi
para a não efetividade do direito à saúde.
(v) À luz da semiótica, o ordenamento jurídico é vivo. Pode, sim, ser
observado de maneira estática, contudo, está sempre em movimento. Sua semiose
é infinita. A única certeza é que novas comunicações estão se formando. Seu jogo
comunicativo está sempre atuando. Exatamente por isso, o direito positivo positivase via linguagem. As verbalizações extraídas das decisões analisadas identificam o
sentido outorgado dentro do contexto cultural atual.
(vi) Desse processo comunicacional, outrossim, infere-se que o certo e o
errado estão num constante duelo, o que leva à dura conclusão de que as verdades,
as premissas, os axiomas jurisdicionais são momentâneos. Nisso, inclui-se o
princípio da separação dos poderes. O clássico sentido liberal não é mais usado;
ficou para trás, dentro da semiose da Suprema Corte. Trata-se de um processo,
gradual, no qual novas verbalizações vão surgindo para, paulatinamente, antigas
semânticas conceituais serem substituídas, sem exclusão do processo inverso
também acontecer.
111
(vii) A análise da pesquisa empírica não deixa dúvidas sobre a
constatação de Peirce de que o signo não esgota os vários aspectos do objeto que
representa. As múltiplas, e complexas, perspectivas de observação surgidas ao
longo da pesquisa só ratificam o ideário peirceano. Não é possível uma conclusão
final e segura sobre questões abertas. Cada lente resultará em signos distintos.
(viii) Um signo sempre substitui significativamente algo. Nesse sentido, o
significado do signo é sempre outro signo. No contexto da pesquisa, a petição que
leva ao STF o pleito da parte é um signo, que travará com as normas constitucionais
uma relação de significação. Contudo, com a contestação da peça, mesmo como
reação à primeira, forma-se uma relação em nível de secundidade.
(ix) Dentro dessa semiose, a Suprema Corte é a “mente coletiva” que
trava com as duas peças processuais comentadas – petição e contestação – uma
relação de terceiridade, numa generalização, de modo que o acórdão é o
interpretante, que, visto pelo processo estático, pode ser rotulado de interpretante
final.
(x) Os acórdãos analisados podem ser, ainda, chamados de signoresultado. São signos na medida em que formam um signo em cima de outro signo,
como
resultado
do
processo
comunicacional
iniciado
possivelmente
pela
interposição de um recurso extraordinário, tido aqui como signo, vez que porta o
significado da parte para o pleito, numa perspectiva do possível e da análise
sintática. Com a apresentação das contrarrazões pela recorrida, instaura-se outra
semiose a fim de que sejam levados em consideração os argumentos da outra parte.
Uma dialogia entendida como um diálogo entre os argumentos apresentados no
recurso e os ofertados pela recorrida, a serem enfrentados na decisão do STF.
No material coletado, especialmente nas decisões da Suprema Corte,
sob o viés semiótico, depara-se com a semiose comunicacional do princípio da
separação dos poderes em sintonia com o descrito por Charles Sander Peirce que
pensou a semiótica como ciência lógica da lógica da experiência, tendo como
consequência a identificação da vagueza como estrutura propícia a demonstrar com
nitidez a intersubjetividade do processo comunicacional. Neste cenário, comenta-se
que os princípios jurídicos se materializam em construções gramaticais vagas.
112
Dentro da dogmática, inclusive já se propôs diferenciar os princípios das regras
justamente por essa “abertura”, enquanto as regras seriam normas mais rígidas com
pouca, ou nenhuma, abertura interpretativa175, não sendo diferente com o princípio
da separação dos poderes.
Com efeito, a tese também se deparou com a vagueza do texto
constitucional a propiciar a comunicação que, à proporção que se debatem nos
julgamentos no STF a extensão e os limites da atuação jurisdicional na concretude
do direito à saúde os valores vem à tona, consoante se expôs no item 10, em que se
identificou argumentos das decisões em níveis de primeiridade, secundidade e
terceiridade comunicacional. Esse debate de sentido em torno da separação dos
poderes, ou mesmo do direito à saúde, fez com a comunicação saísse do plano
abstrativo para, por meio de escolhas concretas dos envolvidos, outorgar concretude
do pensamento mediante ação.
10 A SISTEMATIZAÇÃO DO MATERIAL EMPÍRICO PELAS CATEGORIAS
PEIRCEANAS
10.1 A semiótica concebida por Peirce como procedimento científico
descreverá o fenômeno observado por meio de um diagrama, que se materializará
numa figura, com intento de identificar o fenômeno observado e pensá-lo avante.
Pensa-se no futuro, depois de descrever o real. Usa-se a expressão: “deve ser” para
identificar essa projeção do futuro com base na sequência lógica do raciocínio do
signo observado, sem embargo da consciência da falibilidade dessa prospecção do
porvir. Forja-se uma regularidade falível. Para isso mesmo, faz-se necessário o
detalhamento voltado à compreensão dos passos que a inteligência deu para formar
o signo observado, identificado no caso desta pesquisa nos diagramas a seguir
expostos.176
175
NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Entre Hidra e Hércules. Princípios e regras constitucionais como
diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 12-26.
176
SILVEIRA, 2007, p. 23, 25-26, 28, 38; PEIRCE, 1999, p. 199; SILVEIRA, 2001, p. 207: “A forma do
signo contribui para sua inteligibilidade e facilita mais ou menos a interpretação e a fluir no
pensamento. Nesse sentido, compreende-se a razão do grande empenho peirceano em construir e
113
10.2 No arauto de compreender os passos que a inteligência segue para
formar o signo, é preciso considerar os componentes básicos desse processo de
visualização fenomênica, denominado de categorias, grafadas como: (i) primeiridade; (ii) - secundidade; (iii) - terceiridade. Organiza-se, ou melhor, autoorganiza-se a realidade por meio do pensamento. As categorias são, nesse sentido,
o pensar da própria realidade projetada pela mente. Com isso, representam-se
desde os sentimentos mais simplórios até os mais elevados processos evolutivos.177
Na primeira categoria, aponta-se o sentimento originário; um sentimento
bruto, livre, precisamente como a imagem imediata do presente. A realidade é
começada por ela. Por isso mesmo, a primeiridade é representada no diagrama por
um ponto ligado a um traço.178 Na segunda, a secundidade, trata-se de ação e
reação. Há uma situação e sua contestação já é materializada como o passado.
Tem dinamismo. Flui de uma relação com o outro. É formada por dois elementos,
sendo um deles a própria primeiridade. Cunha-se a partir dela (primeiridade) um ato
de confronto com outro elemento. No gráfico, é apontada como dois pontos unidos
por traços.179 Por fim, a terceiridade é propriamente um salto, uma tentativa de
prever o futuro por meio da artificialidade da mente. Parte-se da lógica do raciocínio
até então travado para dar um passo adiante com uma previsão falível do amanhã.
É a forma da evolução do pensamento. Gera um interpretante. A mente está na
terceiridade. Não há uma mecanicidade desse raciocínio, ao contrário, há um salto
no raciocínio. Sem ele não há evolução. Está em relação simultânea com o
segundo. É identificada graficamente com dois pontos dotados de traços.180
10.3 Submerso no cenário das categorias, o direito positivo é mais
propenso à terceiridade. Contudo, no cenário comunicacional da tese, a petição
recursal, ou equivalente, que venha a portar o litígio à Corte, acaba que significando
a materialização do problema a ser volvido judicialmente. Por si só, o recurso
em constantemente aprimorar o sistema de grafos, ao qual reconhecia como uma de suas maiores
contribuições à lógica e ao pensamento humano.”.
177
SILVEIRA, 2007, p. 38-43; SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson
Learning, 2002. p. 143.
178
SILVEIRA, 2007, p. 41-42.
179
SILVEIRA, 2007, p. 41-42.
180
SILVEIRA, 2007, p. 41-42.
114
interposto constrói um símbolo, que neste caso remonta ao próprio sentimento
primeiro da parte, puro, numa perspectiva sintática de análise.181
De outra forma, a intervenção da outra parte, regra geral, com a
apresentação de sua contrarrazão ao recurso extraordinário, provoca um choque
comunicacional, a surgir na tríade o signo (acórdão/julgamento), formada a partir do
confronto das duas petições iniciais. O confronto processual das partes processuais
provoca um símbolo que obrigatoriamente representa a petição inicial do recorrente
e a defesa da recorrida. Trava-se uma relação em nível de secundidade, como um
novo símbolo, uma semântica oriunda do fruto do litígio de dois lados. Atenção: essa
nova semântica se apresenta não como soma, mas sim como novo símbolo.
Chocam-se ambos e o resultado insurge sob a máscara de um novo símbolo,
todavia, rotulado como objeto.182
10.4 Com isso, o processo comunicacional, denominado por Peirce de
semiose, está quase todo descrito e identificado no cotejo da pesquisa. Falta, nesse
jaez, identificar o papel do interpretante, responsável pelo símbolo-resultado dentro
desse processo, que na pesquisa é o próprio acórdão da Suprema Corte. A decisão
acaba interpretando o signo e o objeto, de tal sorte que, levando-se em conta os
referidos signos, produza um terceiro signo, também chamado de supersigno.
No caso do material coletado, a peça recursal leva o sentimento primeiro
à relação, a qual se chocará com a peça do ente estatal demandado, formando a
secundidade. Contudo, ambos os símbolos serão interpretados pelo interpretante, o
acórdão. Ele forma o símbolo final dentro dessa relação. Final, da perspectiva da
181
PIGNATARI, 2004, p, 44: “Thomas S. Knight, interpretando epistemologicamente as categorias
peirceanas, entende que a primeiridade, referindo-se a um sentido de qualidade ou a uma idéia de
sentimento, seria um estado de consciência sobre o qual pouco pode ser afirmado, a não ser em
termos negativos: é incomparável, não-relacional, indiferenciado, impermutável, inalisável,
inexplicável, indescritível, não intelectual e irracional. Tratando-se de consciência instantânea, é nãocognitivo, original, espontâneo, é um simples sentido de qualidade – o sentido de qualidade de uma
cor, por exemplo. [...].”.
182
PIGNATARI, 2004, p. 44: ”[...] Já a secundidade é uma idéia de fato, de luta, de resistência, de
poder, de volição, de esforço. Realiza-se ou é percebida nos estados de ‘choque’, surpresa, ação e
percepção. Metafisicamente, caracteriza-se pela alteridade, pelo não-ego. O aqui-e-agora de uma
qualidade constitui uma secundidade.”.
115
análise, porque por outro prisma o processo ainda pode continuar a operar, valendo
relembrar que a semiose comunicacional é infinita.183
Desse ponto de vista, com a pesquisa empírica, fulgura-se que as peças
recursais do cidadão identificam, entre outros, o princípio da separação dos poderes
como símbolo de cooperação, complemento, entre os poderes na atuação estatal,
no caso da efetivação do direito à saúde. Ou seja, não foi ofertado pelo
administrador público determinado remédio e as razões do recurso procuraram
simbolizar que é possível a prestação do remédio por meio do Judiciário. De outro
modo, as peças do Poder Executivo procuram formar um símbolo sobre a
mencionada separação ligada à rigidez, com ânimo de vedar a intervenção do
Estado-juiz em questões ligadas às funções dos outros poderes.
10.5 Posto isso, tem-se, então, formado uma relação comunicacional em
que a primeiridade e a secundidade estão caracterizadas. Enquanto, lá, há um
sentimento puro, uma primeira impressão do assunto, aqui, com base no primeiro
símbolo indicado pelo recorrente, em confronto com a reação trazida pela peça da
recorrida, surge do conflito o objeto, que não é o símbolo final. Trata-se da
configuração (identificação) do litígio propriamente dito.
Como decorrência lógica desse processo, a terceiridade é tipificada no
exato momento em que o acórdão interpreta os símbolos constantes na primeiridade
e na secundidade, a fim de produzir um símbolo-final, identificado na própria decisão
final, a respeito da separação dos poderes, no que tange ao fornecimento de
medicamentos mediante decisões judiciais. A partir daí, fala-se em um supersigno,
oriundo desse processo semiótico triádico, num caráter de lei, cujo significado gerará
um processo de generalização a partir dele, dando fomento a novos processos
comunicacionais. Eis a configuração da terceiridade.
183
PIGNATARI, 2004, p. 49: “[...] Peirce cria um terceiro vértice, chamado Interpretante, que é o signo
de um signo, ou, como tentei definir em outra oportunidade, um supersigno, cujo Objeto não é o
mesmo do signo primeiro, pois que engloba não somente Objeto e Signo, como a ele próprio, num
contínuo jogo de espelhos [...].”. PEIRCE, Charles Sanders. Escritos coligados. Selecionados e
traduzidos por Armando Mora D´Oliveira e Sérgio Pormerangblum. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.
37: “105. Terceiridade é para mim apenas um sinônimo de Representação; prefiro-o porque suas
sugestões são menos estreitas. [...].”. PEIRCE, 1974, p. 39: “339. A idéia mais simples de
Terceiridade datada de interesse filosófico é a idéia de um signo, ou representação. Um signo
‘representa’ algo para a idéia que provoca ou modifica. [...].”.
116
A relação triádica, no cotejo da semiose peirceana, pode ser visualizada
na Figura 2, seguinte:
Figura 2 – Aplicação da tríade de Peirce
Decisão do STF
(INTERPRETANTE)
Recurso Extraordinário
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
(SIGNO)
ACÓRDÃO RECORRIDO
(OBJETO)
Fonte: Elaborado pelo autor
O produto final dessa semiose torna-se, na acepção do termo, um
símbolo genuíno porque resultado da semiose triádica. Sem embargo, para ser mais
bem compreendido, o interpretante reclama ser observado no contexto de toda a
semiose. O seu teor simbólico deve ser visto em sintonia com o símbolo primeiro
(peça recursal), objeto (acórdão recorrido). Daí ser possível compreender que o
acórdão é a materialização física da ideia de signo oriundo dos argumentos usados
pelos ministros.
Ainda, no caso da pesquisa, o próprio interpretante (o acórdão/STF)
preocupa-se em descrever o signo e o objeto sob o rótulo de relatório, para,
somente depois, no voto, promover a semiose, a resultar no símbolo final. Esse
117
processo comunicacional, designado por Peirce de semiose, ocorre na forma de um
diálogo, localizado, sob esse cerne, no pensamento dos ministros da Suprema
Corte, com o uso da inteligência. Por vezes, esse diálogo é aberto à nova
alimentação mediante leis, fatos ou quaisquer outros signos e, neste caso,
configura-se como uma evolução, outras, a seu turno, não propenso a receber novas
comunicações, pois fechado em si próprio.184
10.6 Por outra óptica do processo comunicacional poder-se-ia analisar a
petição recursal (recurso extraordinário) como o interpretante de uma semiose, na
qual o signo inicial seria a dialogia instaurada com o diálogo entre os argumentos
trazidos à semiose pelo recurso de apelação e sua respectiva contrarrazão. Nesse
diapasão, o objeto do signo seria o acórdão do tribunal a quo. Consequentemente,
como interpretante do símbolo e do seu objeto, surgiria o recurso extraordinário
como um novo símbolo, quando visto dessa lógica da cadeia comunicacional.185
Com a Figura 3, a seguir, demonstra-se a tríade: interpretante, signo,
objeto.
184
Para se compreender bem o processo triádico de comunicação aplicado ao STF, necessário se faz
remontar à teoria da percepção peirceana, aqui explicada por SANTAELLA, Lucia. A percepção: uma
teoria semiótica. 2. ed. São Paulo: Experimento, 1998. p. 44-45: “Qualquer coisa que aparece à
mente produz nela um efeito. Esse efeito é um primeiro em relação àquilo que aparece. Ao apreender
aquilo que aparece, a mente imediatamente reage, produz algo. Esse algo é o segundo. Aí está: o
signo, efeito, surge como primeiro e aquilo que provoca o signo, ou seja, seu objeto, como segundo.
A primazia lógica é do signo, mas a primazia real é do objeto. O objeto é determinante, mas só nos
aparece pela mediação do signo. [...].”; SANTAELLA, Lucia. A teoria geral dos signos. Semiose e
autogeração. São Paulo: Ática, 1995, p. 130, 132, 135-136, 138-139, 144-146; SILVEIRA, 2001, p.
206: “Mesmo, portanto, que o fluxo do pensamento se faça somente no interior de alguém, ele jamais
será um monólogo. Não crescerá o pensamento e não alcançará sua meta e sua razão de ser, se
quem o emite não se reconhecer incapaz de sozinho proceder à representação de um objeto e à
equivalente determinação da conduta.”.
185
PEIRCE, 1999, p. 177: “536. Já observei que um Signo tem um Objeto e um Interpretante, sendo o
último aquilo que o Signo produz na Quase-Mente, que é o Intérprete, ao atribuir este mesmo último a
um sentir, a um esforço ou a um Signo, atribuição esta que é o Interpretante.”.
118
Figura 3 – Materialização da tríade peirceana exposta no item 10.6.
Recurso Extraordinário
(INTERPRETANTE)
DIALOGIA
(Argumentos das partes)
(SIGNO)
ACÓRDÃO
(Tribunal
ribunal a quo)
(OBJETO)
Fonte: Elaborado pelo autor
10.7 Como fecho, consigna-se
consigna
que o STF,, descrito pelas categorias, é
predominante terceiridade,
terceiridade por uma soma de fatores, dos quais, frisa-se
frisa
que as suas
decisões governarão a relação das partes processuais de forma direta. De outro
modo, de forma indireta, num formato generalizante, orientará a resolução de
questões similares.
Não obstante o predomínio
predomínio da terceiridade, a referida Corte, dentro da
semiose, pode ser identificada em aspectos específicos como secundidade,
porquanto a sua decisão representa, como um signo, os problemas sociais que
motivaram a interposição dos recursos ao STF e assim sucessivamente
sucessivamente ao signo
primeiro identificado pela petição inicial proposta lá atrás,
atrás temporalmente falando. No
caso especial da pesquisa, identifica-se
identifica se uma significação para representar o litígio
119
da saúde (visualizado por ação – o recorrente – e reação – o recorrido) como
secundidade.186
Lógico que para o objeto da tese, interessa mais o aspecto simbólico do
material coletado, no qual, pelo estudo dos interpretantes, identificados pelas
decisões da Corte, pode-se identificar o comportamento dos ministros, em ação
concreta – leia-se nos julgamentos – como fenômeno vivo, mergulhado no cenário
social histórico, econômico e cultural, de modo que, pelo símbolo, constata-se uma
posição política quanto ao tema da saúde. Forma-se, nesse cenário, um signoinstituição.187 Para formação, no entanto, desse signo-instituição, a semiose passa
pela sua tríade que na terceiridade remonta à mente dos intérpretes, no caso da
pesquisa, os ministros da Suprema Corte brasileira. Sob o julgo do pensamento, os
ministros, internamente, primeiro debatem a questão para, depois, externarem o seu
posicionamento aos demais membros da Corte.
Desse modo, a semiose tem uma perspectiva interna aos interpretantes,
sendo iniciada pela percepção do signo. O resultado desse processo interno às
mentes dos julgadores pode também ser rotulado de interpretante imediato, visto
mesmo como um signo que produz no interpretante particular, no caso um dos
ministros. Esse símbolo, que virá à tona como resultado da semiose particular de
cada intérprete, é constituído por uma associação praticada pela mente do
intérprete. Nesse cenário, Peirce classifica os interpretantes dinâmicos em três
perspectivas: i – interpretante emocional; ii – interpretante enérgico; iii – interpretante
lógico.188 Os três estão ligados essencialmente às categorias peirceanas da
primeiridade, secundidade e terceiridade.
10.8 Após a análise teórica e a sua aplicação à parte do material empírico
coletado, explana-se que o interpretante emocional está no plano da primeiridade,
na forma de um sentimento puro; uma qualidade oriunda de um primeiro efeito do
186
SANTAELLA, 2002. p. 144; PIGNATARI, 2004, p. 49: “[...] - signo é tudo aquilo o que substitui
algo, sob certos aspectos e em certa medida-[...]”.
187
SANTAELLA, 2002, p. 148-149.
188
SANTAELLA, 2002, p. 24-25; PEIRCE, 1999, p. 243: “Os signos são divisíveis conforme três
dicotomias, a primeira, conforme o signo em si mesmo for uma mera qualidade, um existente
concreto ou uma lei geral; a segunda, conforme a relação do signo para com seu objeto consistir no
fato de o signo ter algum caráter em si mesmo, ou manter alguma relação existencial com esse objeto
ou em sua relação com um interpretante; a terceira, conforme seu Interpretante representá-lo como
um signo de possibilidade ou como um signo de fato ou como um signo de razão.”.
120
contato com o signo. No caso em análise, a mente dos ministros acaba percebendo
e expondo o signo como um fenômeno na sua pureza inicial, no formato de um
sentimento. Noutro sentido, o interpretante energético atua no plano da secundidade
porque se encontra como um resultado de ação e reação, a resultar a sua resposta
com dispêndio de energia: uma produção do signo um pouco mais elaborada, do
aspecto semiótico, identificada pela energia da sua comunicação, que deve estar
apta a refutar sentidos contrários à sua interpretação. Enfim, a terceiridade é
representada pelo interpretante lógico, o qual interpreta de forma mais elaborada,
num viés interpretativo, sob premissas bem definidas por ele próprio.
Com destaque, é necessário grafar que, no contexto do processo
comunicacional da semiose, as categorias são fases do idêntico processo. Analisase, assim, um estado do processo comunicacional. Ou seja, a terceiridade é uma
fase do diálogo que contempla obrigatoriamente, antes dela, a secundidade e a
primeiridade.
Peirce descreve o fenômeno como um círculo, transcrito abaixo para
ilustrar a semiose. Nem por isso, deve-se deixar de analisar a parte específica do
momento semiótico, com escopo de dar ênfase à terceiridade, por exemplo.
Dito dessa maneira, o importante é entender que a classificação a seguir
proposta, dos argumentos utilizados pelos ministros paradigmas da Suprema Corte,
como interpretantes emocionais, energéticos e lógicos, é tão só uma das possíveis
faces da análise, torneada com base no que esta tese considera como primazia na
atuação dos interpretantes analisados.
10.9 Consoante se direciona a óptica da análise da semiose, os atores
mudam de papel, todavia, tudo dentro da rígida sistematização peirceana, a qual
permite uma infinita linha de continuidade de produção de signos. Com esse espírito,
aventa-se que, quando se parte dos acórdãos como interpretantes, os ministros são
intérpretes que, com base num pensamento inicialmente individual, chegarão ao
símbolo final, em regra, mediante diálogo com os outros ministros, para, juntos,
formarem o interpretante, o supersigno, isto é, o acórdão no qual se consubstanciará
o signo emitido do litígio proposto à Corte.
121
De outro modo, porém, ao se perquirir na dimensão de que cada voto é
um interpretante, faz-se um novo recorte na análise para não mais investigar o
acórdão pelo prisma do resultado final, como seria o normal – vale comentar.
A partir dessa nova proposta de observação, tem-se a possibilidade de
não mais classificar o acórdão, mas os argumentos utilizados pelos ministros,
individualmente, nos termos do seguinte quadro.
Quadro 6 – Classificação dos argumentos dos ministros paradigmas em direito à
saúde
Ministro
Decisões
Interpretante
Paradigmas
Celso
de
Ag. Reg. nos
Mello
Energético
REs n. –
271.286-8/RS
273.834/RS e
393.175–O/RS
Marco
RE ns.
Emocional
Aurélio
247.900/RS e
368.564/DF,
Ag.Rg.
no
RE
n.
238.328
Gilmar
Ag.Reg.
na
Mendes
Suspensão
de
Liminar
n.
47/PE, na STA
n. 175/CE e na
SS n. 3355/RN
Fonte: Elaborado pelo autor
Lógico
122
Sob a classificação proposta, assevera-se que não se trata de um
julgamento a respeito do ministro, nem de sua atuação de modo geral. Ao contrário
disso, mira-se exclusivamente nos argumentos utilizados nas decisões coletadas na
tese, por isto mesmo, falíveis e restritos a uma visão parcial dos argumentos
utilizados na atuação jurisdicional do ministro paradigma no que diz respeito ao
direito à saúde. Dada essa necessária explanação, passa-se a explicar o porquê da
classificação, nos moldes que seguem.
10.10 Pelo vernáculo utilizado retro, identifica-se que a secundidade é
caracterizada essencialmente por um signo que representará a ação e a reação, ou
seja, os argumentos favoráveis e contrários ao direito à saúde, no caso da tese,
porém, já com uma tomada de posição, diga-se uma escolha efetivada com muita
clareza. Nesse caso, o símbolo em desfavor é identificado como produto do choque
comunicacional das posições contrárias, de modo a resultar numa postura como
certa. Quando se expõe uma escolha como correta, conota-se nas suas palavras
uma verbalização enérgica; evidencia-se a sua posição de forma a desqualificar a
outra opção. Esse jogo com as palavras fica muito claro no trecho transcrito a seguir:
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE
TRANSFORMÁ-LA
EM
PROMESSA
CONSTITUCIONAL
INCONSEQÜENTE. [...] DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, À PESSOAS
CARENTES,
DE
MEDICAMENTOS
ESSENCIAIS
À
PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER
CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE
CUMPRIR.- O reconhecimento judicial da validade jurídica de
programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas
carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da
República (arts. 5º, ‘caput’, e 196) e representa, na concreção do
seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à
saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada
possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de
sua essencial dignidade. Precedentes do STF. [Grifo nosso]189
189
O trecho pode ser encontrado, entre outros acórdãos relatados pelo Ministro Celso de Mello, nas
seguintes decisões: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário n. 271.286-8/RS. Relator Ministro Celso de Mello. Agravante: Município de Porto
Alegre. Agravada: Diná Rosa Vieira. Brasília, DF. Julgado em 12.09.2000. Publicado em 24.11.2000.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538>.
Acesso em: 18 out. 2013; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 273.834/RS. Relator Ministro Celso
de Mello. Agravante: Município de Porto Alegre. Agravada: Laura Antunes de Matos. Brasília, DF.
Julgado
em
23.08.2000.
Publicado
em
18.09.2000.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+273
834%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/cp33gaa>. Acesso em: 18
123
Para pormenorizar a questão, comenta-se que quando o Ministro Celso
de Mello grafa que a interpretação da norma constitucional não pode transformá-la
em promessa inconsequente, posiciona-se como interpretante enérgico, em nível de
secundidade, porque denota, no primeiro início, a síntese dos dois lados: direito à
saúde com força vinculante e direito à saúde como norma programática. Portanto,
acaba por produzir um reação a essa dicotomia, bem como, de forma dura,
implacável, coloca que a interpretação não pode tornar-se promessa inconsequente.
