capítulo 155 Doping Genético A doping genético até então. Por outro lado, discussão sobre o doping genético teve considerando que ainda não existem meios de início em junho de 2001, em um encontro da Gene controle e detecção do doping genético, e que, Therapy Working Group promovido pelo COI. teoricamente, Nesse encontro, cujo tema foi “Terapia Gênica e tecnologia em seres humanos e outros animais, seu futuro impacto no esporte”, o comitê declarou ninguém pode afirmar com segurança que nenhum que a terapia gênica, além da sua importância no atleta tenha já o tenha experimentado. já é possível empregar essa tratamento e prevenção de doenças, tem um grande potencial para mau uso nos esportes, e que Terapia gênica formas de detecção do doping genético devem ser A terapia gênica é uma nova modalidade desenvolvidas e aplicadas. Em 2004, a editora terapêutica da medicina. Trata-se de um conjunto chefe da revista Molecular Therapy publicou em de técnicas ainda incipiente e em fase apenas editorial que, se nas olimpíadas de Atenas (2004) inicial de experimentação, mas que nos permite histórias de doping genético possam ter sido vislumbrar a possibilidade de cura para doenças apenas consideradas incuráveis, como as de origem ficção científica, em Pequim (2008) possivelmente não mais serão. predominantemente genética e/ou hereditária No início de 2003 o doping genético entrou (como exemplo podem ser citadas: distrofias na lista de métodos proibidos do COI, e em 2004 a musculares, fibrose cística, fenilcetonúria, WADA definiu doping genético como o uso não cânceres, disfunção endotelial, entre outras). terapêutico de células, genes, elementos genéticos Uma boa definição de terapia gênica é a ou a modulação da expressão gênica, que tenham transferência de material genético para células a humanas, com o objetivo de prevenir ou tratar capacidade de melhorar o desempenho esportivo. doenças. Esse tipo de abordagem terapêutica Até o presente momento não há registro de baseia-se no envio de material genético, via nenhum caso de atleta que tenha feito uso desse vetores, para dentro de células-alvo (geralmente o tipo de manipulação. De fato, a terapia gênica é material enviado é DNA, embora RNA também uma ainda possa ser utilizado), mais especificamente para o extremamente imatura, incipiente e basicamente núcleo das células, lugar no qual esse DNA pode experimental. Isso pode ter sido um importante ser transcrito e posteriormente traduzido à sua motivo para que nenhum atleta fizesse uso do proteína correspondente que, em última análise, é modalidade terapêutica médica genético cuidados que devem ser tomados com esses introduzido. Dessa forma é possível compensar a procedimentos, bem como os testes de certificação falta de uma proteína (nos casos em que o paciente da segurança das preparações são muitos, e muito apresenta deleção completa do gene) ou a falta de rigorosos. o produto funcional do material uma proteína funcional (nos casos em que o Apesar disso, restam ainda muitas dúvidas paciente apresenta mutações ou deleções parciais a respeito dos efeitos colaterais da terapia gênica. que resultam em uma proteína truncada não- De funcional). geneticamente modificados gera uma grande certo que a introdução de organismos Para que o material genético de função incerteza, especialmente se for levado em conta o terapêutica chegue ao núcleo das células-alvo, é potencial mutagênico dos vírus. Ainda assim, os necessária a utilização de um vetor. Os mais efeitos utilizados são os vírus (geralmente adenovírus ou expressão em longo prazo dos genes introduzidos retrovírus), células e à falta de controle da expressão de tais genes. geneticamente modificadas e injeção direta no Outro ponto muito importante é a possibilidade tecido também sejam meios possíveis de se (ainda que pequena) de modificação não apenas introduzir o material genético. É evidente que os das vírus usados como vetor são modificados em germinativas. Isso poderia ser catastrófico, uma l a b o ra t ó r i o, é vez que a mutação seria repassada às futuras genes gerações, de modo que seriam introduzidas patogênicos são retirados ou modificados e o(s) pessoas com modificações genéticas no ambiente, gene(s) terapêutico(s) é(são) inserido(s) em seu e facilmente o controle da freqüência desse gene genoma. Assim o vírus mantém sua capacidade de na população seria perdido. É exatamente por esse reconhecimento, adesão e invasão da célula, bem motivo que não é permitida a terapia gênica em como de utilizar a maquinaria molecular da célula células da linhagem germinativa. Embora esses do hospedeiro para expressar seus genes e questionamentos estejam todos no campo da produzir