TÍTULO: A SOCIEDADE DAS ESCOLAS CRISTÃS NAS ORIGENS
AUTOR: MARCOS ANTONIO CORBELLINI
INSTITUIÇÃO: UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS – RS
INTRODUÇÃO
A Sociedade das Escolas Cristãs foi constituída e consolidada nos finais do século
XVII e inícios do século XVIII (especialmente no período de 1680 a 1719), na França, a partir
da associação entre um grupo de mestres-escola leigos (isto é, não pertencentes à ordem do
clero) e Jean-Baptiste de La Salle, cônego da catedral de Reims. Desde o ano de 1725 essa
Sociedade tem o nome de Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, uma congregação religiosa
de direito pontifício. Atualmente conta com cerca de seis mil membros e, com a colaboração
de um número dez vezes maior de leigos e de leigas, mantém obras educativas e escolares em
mais de oitenta países do mundo. No Brasil está presente desde 1907, mantendo mais de
quarenta obras educativas em onze estados da federação.
LEITURAS DAS ORIGENS
Muitas narrativas já foram feitas sobre as origens desta Sociedade. Jean-Baptiste
de La Salle é considerado, por todos os autores que sobre ele escreveram, como o Fundador
desta obra. As biografias de Jean-Baptiste de La Salle, assim como os estudos sobre seus
escritos, sobre sua pedagogia, sobre sua espiritualidade, são numerosos.1
As três primeiras biografias foram elaboradas menos de quinze anos após a morte
de Jean-Baptiste de La Salle, ocorrida em 1719. Os três primeiros biógrafos, Dauge (Fr.
Bernard, membro da Sociedade), Maillefer e Blain, são um exemplo disso. Eles escrevem
com objetivos muito semelhantes: mostrar Jean-Baptiste de La Salle como fundador de uma
instituição religiosa, as suas virtudes e qualidades, vividas em grau de heroicidade, sua
docilidade à vontade de Deus, a ação de Deus em sua vida. O título do trabalho de Jean Dauge
é significativo nesse sentido: "Conduta admirável da Divina Providência na pessoa do
venerável servo de Deus, Jean-Baptiste de La Salle”.2 Blain é, reconhecidamente, o mais
expressivo ao redigir sua biografia segundo essa perspectiva. A quarta parte de sua obra,
inclusive, descreve o espírito e as virtudes de Jean-Baptiste de La Salle, influenciando a
Sociedade até praticamente meados deste século.
1
Scaglione (1993), em extrato da Rivista Lasalliana n. 4, de 1993, relaciona 1166 publicações de e sobre JeanBaptiste de La Salle, iniciando com escritos atribuídos a Jean-Baptiste de La Salle impressos em 1703. Gallego
(1986), em sua "biografia científica de San Juan Bautista de La Salle" (p. XXI), - que dará ao estudioso a
"certeza de conhecer tudo o que hoje se sabe sobre o itinerário do fundador das Escolas Cristãs" (idem) -,
relaciona as obras de natureza científica conhecidas até aquela data.
2
Lett (1955) fez um estudo detalhado desses três primeiros biógrafos.
O conjunto dos estudos, teses, trabalhos científicos, escritos por membros dessa
Sociedade, centrados em Jean-Baptiste de La Salle, pode ser assim dividido (aproveitando um
esquema de Delachaux, 1991): estudos sobre a sua espiritualidade; estudos sobre o "itinerário
evangélico" por ele percorrido; estudos sobre o que é considerada sua pedagogia; estudos
críticos sobre algumas de seus escritos, como a Guia das Escolas e as Regras de Civilidade;
estudos sobre o que alguns chamam sua "teologia da educação"; biografias e estudos sobre
sua pessoa; histórias do Instituto "por ele fundado"; estudos sobre o contexto em que viveu e a
influência exercida em sua vida e obra. Há outras maneiras de organizar esses estudos.3
Qualquer que seja a divisão adotada, contudo, será de muita importância
estabelecer um diálogo constante com o que se tem publicado nas três primeiras biografias e
em estudos como os de Maurice-Auguste (Hermans), Campos, Sauvage, Gallego, Damon,
Loes, Poutet, além dos documentos coligidos por Aroz, para citar apenas alguns, e onde se
poderá encontrar, de forma direta ou de forma indireta e abordada incidentalmente, elementos
para compreensão deste estudo. Com isso, ampliam-se as possibilidades de trilhar novos
caminhos e de olhar com novos olhares essa história.