Ressalta-se a expressão “inconsequente”.
Produziu-se, à luz disso, uma interpretação enérgica, a qual é reforçada
pelo trecho logo a seguir, também acima transcrito, ao utilizar as palavras: “[...] e
representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço
à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada
possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial
dignidade”190, externa o seu posicionamento, fruto de um duelo (ação e reação) de
significados ocorrido previamente em sua mente, para, com o fito de combater
posição contrária à sua, em seguida, energicamente, expor o seu posicionamento.
10.11 A postura emocional dos argumentos utilizados pelo Ministro Marco
Aurélio na temática direito à saúde é identificada, entre outros, no julgamento do
Recurso Extraordinário n. 368.564/DF, cuja relatoria inicial estava sob a relatoria do
Ministro Menezes de Direito. No voto do referido RE, encontram-se argumentos no
out. 2013; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 393.175–O/ RS. Relator Ministro Celso de Mello.
Agravante: Estado do Rio Grande do Sul. Agravados: Luiz Marcelo Dias e outros. Brasília, DF.
Julgado
em
12.12.2006.
Publicado
em
02.02.2007.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=402582>. Acesso em: 16 out.
2013.
190
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.2868/RS. Relator Ministro Celso de Mello. Agravante: Município de Porto Alegre. Agravada: Diná Rosa
Vieira. Brasília, DF. Julgado em 12.09.2000. Publicado em 24.11.2000. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538>. Acesso em: 18 out.
2013; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 273.834/RS. Relator Ministro Celso de Mello.
Agravante: Município de Porto Alegre. Agravada: Laura Antunes de Matos. Brasília, DF. Julgado em
23.08.2000.
Publicado
em
18.09.2000.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+273
834%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/cp33gaa>. Acesso em: 16
out. 2013; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 393.175–O/ RS. Relator Ministro Celso de Mello.
Agravante: Estado do Rio Grande do Sul. Agravados: Luiz Marcelo Dias e outros. Brasília, DF.
Julgado
em
12.12.2006.
Publicado
em
02.02.2007.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=402582>. Acesso em: 16 out.
2013.
124
sentido de um sentimento puro, livre do choque proveniente do confronto da
secundidade, nos moldes dos argumentos usados pelo Ministro Celso de Mello. Em
outro sentido, posto que, em seus votos, depara-se com uma posição ideológica
insuscetível de questionamento. Talvez verbalize dessa forma porque, em razão de
sua posição ser tão firme, não vê necessidade de expor em seus votos o outro lado
da moeda, mesmo que implicitamente. Para os argumentos do julgador, a questão é
simples, pura. Há um sentimento muito definido, com o fito de direcionar a sua
racionalidade. Não sente a necessidade de fundamentar ou convencer os seus
pares com argumentos refinados.
Essa atuação no plano da primeiridade não significa descompromisso
com a concretude do direito à saúde, nem uma despreocupação com o resultado
final dos julgamentos, mas o oposto disso. Na questão, cita-se o julgamento do
recurso extraordinário mencionado linhas atrás, no qual o então relator votara para
conhecer e prover o recurso. O julgamento caminhava para a decisão final, quando
o Ministro Marco Aurélio se deu conta de que era possível que a decisão do tribunal
a quo, na qual se determinou o pagamento de tratamento de doença ocular em
Havana, poderia ainda não ter sido cumprida.
Em consequência desse cenário, eventual julgamento desfavorável
naquele momento (08/04/2008) prejudicaria os cidadãos beneficiados pela decisão
judicial recorrida. Não obstante já ter posição formada sobre o tema, o Ministro
Marco Aurélio tomou uma decisão inusitada: pediu vista dos autos, em seguida fez
um pedido de adiamento, o que retardou o julgamento final para 13/04/2011. O
retardo do julgamento motivou o Ministro Ricardo Lewandowski a mencionar que já
houvera o cumprimento da decisão, mas que, como se trata de um tema importante
do aspecto teórico, o recurso deveria ser julgado. Durante os debates, entre muitos
argumentos contrários, argumentou-se que a referida doença não tem cura,
consoante se posicionou a comunidade médica brasileira. Seria mais um argumento
a fim de suspender o seu adimplemento. Ao final, também em vão, porquanto por
maioria, prevaleceu a tese do Ministro Marco Aurélio, que defende o pagamento pelo
Estado de tratamentos de alto custo.
Além, obviamente, da análise do contexto do julgamento, pode-se
transcrever alguns trechos que, por si sós, ajudam a apreender a classificação da
125
dialogia peirceana, no plano da primeiridade, a saber: “O SENHOR MINISTRO
MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Estou desprovendo e mantendo o acórdão. O
recurso é da União. Certamente, com esse tratamento, a viúva não ficará mais
pobre!”191. A seguir:
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Essa
denominada reserva do possível, no tocante ao Estado, leva-me à
indignação como contribuinte, como cidadão, como juiz, pois, se for
realmente empolgada e aceita, teremos desculpa para tudo,
porquanto, desde que me conheço, o Estado, em que pese a grande
carga tributária, luta contra escassez de receita, mas luta porque tem
despesas excessivas, principalmente com a máquina administrativa e
a dívida interna.192
10.12 Sob o julgo de outro raciocínio teórico, as construções extraídas
das relatorias do Ministro Gilmar Mendes denotam um foco à construção de um
raciocínio lógico, mais refletido, livre, numa primeira leitura, de um atuar puro ou
emotivo. Isto fica muito claro ao se acompanhar a evolução do seu posicionamento
sobre a judicialização da saúde. Concluiu, no tema, que não se trata de judicializar
as políticas públicas, mas sim de as efetivar, uma vez que já existem na maioria dos
litígios; o que ocorre é, por outro lado, uma inefetividade delas. Para chegar a essa
perspectiva, no entanto, encontram-se em seus votos dois importantes paradigmas:
um deles é a consistência teórica, no sentido de buscar aprofundar o debate nas
teorias constitucionais sobre os direitos fundamentais. O outro é a audiência pública
realizada, quando – após ouvir diversas acepções sobre a judicialização da saúde –
se formou a convicção de que não se trata de intervenção do Poder Judiciário nas
políticas públicas em saúde. Com efeito, o enfoque da atuação jurisdicional deveria
ser em outro sentido. Explana-se que as políticas públicas destinadas à saúde
existem e em grande escala, o que ocorre é que muitas delas restam ineficazes.
Nessas situações, porque provocado, o Estado-juiz buscaria torná-las eficaz por
191
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 368.564/DF. Relator Ministro Menezes Direito.
Recorrente União. Recorrido Maria Euridice de Lima Casali Brasília, DF. Julgado em 13.04.2011.
Publicado
em
10.08.2011,
p.
81.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=625531>. Acesso em: 16 out.
2013.
192
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 368.564/DF. Relator Ministro Menezes Direito.
Recorrente União. Recorrido Maria Euridice de Lima Casali Brasília, DF. Julgado em 13.04.2011.
Publicado
em
10.08.2011,
p.
81.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=625531>. Acesso em: 16 out.
2013.
126
meio de decisões judiciais voltadas para determinar situações específicas como, por
exemplo, o fornecimento de determinado remédio que atenderia uma peculiaridade
do caso concreto não abrangida pela política pública em voga, muitas vezes
pensada de forma genérica para abranger o maior número de indivíduos.
10.13 Prenhe das dificuldades da análise das atuações jurisdicionais e,
talvez, por essa constatação, com muita cautela, procura-se enfileirar a referida
classificação no contexto peirceano com as peculiaridades da formação acadêmicoprofissional dos ministros, obviamente de período anterior ao respectivo ingresso ao
Supremo Tribunal. Nesse cenário, pondera-se que há uma relação direta da
formação acadêmico-profissional prévia com a sua atuação jurisdicional.
Dessa maneira, fulguram os argumentos usados pelo Ministro Celso de
Mello com uma postura caracterizada na secundidade, quando em seu voto já se
encontram a ação e a reação dos signos envolvidos, a resultar num interpretante
emocional, apaixonado, tipicamente como um membro do Ministério Público, cuja
postura se caracteriza pela litigiosidade em favor de um valor que considera maior e,
por sua concretude, busca o seu predomínio acima de tudo. Literalmente, na leitura
do signo emanado dos seus votos, extraem-se o signo e o objeto que ajudaram a
forjá-lo como interpretante. Os próprios trechos citados anteriormente identificam
isso.
Esse enlace comunicacional descrito por Peirce sob o julgo da
secundidade, predominantemente não pode ser encontrado nos argumentos usados
nas decisões do Ministro Marco Aurélio. Na verbalização de seus votos, não há
exatamente um choque entre ação e reação a resultar num novo símbolo; ao menos
isso não está exposto em seus votos. Neste cerne, comenta que o processo
intelectual interno à mente do ministro em voga, não pode ser analisado. Logo, o
que se observa é a linguagem posta nas decisões estudadas.
À luz desse material de pesquisa, opina-se que o fato de a profissão
anterior do ministro ser ligada ao direito do trabalho influenciou demasiadamente a
sua atuação sob o viés da primeiridade. Essencialmente, o referido ramo do direito é
voltado a equilibrar uma situação desigual: patrão versus empregado. O reequilíbrio
127
é o seu mister. Tradicionalmente, a justiça do trabalho possui uma postura protetiva
ao trabalhador.
Como decorrência desse espírito de busca pela igualdade, mesmo que
seja de forma involuntária, identifica-se nas decisões (em seus argumentos) uma
postura de reequilíbrio da situação, todavia, de forma pura e direta, como se não
houvesse uma posição contrária. O tema é muito bem resolvido na convicção íntima
do estudado julgador. Na sua mente, não há litígio ideológico ou doutrinário. Há, ao
inverso disso, um sentimento livre, ou seja, sem a materialização pela verbalização
de uma posição contrária como parte do debate. Desta forma, julgou os Recursos
Extraordinários n. 247.900/RS193 e n. 368.564/DF194, bem como o Agravo
Regimental no Agravo de Instrumento n. 238.328/RS195.
No mesmo enredo de análise, os argumentos constantes nos votos do
Ministro Gilmar acabam por identificar a sua elevada formação acadêmica, com
destaque para a dimensão constitucional da sua pesquisa, a qual invariavelmente
forneceu subsídio para a classificação da sua atuação na terceiridade. Em seus
votos, o ministro procura construir um raciocínio científico ou ao menos dar maior
consistência teórica, a fim de legitimar o julgamento final. Por assim dizer, nos
argumentos constantes nos seus votos há um raciocínio mais elaborado; uma
construção doutrinária para chegar à solução da lide.
De outro modo, é importante destacar que não se trata aqui de legitimar o
uso da teoria desenvolvida pelo Ministro Gilmar Mendes ou mesmo fazer qualquer
análise da compatibilidade ou não dos autores servidos pelo julgador. Não se passa
193
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 247.900/RS Relator Ministro Marco
Aurélio. Requerente: Estado do Rio Grande do Sul. Requerida: Ida Maria Lopez Huber e outros.
Brasília, DF. Julgado em 20.09.1999. Publicado em 27.10.1999. Disponível em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+247
900%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/oezb9ox>. Acesso em: 16
out. 2013.
194
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 368.564/DF. Relator Ministro Menezes Direito.
Recorrente União. Recorrido Maria Euridice de Lima Casali. Brasília, DF. Julgado em 13.04.2011.
Publicado
em
10.08.2011,
p.
81.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=625531>. Acesso em: 16 out.
2013.
195
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 238.328/RS. Relator Ministro Marco
Aurélio. Requerente: Município de Porto Alegre. Requerido: Ana Luiza Soares de Carvalho. Brasília,
DF.
Julgado
em
16.11.1999.
Publicado
em
18.02./2000.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28AI%24%2ESCLA%2E+E+2383
28%2ENUME%2E%29+OU+%28AI%2EACMS%2E+ADJ2+238328%2EACMS%2E%29&base=baseA
cordaos&url=http://tinyurl.com/p39qk6b>. Acesso em: 16 out. 2013.
128
nem perto disso. A abordagem é outra. Por aqui, identifica-se no seu discurso um
afastamento de um sentimento puro (quase que idealista), de uma ação apaixonada
(com fim delimitado), para com o cerne de tecer um arrazoado em busca de
argumentação jurídica mais sólida, numa perspectiva mais lógica, a formar um plexo
teórico que o direcionará sem ser guiado pela paixão.
129
PARTE III
RACIONALIDADE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM DIREITO À
SAÚDE:
SIMBÓLICA OU EFETIVA?
“À constitucionalização simbólica não importa apenas a falta
de auto-referência [...]. Envolve também o problema da
heterorreferência inadequada do sistema jurídico.”.
(Marcelo Neves)196
11 CONSTITUCIONALISMO SOCIAL E SUPREMA CORTE
11.1 A análise do constitucionalismo é indissociável da filosofia política,
uma vez que esta fundamentou a fundação daquela por meio de sua base
ideológica. Remonta-se aqui ao século XVIII, momento histórico no qual a Europa
era governada por reis, que, à mão de ferro, geriam o reino quase que unicamente
de acordo com seus interesses privados. Naquele tempo, o reino e seus súditos
eram vistos pelos monarcas e simpatizantes (nobreza) como partes de um mesmo
pacote, presenteado por Deus e abençoado pela Igreja, com o mote de servi-los em
todos os seus caprichos, até mesmo em prejuízo da própria vida, se assim fosse
necessário.197
Esse período ficou conhecido como Antigo Regime. Deste momento
histórico ao fim da pesquisa interessa especialmente a Inglaterra que, após a morte
do seu Rei Ricardo I, o Coração de Leão, viu subir ao trono o Rei João Sem Terra
que, num momento de crise econômica, infringiu ao povo e aos seus barões duras
196
NEVES, 2007, p. 158.
Para uma análise do Estado Liberal ao Estado Social, sob o julgo da filosofia política, ver
BONAVIDES, 2004. No viés histórico, ver TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica
moderna. Bologna: Il Mulino, 1976. p. 43.
197
130
medidas econômicas e restrição ao espaço político (aqui restritamente aos barões,
pois o homem simples, nesse momento, nada possuía).
O descontentamento com o monarca fez com que os barões se
revoltassem. Travou-se uma guerra civil. O resultado foi a assinatura da famosa
Magna Carta das Liberdades da Inglaterra (1215), quando, pela primeira vez,
garantiram-se direitos fundamentais ao homem em face do Estado, mesmo que o
seu formato fosse muito mais de um acordo, um pacto, do que propriamente uma
lei.198 É verdade, porém, que o então rei pediu ao papa a sua anulação, o que deu
início a outros conflitos, cessados com o restabelecimento da Magna Carta pelos
sucessores de João.199
11.2 No curso da história, o período absolutista, em que pesem as
peculiaridades de cada reinado, caracterizava-se basicamente pela aceitação de um
poder absoluto do monarca, exercido sobre a administração do reino e sobre os
seus súditos. Isto, obviamente, deu vazão a inúmeros casos de atrocidades e
barbáries cometidas pelos monarcas, que, por seus atos, dilaceravam o povo e
prejudicavam a estabilidade social e econômica do seu país.
Essa unificação do poder, absoluto, em desfavor de senhores feudais e
religiosos, inegavelmente germinou o ambiente para a unificação da codificação,
logo, para o constitucionalismo, mesmo que o legislador ainda representasse a
vontade do monarca200, até porque a fragmentação do Direito, antes predominante,
atrapalhava o desenvolvimento econômico da nação. À época, cada feudo possuía
um regramento próprio, num ambiente social de convivência com os direitos romano
e canônico. Dessa forma, também com base nessas inúmeras soberanias locais,
alicerçou-se o contexto social para a unificação em torno do, agora, único
soberano.201
198
Ver a digitalização da versão original em: BRITISH LIBRARY. Treasure in Full. Magna Carta.
Disponível em: <http://www.bl.uk/treasures/magnacarta/shockwave/magna_carta_broadband.htm>.
Acesso em: 5 out. 2013.
199
No contexto do constitucionalismo, ver SARMENTO, Daniel. Constitucionalismo: trajetória
histórica e dilemas contemporâneos. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.).
Jurisdição constitucional, democracia e direitos fundamentais. Slavador: JusPodivm, 2012. p. 90.
200
TARELLO, 1976, p. 45, 48-49, 51.
201
TARELLO, 1976, p. 47: “I sistemi giuridici che il secolo XVII lasciava in eredità erano, parlando in
generale, complessi a causa della concorrenza di una pluralità di fonti; complicati, a causa
dell`estrema varietà delle discipline dei soggetti e dei beni; antinomici e incoerenti, a causa dei
131
11.3 Paulatinamente, no seio dessa contenda social, veio à tona o germe
do ideário preconizado pelos teóricos conhecidos como jusnaturalistas, em cuja
gênese se encontra a defesa dos direitos naturais do homem em face do próprio
homem e do Estado, independente de serem ou não positivados, porque por essa
linha estariam acima de qualquer positivação; seriam inatos ao homem. E, ainda,
segundo os contratualistas, dos quais se destacam Hobbes, Locke e Rousseau, o
homem transferiu parte da sua soberania ao Estado para que ele cuide de todos. O
poder do Estado vem da soberania outorgada pelo povo; sem ela, nada poderia
fazer. Bem por isso, o soberano não teria poderes sobre alguns direitos
fundamentais do homem. Eis aqui a semente do liberalismo sob o nítido enfoque da
limitação do poder do soberano.202
Esse fenômeno político-social é desenhado por Luhmann, pela óptica da
teoria política clássica, que a instituição das Constituições remonta à soberania.
Buscava-se regular e em alguns casos dar vazão a núcleos de poderes inseridos na
ordem social. Antes disso, a organização era voltada aos interesses do monarca e
da Igreja, não havendo espaço para oposição política ou para a própria divisão dos
poderes.203
Na verdade, a centralização do direito promovida pelo poder absoluto do
rei, antes benéfica à economia, se não controlada, com a garantia de liberdades ou
mesmo com a restrição de imposições à atuação do Estado, acabaria tolhendo os
planos da burguesia. A partir daqui, precisa-se proteger a propriedade, a liberdade e
os contratos do próprio monarca.204 Marcelo Neves, bem a propósito, identifica no
art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 a
materialização desse ideal.205
frequenti conflitti di norme e di giurisdizioni; incerti, a causa di tutto ciò. Potrebbe dubitarsi della
oportunitá di usare, per riferirsi ad essi, la parola “sistema”:[...].”. SARMENTO, 2012, p. 91.
202
A respeito do debate contratualista no cenário dos direitos humanos, ver NEVES, 2005, p.14.
203
LUHMANN, Niklas. La costituizione come acquizione evolutiva. In: A cura di ZAGREBELSKY,
Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jörger. Il futuro della costituzione. Torino: Giulio Einaudi
editore, 1996b. p. 102. SARMENTO, 2012, p. 93, 101. NEVES, 2007, p. 57.
204
SARMENTO, 2012, p. 92.
205
NEVES, 2007, p. 61. Para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ver FRANCE.
Assemblée Nationale. Declaration des droits de L’homme et du citoyen de 1789. Disponível em:
<http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asp>. Acesso em: 5 out. 2013.
132
Com efeito, pensou-se num núcleo duro, dentro do Estado, que pudesse
proteger os súditos – que gradativamente virariam cidadãos – dos desmandos dos
governantes. Nesse miolo, estariam grafados valores rígidos e em alguns casos
imutáveis, que aos poucos ganharam a veste de regime liberal, o qual veio a ser a
base ideológica do constitucionalismo, cujo sacerdócio pode ser resumido na crença
da necessidade de um documento rígido com a previsão dos preceitos a serem
obedecidos pelo Estado, notadamente a limitação do poder, a mantença de direitos
fundamentais, de todos em face de todos, com destaque para a restrição da atuação
do Estado perante os já cidadãos, e a supremacia da Constituição.206 Também, por
esse cenário, Luhmann expõe que a Constituição é o resultado de um
desenvolvimento evolutivo a resultar numa aquisição evolutiva.207
11.4 Séculos avante, como decorrência desse espírito crítico-protetivo
denominado de constitucionalismo, surgiu um ramo da ciência do direito que visa o
estudo sistematizado da Constituição, bem como continuar a disseminar as
premissas da proteção aos direitos fundamentais e defender a supremacia da
Constituição. A esse ramo, chamou-se de direito constitucional, em cuja
contextualização mundial se encontra a proteção de valores símbolos como: devido
processo legal, separação dos poderes e legalidade. Dessa forma, iniciou-se a
busca pela concretização do Estado Constitucional.208
Nos termos descritos por Niklas Luhmann, a evolução social não tem
ocorrido de forma retilínea ou mesmo homogênea.209 Como oposto disso, tem sido
resultado de um processo autopoiético, fruto essencialmente da complexidade e da
contingência social, sem previsibilidade, ou, ainda, de um planejamento rígido. Essa
assertiva, todavia, não serve exatamente para a constitucionalização do Estado
Moderno. Neste caso, houve todo um aparato diretivo cultural nesse sentido,
motivado muito pelo descrito nos parágrafos anteriores, fruto de um cenário social
206
NEVES, 2007, p. 61.
LUHMANN, 1996b, p. 120; NEVES, 2007, p. 57, 60.
208
BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no
Brasil contemporâneo. In: LEITE, George Salomão; SALET, Ingo Wolfgang (Orgs.). Jurisdição
constitucional, democracia e direitos fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 366. A respeito
das Constituições, como resultado de um planejamento da civilização moderna, ver LUHMANN,
1996b, p. 83.
209
NEVES, 2006, p. 24; LUHMANN, 1983b, p. 193.
207
133
desigual, cujo poder era exercido de forma absoluta – não por coincidência,
historicamente rotulado de Período Absolutista, o qual foi fomentado por uma
necessidade econômica momentânea.210
Séculos avante, porém, a desigualdade social gerada pelo regime liberal
torna-se propulsora das mudanças sociais. Os malefícios da não intervenção estatal
em contratos de trabalho, por exemplo, sucumbiram a Europa num mar de pobreza,
exploração, realimentando uma forte tensão social que dará vazão a doutrinas de
esquerda, com o próprio marxismo: ou caminha-se para outra direção, ou o
ambiente social é propício para novas revoluções. Comenta-se, nesse sentido, que
mesmo regimes totalitários como o nazismo se aproveitaram dessa desigualdade
descontrolada para angariar adeptos e fortalecer a sua filosofia política.
Exatamente por isso, com o passar dos anos, o constitucionalismo
estrutural foi sendo reforjado para, aos poucos, dar lugar ao constitucionalismo
operativo, a resultar em mais ênfase na busca da sua concretização social. Essa
perspectiva foi muito fundamentada no Pós-Segunda Guerra Mundial e identificado
na jurisprudência das cortes constitucionais, com a finalidade de concretizar valores
constitucionais, alguns até então tidos apenas como programáticos. Não se abre
mão da proteção constitucional em face do Estado, porém, desse momento em
diante, espera-se uma atitude de concretude social. Nessa linha, o Estado não mais
poderá se eximir de atuação positiva na busca incansável da efetividade social, de
sorte que a igualdade passa a ser o axioma predominante, sem prejuízo dos
avanços sociais outrora conquistados.211
Em outra reação teórica aos atos lesivos da Segunda Guerra Mundial,
materializou-se um movimento teórico autodenominado de neoconstitucionalismo,
no qual se difundiram ideários como: mais juízes e menos legisladores; mais
princípios e menos regras; mais ponderação e menos adjudicação; mais
concretização e menos interpretação. Por isso mesmo, percebe-se que o
neoconstitucionalismo tem como bandeira a efetividade do texto constitucional, em
especial o destaque para os direitos fundamentais (incluídos os sociais, obviamente)
e para a atuação do Poder Judiciário dentro desse novo processo de exegese
210
211
LUHMANN, 1996b, p. 83-85.
SARMENTO, 2012, p. 102-105.
134
constitucional. Sem embargo da busca dessa efetividade, a pesquisa empírica
demonstrou que se reclama de julgamentos em direito à saúde por meio da fórmula
de contingência em que sistemicamente se promova a dicotomia: consistência
teórica-adequação social, para, desta forma, as decisões judiciais se adaptarem às
novas realidades.212
Nesse enfoque, se não é correto defender uma atuação jurisdicional
desprovida da efetivação dos direitos sociais, não é menos verdade que há um
grande simbolismo em ratificar que a Suprema Corte julgue despreocupada das
eventuais consequências financeiras de suas decisões, uma vez que – como Corte
Constitucional – deve manter o equilíbrio entre os subsistemas sociais. Portanto, se,
de um lado, deve julgar com autonomia funcional e operativa, de outro, deve
relacionar-se com sistemas sociais absorvendo suas respectivas comunicações
como irritação ao ambiente, apta a promover variação, seleção e estabilização.213
11.5 Pela leitura dos parágrafos anteriores, consigna-se, resumidamente,
que a economia teve grande papel no molde teórico do constitucionalismo, e por que
não dizer, do desenvolvimento social de modo geral, como frisou Luhmann.214 Desta
feita, vale lembrar muito brevemente que a economia mundial tem oscilado muito.
Prova disso, é que não foram poucas as intervenções bilionárias que o governo
norte-americano tem feito na sua economia, bem como a gigante crise que assola o
Velho Mundo, que literalmente colocou a Europa à beira de um colapso financeiro,
no qual até mesmo se chegou a falar em ruptura do euro por alguns países, como a
Grécia.215 E é justamente nesse novo cenário cultural e econômico que a pesquisa
materializa a coleta de dados com as digressões à frente pontuadas, sobretudo com
o âmago de responder se a atuação do STF é simbólica ou efetiva.
212
Sobre a fórmula de contingência, ver LIMA, 2012a, p. 1-11; LIMA, Fernando Rister de Sousa. Qual
a justiça possível de ser alcançada na decisão judicial? Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da
PUC/SP. São Paulo, PUC/SP, v. 2, 2009a. p. 01-11.
213
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 201-202;
NEVES, 2007, p. 64.
214
LUHMANN, 1983b, p. 197; LIMA, 2009b, p. 36.
215
No cenário do Estado neossocial, ver BONAVIDES, Paulo. Do Estado neoliberal ao Estado neosocial. Folha de São Paulo. São Paulo, 06/11/2008, p. A3: “Depois da queda das Bolsas no globo e
das intervenções bilionárias dos Estados Unidos para salvar sua economia, o mundo vê desfazer-se
em frangalhos a ilusão neoliberal que decretara o fim das ideologias, em um cenário em que todos os
sistemas econômicos e financeiros jazem sob a égide da globalização.”.
