A Primitiva Colonização da Madeira Deve fixar-se o início da colonização madeirense nos primeiros anos do segundo quartel do século XV. (1) 0 Os capitães donatários, apesar de se acharem investidos dos mais amplos poderes de administração, teriam que cingir-se, quanto à distribuição das terras virgens, às instruções emanadas do infante D. Henrique, crendo-se que o sistema das sesmarias, já então regulado no continente português por leis especiais , se houvesse aplicado à Madeira, embora sofresse (2) as indispensáveis modificações que as circunstancias de momento pudessem aconselhar e de harmonia com as clausulas exaradas nessas mesmas instruções. . (3) A amenidade do clima e a notável ferocidade do solo eram um poderoso incentivo para o amanho e cultivo das glebas, mas o inverosímil acidentado dos terrenos, de par com o basto revestimento florestal e ainda outras inevitáveis condições do meio, tornavam sobremaneira difícil uma larga exploração agrícola, _________________ (1) Na obra Alguns Documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo..., publicados por ocasião da celebração do quarto centenário do descobrimento da América, vera transcrito o trecho duma carta de doação, feita pelo infante D. Henrique à Ordem de Cristo e com a data de 18 de Setembro de 1460, concebido nos seguintes termos: «...comecei a povoar a minha ilha da Madeira averá ora trinta e cinco anos, e isso mesmo a do Porto Santo, e deshi, proseguindo, a Deserta, das quais ilhas que assim edifiquei e novamente achei...». Este trecho dá aproximadamente o ano de 1425 como o do começo do primitivo povoamento da Madeira. (2) Vid. Gama Barros: História da Administração Pública em Portugal, vol. III, pag. 699 e seg. (3) As instruções, anteriormente concedidas, tiveram sua plena confirmação nas cartas dos anos de 1440, 1446 e 1450, em que o Infante D. Henrique faz aos donatários Tristão, Perestrelo e Zargo doação das capitanias de Machico, Porto Santo e Funchal, lendo-se na última delas (e o mesmo mutatis mutandis se leem nas outras) estas palavras: « - E me praz que ele possa dar per suas Cartas a terra desta parte per ho forall da ylha a quem lhe prouver com tall condiçom que aquelle a quem der a dita terra aproveyte atee cinco anos e nom aproveytando que Eu a possa dar a outre e depois que aproveytada for a leyxar por aproveytar atee outros cinco anos que por yso mesmo a possa dar - ». (Saud. da Terra pg. 454 e seg). Estas disposições foram posteriormente modificadas, concedendo-se mais amplas regalias aos cultivadores das terras, como o direito à propriedade das bemfeitorias, a faculdade de poderem aforar e até vender as mesmas terras, observadas certas clausulas, que não eram tídas por onerosas ou vexatórias. Numa carta de sesmaría, de 1503, que concede umas terras em Santana, a Urbano Lomelino, lê-se «...has possam bender dar doar arrendar aforar por quanto nos lhas damos para elles e todos seus herdeyros acedentes e decedêtes... ». para um tão limitado número de colonos e povoadores. (4) Essa deficiência foi suprida pelo escravo africano, que durante séculos regou com o seu suor o torrão madeirense, e cruzando-se com os sesmeiros continentais, tão profundamente abastardou a pureza nativa da raça. Iam surgindo os primeiros núcleos de população e -formando-se as chamadas «fazendas povoadas», que, prosperando e desenvolvendo-se, se constituíam em povoações importantes. O principal centro destes nascentes povoados era uma pequena e modesta ermida e em torno dela se adensava a população, que em breve se transformava em uma freguesia populosa, com a sua regular constituição da família e da sociedade. (5) Por meados do século XV, já existiam na Madeira algumas paróquias, que gozavam a independência duma completa autonomia civil e religiosa, e que, multiplicandose, determinaram sem demora a criação de vários municípios. ______________ (4) Era, na verdade, muito reduzido o número dos primitivos colonizadores, se tivermos de compara-lo com as dificuldades que assoberbavam os trabalhos do incipiente povoamento. As antigas crónicas poucos nomes fixaram desses primeiros pioneiros da colonização madeirense. Nada se sabe com respeito aos mais activos e qualificados companheiros de Bartolomeu Perestrelo e Tristão Vaz, os primeiros donatários do Porto Santo e de Machico, mas conhecem-se os nomes de Gonçalo Aires Ferreira, João Afonso Correia, Francisco de Carvalhal, João Lourenço, António Gago, Rui Pais e Álvaro Afonso, como dedicados auxiliares de João Gonçalves Zargo, primeiro capitão donatário do Funchal, sendo alguns deles troncos das mais antigas e distintas famílias do arquipélago. (5) Como ampliação do assunto esboçado na nota (3), convém acrescentar que una dos factores, que mais contribuíram para o referido desenvolvimento da colonização madeirense, foi o das concessões territoriais feitas pelo sistema da sesmarias, atraindo um número considerável de colonizadores, que activamente se dedicaram á cultivação das terras, que lhes eram confiadas. Estabeleceram estes muitas «fazendas povoadas», em que residiam com as suas famílias, com os seus colonos e escravos, superintendendo directamente nos trabalhos da lavoura e arroteamento dos campos incultos. A breve trecho se tornaram senhores das terras e ao regímen das sesmarias sucedeu o da vinculação da -propriedade, deixando o exercício da industria agrícola aos escravos e colonos menos favorecidos da sorte e nascendo então o chamado sistema ou contrato de colona que ainda perdura. E, como diz o ilustre anotador das Saudades da Terra (ed. de 1873), «o sesmeiro rico enfastiou-se da vida campesina, ufanou-se da sua originária fidalguia e apeteceu vivenda de mais aparato e bulício, desprezou a terra, vinculou-a e veio assentar residência luxuosa e desperdiçada nas povoações populosas. As instituições vinculares multiplicaram-se extraordinariamente, chegando elas a abranger cerca de duas terças partes das terras aráveis da Madeira. É certo que bastantes colonos se encontravam numa situação deplorável, mas o maior número deles vivia numa regular mediania, tendo uma parte considerável dos «caseiros» e «meeiros, com a abolição dos vínculos e com a divisão fragmentária das grandes propriedades rústicas, passado a ser os proprietários e senhorios das terras que cultivavam. II Lugar, Freguesia e Vila da Ponta do Sol Ao iniciarem-se os trabalhos da colonização desta ilha, foi o lugar da Ponta do Sol um dos primeiros em que a monda dos arvoredos e o arroteamento das lombas e vertentes se não fizeram esperar muito. Entre os antigos povoadores conhecidos, sobressai o nome de Rodrigo Anes o Côxo, geralmente considerado como o «fundador deste lugar. Diz o distinto comentador da História Insulana que descendia da família nobre dos Furtados e que ao chegar à Madeira «procurou aquele lugar despovoado» e o fez cultivar sem demora. Levantou ali a igreja de Nossa Senhora da Luz, onde jaz sepultado, junto do altar da padroeira, como dispôs em seu testamento, aprovado em Abril de 1468, mandando que na lápide sepulcral se inscrevesse que fôra ele o primeiro que dera princípio aquela povoação. Cresceu rapidamente em importância e no número dos seus habitantes, o que determinou a elevação deste lugar à categoria de paróquia, criada no alvorecer segunda metade do século XV. (6) Entre os antigos povoadores destacam-se os nomes de várias pessoas nobres, nacionais e estrangeiras, tendo ____________ (6) Rodrigo Anes fundou uma pequena capela, dedicada a Nossa Senhora da Luz, nos princípios do terceiro quartel do século XV. Passou ela por várias transformações e foi inteiramente reedificada nos primeiros anos do século XVIII. O aumento rápido da população determinou a criação dum curato no ano de 1589 e pouco depois a da Colegiada, servida por cinco eclesiásticos. Houve muitas capelas nesta freguesia, sobressaindo a todas a da Lombada, de que no texto se dará mais ampla noticia. Tem um porto de bastante movimento, especialmente de passageiros, por entestar com a sede da Comarca e servir de trânsito para algumas freguesias circunvizinhas, sendo dotado com um aparatoso cais, mandado construir pela Câmara Municipal no ano de 1848. Esta paróquia foi visitada pelo Infante D. Luís, depois rei de Portugal, no mês de Outubro de 1858. São distintos filhos desta freguesia o padre Leão Henriques (1589), o dr. António da Luz Pita (1802-1870), o dr. João Augusto Teixeira (1845-1907) e o dr. Nuno Silvestre Teixeira (1847-1928), cujos dados biográficos se encontram no 2.º vol. do Elucidário Madeirense, da nossa co-autoria. O Censo da População de 1920 da a esta paróquia o numero de 6.660 habitantes. algumas delas ou os seus mais próximos descendentes estabelecido importantes casas vinculadas, como sejam Rodrigo Alies o Côxo, o fundador» da primitiva povoação, Rui Gonçalves da Câmara e João Esmeraldo, os primeiros possuidores da Lombada, D. João Henriques, que viveu no sítio chamado Pomar de D. João, Pedro Delgado com terras de sesmaria no Lombo das Adegas, Rodrigo Anes Coelho, no Lombo de D. João, António Leme, que deu o nome ao sítio dos Lemes, Diogo Ferreira de Mesquita, com vinculação em terras do Livramento, e muitos outros, uns ainda conhecidos e um número ainda maior de que já se não conserva memória. A sempre crescente prosperidade industrial e agrícola desta freguesia, especialmente apreciada pela produção do açúcar, trouxe-lhe também uma correlativa importância social e politica, levando o governo da metrópole à criação dum município, o primeiro estabelecido neste arquipélago, além dos das sedes das três capitanias. Lemos algures que a Ponta do Sol «fôra sempre mais fértil em enxada do que em lanças». A Carta Régia de 2 de Dezembro de 1501 elevou o lugar da Ponta do Sol á categoria de vila, desmembrando-o do município do Funchal, com os foros e privilégios inerentes aos concelhos, e estendendo a área da sua jurisdição desde a ribeira que atravessa a paróquia até aos terrenos que hoje constituem a freguesia das Achadas da Cruz. No ano imediato foi, porém, o novo município largamento cerceado na sua superfície e reduzido a bem mesquinhas proporções, com a criação da vila da Calheta, e no ano de 1546 passou pelo vexatório desaire de ser suprimido, por haver a Câmara desacatado as ordens do poder central, dando-se dois anos mais tarde o restabelecimento do concelho. O decreto de 12 de Novembro de 1875 criou a Comarca da Ponta do Sol, com sede na vila do mesmo nome, que, das