OUTRAS LEITURAS POSSÍVEIS
Podemos pensar, inicialmente, que mundos diferentes e até antagônicos se
encontraram no decorrer desse processo de criação da Sociedade das Escolas Cristãs. As
concepções de pessoa e de vida, os comportamentos e atitudes relacionais, os valores de
natureza religiosa e social, a posição de cada um na estrutura social, a concepção de educação
e ensino: pessoas com características culturais diferentes que coincidiram no tempo e no
espaço e que viveram conflitos e tensões e mútua colaboração, consolidando gradualmente
uma Sociedade com uma identidade nova dentro do contexto social e eclesial da época.
O final do século XVII e início do século XVIII, na França, foi um tempo que
marcou profundamente a civilização ocidental, pela passagem do final da idade média e
3
Outra maneira de apresentar esse conjunto é considerar a produção do ponto de vista da história cronológica.
Temos, então quatro grandes períodos. De 1733, quando é publicada a primeira biografia de Jean-Baptiste de La
Salle, da autoria de Blain, até os trabalhos de Lucard (1874), são conhecidas cerca de um dúzia de vidas do
"venerável Jean-Baptiste de La Salle", algumas com várias edições e traduções em italiano (uma) e alemão
(uma), a maioria destinada ao grande público, baseadas nos relatos dos três primeiros biógrafos, com destaque,
entre eles, para o relato de Blain. Do período das publicações de Lucard, que se baseou em fontes documentais
antes esquecidas, até 1937, multiplicam-se as biografias, a maioria de cunho popular, dentro do movimento de
beatificação e de canonização (esta acontecida em 1900), e em numerosos países e línguas. Rigault (1937)
inaugurou novo período com a publicação encomendada da Histoire Général da Sociedade, sendo o primeiro
tomo, abrangendo o tempo de vida de Jean-Baptiste de La Salle, bem documentado. Após esta publicação, e até
os tempos de hoje, há uma relativa diversidade nos temas estudados embora, como já destacado, centrados na
pessoa de Jean-Baptiste de La Salle. Além do mais, o conjunto de publicações chamadas Cahiers Lasalliens,
impulsionada desde o início por Hermans e Sauvage, constitui-se em monumenta dos escritos lassalianos
(Scaglione, 1993).
2
renascimento para o modernismo, sendo o período auge do regime monárquico absolutista,
tendo como fulcro central a figura de Luís XIV, no país mais populoso, mais rico, mais
católico da Europa. Na França, começada tardiamente, estava em plena implantação a ContraReforma Católica, iniciada mais de um século antes pelo Concílio de Trento. Essa reforma
priorizava a fidelidade aos dogmas católicos que deviam ser conhecidos pelo povo, a
formação do clero secular, a disciplina do clero regular, a participação nos ritos sacramentais,
a obediência às autoridades como representantes de Deus.4
Poder civil e religioso atuavam com um objetivo comum de cristianização do
povo, mesmo com atribuições e responsabilidades distintas em algumas áreas, como a
assistencial. Para alguns autores estava em execução um projeto de aculturação do povo pela
elite5, cujo término se dará na Revolução francesa e cujo sucesso é no mínimo questionável.
Projeto que utilizava todos os meios institucionais existentes, entre os quais as escolas, que
cada paróquia devia ter e manter. Projeto que incluia a implantação dos costumes e hábitos da
elite - modo de falar, modo de portar-se, modo de vestir, modo de controlar o corpo - para
todo o povo, caracterizando uma "civilização dos costumes", da aparência.
Foi o período que alguns autores chamam de "crise de consciência" (Hazard,
1964; Latreille, 1960).6 Figuras como Pierre Bayle, Spinoza, Richard Simon, Leibnitz,
Pudendorf, Locke, - que encontrarão uma muralha aparentemente invencível em Bossuet e
Fénelon -, assim como outros pensadores começavam a questionar o conceito de que há
verdades eternas e intocáveis, diante das quais as mentes e os corações deviam expressar
aceitação incondicional para poder alcançar a salvação. Tempo marcado pelo agostinismo,
com sua proposta de rigorismo ascético, de medo do pecado e do inferno, de penitência e de
sacrifício, de repressão do corpo (Delumeau, 1981). Tempo de querelas doutrinais sobre as
possibilidades de salvação eterna, praticamente concentradas na questão do jansenismo que
marcou de forma indelével muitos espíritos da época (Latreille, 1960, p.31).