135
12 POSITIVAÇÃO DO DIREITO E DIREITO À SAÚDE
12.1 A própria inexatidão do verbete “direito” desperta interesse de
pesquisadores das mais diversas bases epistemológicas. Também em razão disso,
o direito é observado ao longo da história da humanidade. Como um dos possíveis
enunciados desse processo, alguns autores chegam a somente considerar a
presença de civilização nos grupos humanos em que haja direito. Para esses, tão só
há sociedade desenvolvida na existência do direito. Outros identificam que a cada
progresso
civilizatório
tem-se
nova
formatação
de
racionalidade
jurídica,
consequentemente alterada conforme o seio social a que esteja vinculada. Contudo,
o direito estaria presente mesmo nas ditas sociedades incivilizadas.216 Para
Luhmann, sempre existiu direito na sociedade. Obviamente, a elevação da
complexidade fomentou a diferenciação, a qual forjou a positivação como aquisição
evolutiva.217
12.2 No Brasil, a assembleia constituinte – que resultou na Constituição
Federal de 1988 – confiou ao STF o escopo de dar sentido às normas
constitucionais ao resolver os litígios envolvendo os seus preceitos. Até por essa
razão, a norma constitucional não pode ser observada apenas pelo texto legislativo,
mas também na sua efetivação pela referida corte, como um processo de
concretização normativa. Desta forma, a validade e o sentido do direito dependem
da lei e da decisão judicial, na linha de uma “hierarquia-entrelaçada” na forma
desenhada por Neves.218 Nessa perspectiva, a norma jurídica se depara com o seu
processo de criação chegado ao fim somente após a sua concretização. Com tal
216
Mas, mesmo nas primitivas, reconhecia-se a autoridade de algumas pessoas ou de grupos para
resolver conflitos. Tais disputas são essenciais para compreender a função e a origem do Direito. Isso
porque, não raro o Direito surge para resolver as lides.
217
LUHMANN, 1983a, p.182: “[...] Todas as sociedades humanas, ao longo da história conhecida,
atuaram de forma ‘equifinal’ por sempre gerarem direito, se bem que com diferentes concepções
normativas, instituições, interesses divergentes, procedimentos, e ainda entrelaçamentos muito
distintos com as estruturas sociais e extrajurídicas.”. CEVOLINI, Alberto. Evoluzione e semântica del
diritto arcaico. In: A cura di CEVOLINI. Potere e modernità. Stato, diritto, costituzione. Milano: Franco
Angeli, 2007. p.156.
218
NEVES, 2007, p. 70.
136
importância, o processo interpretativo de aplicação normativa não pode ser visto
como mero procedimento de aplicação, porém como um atuante processo de
concretização, em que as abordagens semânticas e pragmáticas têm mais
importância do que as de subsunção sintática.219
Durante esse processo de concreção, não obstante o direito público
subjetivo à saúde garantido pela Carta Magna, como é plausível que uma parcela
significativa da população brasileira fique à margem de uma igualdade social
mínima?220 Concerne, no aspecto, indagar se há cidadania em postar os direitos
sociais em norma constitucional e simplesmente aceitar o seu descumprimento,
como se fossem meramente simbólicos?
Por obviedade, o direito não pode infelizmente refazer o milagre da
multiplicação dos pães, como narram os evangelistas, ou mesmo, como alerta quase
dois mil anos depois, Niklas Luhmann, a respeito da inexistência de uma “varinha de
condão”, cujo simples desejo se concretizaria imediatamente num ato de mágica.
Não se trata disso. É preciso grifar com rigor, entretanto, que igualmente não se há
de coadunar com a passividade, nem com a inércia – não obstante a sua
provocação via demanda –, tampouco com a justificativa da errônea cultura jurídica
de que não lhe cabe fazer valer um direito público subjetivo constitucional.
12.3 De modo inverso, quando se nega a emissão comunicativa, a égide
da binariedade do código exclui o jurisdicionado da prestação social ofertada pelo
sistema parcial mencionado linhas atrás, o que também faz com que esta gama de
excluídos não veja no Poder Judiciário um defensor dos direitos.221 No mesmo
sentido, não há de se negar pontuais argumentos, no aspecto de que o sistema
jurídico não tem condição de solucionar tais carências materiais, mormente porque
219
NEVES, 2007, p. 85-87.
Num atual e pontual estudo sobre a desigualdade social, sob o manto da teoria dos sistemas,
como processo de seletividade da modernização da sociedade brasileira, ver VILLAS BÔAS FILHO,
2009, capítulos 4 e 5, p. 333-335.
221
VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 351. Com efeito, esta tese assenta que o direito não poder ser
exclusivamente julgado pela sociedade como responsável pela restrição da liberdade, nas searas
penalistas, ilustrativamente grafada, nem, outrossim, como protetor dos bens da burguesia, quando
há inadimplemento e o Oficial de Justiça, seguindo ordem judicial, apreende bem adquirido com
reserva de domínio, alienação fiduciária etc. Em ambos, o Estado-juiz emitiu comunicação jurídica,
que até podem restar frustradas, no entanto, sob o viés comunicativo, inseriu o jurisdicionado no
subsistema do direito.
220
137
aludem a problemas inerentes à periferia, gerados pela ausência de recursos para
atender o grande número de necessitados. Precisar-se-ia de vultoso numerário a fim
de atender à enorme desigualdade que assola a nossa sociedade. Em razão disto,
operar-se-iam escolhas que obrigatoriamente não atenderiam a tudo e a todos.222
No Brasil, que particularmente interessa à tese, formam-se legiões de excluídos,
sem as mínimas condições de sobrevivência digna, e o que se dirá da desejada
igualdade econômica apregoada pelos direitos sociais constitucionais.223
12.4 Em outro contexto teórico, Lourival Vilanova pontuou que o processo
de desenvolvimento social trata-se de alteração factual, num constante duelo entre
estabilidade e revolução, em gradativa alternância. A forma jurídica seria a
responsável
pelos
contornos
desses
novos
valores,
ainda
em
ebulição
revolucionária.224 Historicamente, a decisão de resolução das contendas sociais
sempre foi tomada, seja em tribos, seja em civilizações modernas, por uma ou várias
autoridades, fundamentada em poder outorgado consoante a forma da estrutura
social do momento estudado. Exemplifica-se com a referência às sociedades
arcaicas, nas quais a união e o poder se originavam de laços familiares.225
Em que pesem as variantes sociais, com o surgimento da lide, reclama-se
de autoridade social para dirimir os litígios em cujo resultado se refletem os valores
daquele grupo social, sobretudo dos axiomas dominantes entres os julgadores.
222
Sob outro vernáculo: o cobertor é pequeno.
No plano teórico, não faltam justificativas, e justificadores, ao plexo ideário de abstenção à
intervenção do Direito para atenuar essa não concretização dos valores sociais ou mesmo de sua
incapacidade para tal escopo, mesmo que resguardadas com tanta argúcia no texto constitucional,
como fazem, na última hipótese, mediante preceptivos iluminados: Celso Fernandes Campilongo e
Orlando Villas Bôas Filho, de gerações distintas, mas que teorizam sob forte influência luhmanniana,
sobretudo por isto, relevantes ao arauto metodológico do trabalho. A propósito, ver CAMPILONGO,
2002, p. 170 e VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 354-356.
224
VILANOVA, 2003, p. 475.
225
LUHMANN, 1983a, p. 168, 170, 174, em especial, p. 182: “A perspectiva histórica e a da
comparação cultural se deparam com a ampla variedade e multiplicidade de forma que o direito
assume. A diversidade das origens e das etapas da formação do direito que alcançam o impenetrável
desconhecido histórico exclui a hipótese de uma única causa ou constelação de causas do direito.
Todas as sociedades humanas, ao longo da história conhecida, atuaram de forma “equifinal” por
sempre gerarem direito, se bem que com diferentes concepções normativas, instituições, interesses
divergentes, procedimentos, e ainda entrelaçamentos muitos distintos com as estruturas sociais
extrajurídicas.”. LIMA, 2012a, p. 42-47. NAVAS, 2009, p. 306-319.
223
138
Assim, decide-se, forma-se uma norma jurídica, a fim de imediatamente dirimir o
conflito e mediatamente orientar a sociedade.226
12.5 Em sintonia com esse plexo, todavia sob outras premissas, o formato
de sistema/ambiente, apontado por Luhmann como existente na sociedade, leva
invariavelmente a uma incerteza controlada. Nesses termos, várias tomadas de
decisão em relação a um mesmo caso concreto são possíveis. Isto porque, à
medida que a complexidade se eleva, o sistema precisa, dentro da sua binariedade,
fazer escolhas para produzir nova estabilização. Ocorre, no entanto, que essas
escolhas podem resultar em posturas alternativas, menos exequíveis e até de
indiferença,
como
constatou
Alberto
Febbrajo227
em
monografia
sobre
o
funcionalismo estrutural na Obra de Niklas Luhmann. Portanto, não há uma linha
retilínea de evolução.228
De outra banda, trata-se de um processo evolutivo gerado após um
constante duelo comunicativo-social entre o sistema e o ambiente, vale dizer, do
limite do sistema, num sistema/ambiente seletivo feito pelas estruturas, o que gerará
inclusive diferenciação comunicacional, na qual reside a base da formação dos
sistemas. Nesse sentido, à medida que se altera o status anterior, por meio dessa já
mencionada comunicação diferenciada, deparamo-nos com a evolução do direito,
independente do sentido dado pela nova comunicação, num processo de
autorreferência, reflexividade e reflexão, obviamente numa sinergia com a
codificação e a programação; do contrário o processo seria uma forma sem
conteúdo.229
226
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Tradução Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1985.v. 2. p. 12: “[...], agora o direito serve como instrumento do desenvolvimento social,
como mecanismo de definição e distribuição de chances e de resolução de consequências funcionais
problemáticas, [...]”.
227
FEBBRAJO, 1975, p. 39. POCAR, Valerio. Il diritto e la trasformazione sociale nella prospettiva
funzionale.In: A cura di GIASANTI, A; POCAS, V. La teoria funzionale del diritto. Milano: UNICOPOLI,
1981. p. 22: “[...]. Conflitto e trasformazione non sono naturalmente sinonimi, ma sono certamente
fenomini strettamente correlati, molto spesso in un rapporto reciproco de causa ed effetto tanto vicino
da renderli press che coincidenti.”.
228
NEVES, 2006, p. 24; LUHMANN, 1983a, p. 193.
229
FEBBRAJO, 1975, p. 88-90, 97; NEVES, 2007, p. 131-132, 134, 136-137.
139
13 DIREITO À SAÚDE E COMPLEXIDADE SOCIAL
13.1 Na perspectiva sistêmica, a constitucionalização dos direitos
fundamentais, ora inseridos os sociais, caracterizar-se-ia como garantia em face ao
seu desrespeito. Reconhece-se a hipercomplexidade social e por isso mesmo o
risco de ocorrer a desdiferenciação do sistema parcial do direito, quando ele deixaria
de operar sob sua binariedade e, por exemplo, sofreria determinações do sistema
parcial da política. E, nessa óptica, os direitos sociais inseridos na Constituição
seriam uma garantia de inclusão social e não ficariam dependentes do sistema
político.230
13.2 A complexidade social instaurada chega a ponto de se tornar
hipercomplexa, mesmo dentro da relação processual. Daí que a possibilidade de
aprendizado ao positivar o direito é necessária para acompanhar uma sociedade
complexa e dinâmica. Em consequência, o magistrado terá vários caminhos
igualmente possíveis a serem tomados, mesmo num processo de interpretação da
norma, entretanto, com um limite de aprendizado (cognitivo) na Constituição
Federal. Ela constitui o ordenamento jurídico. Após a sua promulgação, uma nova
ordem se instaura. Tudo decorre dela e não se pode destoar de seu plexo valorativo
sob pena de inconstitucionalidade.231
Na verbalização de Febbrajo, a redução da complexidade realizada pelos
subsistemas, por um lado da análise, simplesmente transfere a complexidade da
sociedade para o seu interno e vice-versa. Essa transferência ocorre num momento
de abertura cognitiva do sistema em que a comunicação externa (do mundo)
ingressa e, como parte desse processo, o sistema parcial em questão reduz a
complexidade diferenciando a comunicação. Emite-se, pois, com base na irritação
230
NEVES, 2007, p. 75-78.
NEVES, 2007, p. 71, 136-137. Parsons coloca, com muita propriedade, que as normas são postas
de uma forma geral, porém o significado, numa situação concreta, trata-se realmente de um problema
de interpretação. Cf. PARSONS, 1981, p. 87. Sobre a Constituição como criadora do ordenamento
jurídico, ver LUHMANN, 1983c, p. 356:“La teoria dello Stato costituzionale, della sua costituzione,
della sua sovranità, del suo controllo di potere, há descritto il sistema político come ordinamento che,
intorno al 1800, si comincia a chiamare <<Stato moderno>>.[...]”.
231
140
externa, uma comunicação diferenciada (binariedade sistêmica).232 Em razão da
elevação da complexidade social, cuja consequência é sobretudo a grande
quantidade de opções possíveis e sua contingência, forja-se uma legitimidade
procedimental e não com base em nenhuma racionalidade específica, quer dizer, um
axioma qualquer. E isso porque a evolução ocorre internamente, vinculada às
estruturas hierárquicas do próprio subsistema. É um fechamento interno,
autopoiético, mas nunca fechado para o ambiente.233
13.3 As desilusões acontecerão certamente. Não há como o direito
garantir que isso não ocorra, uma vez que foge da sua capacidade operativa. Apesar
disso, quando irritado (provocado) por nova comunicação, o sistema parcial emitirá
nova comunicação com o intento de corrigir a desilusão porque se trata, no caso
especificamente do sistema jurídico, de expectativas normativas, as quais, ao
contrário das cognitivas, não se adaptam às desilusões. Se não for desse modo, as
normas jurídicas acabam não cumprindo o seu mister de guiar condutas. Por isso
mesmo, o juiz não pode aprender com a desilusão, mas sim deve continuar a
preservar a manutenção das expectativas normativas ao longo do tempo.234
É verdade, porém, que a tarefa de manter as expectativas ao longo do
tempo, em face da desilusão, mediante novas comunicações diferenciadas, não é
tarefa fácil, notadamente em razão dos elementos que compõem o dever-ser, a alta
seletividade – oriunda da elevada complexidade – e as expectativas das
expectativas. Nesta última, sobretudo quando as expectativas de “A” são diversas
232
FEBBRAJO, 1975, p. 57-58. LUHMANN, Niklas. Le norme nella prospettiva sociológica. In: A cura
di GIASANTI, A; POCAR, V. La teoria funzionale del diritto. Milano: Edizioni UNICOPOLI, 1981. p. 66.
Em síntese, as normas jurídicas não devem aprender com as desilusões oriundas do seu
descumprimento. Por outras palavras, as normas não podem aceitar a sua ineficácia social.
233
A questão da legitimação é tratada por Luhmann com o vagar necessário em duas obras. A
primeira Legitimation durch Verfabren, de ampla divulgação mundial, é focada basicamente nos
principais procedimentos do Estado de Direito. A segunda é Politishe Theorie im Wohlfabrtstaat,
conforme FEBBRAJO, Legitimazione e teoria dei sistemi. In: TREVES, Renato (Org.). Diritto e
legitimazione. Milano: Franco Angeli, 1985. p. 24-25. Ambas têm boa tradução para o italiano, a
saber: Procedimenti giuridici e legittimazione sociale. A cura di FEBBRAJO, Alberto. Milano: Giuffré,
1995 e Teoria Politica Nello Stato del Benessere. A cura di SUTTER, Raffaella. Milano: Franco Angeli,
1983.
234
De outro modo, o legislador pode apreender com a realidade social. Com isso, alterar o conteúdo
normativo, inserindo no direito positivo novo valor, mesmo que seja contrário ao anteriormente
predominante, ou seja, posto por ele mesmo. O legislador, dessa forma, é tido como um
programador, com uma margem muito grande de manobra decisional, que lhe escolher novos
valores, mudar de ideologia, tudo obviamente dentro da zona de cognição determinada pela
Constituição Federal. Nesse sentido, ver FEBBRAJO, 1975, p. 102-104.
141
das de “B”. Não obstante esse cenário, mesmo diante da ineficácia social, caberá
sempre a emissão de nova comunicação. Em razão disso, surgiu a expressão
luhmanniana de que as normas são expectativas estabilizantes contrafáticas. Elas
lutarão contra os fatos sociais que se colocarem em desfavor do cumprimento do
seu conteúdo. 235
Por outro olhar, tem-se que os desentendimentos sociais levam à
desilusão. E uma das possíveis consequências é o ingresso de demanda judicial.
Caberá ao Poder Judiciário, via reiteradas comunicações – se necessário –,
inclusive com uso de sanções, a mantença das expectativas normativas ao longo do
tempo.236
Nesse cenário, identifica-se também a elevação da complexidade com o
acréscimo dos litígios. O processo social, no que diz respeito ao aumento dos
processos judiciais, é mais ou menos assim: as opções sociais aumentam. Por elas,
as escolhas são contingentes. Como foco disso, deparamo-nos com a dupla
contingência, a qual leva a crer que o outro agirá de determinada forma, quando a
escolha de conduta for em sentido diverso do esperado. Com isso, possivelmente se
configurará um litígio que pode ou não ser levado ao Poder Judiciário.237
13.4 A autonomia dos sistemas parciais é crucial para a absorção da
complexidade social por meio da realização da sua referida função. Essa autonomia
garante ao sistema, dentro do código binário, certa liberdade para operar em
235
LUHMANN, 1981, p. 66, 70. FEBBRAJO, 1975, p. 61, 62-63; POCAR, 1981, p. 23: “[...] il problema
sociologico del diritto si viene a porre, nella prospettiva funzionale, principalmente come il problema
del funzionamento del diritto e della sua efficacia come meccanismo di controllo, anche e forse
soprattutto in cio che attiene alla sua capacita di guidare la trasformazione, tanto più quanto più è
complexo il sistema sociale.[...].”; PARSONS, Talcott. La prospettiva sociologica della professione
legale. In: A cura di GIASANTI, A; POCAR, V. La teoria funzionale del diritto. Milano: UNICOPOLI,
1981. p. 88: “[...]In um sistema giuridico, in ogni caso, il problema della confirmità o meno alla norma
non può mai essere oggetto di indiferenza. [...]”.
236
CEVOLINI, 2007, p.156-158, 160; POCAR, 1981, p. 21: “Comunque sia, il conflitto rappresenta
l´oggeto del complexo integrato di meccanismi che sinteticamente vien definido controllo sociale, il
quale, appunto perche ci collochiamo in um contesto concettuale funzionale, è controllo finalizzato
all´equilibrio e quindi alla conservazione del modello, principalmente tramite l´integrazione.”;
LUHMANN, 1981, p. 63: “4. Seguendo una proposta di Johan Galtung (26) le aspettative verso le
quali vi è aspettativa disposta all´apprendimento possono chiamarsi aspettative cognitive e viceversa
possono definirse aspettative normative quelle verso le quali vi è aspettativa disporta al non
aprendimento.”. Diante dessa situação, o direito, representado pelos tribunais - o centro do
subsistema –, porta-se como um observador de segunda ordem.
237
CEVOLINI, 2007, p.175; POCAR, 1981, p. 22: “Il diritto è struttura del controllo sociale e ne integra
globalmente la funzione.”.
142
sintonia com os pontos dispostos na própria operação. Tal referência à própria
comunicação é denominado por Luhmann como autorreferência, a qual ajudará na
legitimidade da contingência diante das novas demandas sociais.238 Por outro
vernáculo, a contingência das decisões do sistema jurídico é certa e fruto
essencialmente da necessidade social de novas estruturas; com elas opera-se
constante aperfeiçoamento das operações comunicacionais. Isso tudo se dá em
razão do aumento das necessidades sociais, visto que à proporção que a
complexidade se eleva, a dificuldade da absorção pelos sistemas também se eleva,
dando início àquela operação contingente frisada há pouco.239
Nesses moldes, o sistema jurídico é um processo autorreferencial porque
caracteriza uma operação fechada ao interno, porém sob cognição aberta e
autônoma. Uma comunicação provoca outra e assim sucessivamente. A sociedade é
o grande propulsor desse processo. Ela emite constantemente novas comunicações,
cuja resposta o sistema jurídico deve gerar. Durante o processo, o subsistema
recebe a comunicação externa ao seu interno, irrita-se e provoca nova operação
fechada à sua binariedade, a qual exigirá uma nova seleção e decisão. Nesta linha,
quanto mais se aumenta a pressão social, a contingência decisional se torna uma
constante. Esse processo é, por excelência, um procedimento social em que a
descrita reflexividade se processa para validar ou desvalidar determinada conduta,
positivando-a.240
13.5 Mansilla e Nafarrate frisam que a reiteração da positivação por meio
judicial leva a aproximação ao common law.241
Nota-se, nesse pensar, a
contextualização que está por trás dessa afirmação. Não se nega a existência de
pontos de partidos vinculantes impostos pela política, todavia, destaca-se que a
238
LIMA, 2009b, p. 26-27; LUHMANN, 2005, p. 73, 99-101, 104, 107, 109; LUHMANN, 2007b, p. 6668, 70-71.
239
TOSINI, 2007, p. 119, 124; NEVES, 2007, p. 72.
240
TOSINI, 2007, p. 99-100; LUHMANN, 2005, p. 93-94. Eis o que, sob a veste da teoria dos
sistemas, rotula-se de positivismo.
241
MANSILLA, Darío Rodríguez; NAFARRATE, Javier Torres. Introducción a la teoria dela sociedade
de Niklas Luhmann. Mexico: Herder, 2008. p. 566-567; POCAR, 1981, p. 25: “Naturalmente i
meccanismi della efficacia del diritto saranno alquanto articolati e differenziati secondo il tipo dei
rapporti oggeto della regolazione e secondo la qualità dei destinatari delle norme. [...] In ogni caso la
capacita educativa del diritto e quindi la sua capacita adattativa nella trasformazione, cioè
d´integrazione consesuale, sará tanto maggiore quanto maggiore sará la congruenza tra il sistema
normativo giuridico e gli altri sistemi normativi e tra questi e il sistema culturale.”.
143
enorme complexidade social quando é levada ao processo judicial se transforma em
complexidade processual; sua produção reiterada conota uma forte pressão social
ao sistema jurídico, com destaque para os tribunais, os quais reduzirão a
complexidade mediante operações internas, binárias, e cada vez mais complexas,
cuja consequência também pode ser a alteração das teses jurídicas previamente
fixadas.
Em razão desse cenário de hipercomplexidade social, na sociedade
podem ocorrer várias evoluções ao mesmo tempo. Não se trata de uma evolução
gradual, planejada. O direito, a política, e demais subsistemas, seguem cada qual o
seu respectivo programa. A evolução ocorre no interno de cada sistema. Seriam
coevoluções, posto que as mudanças ocorrem com dependência da sociedade, até
porque os sistemas parciais – local onde se dá o processo evolutivo – estão
inseridos na sociedade. Em consequência, as novas ideias surgem como fruto do
processo de variação, seleção e reestabilização. O processo comunicacional social
autopoiético gera nova comunicação e assim sucessivamente, de modo que a
capacidade evolutiva da sociedade está ligada à sua autopoiese – forma na qual se
opera a produção da sociedade moderna –, num processo autorreferencial de
reflexividade a resultar em reflexão.242
14 ATUAÇÃO SIMBÓLICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
14.1 Consoante já se disse, a conceituação do vocábulo “simbólico”, no
plano teórico, é heterogênea. O trabalho adota a desenvolvida por Marcelo Neves no
seu livro “A Constitucionalização Simbólica”. Precisamente para o sentido da
pesquisa, já visualizada no título do trabalho, a atuação simbólica do STF, a priori,
caracterizar-se-á quando prevalecer na sua “racionalidade jurídica” o significado:
242
MANSILLA; NAFARRATE, 2008, p. 374-375, 377; NEVES, 2007, p. 127-128, 130-133, sobretudo
p. 131: “Mas a concepção de autopoiese não se limita em Luhmann à auto-referência elementar ou
de base, que se assenta na diferença entre elemento e relação. Essa se apresenta como ‘a forma
mínima de auto-referência’, constituindo um dos três momentos da autopoiese, os outros são a
reflexividade e a reflexão, que se baseiam respectivamente na distinção entre ‘antes e depois’ ou
entre “sistema e ambiente”. Reflexividade e reflexão são conceitos mais precisos do que a categoria
mais abrangente de mecanismos reflexivos, formulada anteriormente por Luhmann.”.
144
“político-ideológico”, aqui materializada pela atuação jurisdicional em desfavor da
concretização normativo-jurídica. A decisão simbólica, portanto, teria um escopo de
álibi social e não de luta pela efetividade dos valores normativos. Álibi entendido
como um mecanismo, na verdade, de efeito, como já dito, “político-ideológico” de
justificação às pressões sociais.243 No entanto, a tese realiza uma mudança de
paradigma, haja vista que Neves analisou o simbolismo da Constituição Federal e a
pesquisa, ao seu turno, centra-se na jurisprudência da Suprema Corte.244
Por trás do ideário simbólico de Neves há toda uma construção teórica,
alicerçada sobretudo em Kindermann e em Gusfield, com nítido objetivo de
sistematização. Nessa senda, depara-se com uma classificação das leis simbólicas
no seguinte formato: (i) legislação como confirmação de valores sociais; (ii)
legislação como álibi; (iii) legislação como compromisso futuro. A primeira situação
surge quando há uma forte polarização ideológica conduzida por grupos sociais
obviamente antagônicos e ideologicamente conflituosos. A rivalidade é levada ao
parlamento a fim de que um lado saia vencedor na votação de determinado projeto
de lei. Em algumas situações, trata-se até mesmo de um litígio religioso, como
ocorreu entre protestantes e católicos no caso da Lei Seca nos Estados Unidos da
América. A aprovação da lei com vedação à venda de bebidas alcoólicas foi para os
nativos (protestantes) uma grande vitória contra os imigrantes (católicos),
independentemente da efetividade social da norma.245
14.2 A legislação como confirmação de valores sociais é o primeiro
exemplo de legislação simbólica demonstrado por Marcelo Neves. E o mais curioso,
porquanto parece inusitado que os movimentos sociais se satisfaçam com a vitória
legislativa e não se preocupem com a efetivação dos valores contemplados. Neves
243
NEVES, 2007, p. 19, especialmente, p. 30-31: “[...] Porém, o conceito de legislação simbólica deve
referir-se abrangentemente ao significado específico do ato de produção e do texto produzido,
revelando que o sentido político de ambos prevalece hipertroficamente sobre o aparente sentido
normativo-jurídico. A referência deôntico-jurídica de ação e texto à realidade torna-se secundária,
passando a ser relevante a referência político-valorativa ou ‘político-ideológica’”. Ver, também,
NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Costituzionalizzazione simbólica e decostituzionalizzazione di fatto.