suas proteínas. O resultado de tal especulação, procedimento proteínas completamente descartado, e discussões do ponto terapêuticas sem que haja produção das proteínas de vista da ética e moral são pertinentes a essa que conferem virulência ao vírus. problemática. e m b o ra e rigorosamente todo lipossoma, o procedimento controlado. é a Os produção seus das menos células conhecidos somáticas, nenhum dizem mas deles respeito também pode ser à das ainda Uma revisão de 2006 afirma que cerca de 3000 pacientes já receberam algum tipo de terapia Terapia gênica e doping genético Ainda que esteja sendo desenvolvida com o gênica. Diversas doenças foram tratadas, incluindo disfunções coronariana, endoteliais hemofilia, ligadas à doença imunodeficiência e propósito de tratar doenças graves, a terapia gênica tem um imenso potencial de abuso entre cânceres. De um modo geral a terapia gênica tem atletas saudáveis que queiram melhorar o trazido bons resultados, e seus efeitos colaterais desempenho. A despeito dos potenciais riscos e parecem ser reduzidos a um número pequeno de das incertezas quanto a sua segurança, relatos pacientes, o que é um indicativo animador da indicam que certa parcela dos atletas de elite segurança do tratamento. De qualquer forma, os gostariam de se sujeitar a pesquisas com terapia gênica. O interesse que esse tipo de abordagem Pe s q u i s a s com ratos e macacos desperta no meio esportivo não se reduz apenas à conseguiram com sucesso transferir uma cópia melhora da performance, mas inclui também adicional aplicações terapêuticas para o tratamento de conseqüência, o hematócrito dos animais subiu lesões em tecidos de difícil regeneração, como para valores próximos de 80%! (lembre-se que o tendões, cartilagens e ligamentos. Vale lembrar normal gira em torno de 40%). Isso obviamente que lesões dessa natureza são muito comuns entre pode atletas, comprometimento e que são importantes causas de do gene da representar eritropoietina. um da risco função Como sério de cardiovascular, encerramento precoce da carreira esportiva e de incluindo dificuldade de manutenção do débito afastamento prolongado de treinos e competições. cardíaco e da perfusão tecidual, devido ao Nesses casos, a terapia com genes que codificam substancial aumento da viscosidade sangüínea. fatores de crescimento poderia resultar em melhor Além disso, foi relatada anemia severa em alguns regeneração tecidual. Atualmente isso está sendo animais por causa de uma resposta auto-imune à testado em animais, e talvez dentro de alguns anos transferência comece a ser testado em humanos. levantam do gene sérias extra. dúvidas Esses quanto relatos à real Os mais importantes genes candidatos a possibilidade de uso da transferência do gene da serem utilizados de forma abusiva e ilícita por eritropoietina em pessoas saudáveis, como os atletas são: atletas. · eritropoietina; · GH e IGF-1 (e outras somatomedinas); · VEGF; · inibidores IGF-1 e GH Em da miostatina (folistatina e animais de experimentação, a introdução por vetor de adenovírus do gene que outros); codifica a proteína IGF-1 l e va a sua · endorfinas e encefalinas; superexpressão, o que, por sua vez, leva ao · leptina; aumento da síntese protéica na musculatura · PPAR delta (Peroxisome Proliferator Actived esquelética. Isso foi observado tanto nos animais Receptor delta). que foram submetidos ao treinamento de força quanto naqueles que não foram. Quando a Eritropoietina introdução do gene extra IGF-1 foi combinada com Conforme discutido em detalhes na seção o treinamento de força, o ganho na massa 124 do capítulo 788, a eritropoietina é uma muscular (hipertrofia) e o desenvolvimento da proteína produzida nos rins cujo principal efeito é o força foram maiores do que os observados nos estímulo da hematopoiese. Logo, uma cópia animais que apenas treinavam força (e não adicional do gene que codifica a eritropoietina superexpressavam IGF-1) e nos que apenas aumenta a produção de hemácias, de modo que a superexpressavam IGF-1 (e não treinavam força). capacidade de transporte de O2 para os tecidos fica Veja detalhes dos resultados desse estudo na aumentada. Portanto, esse tipo de doping seria figura 132. especialmente endurance. ergogênico para atletas de 40 massa muscular % 50 força tetânica % 30 20 10 40 30 20 10 CON IGF TF 0 IGF+TF CON IGF TF IGF+TF Figura 132. Comparação entre os grupos CON (controle), IGF (superexpressão de IGF-1), TF (treinamento de força) e IGF+TF (superexpressão de IGF-1 combinada com treinamento de força) em relação ao ganho de massa muscular (acima) e à capacidade máxima de produção de força (abaixo). Note que a superexpressão de IGF-1 resultou em ganhos de força e massa