comarcas de segunda classe, é uma das mais importantes de todo o país. III - Lombada da Ponta do Sol ou dos Esmeraldos Os primitivos povoadores, ao aportarem às costas desta ilha, tendo deixado ancorados os navios da expedição, na baía que posteriormente se chamou do Funchal, empreenderam sem demora uma exploração sumaria ao longo do litoral, tomando um rápido conhecimento da terra ignorada, e assinalando e delineando desde logo os lugares mais apropriados para o estabelecimento dos futuros núcleos de população. Dessa exploração, capitaneada por João Gonçalves Zargo, deixou-nos Gaspar Frutuoso uma pitoresca e talvez hiperbólica descrição, (7) da qual vamos destacar os períodos referentes ao lugar da Ponta do Sol: « ... e chegou a uma ponta que se faz abaixo huma legoa, e entra muito no mar; e, porque na rocha que está sobre a ponta se enxerga de longe e se vê claro huma vea redonda na mesma rocha com uns rayos que parece sol, deolhe nome o capitam a Ponta do Sol; onde tambem traçou uma villa, que depois se fundou, a primeira da sua jurisdição. Aqui está a nobre e rica fazenda, que se diz a Lombada do Esmeraldo, tão celebre por nome como por fama , pelos muitos (8) assacares que nella se recolhem, que foi ano em que deo vinte mil arrobas delle : a qual Lombada o capitam tomou para seus filhos, e depois correo tais trances, que agora nenhum delles a possuhe, por se dividirem e a venderem» (9). _________________ (7) «Saudades da Terra», ed. de 1873, pág. 6 (8) Não deixa de ser curioso que Gaspar Frutuoso, para enaltecer a Lombada da Ponta do Sol pela sua exuberante fertilidade, se apropriasse da conhecida frase mais celebre por nome que par fama que Camões (Est. 5.ª, Cant. V) aplicou à Madeira, exaltando-a e consagrando-a, frase que, como é sabido, tem dado motivo a muitos controvertidos juízos, em que Manuel Correia (1613), Faria e Sousa (1619), Garcez Ferreira (1731), José Agostinho de Macedo (1820), Dr. José Maria Rodrigues (190.5), Epifânio da Silva Dias (1908), Alfredo Pimenta (1931) e ainda outros a comentaram e interpretaram segundo o sabor das suas opiniões ... (9) Saud. pág. 68. Em outro lugar da mesma obra, refere-se o historiador das Ilhas à Lombada dos Esmeraldos nos seguintes termos, que merecem sêr aqui arquivados:- ... está a Lombada de João Esmeraldo, de nação genoez, a qual chega do mar à serra, de muitas canas de assacar, e tão grossa fazenda que já aconteceo fazer João Esmeraldo vinte mil arrobas de sua lavra cada anno; e tinha como outenta almas suas captivas, entre mouros, mulatos e mulatas, negros e negras, e canarios. Foi esta a mayor casa da ilha, e tem grandes casarias de aposento, engenho, e casas de purgar, e igreja. E depois do falecimento de João Esmeraldo, ficou tudo a seu filho Cristovão Esmeraldo, que o mais do tempo andava na cidade do Funchal sobre uma mulla muito formosa, com outo homens detraz de si, quatro de capa e quatro mancebos em corpo, filhos de homens honrados muito bem tratados: e trazia grande contenda com o capitam do Funchal sobre quem seria Provedor d'Alfandega d'El-Rey, que he uma rica cousa de renda de Sua Alteza, e ricas casarias.» (10) Por esta, embora exagerada narrativa, se vê que João Gonçalves Zargo, numa primeira visita de rápida exploração ou em subsequentes visitas, como é mais provável que tivesse sucedido, descobriu na Lombada da Ponta do Sol, mais tarde chamada dos Esmeraldos, os indispensáveis requisitos para ser transformada em uma vasta e rica herdade, reservando-a inteiramente para seus filhos, que sem duvida a converteriam num dos centros de maior actividade industrial e comercial, que então existiam em toda a ilha. É de presumir-se que as condições orográficas e hidrográficas daquela Lombada, a sua grande extensão, a fera cidade do seu solo e a benignidade do clima, tivessem ferido a atenção dos antigos exploradores, sendo então concedida a preferência ao chefe da primeira colonização madeirense. _______________ (10) Saud. pág. 95. Estendia-se da orla do oceano até o elevado planalto do Paul da Serra; tendo portos de desembarque, lombas e encostas abrigadas dos ventos, serras de matagais e florestas, águas cristalinas e abundantes, que lhe davam os foros duma propriedade privilegiada e certamente apetecida por um grande número de povoadores. Compreendia então o sítio que hoje propriamente se chama a Lombada dos Esmeraldos, o sítio do Jangão e o sítio do Lugar de Baixo, em que ao presente vivem cerca de quatro mil e duzentos habitantes, em casais dispersos e distanciados uns dos outros, cuja vasta área correspondia aproximadamente ás duas terças partes da actual freguesia da Ponta do Sol, estendendo-se «do mar à serra», no dizer de vários documentos antigos. Pelo lado oriental tinha coma limite a Ribeira da Caixa, na partilha da freguesia da Tabúa, e pelo lado ocidental a Ribeira da Ponta do Sol, confinando, ao norte, como já fica dito, com os acidentados montes que entestam com a planície do Paul da Serra e ao sul, com as águas do Oceano Atlântico. Toda a Lombada coube em doação a Rui Gonçalves da Câmara, segundo filho varão do capitão donatário do Funchal João Gonçalves Zargo, ficando ao primogénito João Gonçalves da Câmara a sucessão na donatária com todos os privilégios que lhe andavam anexos. Embora nos escasseiem elementos seguros para o afirmar, parece indubitável que Rui Gonçalves não se dedicou com grande entusiasmo ao cultivo das suas terras, das quais fez venda ou antes aforamento ao fidalgo flamengo João Esmerado, como abaixo mais largamente se dirá. Foi este que procedeu ali a uma larga exploração agrícola, atraindo um número considerável de colonos e cultivadores, fundou as capelas de Santo Amaro e do Santo Espírito, instituiu os dois importantes morgadios do Santo Espírito e do Vale da Bica e fez construir a primeira casa solarenga da Lombada. Não repugna acreditar que o grande navegador Cristovão Colombo, amigo devotado de João Esmeraldo e de quem foi hospede na então vila do Funchal, houvesse honrado este lugar com a sua presença, embora não tivesse ainda adquirido o nome ilustre que o havia de imortalizar. Aproximadamente por essa época, ter-se-ia dado o celebrado rapto de D. Isabel de Abreu, que teve seu epílogo nesta Lombada, nas casas de João Esmeraldo, cunhado da protagonista dessa façanha. Estes terrenos permaneceram intactos, em regímen de vinculação, na posse e usufruto dos sucessivos administradores dos dois morgadios, sendo seus últimos senhorios directos o segundo Conde do Carvalhal, com a Lombada dos Esmeraldos e o Lugar de Baixo, e o conselheiro Aires de Ornelas, com o sítio do Jangão. Os primeiros foram vendidos em hasta pública, no ano de 1893, à firma comercial do Funchal A. Giorgi & C.ª, e os segundos cedidos em 1920, por venda amigável, aos respectivos caseiros e meeiros. Em 1923 surgiu uma proposta de compra das terras da Lombada e do Lugar de Baixo, destinada à revenda das glebas aos colonos e rendeiros delas. Essa revenda, simulada ou fictícia, foi-se realizando pelo pretenso comprador, vendose os proprietários, que eram súbditos estrangeiros, compelidos a recorrer ao governo da sua ilação, para haver o valor ou a entrega das suas propriedades. 0 governo português, depois dum prudente e consciencioso estudo do assunto, resolveu expropriar àqueles terrenos e indemnizar os seus senhorios dos graves prejuízos que lhes tinham sido injustamente causados. Conserva-se o estado na disposição de ceder essas terras, por venda e em condições favoráveis, aos antigos cultivadores, aguardando-se apenas o preenchimento de certas formalidades, para a celebração dos respectivos contratos. Por ocasião dessa expropriação, o governo português cedeu gratuitamente à junta Geral do Distrito e à Câmara Municipal da Ponta do Sol alguns tratos de terrenos, destinados à construção de estradas, e à Diocese do Funchal, na pessoa do respectivo prelado, a capela do Santo Espírito para ser aplicada ao exercício do culto, como sempre o fora em todos os tempos, ficando reservado ao Ministério das Colónias e para uso das nossas missões ultramarinas as diversas dependências que constituíam o antigo solar dos morgados Esmeraldos. Dos diversos pontos, sumariamente expostos neste capítulo, nos ocuparemos, com o devido desenvolvimento, em capítulos subsequentes. IV - Rui Gonçalves da Câmara Não são concordes as opiniões dos linhagistas com respeito ao lugar do nascimento de Rui Gonçalves da Câmara, dando-o alguns como natural do continente português e afirmando outros que foi o primeiro filho de João Gonçalves Zargo nascido na Madeira . Não andará muito distanciado da (11) verdade quem fixar, nos fins do primeiro quartel do século XV ou nos princípios do quartel seguinte a data aproximada do seu nascimento. Nas nossas lutas, com os mouros, no norte de África, tomou parte em vários recontros com seu irmão João Gonçalves da Câmara, segundo donatário do Funchal, e encontrou-se nos cercos de Arzila e Tanger, distinguindo-se sempre corno valente e esforçado cavaleiro . A sua vida agitada de soldado ou quaisquer outras circunstancias (12) para nós desconhecidas não o deixaram entregar-se fanhosamente à cultura da extensa Lombada, cujas terras virgens, de relevo muito acidentado e quase totalmente cobertas de basto e fechado arvoredo, exigiam um prolongado e gigantesco esforços que mal se compadecia com os minguados recursos de que poderia dispor-se nos primeiros anos da colonização madeirense. __________ (11) o primeiro capitão donatário do Funchal João Gonçalves Zargo, ao iniciar o povoamento da sua capitania, vinha casado com Dona Constança Rodrigues de Sá ou de Almeida, trazendo os filhos mais velhos João Gonçalves da Câmara, sucessor no governo da donatária, Helena Gonçalves da Câmara e provavelmente Rui Gonçalves da Câmara, que alguns nobiliários também dão como nascido na Madeira. (12) Vid. «A Madeira e as Praças de Africa», 1933, pelo tenente-coronel Alberto Artur Sarmento. Pouco se sabe acerca da primitiva exploração agrícola empreendida por Rui Gonçalves da Câmara, que era, por certo, homem de mais largas aspirações, cabendo sem duvida ao seu sucessor o estado de grande prosperidade, que rapidamente atingiu a Lombada da Ponta do Sol. O segundo capitão donatário da ilha de São Miguel João Soares de Albergaria, sobrinho de Gonçalo Velho Cabral, veio à Madeira pelos anos de 1470 acompanhar sua mulher D. Beatriz Godiz, que se achava atacada de grave enfermidade e que faleceu