Traduzione Michele Carducci. Lecce: Pensa, 2004. p. 29, 32.
244
NEVES, 2007, p. 1-3. Ainda, sobre a obra de Marcelo Neves, intitulada “A Constitucionalização
Simbólica”, destaca-se que foi por meio da sua leitura que Niklas Luhmann repensou a ideia de
autopoiese para reconhecer a alopoiese.
245
NEVES, 2007, p. 33-36.
145
elenca exemplos como o caso da Lei Seca norte-americana, em que os protestantes
a favor da lei travaram uma batalha política com os católicos contrários à sua
aprovação. Fundamentando-se em Gusfield, Neves defende que almejavam os
protestantes a aprovação da lei muito mais num sentido de duelo de forças do que a
concretização no mundo fático desses valores.246 Talvez, a situação, por outro olhar,
não seja de desinteresse pela efetividade social, porém estaria num segundo plano,
pois que, em primeiro estaria a vitória política, em total derrocada do outro grupo
social.
A segunda hipótese pontuada por Neves diz respeito à legislação-álibi.
Nesta, o legislador teve o escopo de conquistar a opinião pública. Muitas vezes,
cobram-se do parlamento atitudes até mesmo imediatas para sanar problemas
sociais, sejam de qualquer ordem, mesmo que a produção normativa não possa,
como um passe de mágica, solver o problema. Essa expressão: “legislação-álibi”,
como suprarreferida, foi cunhada por Kindermann. Abrange situações como as que
ocorrem nos processos eleitorais, em que os políticos propagandeiam seus atos,
como forma de angariar eleitorado ou mesmo manter o do pleito anterior.247
14.3 Ainda, sob o aspecto do simbolismo, Marcelo Neves, escorado em
Freud e Gusfield, cada qual no seu contexto teórico, desenvolve raciocínio sobre o
significado latente e manifesto das normas jurídicas, imbricando em agudo conceito
sobre a legislação simbólica, a qual seria, por outro vernáculo, um mandamento com
a ilusão de uma função manifesta. Por sua edição, não se pretendeu, realmente, que
os valores nela assentados fossem efetivados. Almejou-se, de forma latente –
escondida –, outra finalidade, como por exemplo, de origem político-ideológica.248
246
NEVES, 2007, p. 33-34. O autor cita mais dois exemplos sobre essa situação de confirmação de
valores sociais, ambos na Europa; um a respeito do aborto, outro de legislação estrangeira. Cf. p. 3435.
247
NEVES, 2007, p. 36-37.
248
NEVES, 2007, p. 22-33, sobretudo p. 33: “Kidermann propôs um modelo tricotômico para a
tipologia da legislação simbólica, cuja sistematicidade o torna teoricamente frutífero: ‘Conteúdo de
legislação simbólica pode ser: a) confirmar valores sociais, b) demonstrar a capacidade de ação do
Estado e c) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios’.”. Como se aduz
da transcrição, Neves, baseado em Kindermann, expôs um modelo com tríplice divisão do intuito
latente dessa legislação simbólica: (i) confirmação de valores sociais; (ii) legislação-álibi; (iii)
legislação como fórmula de compromisso dilatório. Cf. NEVES, 2004, p. 27-28.
146
A cobrança social face ao sistema político provoca uma reação
comunicativa. No caso da produção legiferante, novas leis serão votadas e
aprovadas diante dos clamores sociais. O curioso é que, em algumas situações, os
legisladores têm consciência da ineficácia social dessa nova lei. Ela será aprovada,
porém, socialmente terá pouca ou nenhuma força coercitiva. Sem embargo desta
consciência, como ela se faz necessária, é criada como um “álibi” com o mote de
reforçar momentaneamente a confiança popular no governo. Contudo, a prática
sucessiva de tal artifício pode gerar o efeito inverso, fortalecendo o descrédito em
relação aos políticos.249
A ideia de dilação da resolução de um problema social é relacionada,
regra geral, à gravidade do problema em questão. Como é um problema grave, de
difícil resolução, procura-se postergá-lo mediante a criação de medidas paliativas. A
exemplo disso, no Brasil existem, em algumas regiões, verdadeiros bolsões de
miséria; uma situação oriunda de uma realidade econômico-social negativa muito
forte, não resolúvel em curto prazo. Por isso mesmo, o governo brasileiro cunhou
diversos planos assistenciais, rotulados de “bolsas”, os quais, no senso acima
mencionado, amenizam, mas não resolvem a situação. Sem menoscabo a essa
análise, a ideia aqui é outra: o parlamento vê a necessidade de dar uma resposta
aos eleitores, todavia, não há consenso em relação às medidas que devem ser
tomadas para resolver a questão. Deste modo, diante da necessidade imediata de
uma resposta, chega-se a um acordo em produzir determinada norma que sabem
que não resolverá a situação. No entanto, como não há acordo sobre as medidas
necessárias, edita-se a lei propriamente como uma dilação do problema. É uma
forma de dar uma resposta (ainda que estéril) aos reclamos da sociedade.250
249
NEVES, 2007, p. 36-41, cita-se, literalmente, p. 33: “[...] Quando, porém, a nova legislação
constitui apenas mais uma tentativa de apresentar o Estado como identificado com os valores ou fins
por ela formalmente protegidos, sem qualquer novo resultado quanto à concretização normativa,
evidentemente estaremos diante de um caso de legislação simbólica.”. Cf. NEVES, 2004, p. 28-29.
250
NEVES, 2007, p. 41-42.
147
15 ATUAÇÃO EFETIVA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
15.1 As normas constitucionais não são simplesmente conselhos. Muito
pelo contrário, tratam-se da base do direito. Tudo decorre delas, por isto mesmo, o
seu conteúdo é obrigação do Estado fazê-lo efetivar-se, inicialmente dentro do
próprio sistema, para em seguida concretizá-lo socialmente. À parte, portanto, as
discussões ideológicas e científicas sobre a eficácia constitucional, o certo é a sua
força vinculante. A Constituição não se trata de um simplório conjunto de ideias,
aspirações e desejos, ao inverso disso, é a materialização deles pelo direito; foram
transformados num plexo de regras vinculantes à sociedade e também ao Estado, o
que obriga o sistema jurídico, por exemplo, a promover a inclusão generalizada dos
excluídos, quando provocado, inclusive nos direitos sociais.251
Essa positividade vinculante é uma aquisição evolutiva do Estado
Moderno, como descreveu Luhmann. A elevação da complexidade fomentou a
diferenciação sistêmica a desembocar nas normas postas, com força vinculante
também ao gestor público.252 Até porque, a nota destaque do direito é a imposição
de condutas, quiçá quando tais preceptivos estejam previstos na lei das leis, à qual
tudo e todos se subordinam. Daí a justiça social amplamente prevista na
Constituição Federal – arts. 6º, 7º, 170, 193, 208, inc. I, – não poder ser aviltada por
qualquer indivíduo, muito menos, pelo próprio Estado, seu guardião por excelência,
mesmo que os versículos constitucionais sejam considerados como programáticos,
como pontua Bandeira de Mello.253
A essa linha de raciocínio acresce-se que as leis e os atos
administrativos, obviamente praticados pelo Estado nas suas distintas dimensões,
hão de buscar sempre a efetiva justiça social. Vale dizer, inclusive, que o legislador
maior – constitucional – chegou a ponto de tipificar como crime de responsabilidade
251
NEVES, 2007, p. 77.
Com a positivação a legislação ganha um grande espaço social. Ela gradativamente acaba que a
definir limites à Administração Pública. Desse ponto em diante, historicamente, as leis devem ser
cumpridas, sobretudo a partir do último quarto de setecentos com as constituições em voga. Trata-se
de uma aquisição evolutiva. Cf. LUHMANN, 1996b, p. 102.
253
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais.
Malheiros: São Paulo, 2009. p. 11-13. Sobre a eficácia intrassistêmica, ver VILANOVA, 2000, p. 74:
“A eficácia é uma construção intra-sistêmica, normativa.”.
252
148
do Presidente da República, no seu art. 85, inc. III, a prática de atos que violem,
entre outros, os direitos sociais. E não é só isso. A própria Constituição – até como
autodefesa – prescreve, precisamente no art. 102, inc. I, “a”, a ação direta de
declaração de inconstitucionalidade endereçada ao STF. Nesses moldes, a própria
Lei Maior estabelece o poder-dever de expurgar os atos em descompasso com as
suas diretrizes.254
15.2 A Constituição Federal tem também uma função de limite cognitivo.
Isto significa que a política não pode, em seus atos, desvirtuar-se das expectativas
lá postas. Do mesmo modo, a Administração Pública, como estrutura do referido
sistema parcial, não pode descumprir tais valores. Contudo, não obstante a força
constitucional,
há
descumprimento
dos
valores,
melhor,
das
expectativas
constitucionais por parte do próprio sistema político. Diante dessas desilusões,
caberá ao sistema do direito a manutenção das expectativas frustradas.255 Até
porque, segundo Talcolt Parsons, o direito não é uma categoria descritiva de
comportamentos já realizados, mas sim de normas, modelos e regras que devem ser
aplicados na coletividade. Por isto mesmo, Parsons o vê como um mecanismo de
controle social generalizado porque prescreve condutas em todos os campos da
sociedade, com enfoque também integrativo, a mitigar os conflitos sociais,
lubrificando os mecanismos de relação social.256
15.3 Sem embargo do êxito ou não da função jurídica, a desilusão (a não
efetivação social da norma) é inerente ao processo social de diferenciação. Nenhum
mecanismo social pode excluí-la (evitá-la definitivamente). Por outro lado, a
diferença das expectativas normativas para as cognitivas é que, no caso das
254
BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 35. Ver também p. 34: “6. Segue-se que todas as leis e todos os
atos administrativos hão de perseguir o desenvolvimento nacional e a Justiça Social e hão de pautarse, obrigatoriamente, pelos princípios mencionados no art. 170, sob pena de serem inconstitucionais
naquilo que traduzirem descompasso com as finalidades estatuídas e com os princípios a que se
devem ater.”.
255
MANSILLA; NAFARRATE, 2008, p. 387-389.
256
PARSONS, 1981, p. 85-86. Numa outra perspectiva de análise, na dogmática constitucional, ver
BARROSO, 2012, p. 384: “[...] Já o direito se insere no campo das ciências e tem, sobretudo, uma
pretensão prescritiva: ele procura moldar a vida de acordo com suas normas. E as normas jurídicas
não são reveladas, mas, sim, criadas por decisões e escolhas políticas, tendo em vista determinadas
circunstâncias e visando determinados fins. E, por terem caráter prospectivo, precisarão ser
interpretadas no futuro, tendo em conta fatos e casos concretos.”.
149
primeiras, o sistema parcial do direito continuará a emitir comunicação diferenciada
com escopo de lutar contra as desilusões oriundas da sua não efetivação. No
entanto, nas cognitivas, o sistema aprenderá com as desilusões não lutando em
desfavor delas.257
Ao transportar esse raciocínio para o direito à saúde, assevera-se que as
partes litigantes têm dúvida sobre qual o verdadeiro conteúdo de determinada
expectativa normativa, ao menos em tese, sem deixar de desconsiderar os casos de
má-fé. Eles (cidadão e Estado) divergem a respeito do real conteúdo da norma
aplicável ao caso concreto. Há ou não direito a determinado tratamento, por
exemplo? Ainda, poderá não haver consenso sobre qual norma deve ser aplicada à
situação fática. Sem menoscabo a isso, após a constatação da correta assertiva
mediante decisão judicial com força executiva imediata, a parte sucumbente deve
aprender com a decisão.
A partir desse momento, deverá respeitar o conteúdo imposto pela
decisão, sob pena das sanções cabíveis, mormente porque, se é verdade que o
direito não pode garantir a completa eficácia social, não é menos verdade que a
reiteração comunicativa com escopo da efetivação é sim possível de ser feita pelo
sistema parcial, ora representado pelo STF, sobretudo porque a diferença entre as
expectativas normativas e cognitivas só se torna clara – pragmaticamente falando –
com a comunicação diferenciada, quer dizer, com emissão de comunicação
binária.258
A bem da verdade, por de trás desse cenário teórico, aventa-se que
invariavelmente a efetivação dos direitos resumir-se-á na aplicação ou não da lei
pelo agente público, seja no caso da Administração, seja no caso do Judiciário. A
norma positivada pouco vale se não existir alguém com vontade e capacidade para
fazê-la efetiva socialmente.259 Do contrário, é meramente simbólica, sem utilidade
257
LUHMANN, 1981, p. 80-83.
NEVES, 2007, p. 135-136. No livro “Politishe Theorie im Wohlfabrtstaat”, Luhmann enfrenta as
possibilidades e os limites da atuação do Estado Social, na óptica sistêmica, em que coloca como
limite o respeito ao Estado de Direito. Com isso, segundo ele, o Estado pode atuar desde que não
viole os princípios essenciais do Direito. Ressalta, ainda, que a dimensão da efetividade social das
atuações do Estado de bem-estar social foge do controle do Estado. Ver também FEBBRAJO, 1985,
p. 29.
259
BARROSO, 2012, p. 385: “Como conseqüência, tanto a criação quanto a aplicação do direito
dependem da atuação de um sujeito, seja o legislador ou o intérprete. A legislação, como ato de
vontade humana, expressará os interesses dominantes – ou, se preferir, o interesse público, tal como
258
150
prática. Aliás, no jogo democrático, o STF é, em tese, a última trincheira para o fim
de se concretizar ou não o direito à saúde. Isso tudo sem prejuízo de se reconhecer,
como é cediço, que a função organizadora do poder cabe à política e não ao direito,
porém, quando a engenharia política não é suficiente para garantir direitos
previamente outorgados pelo sistema político, o indivíduo é motivado a se tornar
jurisdicionado, batendo, desta forma, às portas do Poder Judiciário com seu pleito à
saúde. Restará, nessa perspectiva, aos juízes buscarem, mediante reiteradas
decisões
judiciais
se
preciso
for,
a
concretude
social
de
um
direito
constitucionalmente garantido, sob pena de seu papel institucional também ser visto
como simbólico, mormente quando se vislumbra um Estado Social no qual se busca
invariavelmente a igualdade como matriz social.
Como pontuado no item 11, estriba-se que houve uma mudança de
paradigma no constitucionalismo mundial. Alguns países como o Brasil – e bem
lembrado há pouco por Celso Antônio Bandeira de Mello – esculpiram em sua
certidão de nascimento, quer dizer, a Constituição Federal, o mister de promover a
justiça social. No caso pátrio, não é que os particulares e o público terão
resguardados os espaços político e jurídico para realizar tal sacerdócio, como a
guisa de referência cita a Constituição norte-americana; o cerne é outro, é sim pelo
próprio comprometimento de fazer valer direitos sociais como o direito à saúde, seja
por políticas públicas, seja por pleitos judiciais.260
16 ADJUDICAÇÃO E SIMBOLISMO
16.1 Historicamente, não há que se falar em direitos de segunda
dimensão, como os sociais, sem a atuação do Estado. Os direitos sociais ventilamse em prestações positivas, com espeque de alcançar o bem comum e a justiça
compreendido pela maioria, em um dado momento e lugar. E a jurisdição, que é a interpretação final
do direito aplicável, expressará, em maior ou menor intensidade, a compreensão particular do juiz ou
do tribunal acerca do sentido das normas. [...]”.
260
SARMENTO, 2012, p. 106-112.
151
social. 261 Uma coisa é implícita à outra. Com efeito, ou os citados direitos existem
realmente, o que resultaria numa obrigação de atuação do Estado, ou simplesmente
não existem, e, nessa segunda hipótese, como estão tipificados em norma
constitucional, restará qualificá-la de norma simbólica, ao menos no que diz respeito
à temática em questão.
Os direitos sociais positivados pela legislação resultam em programas fins
ao Estado em face de outros direitos já previamente existentes. Alterar uma ordem
constituída não é tarefa fácil, notadamente quando esse processo deve ser feito sem
um rompimento drástico com a ordem anterior (como sucederia numa revolução),
mediante implementação de políticas públicas ou, quando ineficazes, da atuação
jurisdicional. Esse processo distributivo exige um raciocínio diverso do tradicional
processo de adjudicação. Pede-se uma racionalidade ao julgar de forma mais
refinada do que o simples certo ou errado, de modo que se reclamará do juiz uma
análise global da situação, a qual foge do binômio referido (certo ou errado) a fim de
se aproximar de uma decisão equânime.262
Por decorrência desse conceito, há um todo; um bem comum que
necessitará ser dividido para apontar a parte de cada um. Resta ao magistrado,
dentro do processo judicial, o mister de rever esse critério de divisão feito pela
Administração Pública, de tal sorte que provocaria uma nova partilha de forma a
atender melhor a vontade da lei.263 Bom lembrar, nessa linha, que os direitos
subjetivos – como o direito à saúde – são construções históricas. A sua positivação
também é uma aquisição evolutiva da sociedade moderna. Por outro lado, entendêlo como direito completamente objetivo, por assim dizer, posto e imposto a tudo e a
todos não fornece indicação sobre a sua função na sociedade atual, num contexto
de racionalidade sustentável a longo prazo. Por esse motivo inclusive, essa
261
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 769,
772.
262
LOPES, 2006, p. 233-235. Ver, na mesma obra, p. 237: “Por tais características não é de se
admirar que seja ainda difícil uma discussão mais detalhada dos direitos sociais dentro dos trabalhos
dos juristas e que saiam do lugar-comum da invocação da ‘dignidade da pessoa humana’, espécie de
abracadabra jurídico de uma sociedade em que a discussão moral – da qual procede o próprio
conceito de dignidade humana – não é feita em público.”. Extrai-se, ainda, p. 291: “[...] O ponto
relevante sempre é este: podem direitos presentes de sujeitos individuais ser qualificados em nome
de direitos futuros de outros sujeitos, entre os quais estarão incluídos os direitos ‘prejudicados’? Em
outras palavras, é possível redistribuir os direitos?”.
263
LOPES, 2006, p. 142: “A distribuição consiste em partilhar algo comum. Distribuir é tomar algo que
é um todo e dividi-lo.”. Também sobre os direitos sociais como bens coletivos, ver NEVES, 2005, p. 8.
152
perspectiva de análise dos direitos subjetivos, desprovida de um equilíbrio social,
motivou Luhmann a rotulá-los como direitos injustos.264
16.2 A racionalidade da Suprema Corte no que diz respeito ao direito
público subjetivo à saúde como direito individual, indisponível, é muito bem definida
no sentido de sua efetividade em casos individuais. Isso se torna quase que
incontroverso com a análise dos precedentes elencados na pesquisa. Por outro lado,
a questão do direito à saúde como direito público social ainda está muito incipiente,
sendo ainda utilizada como retórica para justificar o individual, mas a questão global,
complexa, que gira ao entorno desse problema, encontra-se muito longe de qualquer
encaminhamento. Neste escopo, o seu universalismo social é inócuo, resta observar
se as partes romperão ou não as barreiras impostas pela jurisprudência defensiva
do STF para resultar no julgamento do seu recurso. No entanto, a igualdade de cada
indivíduo de receber a sua parte ao direito à saúde, acaba que aviltada como se não
existisse.265
16.3 O problema em julgar casos de direito à saúde tangencia as justiças
comutativas e distributivas. Os juristas, muito em razão de uma formação teórica
tradicional, é comum não aceitarem enfrentar questões de distribuição das riquezas.
Ao inverso disso, é rotineira a resolução das questões comutativas, praticamente
como um processo de adjudicação. Nestes termos, os tribunais não estão
preparados para uma análise global dos direitos e dos recursos para efetivá-los,
obviamente pela necessidade de se repensar a questão de forma interdisciplinar em
sintonia, por exemplo, com a economia e com a Administração Pública. Essa
dificuldade de enfrentar o problema sob uma perspectiva distributiva também pode
ser justificada em razão de um óbice cultural, fruto de uma educação liberal e, no
caso do Brasil, ainda como resquício de uma herança social tradicional em que por
264
LUHMANN, 1990b, p. 299, 305.
LOPES, 2006, p. 256-259. Na página 280: “[...] O direito foi percebido como instrumento de
engenharia social. Para tanto era preciso superar a tradição liberal de (a) não-intervenção nos
contratos, e (b) separação de poderes de modo rígido, muito especialmente de isolamento do
Legislativo e do Judiciário.”.
265
153
muitos anos só os filhos da elite cursavam as faculdades de direito. Esse cenário
influencia a Excelsa Corte a ser reticente em raciocinar de forma distributiva.266
A mesma Corte já enfrentou situação similar de mudança de paradigma
quando, na República Velha, julgou inúmeros pedidos de vedação à atividade estatal
de saúde pública, comandados pelo então impopular Osvaldo Cruz. Naquele
momento, valores liberais tão em voga à época, como a própria liberdade, surgiram
com o intento de combater inúmeras doenças contagiosas resultado do grave
processo epidêmico que enfrentava o Brasil. O julgamento ficou conhecido como
“Revolta da Vacina’, julgado no STF sob a classificação de RHC 2244.267
Assenta-se, outrossim, que o processo de positivação jurisdicional
pressupõe, como consequência inafastável, a hermenêutica da norma legal, ou das
normas legais aplicadas ao caso, bem como dos fatos narrados pelas partes. Tudo
isso, inicialmente, numa vertente individualizada para depois portar os fatos ao
processo de subsunção. Durante esse processo não linear, o intérprete realiza um
processo intelectual cujo escopo é conduzir esse raciocínio, que é influenciado pela
sua ideologia.
Certa seletividade, portanto, é inerente à referida operação intelectual de
interpretação. Lógico, porém, que no momento da análise técnica da norma, as
266
Sobre a capacidade institucional dos juízes na análise dos efeitos sistêmicos da sua decisão, ver
BARROSO, 2012, p. 375: “[...], a doutrina constitucional tem explorado duas idéias destinadas a
ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional
envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em
determinada matéria. [...] Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem
recomendar uma posição de cautela e de referência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e
treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça,
sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico
ou sobre a prestação de um serviço público.”.
267
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC 2244. Relator Ministro Hermínio Espírito Santo. Julgado
em
31.01.1905,
Publicado
em
03.02.1905.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico&pagi
na=STFPaginaPrincipal1>. Acesso em: 9 out. 2013: “A Revolta da Vacina foi um movimento ocorrido
entre 10 e 16 de novembro de 1904, na cidade do Rio de Janeiro, contra a campanha obrigatória de
vacinação imposta pelo governo federal.”. Ver, no tema, LOPES, José Reinaldo de Lima; QUEIROZ;
Rafael Mafei Rabelo Queiroz; ACCA, Thiago dos Santos. Curso de História do Direito. São Paulo:
Método, 2006. p. 489. Com esse mesmo plexo, pode-se analisar o início do processo histórico do
controle de constitucionalidade, notadamente a atribuição ao Senado francês do mencionado
controle, em 1799. No entanto, como era um órgão político, não comprometido também com a
técnica, não teve utilidade prática naquele momento, inclusive em face dos atos praticados por
Napoleão Bonaparte. Um resultado frutífero, porém, historicamente visto, mas que à época gerou
tensão foi a atuação da Suprema Corte americana no célebre caso Marbury versus Madison, de
1803, no qual se declarou, pela primeira vez, a inconstitucionalidade de uma lei, bem como se
perfilharam os contornos do controle de constitucionalidade americano, em cujas premissas se
embebedou grande parte do constitucionalismo moderno.
154
peculiaridades da respectiva espécie normativa vêm à tona, quiçá da constitucional,
a qual, segundo Luhmann, é a abertura para o futuro ao permitir que o sistema
jurídico preveja a sua própria alteração por meio de nova comunicação diferenciada
nos limites da autorreferencialidade do seu respectivo binarismo.268
16.4 Além do mais, na própria jurisprudência analisada, observou-se a
garantia do direito à saúde como um bem inalienável, indisponível, propriamente
como direito público subjetivo. Por óbvio, como já grafado, a Suprema Corte, muito
pelos votos do Ministro Celso de Melo, forjou tal garantia na sua jurisprudência. Sem
menoscabo dessa conquista histórica, ora se ventila que a prática reiterada por
todos os tribunais brasileiros dessa visão comutativa, seguramente portará a ruptura
do sistema político, a levar o Estado a uma quebra generalizada por flagrante
escassez de recursos. Isso sem mencionar que ao assim julgar reduz-se, e muito, a
força reflexiva que deveria ser proporcionada pela Constituição Federal.269
Com essa perspectiva, não há como não levantar o ideário em torno da
metodologia de se julgar um litígio dessa natureza, uma vez que se poderia
simplesmente decidir a favor do referido direito, despreocupado com as
consequências disso ou, de outra forma, sem desconsiderar o direito, promover uma
análise global da situação.270 Além do que, modernamente, a função do direito
reside na sua eficiência seletiva, numa relação ininterrupta com a sociedade, em
paráfrase a Luhmann. A evolução do direito dependerá muito de como o próprio
direito reagirá às modificações da sociedade ao longo do tempo.271
16.5 Em rigor, ainda, as atuações da Suprema Corte no tema de direito à
saúde, enfrentado como uma questão distributiva, está longe do ideal, com a justa
menção à audiência pública realizada pelo seu então Presidente Ministro Gilmar
Ferreira Mendes, oportunidade em que se buscou entender o problema de uma
forma global. Mesmo que os julgamentos – a partir de então – continuem a ser de
268
LUHMANN, 1996b, p. 100. Sobre os direitos fundamentais como abertura para o futuro, ver
NEVES, 2005, p. 8.
269
NEVES, 2007, p. 69-74, 95.
270
LOPES, 2007, p. 137, 155. Em texto voltado a abordar a Constituição como aquisição evolutiva da
sociedade moderna, Luhmann expõe que a própria Constituição deve interromper o círculo da
autorreferencialidade a fim de traduzir a simetria em assimetria. Cf. LUHMANN, 1996b, p. 97.
271
LUHMANN, 1983b, p. 116.