Contudo, será preciso estar atento, conforme Chartier, em não admitir sem matizar
a divisão em períodos clássicos que consideram a primeira metade do século XVII como o
tempo da grande ruptura, contrastando fortemente uma idade de ouro da cultura popular, viva,
livre, e o tempo da disciplina eclesiástica e estatal, que a reprimem e submetem. Por este
esquema, as ações conjugadas do estado absolutista e da Igreja da reforma católica, impondo
disciplinas novas, ensinando novos modelos de comportamento, teriam destruído em suas
4
Vejam-se, a propósito, os trabalhos de Delumeau, 1979 e Taveneaux, 1994.
Chartier (1997), Garnot (1990), Muchembled (1988), Deregnaucourt e Didier (1995)...
6
Posição criticada por Burke (2000, p. 237) por basear-se no postulado de existir uma unidade ou consenso
cultural no período que vai de 1680 a 1715.
5
3
raízes uma maneira tradicional de ver e de viver o mundo (Chartier, 1987, p.14). O que, para
Garnot, resultou em fracasso.7
Se nas cidades, os estamentos superiores, em sua maioria, aderiram a esses
valores propostos pelas elites, não constituem grande número; pois os estratos inferiores, a
grande maioria, não só os recusaram, mas combateram... (Idem).
SITUANDO O PROBLEMA
Jean-Baptiste de La Salle, cônego da Catedral de Reims, doutor em Teologia,
aluno da Sorbonne e do Seminário de Saint-Sulpice, filho de magistrado, pertencia ao mundo
da elite que, a par da atitude de desprezo e aversão para com o mundo dos pobres, pretendia
levá-los à salvação eterna pela adoção de seu modo de pensar e de ser cristão.
Os primeiros mestres-escola, os primeiros Irmãos, eram gente do povo,8
destinatários dessa pretensão da elite: quase analfabetos ou sem preparo específico para a
função de mestre-escola, em situação econômica nos limites da pobreza ou da miséria, sem
grandes perspectivas de trabalho que não fosse nas corporações ou nos serviços dos ricos,
ignorantes com relação à doutrina da Igreja.9
Essas duas realidades se encontraram quando Jean-Baptiste de La Salle e os
primeiros Irmãos passaram a trabalhar e a conviver e, passo a passo, foram vivendo a aventura
de constituir uma Sociedade que, em última análise, participou, consciente ou
inconscientemente, desse mesmo projeto de aculturação.10
O resultado que foi sendo alcançado em termos de organização, de formação de
uma identidade profissional, de projeto educativo, de projeto religioso, de sistematização do
7
As elites tudo fizeram, no século XVII para modificar em profundidade as mentalidades populares: dirigiram e
impulsionaram uma imensa obra de adestramento dos espíritos e dos corpos. Mas este empreendimento estava
votado ao fracasso: primeiro porque lhe faltaram meios e sofreu dissensões internas; sobretudo porque a força e a
coerência da cultura popular eram tais que sua resistência era, sem nenhuma dúvida, insuperável (Garnot, 1990,
p. 212).
8
E como definir o povo? O dicionário de Furetière (Dictionnaire universel, 1690) definia o povo por exclusão:
'reunião de pessoas que habitam um país'; 'diz-se também mais particularmente por oposição aos que são nobres,
ricos e esclarecidos'. Mais: 'o povo pequeno, o povo miúdo, o comum do povo é mau e sedicioso'; 'mesmo que
seja cristão, ele se deixa levar a muitas práticas supersticiosas e cerimônias que os prelados se esforçam de
suprimir'. Esse desprezo de Furetière pelo povo perdurou nas elites durante todo o século XVIII, que
consideravam ser o povo não mais do que uma massa inerte, um peso morto, que se encontra nesse estado por
vontade de Deus e porque assim eles o querem (citado e comentado por Garnot, 1990, p. 80s).
9
Assim eles são descritos num texto chamado Memorial sobre o hábito, escrito por volta de1690: os que
compõem esta comunidade são todos leigos, sem estudos e de um espírito medíocre. A providência quis que
alguns que se apresentaram tendo algum estudo não permanecessem. Os membros dessa comunidade sendo a
maior parte gente simples, sem capacidade e sem estudo, não se conduzindo ordinariamente senão por suas
impressões,... (La Salle, Oeuvres Completes). Muchembled afirma que a cultura das massas populares (de onde
provinham a maioria dos mestres-escola, Irmãos) distinguia-se claramente do cristianismo das elites e do
pensamento culto. Por outro lado, ela é marcada e impregnada pela doutrina cristã - a menos que seja o contrário
(Muchembled, 1978, p. 19).