pouco tempo depois da sua chegada ao Funchal. Informa-nos o doutor Gaspar Frutuoso que Soares de Albergaria, em virtude dos «muitos custos» que fizera e em atenção aos serviços que lhe dispensaram o capitão donatário da Madeira e seu irmão Rui Gonçalves da Câmara, resolveu vender a este a capitania de São Miguel «por seiscentos mil reis, segundo uns, e por setecentos mil reis e cem mil reis de sócos, segundo outros, tendo-se por mais certo que a compra se efectuou por dois mil cruzados em dinheiro de contado e quatro mil arrobas de assucar» (13). Esta venda foi confirmada, a 10 de Março de 1474, pela infanta D. Beatriz, como tutora e curadora de seu filho o duque D. Diogo, grão-mestre da Ordem de Cristo. Passou-se então Rui Gonçalves da Câmara, com sua mulher, filhos e outros indivíduos que o quiseram acompanhar, à ilha de São Miguel a assumir o governo da sua capitania, sendo ali donatário no período aproximado de vinte e quatro anos, vindo a falecer em Ponta Delgada em 1497 ou 1498. Deixou boas tradições na administração da sua donatária e foi tronco das casas nobres dos condes da Ribeira Grande, de Vila Franca e ainda outras. _____________ (13) Saudades da Terra, (Ponta Delgada, 1926) Livro IV, Cap. 66. Antes, porém, de abandonar a Madeira fez a João Esmeraldo o aforamento perpétuo da Lombada da Ponta do Sol, como abaixo vamos ver. De Rui Gonçalves da Câmara, traça o padre G. Frutuoso este rápido e pitoresco perfil: «Era bem apessoado, grande e grosso, discreto e solicito em fazer cultivar e povoar a terra, visitando-a pessoalmente muitas vezes, só, a cavalo, vestido com uma peliça de martas e uma touca na cabeça, como naquele tempo se costumavam ... e com um cão grande de traz de si... e algumas vezes andava em mula ... ». V - João Esmeraldo É sabido que os descobrimentos e conquistas marítimas iniciadas no alvorecer do século XV despertaram o interesse e a curiosidade da Europa inteira. Não faltaram então espíritos ambiciosos e irrequietos, que, deixando o rincão natal, se arriscassem aos azares da sorte, procurando nas longínquas terras descobertas a glória e as vantagens materiais, que a pátria não podia de modo algum dispensarlhes. Se a muitos impulsionava apenas o amor da aventura, e desejo do imprevisto e do desconhecido, o ardor pelas empresas e façanhas arriscadas, é todavia indubitável que a maior parte ia atraída pela sede das riquezas, pela conquista do veio de ouro, que mais uma vez ponha em sobressalto as ambições dum tão grande número de audaciosos aventureiros. Sendo a Madeira o mais importante empório comercial, que rios tempos primitivos da colonização se formou nos nossos domínios ultramarinos, foi também o mais apetecido ponto de atracção para os forasteiros que demandavam as novas plagas descobertas (14). Um deles foi João Esmeraldo. Não gozando os privilégios de primogenitura, que era o grande apanágio das casas nobres, lançou-se nos riscos duma suspirada fortuna a tentar numa ilha afastada, que já então mantinha relações comerciais com a Flandres, especialmente pela exportação do precioso e apreciado produto, que era o açúcar madeirense. Conjecturamos que tivesse aportado ao Funchal por meados do terceiro quartel do século XV. Decorrendo então um dos períodos mais movimentados da colonização e povoamento do arquipélago, eram bem recebidos todos os nacionais e estrangeiros que viessem colaborar na exploração das terras incultas mas ferocíssimas, arrancando pelo trabalho e pela inteligência a riqueza e a prosperidade que elas lhes ofereciam. Se a essas apreciáveis qualidades vinha juntar-se a condição de origem fidalga, tão exageradamente apreciada na época, tinham os novos colonizadores campo aberto para a satisfação das suas mais largas aspirações. Assim teria sucedido a João Esmeraldo. Da sua proveitosa e esclarecida actividade, dão-nos eloquente testemunho os importantes haveres adquiridos, dos quais conhecemos o aforamento da Lombada, a instituição dos dois morgadios, com a sua igreja e solar, a casa apalaçada da rua do Esmeraldo e a larga ___________ (14) De muitos desses estrangeiros se conservaram os nomes na história da colonização madeirense e alguns deles foram troncos de distintas famílias, sendo-lhes reconhecidos os foros de nobreza de que gozavam nos seus paises. Podemos mencionar Simão Acciaioli, João e Henrique de Betencourt, Pedro de Lemilhana Berenguer, João Drumond, António Espinola, Urbano Lomelino, António Leme, João Rodrigues Mondragão, João Salviati, João Valdavesso, João Baptista, Rafael Catanho, Adrião Espranger, André Gonçalves de França, Lucas Salvago, Fr;incisco Soares Sesmeiros e ainda outros. exploração agrícola, com muitas dezenas de colonos e escravos, dos vastos terrenos da Ponta do Sol. Dos seus títulos de nobreza são provas concludentes a concessão dos foros de fidalgo, outorgados pela Carta Régia de 13 de Agosto de 1511, e mais ainda o alvará de Brasão de Armas, mandado passar por D. Manuel a 16 de Maio de 1522, em que se faz referencia à Carta anterior e em que se reconhecem e ratificam os privilégios de nobreza de que gozavam os seus antepassados (15) Tinha no seu país de origem o nome de Jeanin Esmeraut, que depois se aportuguesou no de João Esmeraldo, cujo apelido se transmitiu aos seus numerosos descendentes, sendo tronco de algumas das mais distintas famílias desta ilha. ___________ (15) « Dom Manuel, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d' aquem e d' além mar em Africa, Senhor da Guiné e da Conquista Navegação e Comércio da Etiopia, Arábia, Pérsia e India, a quantos esta nossa carta virem, fazemos saber que João Esmeraldo, fidalgo da nossa casa e morador na nossa ilha da Madeira, nos fez informação como êle descendia da linhagem e geraçã dos Esmeraldos e dos Dallavaigne e da casa Fienes da geração dos de Nodouchel, os quais todos nas partes da Picardia, Flandres e Brabante são nobres e fidalgos da antiga linhagem, pedindo-nos, por mercê, que pela memória dos seus antepassados se não perder, gouvir e gozar da honra das armas que pelos merecimentos de seus serviços ganharam e lhe foram dadas e assim dos privilégios, honras, graças, mercês que por direito por bem delas lhe pertencem, lhe mandassemos dar nossa carta das ditas armas que estavam registadas em os livros dos registos das armas dos nobres e fidalgos dos nossos reinos que tem Portugal nosso principal Rei de Armas, a qual informação vista por nós e como nós somos certos o conteúdo nela sêr verdade por uma carta patente asselada com o sêlo do Império, pendente e assinado por os do seu Conselho e com outra carta de Armas patente assinada por Tosão de Ouro Rei de Armas, e asselada, na qual se contem como direitamente êle João Esmeraldo descende das ditas gerações e linhagens, que as suas armas lhe pertencem de direito as quais lhe mandamos dar em esta nossa carta com seu brazão, elmo e timbre, como em meio desta carta são divisadas, e assim como fiel e verdadeiramente se acharam divisadas e registadas nos livros do dito Portugal Rei de Armas, as quais armas são as seguintes: «o campo esquartelado, o primeiro de prata com uma banda preta; o segundo de azul com uma faixa de ouro carnelea ; o terceiro de prata com um leão preto e por cima dêle um filete vermelho em banda, de redor dele bilhetas pretas; o quarto de azul e uma banda fimbrada de vermelho: Elmo de prata aberto guarnecido de ouro, paquife de ouro e de azul e por timbre um leão preto, o qual escudo, armas e sinais possa trazer e traga o dito João Esmeraldo, assim como as trouxeram e delas usaram seus antepassados... queremos e nas apraz que haja êle e todos seus descendentes todas as honras, privilégios e liberdades, graças, mercês, isenções e franquezas que hão e devem ter os fidalgos nobres de antiga linhagem... Dada em a nossa e sempre lial cidade de Evora a dezaseis de Maio. El-Rei o mandou pelo bacharel António Rodrigues Portugal seu Rei de Armas Principal, Pedro de Utra escrivão da nobreza a fez. Ano de Nosso senhor Jesus Cristo de mil quinhentos vinte e dois». (Do «Nobiliário», de Henrique Henrique de Noronha, Manuscrito existente na Biblioteca Municipal do Funchal). Parece ter nascido na província da Picardia, que juntamente cora as de Artois, Hanaut, etc. conservavam então a denominação genérica de Flandres e desta circunstância provém o ser conhecido pelo Flamengo. A sua família era aliada com as nobres casas de Delavaigne, Fienes, Nedouchel e outras, possuindo o importante senhorio de Fraxelles. A Lombada da Ponta do Sol, que começou a chamar-se do Esmeraldo e depois dos Esmeraldos, era nos fins do século XV, e continuou a ser até os nossos dias, a mais vasta e rica propriedade rústica de todo o arquipélago, apesar dos cerceamentos que sofreu em diversas épocas. Rui Gonçalves da Câmara, o seu primeiro possuidor, não se alargou muito, como já ficou acentuado, na expansão cultural e fabril do seu latifúndio, porque as naturais tendências do seu espírito a isso o não compeliam ou porque dificuldades insuperáveis o impedissem de realiza-lo, ou ainda porque aspirava as mais altas honrarias, deixando â outros a activa e fecunda exploração, que essas terras estavam imperiosamente exigindo. Rui Gonçalves da Câmara aforou a João Esmeraldo toda a Lombada, propriedade ainda então intacta e compreendida entre as ribeiras da Caixa e da Ponta do Sol, alargando-se desde a orla do Oceano até as mais altas eminências da serrania. O aforamento realizou-se pela importância de 600.000 rs. e a renda vitalícia anual de 150.000 rs., o que representava uma soma muito avultada para o tempo. (16) ____________ (16) Esta renda anual e perpétua de 150.000 rs. ficou incorporada no usufruto do morgadio de Água de Mel, na freguesia de Santo António do Funchal, instituído por D. Maria de Betencourt, mulher de Rui Gonçalves da Câmara, na pessoa de seu sobrinho Gaspar de Betencourt. Na sucessão de vários administradores coube esta casa vinculada a D. Guiomar Madalena de Vilhena Betencourt de Sá Machado, de quem foi universal herdeiro e sucessor João Carvalhal Esmeraldo de Atouguia e Câmara, décimo administrador do vinculo do Santo Espírito da Lombada dos Esmeraldos, como adiante se verá, passando assim essa renda de 150.000 rs. a fazer parte dos rendimentos deste último morgadio. Sendo ponto averiguado que Rui Gonçalves da Câmara transferiu a sua residência para São Miguel no ano de 1474, deve supor-se que aquele aforamento se teria realizado antes da sua partida para aquela ilha, havendo muitas probabilidades que militam a favor desta hipótese, embora se indiquem outras datas para a celebração do referido contrato. É esta a opinião do douto conselheiro Agostinho de Ornelas, sucessor na administração dum dos vínculos instituídos por João Esmeraldo, que estudara este caso com o maior interesse e à vista de documentos existentes no importante cartório da sua casa, assinalando o ano de 1473 como o do aforamento, que alguns chamaram venda, feito por Rui Gonçalves da Câmara a João Esmeraldo 0 fidalgo flamengo consagrou-se diligentemente à valorização das terras aforadas, que na realidade constituíam uma posse perpetua e incontestada, tornando-as um centro de grande e produtiva actividade agrícola e fabril, com o largo amanho das glébas incultas, o cuidadoso aproveitamento das águas e a montagem de vários engenhos e alçapremas. 