155
forma comutativa, já se deu o primeiro passo. Nesse cenário, só resta ao
jurisdicionado continuar a pressionar o STF por meio de reiterados reclames
processuais à sua alçada, o que gradativamente originará nova comunicação do
sistema, chegando assim a novos processos de seleção, a resultar em decisão
diferente da anterior.
O processo de alteração das normas constitucionais deriva da alteração
da Constituição mediante emenda constitucional ou da alteração do significado
constitucional outorgado no momento da concretização da norma constitucional.
Neste processo de concretização, Marcelo Neves indica duas formas de alteração
constitucional, sendo uma delas a promovida pela política, que agiria em
determinado sentido, com base em dispositivo constitucional específico. A política
alterou a sua forma de agir com base no idêntico dispositivo constitucional. Por esse
proceder, fala-se que o sistema político reinterpretou a referida norma. Na outra
forma, o Judiciário a interpreta ao aplicar a Constituição Federal para dirimir um
conflito no caso concreto. Em ambos os casos, porém, o processo de alteração é
influenciado por interesses, expectativas e valores envolvidos no momento da
interpretação-aplicação da norma.272
Configurada a alteração da norma constitucional, adota-se, nesse quesito,
a tese sistêmica de que a evolução se configura a partir de nova comunicação, cujo
conteúdo obrigatoriamente não significaria uma coisa boa. Dessa maneira, novas
racionalidades vieram e outras tantas virão com o passar dos anos, em interface
contínua entre a referida tricotomia, ou talvez, quem sabe, as demais que o futuro
reservará. Talvez, e por isso mesmo, chegue-se no futuro à compreensão de que
essa postura de julgamento, com óptica coletiva, trata-se de complemento à atuação
da política e não de uma usurpação de poderes.273 Mesmo porque, na classificação
constitucional, o direito à saúde está inserido numa subdivisão dos direitos sociais,
precisamente direitos da seguridade social, a qual aponta como seus princípios a
universalidade e a uniformidade.
272
NEVES, 2004, p. 13, 15-17.
A respeito da atuação judicial como um complemento da política com destaque para julgamentos
comutativos, ver LOPES, 2007, p. 181. Sobre justiça distributiva e comutativa, ver LOPES, 2006, p.
282-283. Para uma análise, no Brasil, de alguns casos de justiça distributiva sob o enfoque do direito
do consumidor, ver LOPES, 2006, p. 141-161.
273
156
16.6 Em linhas gerais, não há como ratificar que a Suprema Corte julgue
um direito de ordem distributiva de forma exclusivamente adjudicatória sob pena de
as emblemáticas afirmações da Excelsa Corte – “Cumpre não perder de perspectiva
que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível
assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República.
[...]”274 e “A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE
TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.”275 –,
tornarem-se simbólicas em contexto nacional. Exemplifica-se com uma ilustração:
imagine que a sua casa está infectada por uma grande quantidade de formigas.
Muitas formigas tomam conta do lugar. Você não conseguiu resolver. Contrata uma
empresa especializada. No dia da dedetização, a equipe explana um discurso forte,
persuasivo de que a sua família ficará livre das formigas. Durante a prestação do
serviço, com grande vigor, matam-se todas as formigas que se encontram visíveis.
No entanto, no dia seguinte, o seu cachorro morre envenenado e, uma semana
depois, as formigas estão todas de volta. O que aconteceu? A empresa é séria.
Dedicou-se ao trabalho! Porém, enfrentou a questão de forma adjudicatória,
condenando aquelas formigas à morte sem pensar a questão de forma macro, com
a análise do conjunto (origem, consequências etc.) para buscar atingir o resultado de
forma global. Por isso mesmo, a empresa, por mais que se tenha esforçado, teve
uma atuação simbólica.
Obviamente, com as devidas adaptações, o resultado da pesquisa é
muito símile à esboçada ilustração acima. O STF à medida que não julga o direito à
saúde por um prisma distributivo, outras vezes é muito mais generoso com casos
(demandas) individuais do que nos processos coletivos, promove a continuidade de
uma exclusão gigantesca dos indivíduos à saúde. Dessa forma, acaba tendo uma
atuação simbólica, como um “álibi”. Fez-se o que se podia. Argumentou-se com
274
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 271.286-8–
RS. Relator Ministro Celso de Mello. Agravante: Município de Porto Alegre. Agravada: Cândida
Silveira Saibert. Agravada: Dina Rosa Vieira. Brasília, DF. Julgado em 24.11.2000. Trecho, p. 1.419.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538>.
Acesso em: 24 out. 2013.
275
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 393.175-O–
RS. Relator Ministro Celso de Mello. Agravante: Estado do Rio Grande do Sul. Agravado: Luiz
Marcelo Dias e outro (A/S). Brasília, DF. Publicado em DJe 02.02.2007. Trecho, p. 1.524. Disponível
em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=402582>. Acesso em: 24
out. 2013.
157
teses lindas – que inegavelmente consolidam um direito no plano jurídico – mas que
a sua não resolução, pelo enfoque distributivo, configura como simbólica, a despeito
do bem entregue àqueles litigantes que obtiveram a decisão favorável – uma nova
elite.276
17 INADMISSIBILIDADE E SIMBOLISMO
17.1 A grande massa de recursos extraordinários interpostos no STF não
é admitida. Desses dados, é possível fazer várias observações, das quais três se
destacam quanto ao escopo desta pesquisa: (i) o juízo de admissibilidade dos
recursos à medida que limita significativamente o acesso aos jurisdicionados reduz a
complexidade social. Trata-se de um simplificador social. São muitos, inúmeros
mesmo, os recursos que pleiteiam o acesso à Suprema Corte, todavia, é preciso
reduzir essa elevada quantidade.277 Para isso, criaram-se requisitos constitucionais
para sua admissão, os quais se tornam mais ou menos rígidos conforme a
interpretação outorgada pelo tribunal de origem da decisão recorrida e pelo próprio
STF; (ii) o fato de a maioria dos recursos interpostos não serem admitidos – daí nem
ao menos serem julgados pelo STF – não interfere na autopoiese do sistema
jurídico; (iii) o não julgamento de uma grande quantidade de demandas de
jurisdicionados que tiveram tolhido o seu direito à saúde, enquanto uma elite que
teve uma representação judicial diferenciada sob o viés técnico, a ponto de romper o
rígido crivo de admissibilidade imposto aos recursos extraordinários, conseguiu a
proteção judicial, provoca uma atuação simbólica da Suprema Corte, na medida em
276
NEVES, 2007, p. 95: “Embora do ponto de vista jurídico a constitucionalização simbólica seja
caracterizada negativamente pela ausência de concretização normativa do texto constitucional, ela
também tem um sentido positivo, na medida em que a atividade constituinte e a linguagem
constitucional desempenham um relevante papel político-ideológico. Nesse sentido, exige um
tratamento diferenciado das abordagens tradicionais referentes à ‘ineficácia’ ou ‘não-realização’ das
normas constitucionais”. Ver, ainda, NEVES, 2007, p. 96: “Já no caso da constitucionalização
simbólica, à atividade constituinte e à emissão do texto constitucional não se segue uma
normatividade jurídica generalizada, uma abrangente concretização normativa do texto
constitucional.”.
277
Para redução da complexidade social, ver LIMA, 2009b, p. 79-85.
158
que não toma nenhuma atitude a fim de amenizar a exclusão, seja com a edição de
uma súmula vinculante, seja com julgamentos conduzidos por critérios distributivos.
17.2 Na última observação apresentada, pelas regras do jogo do sistema
recursal brasileiro, muitos jurisdicionados que se enquadram na mesma situação
fática de outros tantos que tiveram ao seu favor a tutela da Suprema Corte não terão
o seu direito subjetivo efetivado. Configura-se um paradoxo: reconhece-se o direito à
saúde como indisponível, superior a interesses secundários como os financeiros,
mas se aceita que uma legião continue à margem desse direito, pois foi barrada na
admissibilidade recursal. Entretanto, como o próprio subsistema prevê tal
procedimento, e, depois, com a análise dos acórdãos, aferiu-se que as decisões são
feitas à luz da binariedade do sistema, o processo comunicativo autopoiético não
sofre rupturas. Por outro lado, é inegável que há um caráter de simbolismo,
chamado aqui de “simbolismo-álibi”.
Involuntariamente, a Corte Constitucional elege a cada juízo de
admissibilidade uma elite, escolhida sob um viés técnico, materializada nos
recorrentes suficientemente capazes de ultrapassar o juízo de admissibilidade e,
assim, conseguirem ter seus recursos julgados. Desse modo, a atuação do STF
simbólica é justamente pelos recursos não julgados – referimo-nos, aqui, à enorme
quantidade de recursos que têm o seu acesso obstaculizado pelo juízo de
admissibilidade – e não pelos julgados, mesmo em razão de que a separação de
poderes remonta também as suas raízes no anseio de igualdade, com o condão de
neutralizar a atuação estatal de interesses particulares e promover a generalização
das expectativas normativas.278
18 SÚMULA VINCULANTE E ORÇAMENTO PÚBLICO
18.1 No caso específico de análise da tese, a ideia da edição de uma
súmula vinculante, à primeira vista, choca-se com a fórmula de contingência, a qual
278
NEVES, 2007, p. 81. No cenário dos direitos humanos, apontando a exclusão da maioria dos
cidadãos como critério para qualificar os referidos direitos como privilégio de uma elite, ver NEVES,
2005, p. 19.
159
prevê a justiça como consistência teórica versus adequação social. Dentro desse
jogo comunicacional, deparamo-nos com o limite operativo dos outros sistemas
parciais. Contudo, esse embate com a fórmula de contingência pode ser
significativamente amainado com a procedimentalização de instrumentos (técnicas)
de garantia de abertura à revisão das súmulas em comento. Todavia, somente o
efetivo uso pela Corte Constitucional do procedimento de revisão das súmulas dará
a abertura cognitiva que num primeiro momento a edição de uma súmula vinculante
dificulta.279
No caso da política, a edição de súmula vinculante sob o viés
adjudicatório destruiria a Administração Pública, em razão de não haver recursos,
em caráter nacional, para atender essa monstruosa demanda, nos moldes como
judica o STF. Mesmo porque, a validade erga omnes das premissas decisionais
sumuladas pela Suprema Corte deve ser simplesmente aplicada a todos os casos
de violação do direito à saúde do país. Então, se todos os pleitos jurisdicionais de
saúde fossem resolvidos por meio de decisões judiciais no formato adjudicatório
cumulado com uma racionalidade ampliativa, isto é, em sintonia com o Estado
Social, na linha da Suprema Corte, romper-se-ia com a capacidade orçamentária da
Administração Pública, de tal sorte que a incapacidade operativa do subsistema da
política levaria a sua ruptura, subvertendo-se por completo a sua comunicação pela
imposição do sistema jurídico.
18.2 Em decorrência desse risco aparece outro problema: mediante
súmula, como padronizar o direito à saúde sem romper com o sistema político?
Haveria de se pensar numa forma global na qual a diferença financeira entre os
entes públicos fosse equilibrada pelo juiz da causa, se necessário. Caberia ao
Estado-juiz, com fulcro e direcionado pela súmula vinculante, analisar o orçamento
público do requerido, até mesmo, se preciso, chamar ao processo o estado-membro
ou a União. Do contrário, a atuação jurisdicional será inócua, não terá resultado
prático e “quebrará” as pessoas jurídicas de direito público com menor orçamento.
279
Para a necessidade da criação de procedimentos sofisticados para concretizar os direitos humanos
na sociedade complexa, ver NEVES, 2005, p. 16.
160
Por esse cenário, para tecer uma súmula dessa natureza, primeiro deverse-ia localizar os lugares-comuns na jurisprudência do STF. Após, ter-se-ia material
conceitual para o seu conteúdo, todavia, reclamar-se-ia de uma forma para equalizar
os desequilíbrios financeiros. Nesse exato raciocínio, estriba-se que ações movidas
exclusivamente em face de municípios de baixo orçamento pode ocasionar uma
“quebradeira” generalizada, sobretudo porque existe no Brasil um desequilíbrio
financeiro acentuado entre as regiões, isto sem falar do movimento político liderado
por governadores e prefeitos, com a solicitação de que as receitas tributárias sejam
redivididas, com a primazia de maior espaço aos estados e municípios em desfavor
da União. Esse movimento defende que as receitas sejam realocadas, uma vez que
70% da arrecadação estão nas mãos da União, a resultar, como sobra, 24,5% aos
estados e míseros 5,5% aos municípios.
Não obstante a desigual divisão das receitas, as necessidades mais vitais
da população são supridas pelos poderes públicos menos abastados.280 Aliás, como
ilustração dessa desigualdade, cita-se a Petição n. 36.033/2012, no Recurso
Extraordinário n. 566.471/RN, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, no qual o
Município de Tubarão requer a sua admissão como interessado. Seu pleito foi
indeferido, sob o fundamento de que no Brasil existem mais de 5.570 municípios, o
que inviabilizaria o seu acesso como interessado.281
Em que pese a decisão, ressalta-se: a situação narrada pela peça
processual indeferida é preocupante. Nela, descreve-se que a cidade possui em
torno de cem mil habitantes e responde a mais de 1.120 demandas judiciais com
pleito de fornecimento de medicamentos. Em 2011, o seu orçamento para a
chamada “Farmácia Básica” foi de R$ 971.087,35. Em contrapartida, no mesmo
280
NOBREGA, Maílson da. Federalismo: perigo à vista. Veja. São Paulo, Abril, edição n. 2319, ano
46, n. 18, 2013. p. 31.
281
Ver, a respeito: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 566471. Relator
Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF. [Processo em andamento]. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=566471&classe=RERG&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 25 ago. 2013: “Em
20/8/2012, na Petição/STF nº 36.033/2012: [...] 2. Muito embora o fornecimento de remédios seja feito
pelos municípios, não há como ouvi-los no processo, porquanto este ficaria inviabilizado
considerados os 5.570 municípios existentes no Brasil. Acresce ainda o fato de a admissibilidade de
terceiro correr à conta de concepção do relator quanto à representatividade e aos esclarecimentos
que se possam prestar. 3. Indefiro o pedido. Devolvam o requerimento formalizado ao Município de
Tubarão.”. Neste processo, vários municípios solicitaram a sua participação como terceiros
interessados. Todas foram indeferidas com a idêntica justificativa acima. Noutro diapasão, porém, as
solicitações de intervenção dos Estados-membros foram todas admitidas.
161
período, a fim de obedecer a decisões judiciais, gastou R$ 975.178,35. O exemplo é
muito claro e ilustra bem uma das consequências do julgamento exclusivamente sob
o olhar da adjudicação: 100.000 habitantes são atendidos pela saúde (é provável
que até precariamente) com R$ 971.087,35, enquanto 600 habitantes – via
Judiciário – servem-se de R$ 975.178,35.282
Ainda, no mesmo processo, ventilam-se dados alarmantes no tema. O
recorrente trouxe a lume a informação de que o Estado do Rio Grande do Norte,
somente no ano de 2007, desembolsou mais de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de
reais) para atender decisões judiciais de fornecimento de medicamento. Para
agravar a situação, de janeiro a abril de 2007, o estado potiguar já tinha gasto 76%
do seu orçamento anual destinado à saúde com o fito de obedecer às decisões
judiciais.283
Com efeito, convém chamar a atenção para a necessidade de os juízes
enfrentarem a questão de forma distributiva, com a atenção para os orçamentos
públicos em voga e, se necessário, dividir os gastos da medida a ser deferida com
os demais entes estatais. O instrumento legal para guiar os magistrados nesse tipo
de julgamento poderia ser uma súmula vinculante, desde que a sua edição esteja
atenta ao já pontuado, com destaque para a necessidade de os julgamentos
distributivos ocorrerem com a análise dos orçamentos e sua intervenção em casos
extremos, sem olvidar a solidariedade entre União, estados e municípios, mesmo
quando não tenham sido incluídos no polo passivo pela parte, restando ao juiz,
quando considerar necessário, chamá-los aos autos.
18.3 De modo geral, as decisões judiciais, ao tratar da concretude da
saúde, acabam indiretamente interferindo no orçamento público. Isso é lógico:
sempre que se obriga o Estado a gastar valores não previstos com tratamentos e
remédios, acaba-se por interferir na gestão até então restrita ao administrador
282
Ver BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 566471. Relator Ministro Marco
Aurélio.
Brasília,
DF.
[Processo
em
andamento].
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronic
o.jsf?seqobjetoincidente=2565078>. Acesso em: 10 out. 2013.
283
Ainda, no mesmo processo, Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário
566471. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF. [Processo em andamento]. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronic
o.jsf?seqobjetoincidente=2565078>. Acesso em: 10 out. 2013.
162
público. Nesse sentido, a Suprema Corte adotou a tese forjada na dogmática jurídica
de que o direito à saúde é direito fundamental e, como tal, deve ter primazia sobre
outros gastos. Com isso, é legítimo que o Poder Judiciário lute, por meio de
reiteradas decisões, pela efetividade do texto constitucional, sob pena de torná-lo
simbólico. No entanto, simplesmente desconsiderar o orçamento público, como se
faz no RE n. 273.834/RS, da lavra do Ministro Celso de Mello, no qual se menciona
expressamente que não cabe ao juiz se preocupar com o orçamento público, é
preocupante.
Essa premissa de que não cabe ao magistrado a preocupação com o
orçamento público é simbólica, avizinha-se a um álibi propriamente dito. Mande
fazer e pronto! O como fazer, pelo dito, nada importa. De resto, a mesma assertiva
pode ser válida no sentido de que o orçamento público não pode ser questionado
pelo Judiciário. Baseia-se, nesse prisma, que o orçamento é responsabilidade
exclusiva do Executivo e do Legislativo, muito em razão de que somente ambos têm
legitimidade política para tanto, obtida mediante o voto direto. Dentro desse cenário
conceitual, é quase pacífica essa justificativa, mesmo que a prática desses poderes
viole a própria lei.284
18.4 Por essa situação, não há como não fazer um comparativo a respeito
de quem tem mais legitimidade: a lei ou o sistema político? Indo além, quem possui
mais força vinculante: a Constituição Federal ou os representantes do Legislativo e
do Executivo? Destarte, configurado o conflito de interesses entre ambas as forças,
a quem caberia essa resolução? Não seria a Suprema Corte brasileira, como, a
propósito, a Carta Magna de 1988 apregoa com tanta clareza?
Parece, pois, que, de fato e de direito, o STF diz o que é ou não
constitucional, de sorte que toda a construção das políticas públicas, realizáveis pela
Administração Pública, obrigatoriamente, passa a priori pelo orçamento público.
284
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Atividade jurisdicional, políticas públicas e orçamento. In: _____;
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues de; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda;
MEZZAROBA, Orides (Orgs.). Constituição e Estado social: os obstáculos à concretização da
Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 303-305. No plano sistêmico, para a
legitimidade do STF em rever atos da Administração Pública, conferir GUERRA FILHO, 2011, p. 339:
“A doutrina reconhece que tais cortes exercem um poder de legislação negativa, e que podem
apreciar o mérito das decisões administrativas, quando as mesmas apresentam defeitos do ponto de
vista da manutenção da integridade dos princípios e direitos fundamentais. [...]".
163
Exatamente por isso, negar-se a cotejar o orçamento com base nas opções
constitucionais, seja para rever, seja para manter determinada política pública, é
simplista demais, e os anos ulteriores mostrarão o simbolismo dessa negativa à
intervenção.285
18.5 Também, como fundamento da intervenção pelo STF nos
orçamentos públicos, volve-se a análise distributiva do julgamento não só do direito
à saúde, mas dos direitos sociais em geral, tal que não é possível distribuir o que
não se tem nem ao menos a noção do tamanho da riqueza a ser repartida. Enfileirase, outrossim, o argumento de que tal análise permitirá identificar se é necessário o
chamamento ao processo dos demais entes solidários pela prestação do serviço de
saúde não ofertado com a desejada qualidade. De outra banda, sem a análise do
orçamento, pouco, racionalmente, é possível de ser feito.
Ainda, a favor da intervenção nos orçamentos públicos, tolda, nessa
perspectiva, fazer um paralelo com a relação entre o Estado e o particular. Hoje,
comparando-se o cidadão e o Estado, indaga-se: qual dos dois tem mais dever de
seguir a Constituição? Do mesmo modo, traz-se a lume o fato de que o empresário
tem de escalonar o seu orçamento mensal primordialmente para cumprir com suas
obrigações fiscais, sob pena de medidas drásticas, tais como expropriação prévia de
bens, para somente depois apresentar a sua defesa judicial – vide procedimento da
ação de execução fiscal –, destituição do administrador e até criminalização por
ilícitos tributários. De outra banda, poderia o gestor público então equacionar o
orçamento do bem público (e não pertencente ao administrador como o é o privado)
no sentido de simplesmente se despreocupar com o direito à saúde? 286
285
Sobre a mudança da esfera decisional no Estado de Direito para a jurisdição constitucional, ver
BRANDÃO, 2008, p. 306. Para a jurisdição constitucional como palavra final na interpretação da
Constituição, ver BARROSO, 2012, p. 366: “A expressão jurisdição constitucional designa a
interpretação e a aplicação da Constituição por órgãos judiciais. No caso brasileiro, essa competência
é exercida por todos os juízes e tribunais, situando-se o Supremo Tribunal Federal no topo do
sistema. [...].”. A respeito da função de a Corte Constitucional deliberar sobre a “justeza” dos
acoplamentos, entre os quais se destaca o da relação entre os sistemas político e jurídico, ver
GUERRA FILHO, 2011, p. 341.
286
Ver, sobre a vinculação constitucional do orçamento público, BRANDÃO, 2008, p. 308: “Não cabe
aqui o histórico debate sobre a natureza jurídica do orçamento, porque parece que não paira qualquer
dúvida sobre o acerto da afirmação do Prof. Ricardo Lobo Torres de que o orçamento ‘é
materialmente constitucional, posto que é essencial ao Estado de Direito’, [...].”.
164
18.6 Não se duvida do alto valor teórico e ético das decisões proferidas
pelo STF, todavia, hodiernamente, num período tão midiático e complexo da
sociedade, esse descaso com o orçamento público é simplista demais. De encontro
a isso, pede-se um raciocinar mais elaborado, mais refinado, com uma carga de
abstração maior que o processo adjudicatório, a resultar inclusive numa possível
formulação de súmula vinculante, como até mesmo já houve proposta de verbete no
sentido de vincular erga omnes os agentes públicos à jurisprudência dominante na
Suprema Corte de solidariedade dos entes públicos na saúde.
Aliás, a ideia de sumular o tema materializa-se como uma especificidade
das estruturas do sistema jurídico com intuito de torná-lo mais eficiente e nivelar a
questão nacionalmente, com a inclusão daqueles que não têm acesso às decisões
do STF.287 Por outro lado, o conteúdo da súmula deve ser pensado de forma
distributiva, dando margem ao juiz, diante do caso concreto, para usá-la como
norma de calibração, após a análise da situação orçamentária dos entes públicos.
Do contrário, continuar-se-á a contribuir para aumentar a já grande quantidade de
ações, com pleito de efetividade do direito à saúde, sem falar que as decisões, se
não pensadas no contexto distributivo sob um viés global, tornar-se-ão simbólicas
porque não sustentáveis a longo prazo.
19 ACOPLAMENTO ESTRUTURAL E SUPREMA CORTE
19.1 Com a promulgação de uma Constituição, há praticamente uma
fusão do jurídico e do político. O advento do constitucionalismo fundiu a Constituição
287
LUHMANN, 1983a, p. 122: “[...] O motor da evolução, porém, é a crescente complexidade da
sociedade, que torna mais sensível a discrepância nas diversas dimensões da generalização,
exigindo em conseqüência uma atuação mais eficiente no sentido da generalização congruente, ou
seja da seletividade mais rigorosa, levando com isso a um grau mais elevado de sua especialização
nessa função. Dessa forma a evolução do direito pode ser observada através de suas condições à
complexidade da sociedade, de seus mecanismos de diferenciação de papéis e processos
especificamente jurídicos, e de seus resultados no sentido de autonomização de estruturas de
expectativas jurídicas, as quais liberam o direito cada vez mais dos entrelaçamentos com a
linguagem, com as interpretações globalísticas do mundo com a verdade, com a práxis racional e,
finalmente, até mesmo com outras esferas normativas, entre elas principalmente a moral.” Ver
também LUHMANN, 1983a, p. 116: “[...] Em sociedades mais desenvolvidas a correção de uma
norma só pode ser documentada através da normatização também das formas de processamento
das frustrações através de sanções ou de garantias para a imposição de expectativas, pois é apenas
por meio da intenção e da tentativa de impor-se a expectativa que o consenso subentendido pode ser
convincentemente demonstrado a terceiros.”.
165
política e a jurídica num só documento, positivado sob a nomenclatura:
“constituição”. Desse ponto em diante, considera-se a ordem política como sendo a
ordem jurídica. Consubstancia-se em um sistema no qual ambos (política e direito)
estão inseridos. No entanto, a forma utilizada é a jurídica com o condão de coibir
desvios por parte da política.288
E é justamente nesse contexto que reclama ser apreendido o conceito de
Constituição, porém, visto como acoplamento estrutural entre a política e o direito.
Este ideário foi explorado por Luhmann em diversos trabalhos, entre outros, aqui se
exemplifica com a transcrição de um trecho escrito originalmente por ele em italiano:
“[...] La costituzione costituisce e nel contempo rende invisibile l´accoppiamento
social tra diritto e politica.”.289
Pois bem, o acoplamento estrutural trata-se de um mecanismo de
interpenetração permanente e concentrada entre os mencionados sistemas sociais.
Possibilita, dessa forma, a constante troca de influências recíprocas entre os
subsistemas, filtrando-as. Ao mesmo tempo em que inclui, exclui. Materializa-se
numa solução jurídica à autorreferência do sistema político e, ao mesmo tempo,
fornece resposta política à autorreferência do sistema jurídico. Como grafou o
próprio Luhmann, nenhum sistema pode nascer e reproduzir-se sob uma base
exclusivamente autorreferencial.290
19.2 No direito, com o acoplamento dos dois sistemas, configura-se uma
relação de simultaneidade entre sistema e ambiente. Uma diferença de dois lados.
Na face interna, facilita-se a influência recíproca que vem legalizada pela
Constituição, enquanto na face externa essa influência vem excluída, sobretudo
quando ilegal.291 A Constituição Federal de 1988 é o típico exemplo de acoplamento
estrutural (strukturelle Kopplung). Realiza a ligação entre o sistema jurídico e o
288
LUHMANN, 1996b, p. 86, 101, 105.