muscular semelhantes ao grupo que treinou força, e que a superexpressão de IGF-1 potencializou os efeitos do treinamento de força. (Adaptado de Lee et al. Journal of Applied Physiology, 96:1097-1104, 2004.) Pode-se dizer, então, que a superexpressão com a inserção do gene do GH e do IGF-1 estejam de IGF-1 pode potencializar em grande magnitude relacionados as respostas musculares ao treinamento físico, em hipotálamo-hipofisário e principalmente com o especial aumento da chance de ocorrência de cânceres ao exacerbação treinamento das de força. adaptações pode Essa ser com o desequilíbrio do eixo diversos. especialmente interessante para aqueles atletas cujas modalidades esportivas requerem força e VEGF hipertrofia muscular. Em vista do sucesso obtido O VEGF (do inglês Vascular Endotelial em estudos com animais e da aparente segurança Growth Factor, ou Fator de Crescimento do da terapia gênica com IGF-1, é possível que dentro Endotélio Vascular) é uma proteína que, como o de poucos anos ela já seja factível em humanos. próprio nome sugere, desempenha um importante Isso, obviamente, poderá ser utilizado por atletas papel no crescimento do endotélio vascular, na que buscam melhorar sua performance, mas angiogênese e vasculogênese. poderá ser também utilizado por pessoas A terapia gênica com VEGF é uma das portadoras de doenças musculares graves, como a poucas já utilizadas em seres humanos. A distrofia muscular de Duchéme e outras. introdução do gene que codifica a VEGF em Teoricamente o doping genético com GH levaria a efeitos bastante semelhantes pacientes com disfunção endotelial responsável aos por quadros de doença arterial coronariana e produzidos por IGF-1, haja vista que a ação do GH doença arterial periférica (também conhecida é mediada pelo próprio IGF-1. Portanto, pode-se como claudicação intermitente) tem produzido esperar que o doping genético com GH produza bons resultados, com boa formação de novos ganhos de força e hipertrofia muscular. Ainda não é ramos vasculares e até formação de bypass (ramos possível precisar em que magnitude ocorreria tais vasculares alternativos que permitem o desvio do aumentos, mas é provável que os riscos envolvidos fluxo sangüíneo de uma região vascular obstruída, o que evita isquemia e até mesmo morte tecidual). Estudos que bloquearam a miostatina com Em atletas, a inserção vetorial do VEGF proteínas como a folistatina encontraram um poderia produzir vasculogênese. Dessa maneira, o grande efeito positivo sobre o crescimento da fluxo sangüíneo para todos os tecidos seria musculatura esquelética, resultado do aumento no aumentado, tamanho das fibras (hipertrofia) e no número das assim como sua oxigenação e nutrição. Considerando que isso ocorra em tecidos fibras como a musculatura esquelética e a cardíaca, conteúdo de gordura intramuscular e de tecido pode-se esperar aumento da produção energética, conectivo. diminuição da produção de metabólitos e o retardo demonstraram da negativa que a miostatina desempenha sobre o fadiga. Atletas de endurance seriam, (hiperplasia), além Outros a de diminuição trabalhos importância muscular. da Tanto do também regulação teoricamente, os mais interessados na terapia crescimento ratos que gênica com inserção do VEGF. superexpressavam um inibidor da miostatina Uma vez que esse tipo de terapia já está (folistatina) como bovinos nocaute para o gene da sendo utilizado em seres humanos com fins miostatina (ou seja, que não apresentavam e terapêuticos, o doping genético envolvendo o tampouco expressavam o gene) apresentaram VEGF já poderia ser empregado atualmente de crescimento enorme da musculatura esquelética, maneira ilícita para melhorar o desempenho conforme pode ser observado nas figura 123. esportivo. Inibidores da miostatina (folistatina) O gene da miostatina codifica uma proteína que exerce um efeito regulador muito importante no crescimento da fibra muscular, tanto a cardíaca quanto a esquelética. Na verdade, a miostatina é um regulador negativo da hipertrofia muscular. A A A A B B A A Figura 123. Exemplos da importância da regulação negativa que a miostatina cumpre sobre o crescimento da musculatura esquelética. Figura A: fotos de bovinos nocaute para o gene da miostatina. Figura B: fotos de um rato em que o gene da folistatina, um inibidor da miostatina, foi inserido e superexpresso (à direita) em comparação com um rato controle (à esquerda). Em ambos os casos, observe a quantidade enorme de massa muscular desenvolvida. Em humanos a miostatina desempenha a possível controlar a expressão do gene transferido mesma função. Há um relato na literatura de um artificialmente e, por conseqüência, talvez não garoto que apresentou