0 autor das Saudades da Terra, embora hiperbálicamente e como já fica referido, afirma que João Esmeraldo chegou a produzir vinte mil arrobas de açúcar em cada ano, para o que dispunha de oitenta escravos, casas de fabrico e de purgar, abegoarias e outras indispensáveis instalações, sem contar com os muitos cultivadores e colonos livres, que seriam certamente os seus melhores auxiliares nesta tão grande e lucrativa empresa. Esmeraldo comprou ou edificou na vila do Funchal e na rua que tomou e ainda conserva o seu nome uma grande casa de moradia, que o cronista diz ser «um. aposento antigo muito rico, com casa de dois sobrados e pilares de mármore nas janelas e em cima seus eirados com muitas fressuras». Da construção da casa solarenga da Lombada, da edificação das capelas e da instituição dos morgadios, devidas à fecunda iniciativa do fidalgo flamengo, nos ocuparemos em capítulos especiais. Constituiu família e foi tronco de larga descendencia, (17) tendo morrido, em idade muito avançada, a 19 de junho de 1536 e sido sepultado na capela do Santo Espirito, por êle fundada no ano de 1508. VI - João Esmeraldo e o futuro descobridor da América Existe na cidade do Funchal uma via pública, que desde séculos conserva o nome de Rua do Esmeralda. Até os princípios do ano de 1877, erguia-se nela uma casa apalaçada, com a arquitectura característica das edificações; do século XV, que era uma ampla construção de dois andares, encimada por um vasto eirado, e que tinha para o tempo o aspecto duma sumptuosa habitação aristocrática, destinada à residência de nobres e opulentos moradores. Dessa aparatosa construção, que em grande parte se conservou até à idade contemporânea, ficaram interessantes fotografias, inúmeras vezes reproduzidas em muitos livros e revistas, existindo ainda uma característica janela bipartida, em estilo renascença, que hoje se encontra artística e devotadamente colocada nos jardins da magnifica Quinta da Palmeira, na Estrada da Levada de Santa Luzia, propriedade do inteligente e benemérito industrial Henrique Hinton, que ali conserva com a maior veneração e apreço aquela preciosa relíquia do passado. _____________ (17) João Esmeraldo contraiu primeiras núpcias com D. Joana Gonçalves da Câmara, neta de João Gonçalves Zargo e filha de Martim Mendes de Vasconcelos e de D. Helena Gonçalves da Câmara, e casou segunda vez com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes de Andrade, mais conhecido pelo nome de João Fernandes do Arco, por ser senhor de muitas terras no Arco da Calheta, onde tinha casa solarenga e ali instituiu um morgadio. Do primeiro matrimónio nasceu João Esmeraldo e do segundo Cristóvão Esmeraldo, que foram os primeiros administradores dos vínculos do Vale da Bica e do Santo Espírito. Ainda existem contemporâneos que viram e conheceram de perto essa casa, que se levantava entre as ruas do Sabão e do Esmeraldo, com as suas frontarias para as mesmas ruas e no local em que actualmente se abre a Travessa ou Rua de Cristóvão Colombo. 0 flamengo João Esmeraldo foi possuidor e provavelmente o próprio edificador dessa antiga e nobre residência, segundo vários livros de linhagens o atestam, não podendo aduzir-se senos argumentos, que contradigam essa afirmativa. Diz uma antiga e ininterrupta tradição, corroborada pela autoridade dos vários escritores, que o futuro descobridor da América foi, nessa histórica casa, hóspede de João Esmeraldo, com quem manteve relações da mais afectuosa estima. 0 caso vem especialmente tratado, com largueza e com mestria, na interessante Memória sobre a residência de Cristóvão Colombo na Ilha da Madeira, devida à pena culta e elegante do ilustre madeirense Agostinho de Ornelas, distinto diplomata e membro da Academia das Ciências de Lisboa. Anteriormente a Agostinho de Ornelas, abundando na mesma opinião e com a grande autoridade do seu nome, também se ocupou deste assunto o abalizado professor e académico dr. Alvaro Rodrigues de Azevedo, o escritor que mais larga e proficientemente se tem ocupado das coisas históricas deste arquipélago, de que são prova incontestada as preciosas e eruditas anotações que acompanham a edição das Saudades da Terra de 1873, além de outros valiosos trabalhos. Quase todos os autores, que escreveram acerca da vida misteriosa e aventureira de Cristóvão Colombo, afirmam que ele casara com D. Filipa Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo, primeiro capitão donatário da ilha do Porto Santo, e que ali nascera, por 1475, o seu filho primogénito e sucessor Diogo Colombo, sustentando também que o navegador tivera uma permanência mais ou menos demorada na Ilha da Madeira, como é natural que houvesse acontecido, sendo então, porventura, que estreitaria relações amistosas com o fidalgo flamengo que deu o nome à rua do Esmeraldo. Não há motivos para enjeitar a afirmativa do veneravel bispo D. Bartolomeu de Las Casas, que na sua conhecida obra Historia de las Indias, publicada ha cêrca de cincoenta anos, nos diz que Diogo Colombo nasceu na ilha do Porto Santo, acrescentando que recebera esta informação da própria boca do filho do descobridor da América. Muitos outros autores têm sustentado igual opinião, irão sendo para estranhar que a pessoa, que agora traça estas linhas e quando exerceu um cargo oficial naquela ilha no último quartelo do século XIX, houvesse recebido vários pedidos da cópia autentica do assento de nascimento de Diogo Colombo, tão generalizada se tornara essa plausível opinião. Como já atrás fica dito, era a Madeira, nessa época, não só o mais importante empório comercial que se formara nas novas terras descobertas e portanto o mais apetecido ponto de atracção para os forasteiros que deixavam os seus países em busca de ambicionada fortuna, mas também o centro quase forçado a que convergiam todos os que fanhosamente se entregavam ás explorações marítimas, tornando-se o Funchal uma verdadeira escola de navegação e onde se podiam colher as mais exactas informações e as mais detalhadas noticias acerca dos mares, ilhas e continentes, cite muitos pretendiam avidamente devassar e descobrir. E muito de presumir que Cristóvão Colombo, tendo vivido largo tempo em Lisboa e feito o seu tirocínio de navegador com marinheiros portugueses, procurasse também visitar a Madeira, afim de obter novos elementos para a realização do gigantesco plano, que certamente ha muito lhe assediava o espírito. A data mais provável da permanência de Colombo neste arquipélago está compreendida no período decorrido de 1743 a 1745, sendo no primeiro destes anos, que João Esmeraldo aforou ou comprou a Rui Gonçalves da Câmara, como já fica referido, as terras da Lombada da Ponta do Sol. Não será, pois, inteiramente inverosímil aceitar-se a possibilidade de ter o futuro descobridor da América visitado aquela propriedade, a admitir-se as estreitas relações de amizade, que entre os dois se mantinham, chegando a afirmar-se que João Esmeraldo dera ao seu segundo filho o nome de Cristóvão, como homenagem ao amigo, que, ao tempo, já era o ilustre e festejado descobridor do Novo Mundo. VII - O rapto de D. Isabel de Abreu Vários nobiliários e antigas crónicas referem pormenorizadamente o conhecido episódio do rapto de D. Isabel de Abreu, a que Gaspar Frutuoso também consagrou seis estiraçadas páginas, (18) o que prova a grande retumbância que o caso teve na época, havendo até sido aproveitado alguns séculos depois, por poetas e novelistas, para assunto de diversas composições em prosa e verso (19). A principal protagonista dessa cavaleirosa e romântica façanha foi D. Isabel de Abreu, irmã de D. Águeda de Abreu e cunhada de João Esmeraldo, e teve seu epilogo nas terras da Lombada, que serviram de teatro a essas cenas de puro feudalismo, que hoje, vistas à luz dos costumes da nossa época, nos causam tamanha admiração e assombro. Seguindo a larga descrição das Saudades da Terra, deixámos nas páginas do Elucidário Madeirense uma - breve narrativa desse episódio, da qual vamos trasladar alguns períodos, que ponham mais em relevo a acção dramática desse curioso sucesso, ocorrido a pequena distancia da Idade Média, época fertilíssima em acontecimentos de semelhante natureza. ____________ (18) Saud. pag. 197 e seg. (19) Entre outros, Silva Lial, no vol. 7.