LUHMANN, 1996b, p. 113; GUERRA FILHO, 2011a, p. 338: “[...] O meio principal de acoplamento
entre o sistema do direito e o sistema da política, por exemplo, segundo Luhmann, são as
constituições.”.
290
NEVES, 2006, p. 97-99; LUHMANN, 1986b, p. 108-110, especialmente, p. 109.
291
LUHMANN, 1996b, p. 113; GUERRA FILHO, 2001, p. 194: “É nesse contexto que a Constituição
se revela como grande responsável pelo acoplamento estrutural entre os (sub) sistemas jurídico e
político, jurisdicizando relações políticas e mediatizando juridicamente interferências da política no
direito, ao condicionar transformações nas estruturas de poder a procedimentos de mutação previstos
constitucionalmente.”.
289
166
sistema político. Cinge-se como fator de exclusão e inclusão. Inclui novos valores e
exclui outros anteriormente impostos ao direito e à política. Opera como mecanismos
de irritação do sistema por trazer nova comunicação.292 Interliga-se aos subsistemas
como o cérebro está ligado estruturalmente à vida das células cerebrais.293
Como mencionado antes, não é possível um sistema autoprodutor que
fique totalmente fechado. Pelo acoplamento estrutural, encontra comunicação com
os outros subsistemas.294 Os subsistemas desenvolvem certa sensibilidade para
resolver determinados eventos em torno do ambiente.295 O coligamento estrutural é
assim chamado por representar ligações entre as estruturas do sistema. Pressupõe
dois sistemas estáveis pela dinâmica comunicacional. As estruturas próprias do
sistema servem a um coligamento operativo. Há uma continuidade da autopoiesis do
sistema de operação, garantindo-se a estabilidade temporal do sistema, na medida
em que se passa de uma à outra operação.296
19.3 A evolução social ocorre por meio de trocas comunicativas internas e
externas. Neste último caso, as comunicações que advêm do externo e sob outro
binário acabam por irritar o subsistema em cujo interno processará a comunicação
externa, transformando-a em comunicação interna, codificando-a ao seu binarismo.
292
CAMPILONGO, 1998, p. 53; MANSILLA, Darío Rodríguez. Invitación a lasociología de Niklas
Luhmann. In: LUHMANN, Niklas (Org.). EI derecho de Ia sociedad. Tradução Javier Nafarrate Torres.
México: Universidad Iberoamericana, 2002. p. 51: “Los acoplamientos estructurales sólo funcionan
con un efecto de inclusión y de exclusión. Una Constitución, por ejemplo, puede haber sido aprobada
en su texto, pero no funcionará se no puede evitar los efectos contrarios a la constitución de la
violencia política sobre el sistema del Derecho. Estos acoplamientos estructurales, por otra parte,
conforman mecanismos que son considerados de manera distinta por cada uno de los sistemas
acoplados y de esta manera se consiguen las irritaciones o gatillamientos mutuos.”.
293
MANSILLA, 2002,
p. 50-51; LUHMANN, Niklas. Economia e diritto problemi di
collegamentostrutturale. Osservatorio “Giordano Dell´ Amore”. Milano, Cariplo, n. 6, p. 27-45,1989. p.
31; LUHMANN, 1986, p. 87.
294
MANSILLA, 2002, p. 50: “El acoplamiento estructural implica un aumento de cierras dependencias,
con una mayor sensibilidad que permite irritaciones – o gatollamientos – provenientes de ciertos
aspectos del entorno, unida a una mayor indiferencia respecto a otros. Este doble condicionamiento
posibilita el sistema acorde con ciertos eventos de su entorno disminuyendo, al mismo tiempo, las
posibilidades de destrucción.”. GUERRA FILHO, 2011a, p. 341.
295
MANSILLA, 2002, p. 50: “Los subsistemas, por consiguiente, desarollan cierta sensibilidades: se
sintonizan para resonar ante determinados eventos del entorno y con esto se produce lo que
podríamos llamar una coordinación pragmática de intransparencias, entre subsistemas autopoiéticos,
clausurados operacionalmente y acoplados estructuralmente a su entorno.”.
296
LUHMANN, 1989, p. 32: “Il concettopressuppone dei sistemi, che ottengono la loro stabilità grazie
alla propia dinamica. Le strutture proprie del sistema servono ad un collegamento operativo, ad una
continuazione dell’autopoiesi del sistema da operazione ad operazione, quindi da momento a
momento.”. Ver SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma contingência e racionalidade. Renovar: Rio de
Janeiro, 2005. p. 92.
167
Isso provoca uma nova seleção para atingir a estabilização, o que motiva a evolução
social. Os sistemas parciais reclamam comunicar-se para serem obrigados a buscar
uma adaptação ao novo ambiente. Com essa comunicação, o risco de um
fechamento operacional anular cognitivamente os subsistemas é praticamente
afastado.297
Dentro do sistema social, é a Constituição a grande responsável pelo
acoplamento estrutural entre sistema político e sistema jurídico. No entanto, quando
a situação se torna conflitiva a ponto de ser levada ao Poder Judiciário, é a Suprema
Corte, em questões constitucionais, o palco em que a situação será dirimida.
Ao fim da pesquisa, interessa a litigiosidade entre política e direito. Ambos
divergem sobre a obrigatoriedade ou não de o Estado fornecer determinado
tratamento ou remédio de alto valor monetário. Não há consenso, a ponto de se
portar a questão para ser julgada pela Excelsa Corte. Nota-se, nesse foco, que a
própria Constituição transfere o poder ao Supremo para dizer o que é ou não
constitucional. Em primeira análise, a Corte resulta como extensão deliberativa das
litigiosidades sobre a Constituição Federal, por essa razão, ao julgar, como explica
Willis Santiago Guerra Filho, a Suprema Corte tipifica-se como o centro do sistema
jurídico.298
Numa segunda observação, o STF acaba por promover, em nome da
Constituição – é claro –, o acoplamento estrutural entre os subsistemas em comento
na tipificação do conflito, obrigando a Corte a atuar como centro do sistema do
direito.299 Aqui se chega à questão central deste item: a troca comunicacional entre
os sistemas político e jurídico, cujo resultado será essencialmente a evolução
comunicacional feita pela referida Corte, de modo que os limites da sua atuação na
297
LUHMANN, 1996b, p. 83-128; MANSILLA, 2002, p. 24: “Esto no quiere decir que el sistema pueda
vivir con prescindencia de su entorno, en una suerte de burbuja al vacío. El sistema se mantiene
permanentemente adaptado al ambiente, en lo que Maturana llama acoplamiento estructural. Al
acuñar el concepto de acoplamiento estructural, Maturana persigue evitar algunas ideas asociadas a
la adaptación con un proceso, en el sentido que un sistema debe adaptarse, buscar mejores niveles
de adaptación y pude perder la adaptación conseguida.”; LUHMANN, Niklas. Por que uma “teoría dos
sistemas”? In: NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Orgs.). Tradutora
Eva Machado Barbosa Samios. Niklas Luhmann: a nova teoría dos sistemas. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997. p. 42.
298
GUERRA FILHO, 2011a, p. 339.
299
GUERRA FILHO, 2011a, p. 339: “[...] Ao mesmo tempo, ao pronunciarem a última palavra sobre o
que é e o que não é direito, situam-se no ‘centro do centro’ do sistema jurídico. Este ‘centro do
centro’, então, é onde se daria o acoplamento estrutural do sistema jurídico com outros, e não só com
o sistema político. [...].”.
168
concretude do direito à saúde estão literalmente em suas decisões, o que deve ser
feito com inteligência, de modo a não frustrar as expectativas sociais a respeito do
direito à saúde, nem romper com a comunicação sistêmica da política, forçando-a a
dirigir comunicação jurídica em tanta quantidade que corrompa o seu próprio código.
Por isso tudo, negar a revisão constitucional pela Suprema Corte dos atos
praticados pelo Estado no fornecimento de um remédio é nulificar a atuação da mais
alta Corte da República, tolhendo a sua função institucional de ser o intérprete
privilegiado da Constituição Federal e, sistemicamente falando, de atuar como um
dos componentes mais importantes no acoplamento estrutural dos dois sistemas
(jurídico e político). De outro modo, porém, se o STF julgar sempre de forma
adjudicatória e despreocupado com as consequências de suas decisões estará a
incorrer no sério risco de simplesmente destruir o sistema político, o que geraria o
caos no sistema social.300
300
LUHMANN, 1996a, p. 104; GUERRA FILHO, 2011a, p. 340: “[...] Isso nos leva a concluir, por
exemplo, que uma Corte Constitucional situar-se-ia na fronteira entre os sistemas jurídicos e políticos,
sendo um dos componentes mais importantes no acoplamento estrutural dos dois sistemas.”.
169
PARTE IV
RESULTADO DA PESQUISA – O PARADOXO BRASILEIRO:
EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE, RUPTURA DO SISTEMA
POLÍTICO, JUSTIÇAS DISTRIBUTIVA E COMUTATIVA
“Verdade: a invenção de um mentiroso”.
(Heinz von Foerster)301
20 PESQUISA E FALIBILIDADE
20.1 No próprio cenário da teoria metodológica encontram-se vigorosas
defesas sobre a impossibilidade de se alcançar a verdade em trabalhos científicos.
Chega-se à assertiva de que, num trabalho acadêmico, não se é capaz de provar
uma hipótese com segurança. Por essa linha, as pesquisas apontariam
simplesmente óbices para rejeitar essa ou aquela hipótese. O conhecimento seria
restrito a determinado contexto, delimitado a uma conjectura particular e não
obrigatoriamente válido dentro de outro cenário.302
Numa outra veste, mas com resultado similar, Peirce explicou que o
observador vê uma parte da verdade. Sua análise é sempre restrita a determinado
aspecto. Um signo nunca esgotaria os vários aspectos do objeto que representa.
Ademais, essa falibilidade se potencializa também em razão de que o conhecimento
é oriundo inicialmente da percepção, cujo processo é ligado às condições pessoais
301
FOERSTER, Heinz von. Sistemi che osservano. Traduzione Bernardo Draghi. Roma: Casa Editrice
Astrolabio, 1987. p. 236: “Verità: L´invenzione di un bugiardo.”.
302
CRESWELL, 2010, p. 30: “1. O conhecimento é conjectural (e antifundacional) – a verdade
absoluta nunca pode ser encontrada. Assim, a evidência estabelecida na pesquisa é sempre
imperfeita e falível. Por esta razão, os pesquisadores afirmam que não provam uma hipótese, mas
indicam uma falha para rejeitar a hipótese.”. Sob outro viés, da obtenção do conhecimento, mas com
resultado similar, ver SEVERINO, 2007, p. 25: “[...] O que se deve concluir é que o conceito é uma
representação mental, mas esta não é o ponto de partida de conhecimento, e sim o ponto de
chegada, o término de um complexo processo de constituição e reconstituição do sentido do objeto
que foi dado à nossa experiência externa e interna.”.
170
de quem tem contato com o signo, o que apimenta a falibilidade do processo de
significação.303
Ainda, no tema, o próprio Luhmann teoriza que o resultado do processo
de observação é dependente da distinção escolhida pelo observador. O referido
sociólogo elegeu como sua distinção a construção teórica sistema-ambiente. Com
base nela, promove-se um recorte do mundo.304 A partir da escolha de uma
distinção, o objeto observado pode tornar-se plural, histórico, relativo ou mesmo
artificial, no entanto, a resultar sempre em contingência.305
Também no cenário sistêmico, Heinz von Foerster306, no clássico
Observing Systems, além da expressão citada acima, expõe que há um ponto cego
na observação. O observador não vê que não pode ver. E o não ver é requisito para
ver. Essa possibilidade de observar o que o primeiro observador não pode ver
tornou-se um poder, sobretudo na modernidade. As artes embebedaram-se dessa
premissa, rotulando esses artistas que viam o que os outros não viam de
vanguardistas. No aspecto, a sociedade moderna pode ser descrita como sociedade
da observação da observação.307
20.2 Bem consciente dessa dificuldade cognitiva, a tese passa a relatar o
resultado da pesquisa. De plano, nega-se a binariedade proposta no problema
central da tese, a saber: simbólica ou efetiva? A pesquisa, ao final, demonstrou que
o material coletado e o seu ambiente social são hipercomplexos, o que provoca uma
resposta mais detalhada, contextual e menos rígida.
303
ARAUJO, 2011, p. 125, 134; SANTAELLA, 1995, p. 117: “[...] Para Peirce, ao contrário, o
falibilismo é irremediável. É uma fragilidade insuperável, entre outras coisas, porque nosso
conhecimento é dado pela percepção sempre.”.
304
SCHUARTZ, 2005, p. 67; LUHMANN, 2009, p. 153: “O que já se entende com o conceito de
observação é um contexto teórico mais abstrato do que o da Teoria dos Sistemas, e que poderia ser
a base de uma aplicação interdisciplinar, na qual a diferença sistema/meio seria apenas um tipo de
observação entre muitos outros: signos/significado, forma/meio, acoplamento débil/acoplamento forte
[...],”. GUERRA FILHO, 2001, p. 179, 181-182.
305
LUHMANN, 2009, p. 169: “Temos, assim, a especificidade de um mundo no qual toda observação
pode ser realizar de maneira contingente, dependendo das distinções que possam ser empregadas.
Tudo o que se pode observar é artificial, ou relativo, ou histórico, ou plural. O mundo pode ser
reconstruído, então, sob a modalidade de contingência e de outras possibilidades de ser observado.”.
LUHMANN, 1997, p. 37: “[...] O corte que um observador estabelece entre si mesmo e aquilo que
observa precisa ser traçado contingencialmente (Brown, 1979), surgindo assim uma fronteira
primordial, a qual, no entanto, só é válida relativamente ao observador, podendo ser traçada, de
modo diferente, por qualquer outro observador.[...].”.
306
FOSTER, 1987.
307
LUHMANN, 2009, p. 170-172.
171
21 SIGNO E IDEOLOGIA
21.1 A civilização, ao longo dos séculos de existência, tem-se forjado
também com base em signos. São inúmeros os exemplos de signos que possuem
significação definida em determinado momento histórico, cuja alteração do contexto
social e histórico acabou por outorgar outro sentido àquele mesmo signo. Equiparase essa evolução a um processo de coloração em que a mistura das tintas dá nova
aparência ao objeto. Contudo, no nosso exemplo, as cores de “tintas” são, a seu
turno, os valores sociais, o contexto histórico e não “tintas”, na acepção da palavra.
A própria linguagem jurídica, verbal ou não verbal, é repleta de signos, os quais
reclamam alcançar a sua significação no processo comunicacional social.308
Nesse jaez, deparamo-nos com signos outorgados e sentidos na própria
Constituição Federal, alguns de sentido contextual e previamente passíveis de
serem definidos, outros, porém, postos em formato completamente aberto, de modo
a exigir mais dos intérpretes. Neste, o seu sentido final, na cadeia comunicativa, não
é tão simples de ser previsto, nem é completamente alterável ao longo dos anos.
Exemplo típico desse processo, na esgrima da tese, é o Princípio da Separação dos
Poderes, pensado com um foco muito definido: limitar poderes. Neste aspecto, a sua
interpretação sempre foi muito rígida, atrelada ao medo de ocorrerem novamente os
fatos que deram origem a sua instituição. No entanto, os anos se passaram, os
medos se alteraram e a cidadania, naquele momento muito mais ligada à proteção
dos bens patrimoniais e à garantia das liberdades, foi sendo alterada pela busca de
uma igualdade mínima, afeita a um Estado Social.
21.2 A Era atual está marcada pela incessante busca de significação, e
de novas significações, porquanto a sociedade é muito volúvel; os valores sociais
308
No contexto da dogmática, ver BARROSO, 2012, p. 385: “[...] A linguagem jurídica, como a
linguagem em geral, utiliza-se de signos que precisam ser interpretados. Tais signos, muitas vezes,
possuem determinados sentidos consensuais ou de baixo grau de controvérsia. [...] Mas a
Constituição se utiliza, igualmente, de inúmeras cláusulas abertas, que incluem conceitos jurídicos
indeterminados e princípios [...]. E, em relação a eles, embora possam existir certezas positivas e
negativas sobre o que significam ou deixam de significar, é indiscutível que há uma ampla área de
penumbra que se presta a valoração que não poderão refugir a algum grau de subjetividade. O
fenômeno se repete com maior intensidade quando se trate de princípios constitucionais, com sua
intensa carga axiológica. [...].”.
172
nunca foram tão complexos e contingentes. Esse cenário, por si só, já seria
suficiente para apimentar a semiose comunicacional. Entretanto, a ele, deve-se
acrescer o alto grau de indefinição da legislação hodierna, que acaba por afastar
sentidos claros e unívocos.309 Se é verdade que a elasticidade das leis permite que
sejam atualizadas pela jurisprudência, a evitar que novas leis sejam necessárias
sempre, não é menos verdade que isso proporciona um elevado grau de incerteza,
dando vazão maior à subjetividade do julgador.
De fato, esse cenário legislativo fomenta atuações judiciais não tão
ortodoxas, que exigem uma nova postura do Estado-juiz e, muitas vezes,
desagradam os políticos e parte da doutrina. Sem menoscabo a essa crítica, a este
item, o que interessa é que o cenário social e legislativo fomenta uma nova
significação da atuação judicial. Um novo signo em torno dos ministros está tomando
forma. Se bom ou ruim, é outra história, ou melhor, só a história contará; todavia, o
certo é que é rico em ideologia, mesmo porque, a linguagem dá corpo à ideologia, a
qual denota a posição política dos agentes sociais. A linguagem materializa-se como
indicador das tensões políticas.310
Tudo isso, de tal sorte que, sob o aspecto da pragmática peirceana,
estilizam-se a riqueza e a complexidade do processo hermenêutico, de forma que,
neste ensejo, aventa-se que a construção dos significados é um processo tangente
a fatores contextuais. Com efeito, talha-se que ambas as interpretações sobre a
tripartição de poderes são possíveis, ou seja, tanto a corrente que prega limites
rígidos de atuação do Poder Judiciário quanto a atuação na efetivação do direito à
saúde, como o plexo doutrinário defensor da efetivação do citado direito via Estadojuiz, são defensáveis. Neste sentido, a escolha é uma operação de seletividade. As
duas posturas são possíveis. Restará a tomada de postura de ordem ideológica em
acentuada esgrima com valores ligados aos conceitos do intérprete – in casu os
ministros do STF – sobre Estado Liberal e Social, cidadania, força vinculante da lei e
deveres do Estado.
309
No contexto da dogmática, ver BARROSO, 2012, p. 385: “[...] Também aqui será impossível falar
em sentidos claros e unívocos. Na interpretação de normas cuja linguagem é aberta e elástica, o
direito perde muito da sua objetividade e abre espaço para valoração do intérprete. [...].”.
310
SANTAELLA, 1996, p. 329, 331.
173
Posto esse plexo, não se olvida que as normas constitucionais permitam
a sua significação mediante o uso da ideologia. Nesse cenário, consignamos que,
em casos mais radicais, aproxima-se de uma manipulação do conteúdo semântico
com o seu preenchimento pelo axioma ideológico. Daí que descrever o direito como
sistema, no qual o STF é o topo da hierarquia – como uma mente coletiva –, propicia
uma semiose de cujas decisões se extrai um signo, que, dentro da cadeia
comunicacional, fundamentará outros signos. Isso tudo motivado pelos fatos sociais
levados pelas partes, de modo que são identificados como objetos dinâmicos dessa
relação semiótica.311
21.3 Por esse contexto ideológico vale relembrar uma pesquisa histórica
na sociologia jurídica italiana. Por assim dizer, um trabalho pioneiro sobre a
magistratura, com nítido objetivo de pesquisar a sua ideologia. Referimo-nos à
pesquisa conduzida por Vincenzo Tomeo, que na segunda metade dos anos
sessenta, na Universidade Estatal de Milão, liderou um grupo de jovens. Como
resultado do referido estudo, marcou-se, historicamente, a importância de dados
empíricos para mapear o pensamento em voga dos operadores do direito.312 Tomeo
e seus jovens pesquisadores, com destaque para Ezio Moriondo, naquele momento,
identificaram na magistratura uma posição ideológica bem definida. Por essa
previsibilidade, o poder econômico confiava na judicatura, uma vez que poderia
prever a sua postura decisional diante de eventual conflito.313 Paralelo a isso, o
exemplo da pesquisa de Tomeu é parte do conjunto de fatos que rompem com o
paradigma da neutralidade do Poder Judiciário.
A pesquisa dos então jovens pesquisadores, frisa-se, foi realizada nos
anos sessenta. Quanta coisa mudou de lá para cá? Obviamente que o grau de
interferência ideológica dos juízes nos seus julgamentos altera muito de um julgador
para outro. Não é possível traçar uma regra precisa. Todavia, é possível diagnosticar
que os casos complexos por si próprios já permitem engendrar mais de uma
311
ARAUJO, 2005, p. 108, 113.
FEBBRAJO, 1992, p. 533.
313
FEBBRAJO, 1992, p. 533-534. Contudo, em que pese tal objeto de pesquisa, o seu objetivo
latente era de mostrar à comunidade científica a utilidade prática da sociologia do direito.
312
174
solução. Agora, se o julgamento desse caso difícil fundamentar-se numa norma
aberta, as soluções se potencializam.314
22 ADAPTAÇÃO JUDICIAL E SISTEMA IMUNOLÓGICO
22.1 Em linhas gerais, muito da luta pelos valores almejados no Estado
Social remonta à Revolução Industrial inglesa. Sob a proteção do liberalismo, os
abusos praticados pelo sistema industrial foram tantos que a assistência social era
mais do que necessária. Os operários das fábricas trabalhavam horas a fio por
quase nada em troca. A ilusória liberdade de livre negociação deixou os cidadãos
submissos a um regime de escravidão laboral. Deste modo, a desigualdade
instaurada reclamou uma compensação distributiva.315 Isto não somente pelo prisma
do humanismo, mas também para a própria preservação do regime liberalcapitalista, porquanto esse cenário tão desigual, gradativamente, tornava-se o
ambiente propício para germinar doutrinas revolucionárias, como as pregadas por
Karl Marx. Não foi à toa que o alemão Otton von Bismarck – árduo crente do regime
capitalista – forjou o primeiro esboço de um regime de previdência social.
Ao comparar os dois momentos, o da Inglaterra e o do cenário brasileiro
atual, conclui-se que, se lá reclamavam os cidadãos de remédios básicos, chegando
à falta de condições para a própria higiene mínima do corpo, cá, no material
empírico coletado, o STF julga e manda fazer – vale registrar - tratamentos de
altíssimos custos. Comparativamente, têm-se questões, hipóteses e consequências
muito adversas daquelas ligadas ao assistencialismo inicialmente proposto, de forma
que julgamentos apaixonados, repletos de substância retórica, mas desprovidos de
heterorreferência devem ser substituídos, sob pena de se tornarem simbólicos
diante da grande massa, uma vez que se resolve o problema de alguns e se aceita
tacitamente a não resolução, ou mesmo a não amenização, da questão macro.
314
No contexto da dogmática, ver BARROSO, 2012, p. 390: “[...] Decisões judiciais, com freqüência
refletirão fatores extrajudiciais. Dentre eles, incluem-se os valores pessoais e ideológicos do juiz,
assim como outros elementos de natureza política e institucional. [...].”.
315
LUHMANN, 1983b, 41.
175
Na sociedade moderna, os subsistemas parciais do direito e da política
têm cada qual a sua própria comunicação funcionalmente diferenciada. Em resumo,
isso significa duas coisas: (i) cada sistema parcial tem a sua própria binariedade; (ii)
ambos têm funções predeterminadas dentro do processo comunicativo. Sobre isso,
neste momento, interessa que, como dito, ao direito caberá a função de garantir a
credibilidade dos valores normativos ao longo do tempo. Em outro senso, a política
encarregar-se-á de emitir decisões vinculantes. É o resultado da operação que,
prima facie, o direito zelará pela sua credibilidade social.316
22.2 As últimas obras de Luhmann, e aqui se faz menção ao Das Recht
der Gesellschaft (Direito da Sociedade) e a Gesellschaft der Gesellschaft (Sociedade
da Sociedade) – ambas com tradução ao espanhol –, conotam uma sensibilização
luhmanniana à hipercomplexidade social, o que invariavelmente exigirá dos sistemas
parciais novas operações igualmente complexas, com escopo de transformar essa
complexidade externa em interna.317 Daí, praticamente, pelo prisma do subsistema
do direito, forja-se uma nova postura judicial. Esse “novo juiz”, à medida que reclama
fechar a operação do sistema em face dos reclames sociais a respeito das
desilusões, acaba por reduzir a complexidade ao decidir, tendo, porém, como
consequência, nova complexidade oriunda da sua decisão. Deste modo, como
ensina Febbrajo, o sistema jurídico tem que ser um espelho para ser capaz de
moldar-se à sociedade.318
O processo decisório judicial é também um processo autopoiético
complexo, quer dizer, fomentado pela complexidade. Nesse cenário, quando o litígio
é levado ao Judiciário, mediante processo judicial, materializa-se uma grande
quantidade de opções possíveis e com a reiteração exaustiva desse processo
comunicacional social é comum mudanças de opinião a respeito de teses e fatos, o
que produz insegurança social e mais complexidade.
316
TOSINI, 2007, p.116 e 117; LUHMANN, 2005, p. 473-505; CAMPILONGO, 2000b, p. 81-83.
Nas traduções das referidas obras de Luhmann para o espanhol, ver LUHMANN, 2005 e
LUHMANN, 2007b, p. 100-108. Ainda, sobre a complexidade social, porém em português, ver
LUHMANN, 1983a, p. 45-53 e LUHMANN, 2009, p. 178-204. A respeito da necessidade de
transformação da complexidade externa ao subsistema para a interna, ver FEBBRAJO, 2009, p. 126.
Sobre a hipercomplexidade como motivadora de várias autodescrições da sociedade, ver
SCHUARTZ, 2005, p. 65.
318
FEBBRAJO, 2009, p. 126.
317
176
Acresce-se a isso a assertiva de que está correta a tese asseverada por
Luhmann de que o direito moderno é positivo. Isto significa que é artificial, ou seja,
construído, e como tal, posto por uma decisão e alterável por outra.319 A seu turno, a
inovação decisional surge como fruto de um processo de irritação, seleção e
estabilização social. Numa negociação contratual, por exemplo, o limite da inovação
é o choque protecionista às partes e ao contrato. Não se pode desconfigurar a
função social do instrumento, nem aniquilar um contratante em favor de outro.