uma deleção espontânea seja possível controlar o crescimento de massa do gene da miostatina e, a exemplo do que foi muscular. Os efeitos que isso teria o músculo mostrado desenvolveu cardíaco, incluindo seu impacto sobre todo o quantidade muito grande de massa muscular (veja sistema cardiovascular, são bastante obscuros e a figura 124). preocupantes. Por outro lado, é muito provável que em outros animais, o crescimento muscular exagerado não acompanhado pelo crescimento ósseo e tendíneo represente uma sobrecarga muito grande a esses tecidos, o que, por sua vez, pode aumentar o número de lesões e a gravidade das mesmas. Endorfinas e encefalinas O uso da terapia gênica com os genes da endorfina e desempenho encefalina esportivo poderia pela melhora diminuição o da sensação de dor, a qual poderia estar associada tanto a algum tipo de lesão que possa impedir um recém-nascido atleta de treinar e competir, como à fadiga e ao 7 meses de idade Figura 124. Fotos de uma criança do sexo masculino com deleção do gene que codifica a miostatina. À esquerda, o garoto pouco tempo depois do nascimento, e à direita aos 7 meses de idade. Repare o grande quantidade de massa muscular, o que demonstra a importância da miostatina na regulação negativa da síntese protéica na musculatura. (Adaptado de: Schuelke et al. Brief Report: Myostatin Mutation Associated with Gross Muscle Hypertrophy in a Child, New England Journal of Medicine, 350:2682-2688, 2004). excesso de treinamento. De fato, as drogas analgésicas estão entre as mais consumidas por atletas, o que indica o possível interesse pela inserção desses genes. Tanto a endorfina quanto a encefalina são peptídeos endógenos de atividade analgésica. Estudos em animais demonstraram que esse tipo de terapia gênica foi capaz de Do ponto de vista terapêutico, a introdução de genes cujos produtos são capazes de bloquear a miostatina tem sido considerada como uma boa esperança para o futuro tratamento de distrofias musculares graves. Contudo, é evidente que esse diminuir a Entretanto, percepção de devido grande à dor inflamatória. carência de informações na literatura, é provável que o doping genético envolvendo endorfinas e encefalinas ainda esteja longe de realmente acontecer. tipo de terapia seja uma das mais promissoras para uso ilícito no esporte, já que o grande ganho de massa muscular pode ser decisivo para o desempenho em inúmeras modalidades. Além dos riscos inerentes a qualquer tipo de terapia gênica, o uso do doping genético que tem como alvo a miostatina pode ser potencialmente danoso ao atleta. Isso porque talvez não seja Leptina A leptina, hormônio peptídico produzido principalmente no tecido adiposo cuja principal ação está relacionada ao controle da sensação de fome e saciedade, redução do consumo alimentar e conseqüente perda de peso, também é um candidato para abuso em terapia gênica e doping da mitocôndria, diminuindo a produção de ATP na genético. Veja discussão mais detalhada sobre cadeia respiratória), de modo que sua ação leva à leptina no capítulo 0,52/0,12. diminuição da produção de energia. Como Em 1997 um estudo demonstrou que a resultado, a PPAR-delta diminui a quantidade de introdução do gene leptina por vetor viral produzia tecido adiposo, reduz o peso corporal e aumenta a significativa termogênese. perda de peso em ratos. Em Essa é, portanto, uma das contrapartida, talvez o mesmo fenômeno não seja justificativas para o possível interesse de atletas observado em humanos, já que indivíduos obesos, em usar doping genético com PPAR- delta. os quais apresentam elevada concentração Outro motivo para o possível interesse em plasmática de leptina, não têm apetite reduzido. utilizar o PPAR- delta como doping genético é o seu Essa resistência à ação da leptina pode representar provável papel na conversão de fibras musculares um importante obstáculo para a terapia gênica do tipo II em fibras do tipo I. Portanto, atletas cujas com esse hormônio. Além disso, diferentemente modalidades não dependem da força, mas exigem dos modelos animais, o comportamento alimentar que o atleta se mantenha com baixo peso e baixo humano depende de um sem número de variáveis, percentual incluindo outros peptídeos e fatores de ordem ginastas, psicológica, social e cultural. potencialmente de gordura (como patinadores os mais e maratonistas, etc.) seriam interessados na transferência do gene PPAR- delta. PPAR-delta As proteínas da família dos PPARs atuam Referências bibliográficas como fatores de transcrição de genes envolvidos Azzazy HME, Mansour MMH, Christenson RH. Doping in the no recombinant era: strategies and counterstrategies. 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