° do Panorama, com o titulo de «Bem querer mal fazer». D. Isabel de Abreu, que era viúva de João Rodrigues de Noronha, filho do terceiro capitão donatário do Funchal Simão Gonçalves da Câmara, vivia na sua casa do Arco da Calheta, possuidora duma avultada fortuna, quando António Gonçalves da Câmara, sobrinho do mesmo capitão, donatário e que ali morava próximo, se introduziu violentamente e a desoras nas casas de D. Isabel, com o fim de a levar a contrair casamento com ele. D. Isabel conseguiu convencer António Gonçalves Câmara da inconveniência duma proposta de casamento em tais condições e convidou-o a comparecer no dia seguinte, para se tratar então das formalidades do matrimónio, a que ela de boa mente acederia. Fez-se António Gonçalves da Câmara acompanhar duma comitiva de cerca de cinquenta cavaleiros da Ponta do Sol e Ribeira Brava, dirigindo-se a casa de D. Isabel, que no dizer dum cronista se fez «forte em suas casas com sua gente que muita tinha, e achando-se António Gonçalves zombado, injuriado e afrontado se tornou para sua fazenda, embarcando-se dali a poucos dias para Lisboa. Decorridos alguns anos voltou António Gonçalves da Câmara à sua casa da Madeira, sem perder de vista o velho intento de casar com D. Isabel de Abreu. Dirigindo-se esta à vila da Calheta, em companhia de alguns parentes, e passando em frente da moradia de António Gonçalves, tomou este as rédeas do cavalo em que ela montava e auxiliado por gente armada obrigou-a a entrar violentamente em sua casa. Dado conhecimento do estranho caso ao ouvidor do Funchal, por estar ausente o capitão donatário, compareceu este com uma numerosa força armada, tendo esta que defrontar-se com a resistência que ia opor-lhe António Gonçalves, pois se preparava para desobedecer ás ordens do ouvidor, conservando D. Isabel de Abreu presa em sua casa. Estava iminente uma encarniçada luta, em que de ambos os lados havia partidários, parentes e amigos, quando António Gonçalves da Câmara e D. Isabel de Abreu assomando a uma varanda da residência declararam que tinham chegado a um amigável acordo e que podiam retirar-se o ouvidor e a força que o acompanhava. Quando estes se dispunham a partir, fez D. Isabel de Abreu sentir ao seu prometido esposo que «vindo com o Ouvidor muitos parentes seus e amigos, não era razão que sem comer se tornassem por tão comprido caminho e já que tudo estava em paz os convidasse». Acatando os desejos de D. Isabel de Abreu, mandou António Gonçalves, que «entrasse o ouvidor com a sua gente, alcaides, meirinhos e juízes de todas as vilas e lugares daquela capitania na sala, e arremeteu D. Isabel e apegou-se a ele dizendo e queixando-se que António Gonçalves forçosamente a tinha naquela casa e que lhe valesse com justiça». Na companhia do ouvidor e dos cento e cinquenta homens que compunham a força armada, seguiu D. Isabel de Abreu para o. Funchal, indo, porém, pelo adiantado da hora, pernoitar nas casas de seu cunhado João Esmeraldo, que ficavam na Lombada da Ponta do Sol e eram a sede do morgadio do Santo Espírito. António Gonçalves da Câmara não era homem para resignar-se a sofrer um novo ludibrio, que ele considerava a maior das afrontas, por parte da mulher que queria conquistar, levado pela violência do amor, pelo orgulho ofendido ou pela ambição de possuir a sua fortuna. Logo se preparou para a desforra e desta vez resolvido ás mais extremas violências. Reuniu imediatamente vários parentes e amigos e muitos homens armados das freguesias vizinhas, sem exclusão de ladrões e assassinos que por ali andavam homiziados, preparado também com dois falcões, que eram peças de artilharia do tempo, afim de atacar casas onde se encontrava D. Isabel de Abreu com os oficiais de justiça. Pôs-lhe apertado cerco, até que, no fim de oito dias, considerando os parentes de D. Isabel os males que podiam resultar desta luta sangrenta, resolveram que a casamento se realizasse, pondo-se deste modo termo uma contenda em que entravam, além de muitos outros, quatro irmãos, dois de cada lado, prestes talvez a mutuamente se darem a morte. «Chegados D. Isabel de Abreu e António Gonçalves da Câmara, diz Gaspar Frutuoso, à sua fazenda, e recebendo-se ambos, foram feitas grandes festas e bodas, em que comeram todas aquelas pessoas que os acompanharam. Estavam na sala primeira dos seus paços quatro potes de prata fina em quatro cantos dela, que levaria cada hum deles três almudes de agua, com quatro púcaros de prata, cada pote com o seu, presos com cadeias do mesmo e toda aquela gente honrada que se achou naquele banquete, que seriam mais de duzentas pessoas, fora outras, e servidores que eram mais de outros tantos, comeram todos em baixela de prata, sem se entre meter no serviço coisa de barro, nem estanho, onde se gastaram ricos e esquisitos manjares de toda a sorte, como os sabem fazer as delicadas mulheres da Ilha da Madeira, que além de serem mui bem assombradas, mui fermosas, e discretas, e virtuosas são extremadas na perfeição delles, e em todas as invenções de ricas cousas que fazem, não tão sómente em pano com polidos lavores, mas tambem em assucar com delicadas fructas». D. Agueda de Abreu, irmã de D. Isabel de Abreu, não se conformando com o casamento nem com as violências que o precederam, apresentou suas queixas ao monarca, que mandou à Madeira o desembargador Gaspar Vaz sindicar do estranho caso, resultando serem alguns condenados à morte e outros a desterro. António Gonçalves da Câmara homisiou-se e fugiu depois para Canárias, enquanto sua mulher se recolhia ao convento de Santa Clara. Das Canárias dirigiu-se à Africa e aí prestou valiosos serviços, assinalando-se pela sua bravura e coragem. Isto e mais ainda, por certo, a interferência de sua mãe D. Joana de Eça, que era camareira-mór da rainha, junto do monarca, alcançaram-lhe o perdão e pôde voltar à pátria, onde ainda viveu alguns anos com sua mulher D. Isabel de Abreu».(20) ____________ (20) D. Joana de Eça, mãi de António Gonçalves da Câmara, era camareira mor da rainha D. Catarina e gozava de grande prestigio e influencia na corte, tendo sido por sua indicação que -o padre Luís Gonçalves da Câmara, seu próximo parente, fora nomeado mestre e aio do rei D. Sebastião. D. Joana de Eça foi a restauradora e padroeira do convento da Esperança em Lisboa, e ainda há poucas anos se encontrou nas ruínas da respectiva igreja a pedra que cobria a sua sepultura, tendo nela gravado o seu nome com o titulo de padroeira. O estranho e pitoresco episódio, que fica sumariamente narrado, deve ter ocorrido pelo ano de 1531, segundo as indicações fornecidas por alguns antigos nobiliários madeirenses. Não sabemos se João Esmeraldo o Velho, que ao tempo era homem de idade muito avançada, se encontrava então no seu solar da Lombada, mas algures se diz que o filho Cristóvão Colombo estava ausente, batalhando no norte de Africa, onde se distinguiu como esforçado cavaleiro. E de presumir que estas circunstancias aconselhassem D. Isabel de Abreu e os que a acompanhavam, naquela arriscada e porventura trágica aventura, a ceder à brutal imposição do orgulhoso e tresloucado pretendente, consentindo-se, por fim, no casamento, que talvez se tivesse realizado na capela do Santo Espírito, sede e centro do morgadio na Lombada, ainda posta em apertado cerco pelas forças aguerridas de António Gonçalves da Câmara. VIII - A Industria Sacarina Embora as vastas e fertilíssimas terras da Lombada não pudessem produzir, no tempo de João Esmeraldo e ainda mesmo em época muito posterior, as vinte mil arrobas de açúcar de que tão hiperbolicamente nos fala Frutuoso, é todavia indubitável que a Ponta do Sol, não só foi um dos primeiros lugares em que mais largamente se procedeu ao plantio da cana sacarina, como também em breve se tornou um dos maiores centros industriais no fabrico do açúcar, graças ao notável desenvolvimento que o distinto fidalgo flamengo soube imprimir à cultura agrícola e ás industrias suas derivadas. As referências do autor das Saudades vêem apenas confirmar a importância desse movimento industrial e fornecer-nos interessantes notícias acerca dos meios de que geralmente naquela época se lançava mão para a cultura das terras e outros; elementos de colonização. Haja vista o que posteriormente se deu, em mais larga escala, com o povoamento e as explorações agrícolas nas terras brasileiras. Como já atrás referimos, os escravos africanos foram os melhores auxiliares que tiveram os sesmeiros continentais no amanho das terras que lhes eram concedidas. E não admira que chegasse a oitenta o número desses pobres negros sujeitos á servidão, existentes nas fazendas da Lombada e de que Esmeraldo se servira para o rápido desenvolvimento agrícola que elas chegaram a atingir. Eram muito rudimentares os processos empregados o fabrico do açúcar, quando, por meados do século XV, e desenvolveu largamente a cultura da cana sacarina. Umas prensas manuais, construídas de madeira e conhecidas pelo nome de alçapremas, constituíam as primitivas maquinas em que eram esmagadas as canas e obtidas as respectivas garapas. Vieram depois os «engenhos» com cilindros feitos de troncos de til, de difícil e penoso manejo braçal, a que os fortes músculos dos escravos davam um, vagaroso mas continuado movimento. 0 primeiro engenho movido a água data do ano de 1452, em que foi feita a Diogo Teive uma concessão para o construir (21) e levantado na margem duma das nossas ribeiras, mas em local que hoje se desconhece. Havia então o açúcar chamado duma e de duas cozeduras, sendo o primeiro de qualidade superior ao segundo. No livro do doutor Manuel Constantino, publicado em Roma no ano de 1599, encontram-se os seguintes interessantes pormenores: « ...a garapa passa por cinco recipientes sucessivamente, de modo que a primeira a entrar, logo que chega a ferver até um certo ponto vai sendo baldeada para outros recipientes, onde coze a fogo brando, separadamente, até chegar àquele ponto preciso, que permite a sua condução em receptáculos feitos de terra ou barro. _________________ (21) Saudades, ed de 1873, pág. 665. A segunda espuma, pois a primeira é deitada fora, que na continuação da fervura ou cozedura vai aflorando, é guardada em pipas e é muito parecida com o mel, se bem que um pouco mais liquida e escura. Os madeirenses chamam-lhe «melaço e dele se servem apenas para a engorda de cavalos misturado com farelo e palha. Os comerciantes franceses e ingleses, porém, exportam-no para os seus países, usando-o em lugar de mel ». Era nas chamadas «casas de purgar» que os (22) açucares se depuravam e recebiam os últimos aperfeiçoamentos de fabrico, sendo ali convenientemente preparados para o consumo local e sobretudo para a exportação. Quando João Esmeraldo, nos fins do século XV, desenvolveu um grande movimento fabril e agrícola nos seus domínios da Lombada, já teria então a industria açucareira atingido um relativo estado de perfeição nos seus processos de fabrico, sendo todavia muito provável que Esmeraldo houvesse notavelmente concorrido para que essa lucrativa industria fosse ainda melhorada e aperfeiçoada nas qualidades da sua produção, se atendermos ao seu gemo empreendedor e ao alto de grau de prosperidade a que soubera elevar a cultura daquelas terras, que então constituíam a mais vasta e rica propriedade de todo o arquipélago. As «vinte mil arrobas», que hoje corresponderiam a trezentas toneladas, são, sem dúvida, a maneira hiperbólica de exprimir uma ideia, mas representam, na realidade, uma produção industrial muito abundante, que o cronista quis fixar por meio duma frase retoricamente exagerada ... ___________ (22) História da Ilha da Madeira pelo Doutor Manuel Constantino, vertida do latim pelo padre J. Baptista de Afonseca e prefaciada e anotada pelo autor deste opúsculo. Funchal, 