10
Garnot, 1990, p. 121; Chartier, 1980.
4
conhecimento pedagógico, de divulgação desse conhecimento, e de sua aplicação no número
crescente de escolas que a Sociedade foi sendo convidada a dirigir, veio da contribuição
desses dois mundos.
Será isso verdade? Ou não passou de uma ação exclusiva de Jean-Baptiste de La
Salle? Aqui começam os problemas, pois os há, em verdade.
Poutet (1970) mostrou as possíveis e prováveis influências que recebeu JeanBaptiste de La Salle durante o período que permaneceu em Reims, antes e depois de unir-se
aos Irmãos, e durante o restante tempo de criação da Sociedade das Escolas Cristãs, tendo
Paris como ponto de referência central. Aroz, em vários volumes dos Cahiers Lasalliens,
apresentou toda a documentação encontrada em arquivos públicos ou privados relativas às
movimentações financeiras, imobiliárias, administrativas do cônego e sua família, bem como
as ligadas à comunidade das escolas cristãs de Reims e de seus entornos. Poutet orienta sua
pesquisa para as influências institucionais. Aroz recolhe a documentação escrita notarial.
Outras influências não houve? Aquelas do dia-a-dia da vida, das conversas não
oficiais, dos encontros ocasionais? Aquelas que circulam pelas cidades, em suas ruas e locais
de encontro, nos desvãos de casas que criam forçosamente as vizinhanças, aonde vão
desfilando tanto os acontecimentos quanto as interpretações? Aquelas que são a expressão das
representações que as pessoas vão tendo de seu mundo próximo, das decisões do centro do
reino e seus intendentes, dos preços dos produtos, da falta de produtos, dos acertos e dos erros
do clero onipresente? Aquelas trazidas pelos viajantes e transeuntes, pelos que se mudam por
chegarem ou sairem? Aquelas que falam em quem nasceu, em quem está doente, em quem
morreu? Aquelas que pais ou mães, nas portas das escolas, trazem à baila depois de fazerem
suas reclamações e de ouvirem as do mestre? Como imaginar um grupo de homens
assepticamente resguardados dentro dos muros de sua moradia-convento, centrados em seus
compromissos de vida comum - oração, leitura espiritual obrigatória, recreação, refeições estritamente controlada de diversas formas, dedicados a preparar suas atividades escolares, e
possuídos de um autocontrole tal que os faz prender e abafar seus devaneios, seus sonhos,
seus vôos? Jean-Baptiste de La Salle inclusive?
Dizendo com Chartier, será que as pessoas estavam todas no mesmo lugar social e
cultural? Tinham a mesma ótica? Elas não se encontravam em momentos e lugares diferentes?
Elas não interferiam nos fenômenos através da sua subjetividade, da ação consciente e
planejada? Não seria necessário levar em conta estes aspectos? Não houve mecanismos e
criatividade para reagir às imposições? (Chartier, 1990).
5
Há uma "crise de consciência", afirma Hazard. Existe todo um movimento
jansenista dividindo a sociedade. Em algumas camadas sociais circulam os "libertinos"
(Hazard, 1694, p.110). Também circula pelas mãos da população toda uma literatura de
cordel, chamada de "Bibliothèque Bleu", “um componente importante da aculturação popular
a domicílio”.11 A elites, que em geral sustentam as pequenas escolas, estão engajadas no
projeto de cristianização, e com elas é preciso negociar judiciosamente cada contrato de
manutenção das escolas. São também comuns e freqüentes as viagens por motivo de mudança
de comunidade ou para participar de retiros.
Como então pensar que esta Sociedade das Escolas seja constituída por pessoas
alheias ao mundo, desvinculadas deste entorno social, totalmente ignorantes das idéias e
representações que circulam entre o povo com o qual tem contato diário?
Estaria Jean-Baptiste de La Salle imune a isso tudo? Seria ele capaz, antecipando
a santidade que se lhe atribuiu (admitindo que isso seja santidade), de sobrevoar essas
contingências humanas que fazem a realidade ser de pessoas e não de anjos? E o Irmãos,
mesmo compungidos a se isolarem do mundo - lugar de pecado - e a não terem senão o trato
absolutamente indispensável com as pessoas "do mundo", poderiam deixar de ouvir, de ver,
de sentir, e de criar suas próprias representações sobre tudo isso? E essas representações não
adentrariam a comunidade instituída, a sociedade organizada, influenciando as decisões que
se tem pensado exclusivas de Jean-Baptiste de La Salle?
