BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO ADELIR1
Autor: Luiz Carlos Fávero Junior – Defensor Público do Estado de São Paulo.
Se há algo que não se pode falar sobre o caso é que ele é simples. Seria,
segundo várias opiniões propaladas na internet (principalmente nas redes sociais), um
mero caso de vontade da mãe em face da vida do bebê no qual deveria prevalecer a
vida. Há algo de simplista e falacioso nessa dicotomia.
Do ponto de vista da deontologia médica, o caso envolve hermética
discussão sobre a relação entre médico e paciente, bem como investigação sobre o ponto
de intersecção entre o parecer técnico (do médico) e o alcance do termo de
consentimento informado (do paciente) num contexto em que ambas as partes (médico e
paciente) claramente buscam um mesmo fim (no caso, o nascimento saudável do bebê
preservando a vida e a dignidade da genitora). Do ponto de vista político-social, o
episódio remete à árdua e histórica luta das mulheres por autonomia, domínio sobre o
próprio corpo e concretude a suas vontades. Do ponto de vista jurídico, envolve
complexa colisão de direitos fundamentais. Isso tudo sem contar outros vários enfoques
(obstétricos, psicológicos, sociológicos, estatísticos etc.) a partir dos quais o caso
poderia ser saudável e analiticamente investigado. Nessa celeuma, dizer que o caso é
um singelo jogo “vontade x vida” ou calcar-se unicamente na obra pronta (do tipo “Mãe
e filho estão bem, oras! O que mais quer essa petulante mulher?”) acaba sendo um
reducionismo perigoso, que só colabora para propagar preconceitos e antagonismos tão
raivosos quanto superficiais.
Vou ater-me aqui apenas e tão-somente ao aspecto jurídico, com as
limitações de quem só acompanhou o caso por meio das notícias veiculadas na internet.
E ainda assim sem qualquer pretensão de esgotar o tema ou dar solução cabal ao
problema.
1
Este pequeno e despretensioso texto foi publicado originariamente em perfil do Facebook com o intuito
de compartilhar, sem formalidades e com um público bastante heterogêneo, as impressões iniciais do
autor acerca do caso da gestante de Torres/RS que foi compelida pela Justiça a se deslocar até um
Hospital e se sujeitar a uma cirurgia cesárea.
Primeiramente, embora não totalmente errada, a ideia de que dois bens
jurídicos estavam em choque (a autonomia da vontade versus a vida do bebê) é, no
mínimo, problemática. Não se pode esquecer que médica e paciente buscavam um
mesmo fim, qual seja, o nascimento seguro do bebê sem se descurar da vida e da
dignidade da mãe. Em outras palavras, a genitora não buscava preservar sua vontade a
qualquer custo, contrapondo-a à vida do filho. Ela simplesmente tinha uma convicção
diversa a respeito do melhor método para atingir aquele fim. E, pelas notícias
veiculadas, ela tinha algumas boas razões para isso: estava na companhia de uma doula,
que, acompanhando os procedimentos realizados no hospital, obteve informações de
que a equipe médica fez um ultrassom, mas não demonstrou que o bebê estava
realmente “sentado”. Além disso, segundo a doula, a pressão da mãe estava boa, o bebê
estava bem e, o mais grave, negaram à gestante uma segunda opinião médica. Assim, é
possível enxergar na questão não um conflito entre a vontade da mãe e a vida do filho,
mas sim um conflito metodológico para alcançar uma finalidade que todos desejavam.
Será que a opção médica anula por completo a opção da gestante?
De qualquer modo, quem opta por esse tipo de abordagem jurídica
(colisão/ponderação de direitos fundamentais – autonomia da vontade da mãe versus
vida da criança) está automaticamente trazendo para o debate a bastante difundida
“regra da proporcionalidade”, de maneira que deverá – para completude de raciocínio e
por honestidade intelectual – submeter o episódio ao crivo dos 03 (três) “subprincípios”
(subdivisões) dessa regra (ou critério, ou postulado): (1) Adequação (que, em breves
pinceladas,
estabelece
a
obrigatoriedade
da
medida
adotada
ser
hábil
a
fomentar/promover o fim que se almeja); (2) Necessidade (que pode ser entendida como
a obrigatoriedade da medida ser a mais branda possível, de forma que um ato estatal que
limita um direito fundamental somente será “necessário” caso a realização do objetivo
perseguido não possa ser promovida por meio de outro ato que limite, em menor
medida, o direito fundamental atingido); e (3) Proporcionalidade em sentido estrito (que
consiste, usando os exatos termos de Virgílio Afonso da Silva2, em “um sopesamento
entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da
realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da
medida restritiva”).