1930. IX - As Instituições Vinculares João Esmeraldo, nobre de origem, com foros de fidalguia confirmados pelo rei de Portugal, senhor abastado de extensos domínios territoriais, quis transmitir esses direitos e regalias aos seus descendentes e assegurar-lhes a perpetuidade dos títulos e bens de fortuna de que largamente usufruía. As instituições vinculares, com a intacta transmissão de haveres inalienáveis em sucessivos administradores e entre membros da mesma família, perpetuavam os nomes dos seus fundadores e permitiam manter com prestígio e por vezes com brilho os privilégios e honrarias inerentes a essas instituições, tão ambicionadas na época e que gozavam da maior consideração social, ainda mesmo acima da virtude, do saber, do talento e da riqueza. Foi assim que João Esmeraldo, destinando à vinculação as terras da Lombada da Ponta do Sol, que correspondem aos actuais sítios da Lombada propriamente dita, do Jangão e do Lugar de Baixo, e ainda outros haveres que possuía, instituiu os dois morgados do Santo Espírito e do Vale da Bica, que foram dos mais importantes que existiram em todo o arquipélago. Por escritura pública de 12 de Junho de 1522, na presença e com pleno assentimento de sua mulher D. Agueda de Abreu e seus filhos João Esmeraldo e Cristóvão Esmeraldo, fez João Esmeraldo o Velho, já então assim conhecido, a divisão da Lombada em duas grandes propriedades, estabelecendo uma linha divisória, que se estendia do Pico das Pedras, junto do Paul da Serra, pelo chamado Caminho do Concelho até à Cova do Pico da Amendoeira e deste ponto até entestar com as águas do mar. Pela morte de João Esmeraldo seriam lançadas sortes e caberia a cada filho a parte quê os azares das mesmas sortes houvessem de indicar. Esta escritura, porém, não criava ainda as instituições vinculares, que foram estabelecidas por instrumentos públicos de datas posteriores, se é que foram, por este meio, instituídos os dois vínculos e não somente um, como adiante teremos ocasião de dizer. O morgadio do Santo Espírito teve a sua fundação no ano de 1527, por escritura pública de 12 de Dezembro do mesmo ano, sendo aprovado e confirmado por carta régia de 28 de Janeiro de 1528, a qual, apesar da sua grande extensão, vamos transcrever aqui textualmente, não só pelo particular interesse que oferece ao assunto desta memória histórica, mas ainda como um subsidio de informação para o estudo dos costumes e da mentalidade dos homens dessa época. Trata-se dum manuscrito original, em pergaminho, lançado com bela caligrafia e em excelente estado de conservação, que se encontrava na copioso cartório da casa do segundo Conde de Carvalhal, último sucessor na administração do morgadio do Santa Espirito. Ei-lo «Dom johã por graça de Ds. Rey de Portugal e dos algarves daquem e dalem mar em Africa Snôr da Guinee e da conquista navegaçãm comercio da Ethiopia, Arabia, Persia e da India a quantos esta minha carta virem: faço saber que por parte de Joham smeraldo fidalgo de minha casa e Agueda dabreu sua molher moradores na minha ilha da madeira Me foy apresentado hum puurico stormento de instituiçam de morgado que ora fizeram dua parte de seus bees no dual o trelado he o seguinte. Em nome de Ds. Amen. Saibam quantos este stormento de instituiçam e vinculaçam de bees assim dizimeiros como foreiros em fatiota para sempre virem que no anodo nascímento de nosso Snôr Jhu Cristo de mil quinhentos e vinte sete anos em doze dias do mez de dezembro tia ilha da Madeira na Lombada e assentamento de Joham smeraldo o Velho que he no termo da cidade do Funchal: sendo elle hi presente e Agueda dabreu sua molher presente mi notario pruuico e testemunhas ao diantescriptas : estes ambos ciixeram que elle Joham smeraldo tinha aforada a dita lombada em fatiota a Ruy Gonçalves que foy capitam da ilha de Sam Miguel e a dona Maria de Betancor sua molher : e assi na Lombada tinhã comprado muita terra outra por carta de compra que era dizemeira : e mais tinhã dizemeiras outras terras e casas e engenhos pegados com a villa na Ponta do Sol: E assim tinhã um muito honrado aponsentamento na cidade do Funchal cote outras casas pequenas: e que sua vontade fôra sempre por serviço de Ds. e salvaçam de suas almas: e pelo grande amor que tem a seu filho Christovam smeraldo lhe fizeram morgado da legitima pte da fazenda que tem na dita ilha assi dizemeira como foreira: e porque lia muitos dias que eles Joham smeraldo e Agueda dabreu sua tnolher tem feita partilha de toda sua fazenda assi foreira como patrimonial antre o dito Christovam smeraldo e Joham smeraldo seus filhos : por não terem outros filhos nem herdeiros legitimos e naturais : nem ossperam por via de natureza a ter por serem já velhos, a qual partilha tem feito antre elles para depois da morte de qualquer delles seus pais: elles ditos seus filhos lançarem sortes e tomarem cadaum seu quinham que por sorte lhe acontecer da partilha queeles seus pais tem feita: por consentimento e aprazimento delles dictos seus filhos a qual partilha lie confirmada por EI-Rey nosso Snár segundo mïlhor e mais compridamente tudo consta no stormento da partilha confirmada pelo dicto Snôr. E porque os passados deste mundo por memória de suas boas obras vivem: deixando casas e bees de morgado suas almas podem receber de seus sucessores obras caritativas porque mereçam: temendo ads. e querendo-lhe dar graças das muitas mercês que lhe tem feitas: querem ordenar como ordenado tem este morgado: do qual se seguem muitos proveitos a seus sucessores: por que quando fica cabeça nas linhagens se pode milhor conservar a nobresa e os fidalgos e homeês nobres ainda que em muitas fadigas se uissem : tendo morgado sempre seus filhos ficaãm repairados e seus parentes tem abrigo e melhor emparo do que poderiam ter sendo a fazenda dividida por partes : Porque se viram muitos liomeês de muito grandes fazendas e rendas por deixarem muitos filhos e suas fazendas serem por eles repartidas os dictos seus filhos ficarem pobres e fenece a memória dos dictos defuntos e de seus herdeiros coelles : e portantoeles sempre tiveram e tem vontade a vincular os ditos bees : para que em nenhum tempo possam ser vendidos trocados escãibados e sempre andem em o herdeiro legitimo primo génito baram e seusdescendentes. Do qual morgado cóstituem ao dito Christovamsmeraldo seu filho em ametade de todos os bees de raiz que direitainente lhe pertencem por bem da dita partilha; e que aqueles bees que acontecerem ao dito Christovam smeraldo seu filho em sorte e partilha segundo forma do stormento das partilhas acimadicto e relatado: desses diceram que faziam o dicto morgado: e aquella metade que assi lhe acontecer nos ditos bees : essa será a que sempre andará junta e avinculada e em morgado: da maneiraque dito tem e nó outros alguns. E quanto lie aos bees do Arco que elia Agueda dabreu tem herdado por morte de seu hay e may, estes ficam de fóra para ela Agueda dabreu, delles despoer o que bem lhe vier: segundo se contem no dito stormento e contrautodas partilhas: e por esta causa o melhoram em parte de suas terças alem de sua legitima: segundo se contem no dicto stormento de partilhas. E na socessam do dicto morgado se tem a maneira seguinte: avendo o dicto Christovam smeraldo filhos barões legitimesde legitimo matrimonio herdam o primo genita sendo abile e idonio para isso: porque não o sendo o que Ds. não mande herdará então o segundo e ficará por primo genito : e emquanto houver filho macho não herdará femea : e sendo caso que não haja filhos machos antam herdará femea a mayor e primo genito sendo abile para casarporque quando não fôr abile e idonea para casar o averá a segunda filha de sorte que o dicto morgado seja possuido e administrado por pessoas idoneas e autas para isso. E quando hi nó houver maisque hum macho e nó for idoneo e abile para herdar o dicto morgado: querem que em tal caso que venha a femea mayor sendo para isso abile e quando o não for vira a segunda: e se não ouver segunda entam ficará com o primo genito macho sem embargo de nó ser abile e idoneo : porque assi querem que lhe fique sendo caso que nó aja senõ hum filho. E sendo caso que não seja para isso abile e idoneo lhe ficará o dicto morgado e sempre andará o dicto morgadopor linha direita de ascendente em descendente de filho a neto ou neta nó avendo neto como dicto he : E nó havendo hi descendente do dito Christovam smeraldo de legitimo matrimonio o que Ds. nómande nem queira: sendo elles constituintes falecidos herdará o dicto morgado o parente seguinte em grao pela maneira da socessamacima dieta porque querem q avendo hi parente em grao macho nó h.erde femea. E porque nossa vontade he enquanto for possivel que o dicto morgado ande em nossos descendentes para sempre por linhadireita: sendo caso que o dicto Christovam smeraldo nosso filho nó aja filhos ou filhas legitimos de sua molher avendo algum filho ou filha bastardo de molher solteira sendo legitimado por E1-Rey nosso Snôr lhes apraz que o herde tendo-se nelles a maneira da sucessam acima decrarada. E querem e lhes apraz que esta maneirada sucessam por eles acima decrarada com todalas clausulas que dietas tem em seu filho Christovam smeraldo se tenha em todos os sores-sores deste morgado para todo o sempre. E assim querem e mandamque os socessores do dicto morgado para o averem de herdar se chame e nomeem para sempre do apelido e alcunha de smeraldo. Aos quaesmandam que cumprão e paguem o fôro da dita fazenda foreira ao tempo que elles são obrigados paguar segundo forma do stormento do aforamento: o qual foro pagaram muito bem ao senhorio que pellos tempos forem da dita fazenda foreira: e mais os socessores dodito morgado seram obrigados comprir para sempre os carregos da capela que elles Joham Esmeraldo e sua molher tem ordenado: segundo se côntem no stormento das ditas partilhas. E porque El-Reynosso Snôr aprouve dar outorga a este morgado e para milhor declaraçam e ordenaçam delle foi necessario declarar o que dito he E por que o dicto Christovam smeraldo seu filho ainda nó temfilho nem filha a que periodíq na socessam e o dito morgado ser já feito e elles Joham smeraldo e sua mulher serem ainda possuidoresde toda a dita fazenda e assi dela senhores como sempre foram e porque suas vontade he comprir se esta instituiçam e vinculaçam no milhor modo e maneira, que poder ser e por direito mais valer. Epedem por mercê a sua Alteza que a confirme e a ella dê todo a poder e firmeza para que sempre seja