LENDO POR OUTRA ÓTICA
Para citar um exemplo. Jean-Baptiste de La Salle, pouco tempo antes de sua
morte, seguindo o costume, redigiu seu testamento. A primeira parte contém o sinal da cruz, a
identificação e recomendações aos Irmãos.12
11
Segundo Garnot, “três grandes temas dominam esta literatura: religião, ficção e técnicas. A terceira categoria
diz respeito a obras mais ou menos técnicas; (...) mas o essencial é constituído pelas obras de civilidade, que tem
por fim modelar o modo de viver e de estar em sociedade, à imagem das elites; os conselhos dados no livro de
Jean-Baptiste de La Salle são retomados na Biblioteca Azul, da mesma forma como são ensinados nas escolas
dos irmãos (Garnot, 1990, p. 130-131).
12
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, amém. Eu, abaixo assinado, Jean-Baptiste de La Salle,
sacerdote, estando enfermo em um quarto próximo à capela da casa de Saint-Yon, bairro de Saint-Sever da vila
de Rouen, querendo fazer um testamento que encerre todos os compromisso que me possam restar, eu
recomendo primeiramente a minha alma a Deus e em seguida todos os Irmãos da Sociedade das Escolas cristãs
com os quais me uni, e lhes recomendo sobre todas as coisas de ter sempre uma inteira submissão à Igreja e
especialmente nestes tempos lastimáveis, e darem sinais de não se separar em nada de nosso santo Padre o papa
e da Igreja de Roma, lembrando-se sempre que não enviei dois Irmãos a Roma senão para pedir a Deus a graça
que nossa Sociedade a ela fosse inteiramente submissa. Eu lhes recomendo também de ter uma grande devoção
para com Nosso Senhor, de amar muito a santa comunhão e o exercício da meditação, e de ter uma devoção
particular para com a santíssima Virgem e para com são José patrono e protetor da sua Sociedade, e de se
desempenhar de seu emprego com zelo e com desinteresse, e de ter entre si uma íntima união, e obediência cega
para com seus superiores, que é o fundamento e o sustento de toda a perfeição em uma comunidade.
6
Na segunda Jean-Baptiste de La Salle dispõe sobre a destinação dos bens que
possuia, a maioria fruto de sua herança paterna e outros legados, além de objetos de uso
pessoal, como livros. A leitura que se tem feito até agora, em geral, é a de destacar a primeira
parte, como algo que ressalta a sua vida santa. Ora, referindo-se aos testamentos, Febvre diz
que "não há um só exemplo em toda a cristandade que não principie com uma invocação e um
sinal da cruz” (Febvre, 1971, p. 43). Por que olhar uma situação tão humana e comum no
contexto da época como algo extraordinário, fruto da santidade?
A partir de 1682, Jean-Baptiste de La Salle e os primeiros mestres-escola
passaram a morar juntos, iniciando um processo de vida em comum, formalizando o ato de
associação em 1694. Ora, segundo Goubert e Roche (1991), na segunda metade do século
XVII, portanto neste período, à diferença do meio rural, com características próprias e
diferentes, nas cidades cada pessoa pertencia a um "corpo". E cada "corpo" era dotado de um
estatuto jurídico aprovado pelas autoridades. Cada "corpo" se revestia de um caráter religioso,
simbolizado freqüentemente pela consagração a um padroeiro e por cerimônias celebradas em
comum, com ritos de admissão, hierarquias e chefes. Cada corpo possuia um espírito próprio
e toda uma simbologia que o identificava. Por que pensar, então, a Sociedade das Escolas
Cristãs como uma entidade que sobrepairava acima deste costume, guindando-a a uma
categoria que ainda nem existia?
Em 1691 três integrantes dessa comunidade, Jean-Baptiste de La Salle, Nicolas
Vuyart e Gabriel Drolin, assinaram um compromisso de associação, através do qual se
dispunham a tudo fazer, de comum acordo, para o estabelecimento da Sociedade das Escolas
Cristãs, “da maneira que nos pareça ser agradável a Deus e mais vantajosa para dita
Sociedade, desde agora e para sempre, até o último que permanecer vivo ou até a consumação
do projeto”. O fato é conhecido no interior da atual sociedade como “voto heróico”13 de JeanBaptiste de La Salle. Ora, nada no texto, indica que essa “heroicidade” seja exclusiva dele,
pois o compromisso é mútuo e idêntico para os três. Além do mais, todas as decisões
necessárias para alcançar o objetivo comum proposto passariam a ser tomadas de “comum
acordo”, nada evidenciando que qualquer deles fosse superior aos outros dois.