Respeitado esse limite, os contraentes podem construir a sua própria artificialidade.
Eles têm poderes de decisão. Mas, se surgir o litígio, caberá ao Estado-juiz, com
fulcro no próprio contrato e no ordenamento jurídico, decidir qual das partes, ou
mesmo nenhuma delas, tem razão. Assim, tem-se um ponto de partida: o contrato.
Isso não impede que a autoridade judiciária desconsidere o pactuado, desde que
fundamentada nos programas normativos.
Por esse senso da função do sistema parcial do direito, fala-se em vínculo
temporal do direito, uma vez que a sua missão é a garantia, ao longo do tempo, da
credibilidade social das expectativas normativas. Cabe-lhe a complexa tarefa de
resguardar a integridade social dos valores positivados, mesmo com eventuais
desilusões e, até mesmo, em face das resistências sociais em relação a tais valores.
Com isso, o direito acaba orientando os atores sociais por meio de comunicações
diferenciadas e, inclusive, serve-se de sanções quando necessárias, a fim de
garantir a generalização das expectativas normativas.320
Para compreender esse processo autopoiético de prestação à sociedade,
consigna-se que o sistema jurídico também é um dos subsistemas funcionalmente
diferenciados da sociedade. Ele cumpre uma função na sociedade, que, como
frisado, é a manutenção das expectativas normativas. Continuar-se-á a acreditar na
efetivação do conteúdo normativo em razão da comunicação diferenciada que o
sistema do direito emitirá diante das desilusões, ou seja, da não efetividade social
das normas legais. Essa atuação, para Luhmann, insere o direito no sistema
319
LUHMANN, 1985, p. 7-17; LUHMANN, 1977, p. 192-204; NEVES, 2007, p. 69; LUHMANN, 1995,
p. 141.
320
TOSINI, 2007, p. 97; FEBBRAJO, 2009, p. 125; LUHMANN, 1977, p. 120, 124, 127.
177
imunológico da sociedade ao imunizar o sistema social dos conflitos mediante
reiterações comunicativas.321
A ideia de sistema imunológico é uma analogia com o sistema biológico
humano, em razão da influência da biologia social dos chilenos Maturana e Varela. A
expressão “imunológico” decorre do raciocínio de que o direito imunizaria a
sociedade das infecções sociais, ou seja, as comunicações jurídicas seriam como
vacinas que imunizariam a sociedade dos conflitos; isso numa reação social interna.
O sistema parcial jurídico receberia a comunicação social de um dos subsistemas
para internamente transformar a complexidade em comunicação diferenciada, a fim
de garantir a generalização das expectativas normativas.322
A ideia de imunizar volta-se também ao futuro, isto é, o sistema jurídico,
ao emitir comunicação interna ao sistema, a fim de resolver os conflitos – aqui vistos
como infecções sociais –, deve preocupar-se no sentido de que essas
comunicações tenham o condão de proteger, “imunizar”, a sociedade de futuras
infecções.323 A pesquisa empírica demonstrou o contrário, vez que o julgamento
adjudicatório, no lugar de imunizar as futuras infecções, aniquila os anticorpos que
deveriam ser fortalecidos no futuro com a injeção de uma dose de remédio muito
forte. Assim, além de deixar escasso o estoque para novas aplicações, destrói as
estruturas sociais, que deveriam ser fortalecidas no futuro. Portanto, para imunizar a
sociedade, o direito deve absorver a complexidade gerada pelos conflitos e, até
mesmo, os originados de suas decisões, com mote de, ao reduzi-la, emitir nova
comunicação, porém, adequada teórica e socialmente às necessidades da
sociedade, num processo de variação, seleção e estabilização social.324
22.3 No mais, culturalmente, a resistência do STF em enfrentar
determinados tipos de direito, como a saúde, numa vertente coletiva e não
meramente individual, é oriunda da cultura jurídica liberal na qual a liberdade de
321
LUHMANN, 2005, 219; GUERRA FILHO, 2001, p. 186-187; LUHMANN, 1977, p. 115; LUHMANN,
1983a, p. 110: “[...] A identificação garante a unidade e a inter-dependência do sentido,
independentemente das diferenças objetivas entre as expectativas. Dessa forma, a generalização
gera uma imunização simbólica das expectativas contra outras possibilidades; sua função apóia o
necessário processo de redução ao possibilitar uma indiferença inofensiva.”.
322
LUHMANN, 2005, p. 219, 642; LUHMANN, 2004, p. 475; GUERRA FILHO, 2012, p. 3.
323
LUHMANN, 2005, p. 642, 643; LUHMANN, 2004, p. 476.
324
LUHMANN, 2005, p. 644-645; LUHMANN, 2004, p. 477.
178
atuação estatal em face do cidadão sempre foi atentamente vigiada, muito em razão
dos abusos ocorridos no período absolutista. Essa perspectiva fez com que o
Judiciário não se sentisse à vontade para, nesse tipo de lide, abandonar o processo
adjudicatório. No entanto, o direito como subsistema do sistema social faz parte da
sociedade e como tal é influenciado pela sua complexidade, sobretudo porque a sua
unidade está na interação comunicativa dos membros da sociedade. Desta forma,
as consequências positivas e as negativas do ativismo judicial (mais complexidade)
devem ser levadas em conta na operação interna do sistema do direito, a resultar
em nova racionalidade judicial, até porque a autonomia do subsistema legitima a
autoconstituição de novos conceitos dogmáticos, nos dizeres de Guerra Filho.325
Com efeito, a Suprema Corte não tem o privilégio de se manter inerte
diante da avalanche social de novas escolhas e situações, optando por
simplesmente omitir-se, mesmo quando há desrespeito à Constituição Federal.
Demais, observa-se que, com a promulgação de uma Constituição, há praticamente
uma fusão do jurídico e do político. O constitucionalismo une a Constituição política
e a jurídica num só documento. Deste ponto em diante, considera-se a ordem
política como sendo a ordem jurídica. Trata-se de um sistema no qual ambos
(política e direito) estão inseridos. No entanto, a forma é justamente a jurídica, com o
condão de evitar o desvio da política.326
Com isso tudo, resta atual a assertiva luhmanniana, proferida na década
de 1980, em livro intitulado “Teoria política no Estado de bem estar social” (tradução
livre do italiano), no qual enfatiza que a assistência social pressupõe uma condição
de desigualdade, cuja compensação será o cerne da atuação do Estado. Entretanto,
para realizar tal mister, necessitará de mudança nas estruturas cognitivas e
motivacionais das suas percepções e dos seus desejos. Isso, inserido no contexto
do Estado de bem estar social, leva o Estado aos limites da sua capacidade
operacional e moral, e o faz deparar-se com o problema do seu fundamento. Nesse
325
GUERRA FILHO, 2001, p. 187-188, 191.
LUHMANN, 1996b, p. 86. Para um alerta sobre a importância da magistratura para a efetividade
da ordem legal, ver GUERRA FILHO, 2011b, p. 499. No cenário dogmático brasileiro, sob o enfoque
do Direito e da Política, ver BARROSO, 2012, p. 365: “[...] Na concretização das normas jurídicas,
sobretudo as normas constitucionais, direito e política convivem e se influenciam reciprocamente,
numa interação que tem complexidades, sutilezas e variações. Em múltiplas hipóteses, não poderá o
intérprete fundar-se em elementos de pura razão e objetividade como é a ambição do direito. Nem
por isso, recairá na discricionariedade e na subjetividade, presentes nas decisões políticas. [...].”.
326
179
aspecto, não há como não perguntar se, nos dias de hoje, caberia defender uma
interpretação do Princípio da Separação dos Poderes que impeça o Poder Judiciário
de intervir em atos da Administração Pública desprovidos de legalidade.327
22.4 É verdade, por outro lado, que para poder decidir com o refinamento
intelectual que a hipercomplexidade reclama, a Suprema Corte precisará ter
condições de julgar menos para se afastar de uma “terceira instância”, com
propósito de se aproximar de uma instância especial, como autêntica Corte
Constitucional. Esse esvaziamento de quantidade para então chegar à qualidade já
vem sendo feito. Prova disso é a diminuição de casos julgados, nos moldes do
quadro a seguir.
Quadro 7 – Decisões proferidas pelo STF
2008
2009
2010
COLEGIADA
19.697
16.079
11.334
13.096
12.089
10.574
MONOCRÁTICA
109.126
86.782
98.347
89.302
77.746
58.058
10
1
13
216
128.823 102.871
109.682
102.411
90.051
TIPO DE DECISÃO
NÃO INFORMADO
Soma:
2011
2012
2013
68.632
Fonte: Supremo Tribunal Federal328
327
LUHMANN, 1983b, p. 42, 44, 47.
BRASIL.
Supremo
Tribunal
Federal.
Estatísticas
do
STF.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=decisoesgeral>.
Acesso
em: 12 out. 2013.
328
180
23 ATIVISMO JUDICIAL E ATUAÇÃO SIMBÓLICA
23.1 É rotineiro encontrar na mídia e na doutrina o uso das seguintes
expressões: “ativismo judicial” e “judicialização da política”, seja como ratificação à
intervenção judicial, seja como crítica, regra geral, ambas ligadas à análise das
atuações do Judiciário em políticas públicas ou, precisamente, na sua ineficiência.
Pelo teor do próprio nome, quando se fala em judicializar a política, pressupõe-se a
premissa de que questões, até então objeto de decisão exclusiva da política, estão
indo parar nas mãos dos juízes. A pauta da Corte Suprema é o exemplo típico desse
novo cenário do poder estatal. São muitos os casos julgados, dos quais,
ilustrativamente, destacam-se: ADI 3367 – Conselho Nacional de Justiça; ADI
3510/DF – Células-tronco; ADPF 54/DF; PET 3388/RR – Demarcação da reserva
indígena Raposa Serra do Sol.329
À vista dessa realidade judicial, de imediato, surge a provocação: será
que o Poder Judiciário tem usurpado poderes? Numa visão geral, parece que não.
Na então condição de assembleia constituinte, o próprio Poder Legislativo
constitucionalizou uma grande quantidade de direitos e garantias, bem como
incumbiu expressamente a Suprema Corte de ser a defensora e a intérprete
privilegiada das questões constitucionais. Nesse cenário, à medida que os cidadãos
adquirem conhecimento sobre os seus direitos e são “apresentados” ao Judiciário, o
estopim para a jurisdicização vem com a leniente atuação do Executivo, que, no
caso, é identificada pela inércia em efetivar políticas públicas na saúde.
O ativismo judicial brasileiro é um fenômeno social, influenciado por vários
vetores como Judiciário composto por juízes com uma cultura mais atuante. A
reiteração de escândalos de corrupção na política, aliada à sua incapacidade
operacional de atender os anseios sociais, fomenta um descrédito generalizante da
sociedade com os políticos. E, em alguns casos, acresce a isso tudo a própria
329
BARROSO, 2012, p. 367-370; SANTAELLA, 2002, p. 137: “Nos tempos modernos, pelo menos
desde a segunda metade do século XIX, não existem mais dúvidas sobre o caráter convencional,
arbitrário e histórico das leis institucionais. Mas os tópicos levantados pelo estudo das instituições,
acompanhando o crescimento da complexidade das sociedades modernas, também aumentaram sua
complexidade.”.
181
omissão política no enfrentamento de questões altamente polêmicas a fim de evitar
desgaste com parte do eleitorado.330
23.2 A seu turno, a expressão “Ativismo Judicial” é originada no direito
norte-americano como crítica à postura da Suprema Corte daquele país, cuja
atuação em favor dos direitos fundamentais contribui para a sua concretização,
mesmo como forma de interpretar a Constituição de maneira abrangente, plena, com
viés de efetivação. Séculos depois, noutro Continente, agora no Brasil, forja-se na
doutrina a expressão para rotular práticas pró-ativas, aproximando-se mais da
criação do direito em desfavor da aplicação como função típica do Poder Judiciário
como boca da lei.331
Sem embargo das críticas ao exagero da atuação jurisdicional, é
necessário comentar que a Corte Constitucional pátria, dentro do próprio regime
democrático desenhado pela Constituição Republicana, é o intérprete privilegiado,
ou seja, o sentido final da interpretação constitucional é por ela outorgado. Nesse
exato sentido, direitos estruturais, em nosso sistema, como os direitos fundamentais,
não podem ser julgados nos mesmos termos de outras questões porque a própria
Constituição os coloca em patamar diferenciado, invariavelmente legitimando o
Judiciário a tomar medidas que, tomadas em outro contexto, poderiam ser rotuladas
de “ativistas”. A própria política instituiu o poder-dever ao Estado-juiz de buscar a
sua preservação face às desilusões.332
330
BARROSO, 2012, p. 369: “[...] No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da
constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema
do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – e do sistema de controle
de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por
via de ações diretas.”. E, na página 370: “[...] Nesse contexto, a judicialização constitui um fato
inelutável, uma circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política
do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm a
alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão. Todavia, o modo como venham a exercer
essa competência é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial.”. Sobre a crise de
legitimidade política, ver CAMPILONGO, 2000b, p.73-77.
331
BARROSO, 2012, p. 370-373.
332
No contexto da dogmática constitucional, ver BARROSO, 2012, p. 384: “[...] Há praticamente
consenso, na doutrina contemporânea, de que a interpretação e aplicação do direito envolvem
elementos cognitivos e volitivos. Do ponto de vista funcional, é bem de ver que esse papel de
intérprete final e definitivo, em caso de controvérsia, é desempenhado por juízes e tribunais. De modo
que o Poder Judiciário, notadamente, o Supremo Tribunal Federal, desfruta de uma posição de
primazia na determinação do sentido e do alcance da Constituição e das leis, pois cabe-lhe dar a
palavra final, que vinculará os demais Poderes. Essa supremacia judicial quanto à determinação do
182
23.3 No seio da dogmática jurídica, em nossos dias, encontramos
refinada pena, materializada por Luiz Roberto Barroso, apta a apontar que o direito e
a política não são sistemas isolados. Entre ambos, há pontos de contato e de
confronto.333 Ainda assim, são diferentes, possuem individualidade própria; melhor,
dentro da Sociologia sistêmica, cada qual possui a sua comunicação binária,
funcionalmente diferenciada. Ambos estão inseridos num sistema social maior, quer
dizer, a sociedade. Eles têm abertura cognitiva, recebem comunicações advindas de
outros subsistemas, entretanto, a sua comunicação é fechada: operam com base no
respectivo código.
23.4 Fecha-se o presente capítulo com a certeza de que tanto um juiz
descomprometido com o seu mister quanto um magistrado com sede de justiça
provocam malefícios à sociedade. Em que pesem as peculiaridades do caso
concreto, como regra geral, o último proceder jurisdicional é o mais nocivo dos dois,
mormente porque socialmente todos percebem, em razão do desleixo e da má fama,
que a decisão praticada pelo primeiro modelo de juiz não materializa a justiça. Ao
contrário, configura o desvio de um homem do caminho reto. Por outro lado, quando
o primeiro decide investido sob a roupagem da retórica dos justos, o justiceiro
arrisca-se a transformar o bem em mal, e vice-versa, com ares de concretização da
mais pura, e cristalina, justiça, o que compromete toda ideia de justiça daquele
grupo social, por poderem entender que a visão e a postura adotadas pelo julgador
se materializam como certas. Dessa forma, nenhum dos dois seria o melhor
caminho, mas sim o inteligente que pretende concretizar o direito, servindo-se da
análise global, distributiva, em questões de distribuição de riqueza. Para tanto,
porém, necessita estar disposto e preparar-se para a adaptação da sua decisão e
postura face à nova realidade distributiva.
que é o direito envolve, por evidente, o exercício de um poder político, com todas as suas implicações
para a legitimidade democrática.”.
333
BARROSO, 2012, p. 385: “[...] o mantra repetido pela comunidade jurídica mais tradicional de que
o direito é diverso da política exige um complemento. É distinto, sim, e por certo: mas não é isolado
dela. Suas órbitas se cruzam e, nos momentos mais dramáticos, se chocam, produzindo vítimas de
um ou dos dois lados: a justiça e a segurança jurídica, que movem o direito; ou a soberania popular e
a legitimidade democrática, que devem conduzir a política. [...].”.
183
23.5 Em termos de resultado da pesquisa, as duas hipóteses iniciais –
atuação efetiva ou atuação simbólica – restaram, quando vistas isoladamente,
inconclusivas, inconsistentes e, especialmente, simplistas demais para descrever um
ambiente tão complexo como demonstrou a coleta de dados empíricos. Desta
maneira, a proposta original da tese teve de dar vazão a uma descrição menos
nominalista, positiva, rotulista, a fim de propiciar um resultado mais contextual,
analítico e sensitivo.
Com efeito, é inegável que, na Suprema Corte, existe sim uma
racionalidade jurídica definida no sentido da concretização do direito à saúde,
quando a observação se atém à visão da microjustiça – justiça entre as partes –, a
qual, entretanto, aproxima-se de uma atuação simbólica justamente quando nada
faz em favor dos inúmeros jurisdicionados que tiveram o seu direito à saúde aviltado
e não conseguiram chegar com seus pleitos à Corte.
A microjustiça, nesse caso, enfileira-se com uma nova elite: aquela que
possui instrumentos técnicos para chegar ao STF. E mergulha de cabeça no
simbolismo-álibi ao negar um acesso à justiça distributiva e a continuar a enfrentar a
situação somente pelo viés adjudicatório, o que ratifica as assertivas de que não
cabe ao juiz se preocupar com o orçamento público e, muito menos, deixar que
interesses menores, como a ausência de recursos, tolham exatamente direitos
sociais que nada mais são do que a busca de uma igualdade econômica, sobretudo
porque, se é verdade que para a análise do signo em torno do STF deve levar-se em
conta o gigantesco aumento da complexidade, não é menos verdade que, se a
Corte, ao julgar, não levar em conta, para formar a sua racionalidade, essa mesma
complexidade, forjará uma gradual significação simbólica, em sintonia com a ideia
de um álibi face à sua incapacidade de manter as expectativas ao longo do tempo.
23.6 A atuação simbólica da Suprema Corte é identificada ao se negar a
observar os observadores (a atuação jurisdicional dos outros juízes) para, desta
forma, exercer o papel de ser “o observador de segunda ordem”. Para tanto, deveria
(i) analisar a complexidade social gerada pelos processos judiciais em interface com
os demais subsistemas sociais com o escopo de regular a consistência teórica das
decisões em face da adequação social, tomando, se necessárias, medidas de
184
revisão da jurisprudência e até mesmo propondo a edição de medidas de regulação
da atividade estatal em caráter nacional como a edição de súmula vinculante e/ou (ii)
julgar com mais boa-vontade processos coletivos.
A postura de agir com um “álibi” do STF, como descrito, contribui de forma
significativa para o cenário do ativismo irracional, cujas consequências podem
também ser medidas pelos dados coletados pela Advocacia Geral da União, a seguir
apresentados, extraídos somente das ações propostas em face da União.
(i) Aumento significativo dos medicamentos adquiridos em razão de ações
judiciais. Enquanto, em 2005, gastou-se R$ 2.441.041,95, no ano de 2012, a compra
de medicamento resultou em R$ 287.844,968,16, conforme se pode visualizar no
Gráfico 1, seguinte.
Gráfico 1 – Evolução dos gastos da União com a compra de medicamentos
em atendimento a ordens judiciais
Fonte: Advocacia Geral da União334
334
ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde. Intervenção judicial na
saúde pública. Panorama no âmbito da Justiça Federal e apontamentos na seara das Justiças
Estaduais.
[s.d.]
Disponível
em:
<http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/pdf/2013/Jun/14/Panoramadajudicializacao_20
12_modificadoemjunhode2013.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.
185
(ii) Irracionalidade na distribuição dos medicamentos: 523 pessoas,
judicialmente, resultaram num gasto de R$ 278.904.639,71 à União. A essa elite o
Judiciário outorgou 18 novas tecnológicas, conforme demonstra o Quadro 8, abaixo:
Quadro 8 – Nome e custo dos medicamentos mais concedidos judicialmente em
desfavor da União
MEDICAMENTO
CUSTO TOTAL
BRENTUXIMABE VEDOTINA 50 MG
R$ 309.515,87
ERLOTINIBE 150MG-COMPRIMIDO
R$ 320.601,60
MALEATO DE SUNITINIBE 50MG-CÁPSULA
R$ 358.954,28
TEMOZOLOMIDA 100MG-CÁPSULAS
R$ 455.033,60
BOSENTANA 125MG - COMPRIMIDOS
R$ 708.900,60
ALFA-1
ANTITRIPSINA
SOLUÇÃO
ENDOVENOSA
PEGVISOMANTO
10MG
SOLUÇÃO
INJETÁVEL
RITUXIMABE 500MG/50ML – INJETÁVEL
R$ 721.802,90
TOSILATO DE SORAFENIBE
COMPRIMIDO
MIGLUSTATE 100MG
200MG
-
2MG/ML
-
R$ 1.108.400,70
R$ 1.325.511,60
R$ 1.769.571,00
LARONIDASE 100U/ML - SOLUÇÃO PARA
PERFUSÃO
ALFALGLICOSIDASE
SOLUÇÃO
INJETÁVEL
ECULIZUMABE 300MG - SOLUÇÃO PARA
PERFUSÃO
TRASTUZUMABE 440MG - SOLUÇÃO
INJETÁVEL
BETAGALSIDASE 35MG - SOLUÇÃO PARA
PERFUSÃO
ALFAGALSIDASE 3,5MG - SOLUÇÃO PARA
PERFUSÃO
GALSULFASE 5MG/5ML - INJETÁVEL
IDURSULFASE
INJETÁVEL
R$ 881.650,99
SOLUÇÃO
TOTAL
R$ 10.597.226,21
R$ 12.235.633,54
R$ 20.871.355,30
R$ 22.517.685,85
R$ 26.387.905,15
R$ 40.676.764,09
R$ 63.944.457,63
R$ 73.713.668,80
R$ 278.904.639,71
Fonte: Advocacia Geral da União335
335
ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde. Intervenção judicial na
saúde pública. Panorama no âmbito da Justiça Federal e apontamentos na seara das Justiças
Estaduais.
[s.d.]
Disponível
em:
186
(iii) Necessidade de a União ajudar financeiramente estados e municípios
porque não conseguiram atender as ordens judiciais. O valor pulou de R$
116.504,54, no ano de 2005, para R$ 68.002.152,43, em 2012. No Gráfico 2, a
seguir, observa-se a evolução dos gastos da União nesse sentido.
Gráfico 2 – Evolução dos gastos da União para auxiliar estados e
municípios
Fonte: Advocacia Geral da União336
(iv) No ano de 2012, a União gastou com depósitos judiciais e compra de
remédios mais de R$ 350.000.000,00, enquanto em 2005 o gasto foi de
R$2.557.546,49. A evolução dos gastos, conforme se depreende do Gráfico 3, é
elevadíssima.
<http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/pdf/2013/Jun/14/Panoramadajudicializacao_20
12_modificadoemjunhode2013.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.
336
ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde. Intervenção judicial na
saúde pública. Panorama no âmbito da Justiça Federal e apontamentos na seara das Justiças
Estaduais.
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<http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/pdf/2013/Jun/14/Panoramadajudicializacao_20
12_modificadoemjunhode2013.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.
187
Gráfico 3 – Evolução dos gastos da União para atender ordens judiciais
Fonte: Advocacia Geral da União337
Os gastos da União a fim de atender as decisões judiciais são
elevadíssimos, contudo, a situação dos estados-membros é pior, haja vista que no
Brasil a distribuição da arrecadação tributária beneficia a União em grande escala. A
despeito de a União ter mais dinheiro, o montante de gastos dos estados no ano de
2010 é alarmante. O panorama dá conta que: (i) o Estado de São Paulo gastou R$
700.000.000,00; (ii) o Estado de Pernambuco, para atender apenas seiscentas
ações, teve de desembolsar R$ 40.000.000,00; (iii) o Estado do Pará gastou para
atender apenas seis demandas judiciais R$ 913.073,81; (iii) Minas Gerais declarou
337
ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde. Intervenção judicial na
saúde pública. Panorama no âmbito da Justiça Federal e apontamentos na seara das Justiças
Estaduais.
[s.d.]
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<http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/pdf/2013/Jun/14/Panoramadajudicializacao_20
12_modificadoemjunhode2013.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.
188
ter retirado dinheiro das políticas públicas, promovidas por meio dos programas
Farmácia de Minas e Saúde da Família (PSF), para obedecer a ordens judiciais.338
Ademais, é muito emblemático o exemplo da cidade de Campinas, um
município rico, mas que 16% de todo o seu orçamento para a compra de remédios
teve de ser redirecionado para atender 89 ações propostas em 2009. Ou seja, 89
jurisdicionados gastaram R$ 2.505.762,00, enquanto mais de um milhão de
habitantes tiveram de se contentar com o restante do orçamento.339
Diante do cenário aqui descrito, com o crescente dispêndio para atender
ações propostas em face da União, importantes questões emergem: a saúde é
realmente efetiva no Brasil? Ou mais se aproxima de uma atuação jurisdicional
“álibi”, cuja efetividade do caso concreto coloca o sistema imunológico – o direito –
como emissor de mais infecção, em vez de imunizar a sociedade, como disse
Luhmann e, por isso mesmo, tornar-se-ia um paradoxo que no lugar de proteger
destruiria, como ensina Guerra Filho?340
338
ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde. Intervenção judicial na
saúde pública. Panorama no âmbito da Justiça Federal e apontamentos na seara das Justiças
Estaduais.
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<http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/pdf/2013/Jun/14/Panoramadajudicializacao_20
12_modificadoemjunhode2013.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.
339
FINATTI, Deise Barbieri; VECHINI, Priscila Garbin. O perfil dos gastos destinados ao cumprimento
de determinações judiciais no Município de Campinas. XXIV Congresso de Secretários Municipais de
Saúde do Estado de São Paulo. Anais... Campinas, São Paulo, 2009. Disponível em:
<http://2009.campinas.sp.gov.br/saude/biblioteca/XXIV_Congresso_de_Secretarios_Municipais_de_S
aude_do_Estado_SP/Complexidadedaatencaobasica/O_Perfil_dos_gastos_Deise.pdf>. Acesso em:
22 out. 2013.
340
LUHMANN, 2005, 219; GUERRA FILHO, 2001, p. 186-187; LUHMANN, 1977, p. 115. GUERRA
FILHO, 2012, p. 3.