valiosa e firme e com todas estas declarações a confirme: E se aqui falecer alguma crasula ou crasulas que necessarias sejam para se cumprir e afirmar a ditainstituiçam as aviam aqui por expostas e declaradas: e que sua. Alteza as possa por elles soprir e declarar. E se tambem aqui ha algúá ou algúas crasulas que empidam a dieta instituiçam e vinculaçam elles as aviam nenhúas nem expressas porque suas tençõessão o dito morgado ficar húa vez firme e valioso para sempre. E o disto Christovam smeraldo que a isso presente estava dixe que era muito contente de os dictos seu pay e may fazerem o dito morgado da maneira acima dieta e que ainda que no disto morgado entrassemos beês e fazenda que elle avia de herdar de sua legitima por morte dos dictos seu pay e may : elle todavia era contente e lhe prazia que delles se fizesse o disto morgado e nisso consentia expressamente e pormeteo de em todo comprir o neste stormento conthiudo : por sie por seus socessores decendentes : pede por mercê a El-Rey nosso Snôr que o confirme da maneira que os dictos seu pay e may o pedem e requerem. E bem assi a esto presente estava Dona Lionordatouguia molher do dito Christovam smeraldo : ouvio ler de verbo a verbo este stormento ; e eu tabaliam lhe perguntei se consentia ella e avia por bem o nelle conthiudo e por ella foy disto que neste casa nom era necessario seu consentimento: porquanto ella casara com o disto Christovam smeraldo per dote e arrase nos dictos beês que assi o disto Joham smeraldo fazia morgado ella não avia de herdarnem meeyra : porque somente a via daver seu dote e suas arras no caso em que as vencesse. Porem ella por mais abastança: se seu consentimento aqui era necessario ella consentia nisso e o aprovava e avia por bem assi como nelle era conthiudo e queria que se guardasse e comprasse em todo. E em todo o tempo se obrigaram elles partes ter e comprir este stormento e condições delle, e nenhum se nom arrepender nem afastar a fora per nenhuã razam : sobre obrigaçam de todos seus bees moveis e de raiz avidos e por aver que pera ello obrigaram e em testemunho de verdade mandaram e outorgaram assi ser feito este stormento e pediam cadauu o seu e osque lhe comprassem deste theor. Testemunhas que ao presente foram Christovam Fernandes crelego de missa seu capellam e Manuel Simaão outrossy crelego de missa stantes na dieta Lombada e Ruipires moleiro do moinho delles João smeraldo e sua molher: e as dietas Agueda dabreu e dona Lionor datouguia per sy e per suas maãos a firmaram por saberem screver e eu Joham Gliz escorceonotario pubrico por El-Rey nosso Snôr na dieta cidade e seus termos que este stermonto de contrauto e instituiçam e vinculaçam de morgado em meu livro de notas notei e delle tirey e escrevi aqui emdezoito folhas pera o disto Christovam smeraldo e com o próprio original concertei e de meu puuico sinal assinei. Pedindo me por merce os ditos João smeraldo e Agueda dabreu sua molher que lhes, aprouasse e confirmasse o disto stormento de instituiçam de morgado com todas as crasulas e condições em elle decraradas asi e tam inteiramente como em elle se contem: e visto por mim o disto stormento vendo que a tençam e fundamento dos dictos Joham smeraldo e Agueda dabreu he justo e honesto e assi mesmo que he muito meu serviço e dos Reys que pelos tempos ao diante forem Tenho por betee lhe aprouo e confirmo o disto stormento e instituiçam de morgadoassi e tam inteiramente como em elle se contem e com todalas erasulas e condições em elle conthiudas. E isto nom se dimenuindo as legitimas doutros herdeiros legimos dos dictos instituidores se osouurer. E assi quero e mando que em tudo se cumpra e guarde e seja firme e valioso sem embargo de quaesquer leis e ordenações direitos façanhas e oupeniões de doutores e de quaesquer outras cousas que em contrario nisso sejam e possam ser per qualquer' guisa modo e maneira que seja e todo ey por reuogado e anulado equero que seja nenhum e de nenhum vigor nem força emquanto contra a dieta instituiçam de morgado forem. E posto que sejam taes que de feito ou de direito se devesse fazer aqui delias ou de cadahuua dellas expressa mençam por que assi como se aqui expressamente fossem decraradas quero que haja lugar esta minha derogação. E porém mando a todos meus corregedores desembargadores juizes justiças e a todos outros oficiais e pessoas a que esta minhacarta for mostrada e o conhecimento dela pertencer que em todo a cumpra e guardem e façam comprir ter manter e guardar o disto stormento de instituição de morgado como se em elle contém sem duvida nem embargo ne contradiçam algua que a ele seja posto porque assi he minha merce. Dada em a minha villa dalmeirim a xxbIII das de janeiro Antonio Godinho a fez de ibcxxbiii. E isto ey por bem e mando que se cumpra pelo modo sobredito nó prejudicando a qualquer direito que os senhorios direitos das terras foreiras que nesta carta de morgado vam metidos nela poderiã ter assi por rezam do direito dominio como por qualquer outra maneira que seja e como se neste nó fossem postas ne fosse esta carta por mim confirmada El-Rey». Era verosímil e até muito provável o admitir-se que João Esmeraldo e sua mulher D. Águeda de Abreu, logo após a celebração da escritura de partilha das terras da Lombada em dois grandes lotes, a favor de João Esmeraldo e Cristóvão Esmeraldo, e ainda também depois de feita a instituição dum morgadio na pessoa deste último, se seguisse a criação doutro morgadio, que vinculasse a parte restante das mesmas terras, as quais somente por morte dos instituidores seriam divididas, por meio de sortes, entre os dois filhos de João Esmeraldo o Velho. Da instituição vincular, que teve Cristóvão Esmeraldo por primeiro administrador, deixámos acima transcrita a respectiva escritura e a confirmação do rei, mas do morgadio de que João Esmeraldo foi o primeiro administrador não temos conhecimento do instrumento público que o instituiu, e até num processo judicial de meados do século XVII, havido entre os morgados do Santo Espírito e do Vale da Bica, se alega que este último não chegará nunca a ser criado e que portanto não podiam ser alegadas a favor dele as leis que regulavam as instituições vinculares, no que dizia respeito à sucessão dos seus administradores. Parece que os senhorios directos dos terrenos do Vale da Bica se consideravam dentro do regímen e dos privilégios inerentes aos morgadios, porque tinham a primeira escritura de partilhas feita por João Esmeraldo na conta e com a força duma verdadeira instituição vincular. Foi esta a doutrina que prevaleceu, apesar da falta dum documento autêntico, que sem vislumbres de dúvidas provasse a existência legal dessa criação. X - A Casa Solarenga Era sem dúvida a mais ampla e aparatosa casa solarenga dos campos da Madeira, que ainda situada numa cidade populosa não desonraria a hierarquia dos seus mais ilustres moradores. A grande e apalaçada frontaria, de aspecto nobre e senhoril, os seus três espaçosos pavimentos, o numero e largueza das suas salas, os vastos pátios e eirados, a sua invejável situação sobranceira aos terrenos circunjacentes, tendo ao lado a magnifica capela, tornavam-na uma sumptuosa vivenda de ricos e antigos fidalgos, que ali ostentassem o fausto e a grandeza da sua opulência, de par com o brilho e o aparato dos seus armoriados brasões e pergaminhos. Volvidos uns tantos anos, como exemplo eloquente da caducidade das coisas terrenas, vemos a asa negra da miséria roçar sinistramente por estas paredes, que foram testemunhas mudas das ilusórias vaidades humanas, que por ali delirantemente se estadearam ... Presume-se que o primitivo solar da Lombada tivesse sido edificado pelo flamengo João Esmeraldo, em época coeva da construção da capela do Santo Espírito, isto é, na primeira década do século XVI. Não seria inicialmente de proporções tão aparatosas e teria no decorrer dos tempos recebido ampliações e melhoramentos, à medida que a instituição vincular, por ele criada, fora crescendo em riqueza, prestigio e importância social. No último quartel do século XVI, aí por 1590, diz o historiador açoriano «que .. foi esta a maior casa da ilha e tem grandes casarias de aposentos, casas de purgar, igreja ... », como já atrás fica referido. Por essa época, era administrador dos dois vínculos João Esmeraldo de Atouguia, que conjecturamos ter sido o que ampliou a casa solarenga, a que alude o doutor Gaspar Frutuoso. A administração dos dois morgadios separou-se, mas as casas de habitação ficaram pertencendo a ambos, com grandes inconvenientes para os dois usufrutuários, até que, no ano de 1679, Luís Carvalhal Esmeraldo, morgado do Santo Espírito, trocou, por oito dias de água, a parte que nas mesmas casas tinha António de Carvalhal Esmeraldo, morgado do Vale da Bica. A essa troca se refere a seguinte inscrição lapidar, que se encontra no pateo interior e sobre o limiar da porta, que dava entrada para o salão nobre: - «Estas casas reedificou Luiz Esmeraldo de Atouguia possuidor legitimo do morgado do Santo Espirito que venceu a primeira demanda por sete votos conformes e a segunda por três todos confirmaram ser o legitimo sucessor e proprietário e de oito dias de água ao morgado da Bica 1679-Troquei por metade destas casas arruinadas a dita água». Pelos dizeres transcritos se vê que Luiz Esmeraldo de Atouguia restaurou a velha casa solarenga, que então se achava já em adiantado estado de ruína. A inscrição também se refere ao grave e prolongado pleito judicial, havido entre os administradores das duas casas vinculadas, com respeito ao direito de administração e sucessão das mesmas, da qual nos ocuparemos em outro capítulo deste opúsculo. Na porta exterior do solar, que dá acesso ao primeiro pateo, encontra-se no alto do limiar uma pedra lavrada com um escudo esquartelado, tendo no primeiro quartel as armas dos Câmaras e nos outros três as dos Esmeraldos e lendo-se nessa pedra a data de 1672 e o nome de Luiz Esmeraldo. Junto da inscrição, que se acha sobre a porta que comunica o salão nobre com o eirado, encontra-se gravada na cantaria da mesma porta a data de 1780, que parece recordar a ligação então estabelecida entre o referido eirado e o sobredito salão, e também a realização de importantes melhoramentos executados naquela parte do grande solar. Ficaram na tradição as noticias das deslumbrantes festas, que em diferentes épocas se realizaram no vasto solar da Lombada dos Esmeraldos, sobressaindo a todas as que o segundo Conde do Carvalhal e último administrador deste vinculo ali estadeou, com o seu costumado brilho e aparato, nas rápidas passagens que fazia por estas casas, pois é sabido que o mais tempo vivia no estrangeiro, na sua casa de Lisboa e ainda no palácio de São Pedro ou na suntuosa quinta do Palheiro do Ferreiro. Estas arruinadas casas pertencem hoje (23) ao Ministério das Colónias com a faculdade de cede-las para a instalação duma escola, que eduque e prepare o pessoal missionário destinado ás nossas colónias ultramarinas. XI - As Capelas Deve supor-se que na grande propriedade da Lombada, quando a sua exploração agrícola atingiu um apreciável desenvolvimento e se tornou o foco dum importante centro de população, se levantaria sem demora uma pequena capela, como geralmente sucedia nos recintos das fazendas povoadas, espalhadas em diversos pontos da Madeira. ____________ (23) Art.