Três anos depois, em 6 de junho de 1694, o principal objetivo está alcançado.
Doze Irmãos e Jean-Baptiste de La Salle criaram a Sociedade das Escolas Cristãs, através de
um contrato firmado por cada um, pelo qual se associaram com os outros do grupo, cujos
nomes são citados integramente. Esse contrato implica a união e a permanência na Sociedade
13
Expressão que se deve a Hermans.
7
para “manter juntos e por associação” as escolas gratuitas. Para que essa finalidade seja
buscada com constância, fazem votos de estabilidade e obediência, juntamente com o voto de
associação. Esse compromisso é assumido para toda a vida.14
No dia seguinte a este fato, através de uma ata, os sócios dessa nova instituição,
após eleger a Jean-Baptiste de La Salle, em dois escrutínios, como Superior, declaram
constituir uma sociedade de leigos, que só admitirá sócios leigos, que só terá como superior a
um leigo, Jean-Baptiste sendo a primeira e única exceção.15 Este fato evidencia um
protagonismo mais coletivo do que individual do recém eleito Superior.
RESISTÊNCIAS
A história social, segundo Chartier, aceitou durante muito tempo uma definição
redutora do social, confundida com a hierarquia das riquezas e das condições, esquecendo
outras diferenças que, baseadas em outros tipos de pertença (inclusive as religiosas), são
também plenamente sociais e suscetíveis de mostrar a pluralidade das práticas melhor do que
a oposição dominantes e dominados (Chartier, 1987, p.10). Em outras palavras, o
acontecimento social que foi a criação da Sociedade das Escolas Cristãs pode ser estudado
sob um ângulo distinto, enfocando as plurais contribuições advindas dos seus membros
(todos, não apenas Jean-Baptiste de La Salle) seja em forma positiva, seja até na forma de
resistências a serem enfrentadas e assimiladas ou rejeitadas. Pois resistências as houve. É o
que se pode postular, seguindo o mesmo autor.16 Essas resistências, essas insubmissões, essas
diferenças, essas rupturas se manifestam entre o proposto pela doutrina da Igreja e por JeanBaptiste de La Salle em seus escritos, e o que os Irmãos compreendiam, assimilavam e
viviam.
14
Os textos dessas duas fórmulas, com cópias guardadas nos arquivos da sede da Sociedade em Roma,
encontram-se em várias publicações, por exemplo, nas Oeuvres complètes, 1993.
15
Nous soussignez, frère Nicolas Vuyart, Gabriel Drolin, Jean Partois, Gabriel Charles Rasigade, Jean Henry,
Jacques Compain, Jean Jacquot, Jean Louis de Marcheville, Michel Barthélemy Jacquinot, Edme Leguillon,
Gilles Pierre et Claude Roussel, aprés nous être associé avec M. Jean Baptiste de La Salle, prestre, pour tenir
ensemble et par association les ecoles gratuites par les voeux que nous avon faits le jour d’hyer, reconnoissons
qu’en consequence de nos voeux et de l’association que nous avons contractée par eux, nous avons choisi pour
superieur M. Jean Baptiste de La Salle, auquel nous promettons d’obeir avec une entière soumission en vertu de
notre voeu, aussi bien qu’à ceux qui nous seront donnez par luy pour superieurs. Nous déclarons aussi que nous
pretendons que la presente election que nous avons faite dudit sieur Delasalle pour superieur n’aura dans la suitte
aucune consequence notre intention etant qu’après luy a l’avenir et pour toujours, il n’y aye aucun ny reçu parmi
nous, ni choisi pour superieur qui soit pretre ou qui ait receu les ordres sacrez, et que nous n’aurons même h’y
n’admettrons aucun superieur qui ne soit associé et qui n’aye fati voeu comme nous, et comme tous les autres
qui nous seront associez dans la suite fait à Vaugirard, le septième juin de l’année mil six cent quatre vint et
quatorze. (Hermans, 1960).