2
“O proporcional e o razoável” - http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/1495/1179 acesso em 04/04/2014.
Não parece haver grandes dificuldades para admitir que o ato estatal que
obrigou a gestante a realizar a cesariana era “adequado” ao fim de promover a vida da
gestante e do seu filho. Ok, tudo bem: a intervenção estatal no caso passa pelo primeiro
“filtro” da proporcionalidade (até porque, como sagazes “engenheiros de obra pronta”,
agora podemos dizer: o bebê nasceu e a mãe não morreu).
Já quanto ao segundo filtro (a necessidade), a análise requer
aprofundamento no caso concreto e uma investigação sobre as vantagens e
desvantagens da intervenção cirúrgica (a cesariana) e do parto normal. Aqui a discussão
toma rumos preocupantes. Afinal, o ato estatal que determinou a realização da cesariana
somente passaria pelo crivo da “necessidade” se o nascimento da criança não pudesse
ser fomentado com igual intensidade por nenhum outro método que não a cesariana.
Ocorre que ambos os métodos (cesariana e parto normal) são capazes de atingir o fim de
dar à luz um bebê. Nesse sentido, será que a decisão estatal interventora considerou as
pesquisas que demonstram índices de mortalidade e de morbidade grave muito maiores
na cesariana do que no parto normal? Será que a decisão considerou o exame de
ultrassom mencionado pela doula? Será que o bebê estava realmente “em pé no útero”,
como afirmou a Juíza na decisão? Será que se realmente estivesse “sentado” ou “em pé”
o parto normal estaria empiricamente inviabilizado? Será que o fato da genitora ter
histórico de cesarianas inviabilizaria mesmo o sucesso do parto normal? Será que o
promotor instruiu o pedido com o exame de ecografia da gestante para justificar seu
argumento (já desmentido pelo exame que foi disponibilizado na internet) de que já
havia 42 semanas de gestação? Ou será, na suma das sumas, que a decisão judicial
somente se pautou num relatório médico que reproduz acriticamente uma lógica
mercadológica perversa que faz do Brasil um dos campeões mundiais em cesarianas?
Não tenho solução pronta para todas essas perguntas, mas, sem respostas
favoráveis e satisfatórias a todas elas, parece-me dificílimo admitir que a decisão
judicial foi “necessária” – no sentido extraído da “regra da proporcionalidade”. E se não
foi “necessária”, não foi proporcional (no sentido da referida regra). Se não foi
proporcional, violou direitos fundamentais da genitora. Se violou direitos fundamentais,
merece atenção especial da sociedade e dos órgãos estatais responsáveis pela tutela
desses direitos.
Por fim, para completar o raciocínio, ainda que se admita que a
intervenção foi adequada e necessária (o que se admite aqui apenas em tese), restaria a
análise do terceiro “filtro” (a proporcionalidade em sentido estrito). E nesse ponto
entrariam em cena o princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF), da liberdade (art. 5º, I,
da CF) e da intimidade (art. 5º, X, da CF), além da vedação à ingerência estatal no
planejamento familiar (art. 227, § 7º, da CF) e da própria dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III, da CF), para legitimar o profundo inconformismo da genitora com a
intervenção estatal.
Como dito no início, não se pretende oferecer aqui uma resposta única ao
tema. Nem é este o único prisma jurídico possível. Mas que fique claro: por dever de
coerência, não dá para falar em colisão de direitos fundamentais nesse caso sem
enfrentar analítica e racionalmente os pontos acima levantados. Esse caso demonstra
que ainda há muito a se discutir sobre o tema da violência obstétrica no Brasil.
Simplificar casos como esses, santificando a opinião médica unilateral, sem submetê-la
ao saudável contraponto, certamente não ajudará a evoluirmos no assunto. Lamento
profundamente que ainda estejamos neste estado da matéria.
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Autor: Luiz Carlos Fávero Junior – Defensor Público do