189
A TESE
O PONTO CEGO DO SISTEMA
Como resultado, a pesquisa demonstrou que a forma de julgar do
Supremo Tribunal Federal, quando se trata de fazer justiça no caso concreto – isso
na óptica da microjustiça, quer dizer, restrita aos litigantes – o faz em favor da
efetividade do direito à saúde, numa interpretação e numa abrangência próprias de
países de alto desenvolvimento econômico e social. No entanto, quando a
verbalização da Corte simplesmente desconsidera a situação financeira do ente
público demandado, sem buscar solver a questão de forma distributiva, acaba
aproximando-se de uma atuação simbólica porque garante um direito a uma elite
que teve acesso ao Judiciário, quando, por outro lado, pouco faz para a efetivação
do direito à saúde, em caráter nacional, além de mostrar-se omissa em assumir o
seu papel de observador do observador, portanto, não se comporta como um
observador de segunda ordem da atuação jurisdicional ao não ampliar o seu juízo
cognitivo – quer dizer, a sua complexidade – ao não levar em consideração no
processo decisório os efeitos do ativismo judicial nos entes estatais envolvidos.
Essa sua negação em observar o ponto cego do sistema ficou latente
quando: (i) a Corte Constitucional não deu andamento ao pedido número 4 de
súmula vinculante, cujo teor do verbete era a regulamentação da obrigação solidária
dos entes públicos em direito à saúde. Sumular a questão não é tarefa fácil;
demandaria uma carga de raciocínio mais elaborado, num diálogo com outros ramos
da ciência, o que, por conseguinte, aumentaria o âmbito de sua complexidade.
Talvez, e por isso mesmo, a proposta não foi levada adiante. Desse modo, se, por
um lado, a Excelsa Corte reconhece a sua incapacidade operacional, pelo outro,
nada faz para estender o direito à saúde à gama de excluídos existentes em todo o
território nacional, cujos pleitos não chegam ao pretório excelso; (ii) nega-se a
promover a circulação do ponto cego do sistema ao não realizar a observação da
observação, ou seja, nega-se a observar de forma macro os argumentos trazidos
pelos administradores públicos em razão das consequências da judicialização da
190
saúde a fim mesmo de repensar o tema em caráter nacional, em heterorreferência
com os demais subsistemas sociais, dos quais se destacam: política e economia.
Sem embargo da crítica à Suprema Corte, por não assumir o seu papel
institucional de ser “o observador de segunda ordem em questões constitucionais”, é
inegável o avanço na manutenção das expectativas normativas do direito à saúde. A
seu turno, o STF forjou o direito público à saúde como bem indisponível no plano da
jurisprudência do país. Também, motivado por isso, o “ativismo judicial” brasileiro
chegou a níveis surpreendentes, sem precedentes no direito comparado, o que
pressionou os administradores públicos a tomar medidas internas para amenizar o
número de demandas que, a toda evidência, tem provocado risco iminente de
ruptura do sistema político.
Essas medidas que os poderes públicos tomaram para diminuir o número
de ação denotam que nossos gestores são, a maioria, incapazes de se antecipar ao
problema. No aspecto, destaca-se que o “ativismo judicial” motivou o Poder
Executivo a reorganizar a saúde pública, mesmo que ainda insuficiente; os avanços
são grandes e muito se deve à postura firme e, em certa medida, irracional das
decisões judiciais. Em verdade, os gestores públicos foram obrigados, por meio das
decisões, a aumentar a sua heterorreferência (adequação social) com a sociedade,
a resultar, entre outras medidas, na inclusão de diversos medicamentos na lista do
Sistema Único de Saúde (SUS), bem como alinhar a Defensoria Pública do Estado
de São Paulo e a Procuradoria do Estado de São Paulo, que, paradoxalmente, não
se comunicavam, a ponto de a primeira ingressar com ações judiciais para pleitear o
fornecimento de fármacos já fornecidos pelo Estado de São Paulo.
Essa mencionada situação de desorganização administrativa também
materializa o porquê da legitimidade social do Judiciário para intervir em políticas
públicas: o Estado de São Paulo, o mais rico da federação, possui órgãos que, por
não estarem ao menos sincronizados, lutavam entre si desnecessariamente,
gerando mais custos ao erário. Todavia, o Supremo não “vê” que para fazer valer
um valor eleito pela Constituição Federal sem corromper o sistema político terá de
superar o paradigma de julgamento exclusivamente adjudicatório, sob pena da sua
racionalidade restar chancelada como um “álibi” pela incapacidade operacional da
Administração Pública de cumprir com as decisões judiciais.
191
Nos últimos dez anos, principalmente, o Poder Judiciário brasileiro
conquistou um espaço social até então inimaginável para um poder forjado
originalmente como um poder neutro, até por isso, vinculado à lei, pouco afeito a
questões sociais como distribuição de renda e efetividade das políticas públicas.
Esse fenômeno social tem muitas explicações, dentre as quais se pode destacar: (i)
descrédito social da representação política; (ii) inefetividade social das políticas
públicas; (iii) hipercomplexidade social; (iv) cobrança social em face dos membros do
Judiciário.
Nesse sentido, à proporção que o sistema do direito é constantemente
provocado, mediante o ingresso de novas medidas judiciais, acaba tendo que
promover novos e incessantes processos de seletividade, basicamente postos na
forma de variação, seleção e reestabilização social, a resultar em novas posturas de
atuação judicial mesmo para situações já julgadas anteriormente. Esse processo é
inerente, e indissociável, à sociedade complexa, característica marcante dos dias
atuais.
O problema, porém, é que, na ânsia de garantir o direito à saúde, o STF
formou uma racionalidade jurídica em favor de uma efetividade do “caso concreto”,
julgada de forma adjudicatória, completamente autorreferente, negando-se, portanto,
a agir também com heterorreferência, que lhe permitiria absorver, dentro desse
processo de seleção judicial, a realidade social, econômica e operacional do ente
público demandado, para, com base na complexidade trazida por ambas as partes,
poder reduzir a complexidade por meio de decisão judicial.
Por óbvio, o direito à saúde é sim uma garantia constitucional que não
pode ser aviltada. Aqui não se nega isso, frise-se com veemência. Contudo, julgar o
referido direito social de ordem distributiva como direito exclusivamente adjudicatório
implica criar um simbolismo-álibi em torno da questão, isso porque, de um lado,
garante-se um superdireito a uma elite, enquanto, de outro, a coletividade continua
na mesma situação de exclusão social.
No tema da saúde, o STF pouco tem contribuído para a desejada
heterorreferência, apta a embasar julgamentos distributivos em saúde pública e a
atuar, por isso mesmo, como observador de segunda ordem, ajudando, assim, a
resolver, ou ao menos amenizar, o paradoxo da judicialização da saúde. Por outro
192
lado, no sentido de produzir paradoxos, encontram-se vários exemplos, como o
pedido de Suspensão de Tutela Antecipada n. 198/MG341, indeferido pelo STF, no
qual se postulava a suspensão da decisão antecipatória dos efeitos da tutela
jurisdicional concessiva de medida que obrigou o estado a arcar com um tratamento
de doença rara e degenerativa no importe de aproximadamente dois milhões e
seiscentos mil reais (R$ 2.600.000,00) ao ano, segundo informação do governo de
Minas Gerais.
O interessante é que houve uma mudança brusca da racionalidade da
Corte Constitucional, porquanto, no mesmo ano, a presidência do STF deferiu o
Pedido de Suspensão de Tutela Antecipada n. 223342 a fim de cassar decisão
monocrática do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE), na qual se
garantia ao jurisdicionado o fornecimento de medicamento no importe de cento e
cinquenta mil dólares (US$ 150.000), inclusive com determinação de que duzentos e
sessenta e nove mil reais (R$ 269.000,00) fossem pagos diretamente na conta do
médico indicado pela família. Em que pese o pedido da suspensão ter sido deferido
inicialmente, no julgamento colegiado, provocado pela interposição de agravo
regimental, por maioria, os ministros decidiram manter a decisão proferida pelo
TJPE, consequentemente, o tratamento milionário teve de ser ofertado pelo Estado
de Pernambuco.343
À luz da comparação da racionalidade decisional das decisões antes
referidas, indaga-se: a Administração Pública brasileira tem condições de arcar com
341
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada n. 198/MG. Relator Ministro
Gilmar Mendes. Requerente: Estado de Minas Gerais. Requerido: Relator do Agravo de Instrumento
n. 2007.01.00.043356-3 do Tribunal Federal Regional da 1ª Região. União. Município de Belo
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8%2ENUME%2E%29&base=basePresidencia&url=http://tinyurl.com/obe847x>. Acesso em: 16 out.
2013.
342
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada n. 223/PE. Relatora Ministra
Ellen Gracie. Requerente: Estado de Pernambuco. Requerido: Relator do Agravo de Instrumento nº
0157690-9 do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Brasília, DF. Julgado em 12.03.2008.
Publicado
em
18.03.2008.
Disponível
em:
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28STA%24%2ESCLA%2E+E+22
3%2ENUME%2E%29&base=basePresidencia&url=http://tinyurl.com/aj28lcv>. Acesso em: 16 out.
2013.
343
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AG.Reg, na Suspensão de Tutela Antecipada STA/223.
Plenário. Relator Ministro Presidente. Agravante: Marcos José Silva de Oliveira. Agravado: Estado de
Pernambuco.
Brasília,
DF.
Julgado
em
14.04.2008.
Disponível
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<http://stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=83&dataPublicacaoDj=09/05/2008
&incidente=3654789&codCapitulo=2&numMateria=14&codMateria=4>. Acesso em: 18 out. 2013.
193
tratamentos dessa natureza? Todos os brasileiros que estão na mesma situação,
então, teriam direito ao mesmo benefício? Quem são os beneficiados dos
tratamentos concedidos no importe de R$ 2.600.000,00 (anual) e US$ 150.000?
Estas perguntas ainda reclamam ser respondidas para se poder seguir adiante
nesse importante debate a respeito da judicialização da saúde pública no Brasil.
Aliás, além dos números, a própria verbalização posta no material
empírico demonstrou ser preocupante a postura decisional da Suprema Corte.
Ilustra-se a questão com as expressões “não cabe ao judiciário se preocupar com
questões financeiras” e “a viúva não ficará mais pobre”. Num país desigual e, em
certa medida, pobre como o nosso, esses enunciados são simbólicos, soando quase
como um discurso eleitoral.
No viés da distribuição de riqueza, cabe aqui a comparação da atuação
do STF com uma estória narrada por Luhmann, de um rico beduíno que fez um
testamento no qual deixou metade da sua herança para o filho mais velho, um
quarto ao filho do meio e um sexto ao mais novo.344
Ocorre, porém, que, por infelicidade, quando chegou o momento da
partilha restaram somente 11 camelos, inviabilizando a divisão na forma proposta
pelo pai. Os irmãos não se entenderam. Cada um tinha direito à sua parte nos
termos exatos que estava escrito no testamento. A herança, por esse cenário, teve
de ser partilhada pelo juiz. O magistrado, em vez de distribuir a riqueza existente,
adjudicou o direito de cada filho, outorgando a cada um o que o testamento
determinava. Entretanto, para a conta fechar, o juiz deu um camelo do seu próprio
patrimônio sob a promessa de que um dia os herdeiros iriam lhe devolver.345
Com
base
no
conto
da
herança
do
beduíno,
pergunta-se:
operacionalmente, qual a consequência de se adjudicar em favor de alguém riqueza
inexistente? Inicialmente, ter-se-ia desorganização sistêmica, pois se retira verba de
vários lugares para atender poucos jurisdicionados. Em seguida, quando não se tiver
de onde tirar o dinheiro, haverá descumprimento da decisão a gerar, entre as
possíveis medidas, sequestro de valores dos cofres públicos – há inúmeros casos
344
345
LUHMANN, 2004b, p. 33.
LUHMANN, 2004b, p. 33.
194
na jurisprudência. Por fim, o sistema político ruirá em razão de ser obrigado a pagar
o décimo segundo camelo ofertado aos litigantes pela Suprema Corte.
No plano teórico, a grande justificativa de não se julgar sob viés
distributivo é que, neste caso, estar-se-ia utilizando um critério político e, por
conseguinte, não jurídico. À tese, de outro modo, parece que a política está ligada
de forma irrenunciável ao poder, a qual, a seu turno, trata-se de comunicação a
regular uma relação social de litigiosidade entre as partes. Ilusório, pois, crer-se que
o Judiciário não faz “política”, quiçá o STF, que, se não tem o formato de uma Corte
Constitucional Europeia346 – até pelo motivo de estarmos localizados na América do
Sul - é sim o intérprete privilegiado da Constituição Federal e, por este mister, situase na fronteira entre os sistemas parciais da política e do direito.
Desse modo, o STF operacionaliza o acoplamento estrutural entre os
referidos sistemas, a resultar em entrada e saída de comunicação de ambos os
subsistemas, o que é, contudo, diferente da subversão do código do direito (l/i) pelo
político (g/o) ou vice-versa. Em ambos os subsistemas, os seus respectivos pontos
de partida são diversos, a materializar um nível de raciocínio particular de cada
sistema, mesmo que regule situação análoga, podendo, entretanto, o resultado ser
idêntico, a variar tão só o seu binarismo.
Diante dos dados coletados, a racionalidade da Suprema Corte em direito
à saúde configura-se num paradoxo, uma vez que decide de forma ampliativa no
caso concreto, por meio de verbalização em favor da ampla e irrestrita efetividade do
direito à saúde, mas, de fato, aceita a inefetividade social da saúde em âmbito
nacional, ao mesmo tempo em que garante o direito a uma “elite judicial”, sem se
preocupar com as consequências disso no orçamento público e, sobretudo, de como
equacionar o direito à saúde nas contas do governo e as implicações práticas da
solidariedade dos entes públicos.
346
GUERRA FILHO, 2005, p. 13.
195
REFERÊNCIAS
ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde.
Intervenção judicial na saúde pública. Panorama no âmbito da Justiça Federal e
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217
APÊNDICE A – PLANILHA DAS DECISÕES ANALISADAS
RELATOR
Min. Antônio
Cezar Peluso
Min. Antônio
Cezar Peluso
DATA DA
PUBLICAÇÃO
11/2006
09/2008
TÉCNICA
PROCESSUAL
Ag. Reg. no AI
n. 597.182
RE n.
584652/RJ
PARTES
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agdo: Elvira Alves
Recte: A União
Rcdos: Produtos Veterinários
Manguinhos Ltda.
Embte: Estado do Espírito Santo
Embdo: J.T.D.O.
Min. Antônio
Cezar Peluso
02/2010
RE n. 523756
ED.
Min. Antônio
Cezar Peluso
05/2011
Min. Carlos
Augusto
Ayres de
Freitas Britto
Min. Carlos
Augusto
Ayres de
Freitas Britto
04/2011
Suspensão de
Segurança n.
4304/CE
AC n. 2836 MC/
SP
02/2010
AI n. 611559/RS
Min. Carlos
Mario da
Silva Velloso
Min. Carlos
Mario da
Silva Velloso
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
09/2001
Ag. Reg. no RE
n. 273.042-4/RS
Reqte: Ministério Público do Estado
de São Paulo
Reqdo: Fazenda Pública do Estado
de São Paulo
Recte: Conselho Regional de
Medicina do Estado do Rio Grande do
Sul
Recdo: União
Recdo: Município de Serafina Corrêa
Agte: Município de Porto Alegre
Agdo: Carlos Alfredo de Souza Luize
03/2002
EDCL no Ag.
Reg. no RE n.
273.042-4/RS
Ag. Reg. em
Re. n.
599529/RGS
Embte: Município de Porto Alegre
Embdo: Carlos Alfredo de Souza
Luize
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agdo: Ministério Público do Estado do
Rio Grande do Sul
02/2011
RE. n.
586995/MG
Recte: Estado de Minas Gerais
Recido: Ministério Público do Estado
de Minas Gerais
06/2011
Ag. no RE
599.529/RGS
Agte: União
Agdo: Ministério Público Federal
05/2011
RE n.
607.385/SC
Recte: Estado de Santa Catarina
Recido: Elisa Meira Fernandes
08/2011
AG. em RE
646.235/SP
Recte: Município de São Paulo
Recido: Ministério Público do Estado
de São Paulo
2011
Rcdos: Relator do MS
Recte: Estado do Ceará
218
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Cármen
Lúcia
Antunes
Rocha
Min. Ellen
Gracie
06/2011
RE n. 641916/
PR
Recte: Valentina Mikulski Babinski
Rcdos: União, Estado do Paraná e
Município de Curitiba
04/2011
Ag. Reg. na
Ação Cautelar
2267/PR
Agte: Valentina Mikulski Babinski
Agdo: União, Estado do Paraná,
Município de Curitiba
03/2011
Ag. In.
823184/RS
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agdo: Aguineu Diple Feline Guellen
Intdo: Município de Soledade
03/2012
Ag. Reg. em
Re. n.
665.764/RGS
Agte: União
Agdo: Associação de Caridade Santa
Casa do Rio Grande
02/2012
Ag.Reg.no RE
648.410/DF
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agdo: Ministério Público do Estado do
Rio Grande do Sul
10/2001
RE n. 255.0868/RS
Min. Ellen
Gracie
02/2007
STA n. 91
Reqte: Estado do Rio Grande do Sul
Reqdo: Eduardo Leão Francisco
Marques
Reqte: Estado de Alagoas
Reqdo: Presidente do Tribunal de
Justiça do Estado de Alagoas
Min. Ellen
Gracie
02/2007
SS n. 3073/RN
Reqte: Estado do Rio Grande do Sul
Reqdos: Luiz Carlos Fernandes e
Relatora do Mandado de Segurança
Min. Ellen
Gracie
08/2010
Min. Enrique
Ricardo
Lewandowski
Min. Enrique
Ricardo
Lewandowski
Min. Enrique
Ricardo
Lewandowski
Min. Enrique
Ricardo
Lewandowski
10/2006
Ag. Reg. no Ag.
Instrumento de
n. 734.487/PR
AI n.
607.646/SC
Agte: Estado do Paraná
Agto: Ministério Público do Estado do
Paraná
Agte: União
Agdo: Francisco Marini
06/2009
Ag.Reg. no AI n.
553.712-4
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agdo: Neiva Cecilia Belle
05/2011
Ag. no RE
640.722/SC
Recte: União
Recdo: Ministério Público Federal
08/2011
RE n.
628.293/AM
Recte: Estado do Amazonas
Recdo: Ministério Público do Estado
do Amazonas
Min. Gilmar
Ferreira
Mendes
03/2010
Ag. Reg. na
Suspensão da
Segurança n.
3355
RN
Agte: Estado do Rio Grande do Norte
Agdo: Grinaldo Ferreira da Silva
219
Min. Gilmar
Ferreira
Mendes
04/2010
Min. Gilmar
Ferreira
Mendes
04/2010
Ag. Reg. na
Suspensão de
Liminar n. 47
Pernambuco
Ag. Reg. na
Suspensão de
Tutela
Antecipada n.
175 Ceará
Min. Gilmar
Ferreira
Mendes
Min. Gilmar
Ferreira
Mendes
04/2010
STA n. 278
04/2010
Min. Gilmar
Ferreira
Mendes
04/2010
Ag. Reg. na
Suspensão de
Segurança n.
2361
Ag. Reg. na
Suspensão de
Segurança n.
2944
Min. Joaquim
Benedito
Barbosa
Gomes
Min. Joaquim
Benedito
Barbosa
Gomes
Min. Joaquim
Benedito
Barbosa
Gomes
Min. Joaquim
Benedito
Barbosa
Gomes
Min. Joaquim
Benedito
Barbosa
Gomes
Min. José
Antônio Dias
Toffoli
Min. José
Antônio Dias
Toffoli
08/2006
AI n.
507.072/MG
Agte: Estado da Paraíba
Imptes: Zilda Miranda Torres
Joelma dos Santos Nascimento
Antônio Francisco da Cruz Filho
Maria Pereira da Cunha
Agte: Estado de Minas Gerais
Agdo: José Carraro
04/2011
Ag. Reg. no RE
635381/RS
Recte: Estado do Rio Grande do Sul
Recdo: Valzumiro Zanatta
10/2011
Ag. Reg. no AI
693.564/RGS
Agte: Município de Porto Alegre
Agdo: Cristian da Costa Nery
10/2011
Ag. Reg. no AI
817241/RGS
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agdo: Branca Odete Mendes Acosta
06/2012
Ag. Reg. no AI
n.
550.530/PR
Agte: Autarquia Municipal de Saúde
Agto: Ministério Público do Estado do
Paraná
02/2010
AI n. 587084/PR
Recte: Andréia Pichorim
Recdo: União
06/2010
AI n.
667882/MG
Agte: Ministério Público do Estado de
Minas Gerais
Agdo: Município de Contagem
09/1999
RE n. 242.859RS
Agte: Município de Porto Alegre
Agdo: Patrícia Palácio de Souza
Min. Ilmar
Galvão
Agte: Estado de Pernambuco
Agdo: União
Agdo: Ministério Público Federal
Agdo: Município de Petrolina
Agte: União
Agdo: Clarice de Abreu de Castro
Neves
Agdo: Ministério Público Federal
Agdo: Município de Fortaleza
Agdo: Estado do Ceará
Agte: Estado de Alagoas
Agdo: Maria de Lourdes da Silva
Agte: Estado de Pernambuco
Agdo: Alessandro Feitosa Tomé de
Souza
220
Min. Ilmar
Galvão
03/2000
RE n. 226.8356/RS
Recte: Estado do Rio Grande do Sul
Recdo: Rosemari Pereira dias
Min. José
Carlos
Moreira Alves
Min. José
Carlos
Moreira Alves
Min. José
Celso de
Mello Filho
05/2000
RE n.
264.269/RS
Recte: Estado do Rio Grande do Sul
Recda: Teresinha Palhano
09/2000
RE n. 207.9707/RS
Recte: Estado do Rio Grande do Sul
Recdo: Osvaldina Alves dos Passos
02/1997
Pet. n.1.246
MC/SC
Reqte: Estado de Santa Catarina
Recdo: João Batista Gonçalves
Cordeiro
Min. José
Celso de
Mello Filho
Min. José
Celso de
Mello Filho
08/2000
RE n. 267.612RS
Reqte: Estado do Rio Grande do Sul
Reqdo: Augusto Seleprioni
08/2000
RE n.
232.335/RS
Reqte: Estado do Rio Grande do Sul
Reqdo: Jorge Eduardo Hennig
Min. José
Celso de
Mello Filho
11/2000
Ag. Reg. em
Re. n. 271.2868/ RS
Agda: Cândida Silveira Saibert
Agda: Dina Rosa Vieira
Agte: Município de Porto Alegre
Min. José
Celso de
Mello Filho
02/2001
Ag.Reg. em RE.
n. 273.834/RS
Agde: Município de Porto Alegre
Agvda: Cristiane Carneiro Bortolaz
Min. José
Celso de
Mello Filho
12/2001
RE n.
248.304/RS
Recte: Estado do Rio Grande do Sul
Recdo: Igor Batista Brito
Min. José
Celso de
Mello Filho
04/2004
ADPF n. 45/DF
Reqte: Partido da Social Democracia
Brasileira – PSDB
Reqdo: Presidente da República
Min. José
Celso de
Mello Filho
06/2004
AI n.
452.312/RS
Agte: Município de Porto Alegre
Agdo: Camila Kauffmann
Min. José
Celso de
Mello Filho
02/2007
Ag. Reg. em Re
n. 393.175 – O
– RS
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agda: Luiz Marcelo Dias e outro (A/S)
Min. José
Paulo
Sepúlveda
Pertence
Min. Luiz Fux
12/2005
AI n.
562.561/RS
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agda: João Abrantes Mendonça
04/2011
Ag. REg. no RE
626.328/RGS
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agto: Luis Felipe Alves Varante
221
Min. Luiz Fux
06/2011
Ag. Reg. no RE
626.328
Min. Luiz Fux
06/2011
Ag. Reg. no Re.
607.381/SC
Min. Luiz Fux
08/2011
Ag. In. n.
843160/MG
Min. Luiz Fux
04/2012
Ag. REg. no RE
n. 668.724/RS
Agte: Ministério Público do Estado de
Minas Gerais
Agdo: Departamento Municipal de
Saúde Pública – DEMASP
Agte: Estado do Rio Grande do Sul
Agdo: Germana Pereira Ferreira
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Marco
Aurélio
Mendes de
Farias Mello
Min. Maurício
José Corrêa
02/1999
AI n.
232.469/RS
Agte: Município de Porto Alegre
Agda: Loreni de Fátima Santos Serpa
10/1999
RE n. 247.900RS
Reqte: Estado do Rio Grande do Sul
Reqda: Ida Maria Lorez Huber
02/2000
Ag.Reg. em
Agravo de
Instrumento n.
238.328-RS
RE n. 195.1923-RS
Agte: Município de Porto Alegre
03/2000
Agte: Estado do Paraná
Agdo: Ministério Público do Estado do
Paraná
Agte: Estado de Santa Catarina
Agdo: Ruth Maria Rosa
Agda: Carlos Fernando Becker
Recte: Estado do Rio Grande do Sul
Recdo: Rodrigo Skrsypcsak
09/2000
RE n. 273.042RS
Rectes: Estado do Rio Grande do Sul
e Município de Porto Alegre
Recdo: Carlos Alfredo de Souza Luize
12/2007
RE n. 566.471
RG/RN
08/2011
RE n.
368.564/DF
Recte: Estado do Rio Grande do
Norte
Recda: Carmelita Anunciada de
Souza
Recte: União
Recdo: Maria Euridice de Lima
Casale
03/2012
RE n. 657.718
RG/MG
Reqte: Alcirene de Oliveira
Reqdo: Estado de Minas Gerais
05/2012
Ag. Reg. no RE
n. 635.363/RS
Agte: Município de Caxias do Sul
Agdo: Ministério Público do Estado do
Rio Grande do Sul
08/1999
RE n.
236.000/RS
Reqte: Estado do Rio Grande do Sul
Reqdos: Alex Lopez de Souza e
outros
222
Min. Maurício
José Corrêa
09/1999
RE n.
236.644/RS
Reqte: Município de Porto Alegre
Reqdo: Carlos Alberto Ebeling Duarte
Min. Maurício
José Corrêa
08/2000
Ag. Reg. no RE
n. 259.508/RS
Agte: Município de Porto Alegre
Agdo: Patrício Palácio de Souza
Min. Nelson
Jobim
02/2001
AgRg. no RE n.
255.627-RS
Agte: Município de Porto Alegre
Agdo: Carlos Alberto Ebeling Duarte
Fonte: Supremo Tribunal Federal347
347
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 24 out. 2013.
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