16
As normas e as disciplinas, os textos e as palavras, graças às quais a cultura da contra-reforma e do
absolutismo real entendia submeter o povo, não significa que estes tenham realmente sido submetidos, total e
universalmente. Pelo contrário, é preciso postular que um corte existiu entre a norma e o vivido, a injunção e a
prática, o sentido visado e o sentido produzido (Chartier, 1987, p. 15).
8
Eles, os primeiros Irmãos, ali estiveram. Eles viveram, passo a passo, com
intensidades diferentes, participando das decisões necessárias, sofrendo os percalços do dia-adia, suportando a rotina e as diferenças, tanto em sua vida em comunidade quanto em sua
atividade profissional na escola, no seu "emprego", para utilizar uma expressão comum nos
textos da Sociedade. Se a dominação permeia o conjunto da vida social, dominação que para
eles estava fundamentada no compromisso (voto) de obediência, a resistência está igualmente
presente, não apenas de forma organizada, mas também sob formas "surdas", "implícitas"
(Araujo Vieira, 1991).
Uma das características desse período pode-se dizer que é a consolidação e
começos de decadência do que alguns autores chamam o “honnête homme”, o homem
honesto. Esse modelo, adotado pela corte, pelas elites, pela Igreja, pelos cidadãos ricos, pelos
cidadãos letrados, é assumido como o único admissível, sendo imposto ao conjunto da
sociedade, através de um amplo processo de aculturação popular, com todos os meios
disponíveis, ali incluída a escola. Isso implicava um trabalho para impor costumes, eliminar a
ignorância, as superstições, os abusos, as diferenças com relação às normas propostas.17
As escolas da Sociedade das Escolas Cristãs contribuíram para esse projeto. Um
dos meios foi a utilização do livro Regras de Cortesia e Civilidade Cristãs18, utilizado como
texto de leitura para os alunos no penúltimo nível de leitura, porém muito difundido e vendido
fora do âmbito escolar, além de ter sido escrito não apenas para o mundo dos artesãos e dos
pobres para os quais fora criada a escola (Gallego, 1986b).
Em seu estudo crítico sobre esta obra, diz Albert-Valentim (1956):
“não nos parece audacioso nem pretencioso considerar o livro do Senhor de La Salle
como um esforço corajoso por manter e retomar este tipo de humanidade, ameaçada
de desaparecer, entendendo que as duas palavras cortesia e civilidade possam fundirse numa única: honestidade”.
Para Chartier (1987), este livro foi um dos agentes mais eficazes para a
implantação de modelos do comportamento das elites nos grupos sociais inferiores da
17
Segundo Muchembled, esse movimento de repressão não é resultado de um plano maduramente elaborado e
colocado em prática de maneira sistemática. Exigiu sim, um trabalho para impor costumes, eliminar a
ignorância, a superstição, os abusos as diferenças com relação às normas propostas. Ao descrever esse período,
Hazard afirma que, sucedendo ao modelo do homem de corte italiano, a imagem do homem honesto ainda
brilhava, com muitas pessoas admirando-a e propondo-a como modelo aos jovens com suas características
peculiares: amor pelas boas companhias, gosto pelas obras do espírito,... (Hazard, 1964). Ou, na conceituação de
Cabourdin e Viard (1981, p. 162), o “homem honesto busca o reconhecimento das pessoas honestas, deve ser
mestre de si mesmo, tem uma vida tranqüila e sábia, manifesta prudência, é galante e elegante no vestir e falar,
cultiva a amizade, busca o contato com pessoas de bom gosto e de espírito. Sobre este mesmo período há os
estudos de Áries (1960) falando do surgimento da noção de infância, Snyders (1965) insistindo no papel da
escola como espaço onde as crianças estão afastadas do mal do mundo, Foucault (1997) mostrando o processo de
disciplinação dos corpos.
18
Autoria de Jean-Baptiste de La Salle. Primeira edição de 1703. Há dois estudos críticos sobre esse livro:
Albert-Valentim, 1956 e Jean Pungier, 1996,1997.
9
sociedade. Áries afirma a influência considerável do mesmo nos costumes do povo e Garnot
(1990) registra sua popularização através da “Biblioteca Azul”.
Poder-se-ia relacionar algumas das orientações das Regras de Cortesia e
Civilidade Cristãs e no Guia das Escolas19 com aspectos apontados nas cartas escritas por
Jean-Baptiste de La Salle aos membros da Sociedade20, utilizando categorias como o corpo, o
falar e o silêncio, o comer e as comidas, o rir-se, o vestir-se, as visitas, a correspondência.
Neste trabalho, faço essa relação com o falar e o silêncio.
As Regras de Cortesia tem um capítulo inteiro sobre a conversação, orientando
quanto: às condições impostas às palavras segundo a ótica da doutrina cristã; como falar das
pessoas e das coisas; as diferentes maneiras de falar; como interrogar, informar-se, responder
e dar seu parecer; como debater, interromper e repreender; as felicitações e as más maneiras
de falar. É o que se espera de um “homem honesto”.
Ora, nas escolas da Sociedade das Escolas Cristãs, o silêncio é rei, pois é “um dos
principais meios de estabelecer e manter a ordem; por esta razão, o mestre fará observar
exatamente o silêncio em sua classe, não permitindo que ninguém fale sem sua permissão”
(Guia das Escolas 11,3,1).
A atitude do mestre é fundamental neste caso. Suas grandes virtudes serão a
gravidade, o exterior modesto, o semblante sério (não deve rir-se nem provocar o riso nos
alunos), falando sempre de maneira a inspirar respeito, sem familiaridade, atento sempre a
tudo o que se passa na sala. Não permitirá que o aluno fale nem se aproxime durante sua
atividade (Guia das Escolas 18,7,3). O falar é substituído por uma linguagem de sinais,
previstos para garantir a eficiência do mestre em seu trabalho.
Ora, pelas cartas se pode concluir que, para muitos dos Irmãos, pessoas do povo,
lhes agradava conversar e era difícil não fazê-lo.
A um diretor (Hubert), ao mesmo tempo em que o elogia por escutar aos
subalternos, o repreende pelos longos entretenimentos durante os quais se fala de
“quantidades de coisas exteriores e inúteis, com graves conseqüências” (LA 37,8).
Desse mesmo diretor quer saber quem e por que freqüentou uma das cerimônias
populares da procissão do corpo de Deus, proibindo essa participação; e recorda a proibição
de que os Irmãos falem na escola (LA 34,19). Chamam a atenção algumas expressões que, de
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Obra que condensa a prática didático-pedagógica das escolas da Sociedade. Primeiro manuscrito conservado
com data de 1706. Primeira edição de 1720. Há um estudo crítico de Fr. Anselme, de 1961.
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Pelos menos a partir de 1701 Jean-Baptiste de La Salle introduziu a prática da prestação de contas de cada
Irmão através de cartas, às quais ele respondia. São conhecidas 133 dessas respostas, algumas autógrafas (LA),
outras copiadas, um terceiro grupo transcritas nas biografias. Felix-Paul, 1954, fez um estudo crítico excelente
sobre as mesmas. As citações deste trabalho são extraídas das Oeuvres Complètes de La Salle.
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acordo com as Regras de Cortesia, não devem ser empregadas como “eu quero, eu não quero,
é necessário” (LA 33,3). Insiste em que não se fale tanto com os demais deixando de
participar dos tempos de oração da comunidade (LA 37,7). E que fala de maneira pouco sábia
e submissa, o que não atrai as bênçãos de Deus (LA 35,4), impondo-lhe, de certa maneira,
uma lei de silêncio, pois não deve falar ao dirigir-se ao local de recreio, nas escadas, ao
caminhar pela casa (LA 37,9).
A outro diz claramente que fala demais (LA 54,6), que fala em voz muito alta e
sem sabedoria (LA 58,2), ou que fala de longe ou da janela (LA 56,6). E que não deve falar
aos alunos por curiosidade (LA 54,4) e que não pode falar com os outros Irmãos quando os
encontra nas ruas (LA 55,7).
CONCLUSÃO.
As conclusões possíveis certamente não são definitivas. Elas apontam para a
possibilidade de novas leituras a respeito das origens da Sociedade das Escolas Cristãs,
levando em conta a mútua contribuição de Jean-Baptiste de La Salle e os primeiros Irmãos
que a ele se associaram, todos a partir das suas diferentes características culturais e do lugar
social que ocupavam. Essas diferenças se manifestam de maneira especial nas resistências
oferecidas para assimilar o novo estilo de vida que se foi gestando, as quais podem ser
analisadas a partir da confrontação entre o proposto e o vivido, conforme se pode deduzir
pelas cartas escritas por Jean-Baptiste de La Salle em resposta às que recebia dos Irmãos.
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a sociedade das escolas cristãs nas origens autor: marcos antonio