º 8.º São cedidas a favor do Ministério das Colónias, para os fins designados no decreto n.° 12485, de 13 de Outubro de 1926, as ruínas do antigo solar do Conde do Carvalhal, na Lombada dos Esmeraldos, e a cerca anexa corte as respectivas águas (Decreto n.° 19268, de 24 de Janeiro de 1931). Teria sido, porventura, Rui Gonçalves da Câmara, o flamengo João Esmeraldo ou talvez os próprios habitantes deste povoado os edificadores da modesta edícula, cuja existência remontamos aos primeiros anos do terceiro quartel do século XV, sendo hoje impossível determinar com precisão o local em que fora construída e o nome da sua invocação. Capela de Santo Amaro. Diz-nos o ilustre anotador das Saudades da Terra que João Esmeraldo o Velho instituiu a capela de Santo Amaro antes do ano de 1500, havendo ponderosos motivos para supor que esta foi posteriormente edificada àquela de que acima fazemos menção. Da primeira não restam vestígios e talvez tivesse sido demolida, afim de erguer-se, no seu próprio local, a igreja do Santo Espírito, como abaixo mais largamente se dirá. Da segunda existem ainda uns montões de antigos escombros, que bem denunciam a sua incontestável vetustez. Os restos de velhas paredes e umas características seteiras nelas abertas indicam-nos a antiguidade destas venerandas ruínas. O abandono a que foi votada e a sua quase completa destruição devem atribuir-se especialmente à construção da igreja do Santo Espírito, na primeira década do século XVI, que pela sua situação e largueza oferecia maiores comodidades dos habitantes do lugar. Não é para causar estranheza que havendo João Esmeraldo mandado edificar uma ampla e bem ornada igreja, fizesse convergir para ela as suas mais cuidadas atenções com prejuízo da capela de Santo Amaro, que anteriormente mandara construir. O mesmo aconteceu com os diversos sucessores na administração do vínculo do Santo Espírito, porque, desde há séculos, não se acha ela consagrada ao exercício do culto. Capela do Santo Espírito. Como já deixámos dito, conjecturamos que tivesse sido, no próprio local da antiga ermida, que João Esmeraldo levantasse a nova capela, nos princípios do século XVI, que Gaspar Frutuoso, nos fins do mesmo século, chama enfaticamente igreja, e que, na verdade, como tal poderia ser considerada, se atendermos a certas condições do meio. O novo templo não recebeu apenas a ordinária e costumada bênção do Ritual, ministrada por um presbítero, mas teve a aparatosa sagração episcopal, o que deve atribuir-se à sua amplidão, à relativa importância do lugar e também, por certo, à categoria social do seu fundador. Foi o bispo de Tanger Dom João Lobo que procedeu no ano de 1508 à sua sagração, dizendo-se algures que viera expressamente à Madeira presidir à celebração dessa cerimónia religiosa, o que nos parece destituído de todo o fundamento. (24) Numa das paredes interiores da actual igreja, conserva-se uma lápide, porventura a mesma que se encontrava na antiga construção, onde se lêem as palavras seguintes: «Esta Igreja foi consagrada por Dó foam Lobo Bispo de Tãiere aos 27 de Agosto de 1508». Teve capelão privativo desde o tempo do seu fundador, como se vê dum documento atrás transcrito, constituindo a manutenção do seu culto um dos mais obrigatórios encargos pios do morgadio do Santo Espírito, havendo sempre os seus administradores guardado inalteravelmente os deveres que lhes eram impostos como padroeiros desta capela. _____________ (24) D. João Lobo, bispo de Tanger, era membro qualificado da Ordem de Cristo, a que pertenciam no espiritual as novas terras descobertas e conquistadas, em virtude das várias doações feitas pelos monarcas portugueses. Antes da criação da Diocese do Funchal, aquela Ordem enviava para este arquipélago os sacerdotes que aqui exerciam os actos do culto, mandando em i 5os o bispa D. João Lobo desempenhar nesta ilha as funções do ministério episcopal, afim de satisfazer os instantes pedidos dos habitantes, pois que havia já cerca de oitenta anos que se iniciara o povoamento e ainda nenhum prelado viera à Madeira, o que constituis um grave prejuizo para os interesses religiosos dos seus moradores. No interessante livro do dr. Vieira Guimarães, intitulado A Ordem de Cristo, lemos - «já em 1508 para satisfazer os desejos destes reclamantes, o Viário de Tomar (superior eclesiástico da Ordem) lhes enviou o bispo de anel D. João Lobo, que foi esperado pelo mestre Frei Nuno com toda a clerezia e lhe fizeram: muitas festas. D. João Lobo demorou-se mais dum ano nesta ilha, percorrendo todas as freguesias e exercendo solicitamente as diversas funções do seu carga! Decorridos dois séculos, era administrador da instituição vincular Cristóvão Esmeraldo de Atouguia e Câmara, moço fidalgo da casa real e uma das pessoas mais prestigiosas do meio social madeirense, que resolveu alargar as proporções da pequena igreja e orna-la com o mais aprimorado esmero, imprimindo-lhe a autentica feição duma capela de antigos paços reais, apesar do isolamento do lugar e da distancia a que se achava da cidade do Funchal: Demoliu a velha capela, que foi totalmente reedificada, dando-lhe maior amplidão, levantando-se nela cinco altares e sendo dotada com as mais primorosas decorações interiores no precioso trabalho de talha dourada, nas belas telas que revestem as paredes, no rico e artístico lambris de azulejos que cobre o rodapés do templo e na magistral esculturas das figuras que adornam os altares. Já alguém chamou a esta capela um pequeno museu de arte, e sendo na verdade um templo da fé cristã, não deixa de ser também um templo de «belas artes», em que a pintura, a escultura, a obra de entalhe e o azulejo têm uma condigna e artística representação, como já fica dito. Os quadros a óleo não são, de certo, assinados por mestres conhecidos, mas oferecem-nos pinturas artísticas do mais correcto desenho, duma perfeita modelação e do mais harmonioso colorido, talvez copias de distintos cultores das escolas flamenga e italiana, tendo algumas delas sofrido já a profanação de incompetentes restaurações. As estátuas de São João, São Luís, Nossa Senhora da Conceição e de Cristo Crucificado constituem irrepreensíveis modelos de escultura sacra, em que insignes imaginários imprimiram toda a inspiração do seu génio e da sua ardente fé religiosa. 0 Magnifico lambris de azulejos, de dois metros de altura, que reveste completamente o fundo das paredes interiores, é um primoroso trabalho do tempo de D. João V, representando, em figuras alegóricas, os chamados Frutos do Espírito Santo, em que as virtudes cristãs da mansidão, da paz, da bondade, da ciência, da piedade, da sabedoria e da modéstia são postas em eloquente relevo, por expressivos e admiráveis simbolismos, de que aquelas figuras são portadoras. A obra de talha dourada, embora executada com esmero e de reconhecido valor artístico, está trabalhada no decadente estilo barroco, que tão generalizado se tornou no tempo da construção desta capela. A reedificação da igreja do Santo Espírito ter-se-ia realizado no primeiro quartel do século XVIII lendo-se no limiar superior do pórtico a data de 1720, que parece ser a do ano do seu acabamento. Como já dissemos, é de presumir que o local escolhido tivesse sido o mesmo em que se erguia a demolida ermida, nas proximidades do velho solar e em sítio tão pitoresco e de tão dilatados horizontes, como aquele em que, ela se encontra. É possível que as decorações interiores não ficassem então inteiramente concluídas, pois que na face anterior do coro se diz que a igreja foi pintada no ano de 1768. 0 primeiro conde do Carvalhal procedeu ali a várias reparações e os seus últimos proprietários realizaram também importantes trabalhos de restauração, que determinaram o lançamento duma nova bênção, como se vê da inscrição: «Esta capela tendo sido reparada foi benzida novamente em 10 de Junho de 1894 com as solenidades do estilo pelo prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto», que se encontra numa das paredes interiores da mesma capela. Todas as instituições vinculares estavam oneradas com os chamados «encargos pios», a maior parte deles de carácter perpetuo e que principalmente consistiam na celebração de missas e na satisfação de certas obras de piedade e beneficência, que os instituidores estabeleciam como sufrágio de suas almas e descargo de suas consciências. Não faziam excepção a esta regra os morgadios da Lombada. Na capela do Santo Espírito foram impostas certas obrigações aos seus administradores e tendo o primeiro Conde do Carvalhal, sucessor na administração deste vinculo, pedido a remodelação e redução dessas obrigações ao prelado diocesano D. Frei Joaquim de Menezes e Ataíde, obteve deste, por sentença de 23 de Maio de 1814, que os encargos pios inerentes à mesma capela consistissem, a partir desta data, em manter ali um capelão privativo, que dissesse a missa ao povo em todos os domingos e dias santificados e na celebração de cento e trinta e três missas por várias intenções (25). Queremos pôr em relevo uma circunstância digna de ponderação. A igreja do Santo Espírito ou do Espírito Santo, segundo a forma mais comum de linguagem, somente é conhecida por esta denominação nos diplomai oficiais, documentos ou livros que a ela se refiram, dando-lhe em geral o povo o nome de Capela de São João e também da Conceição ou ainda a maneira mais simplificada de Capela da Lombada. E bastante antiga a denominação popular de São João e talvez devida ao facto de celebrar-se nesta capela, com grande brilho, a festa do Percursor do Messias, ali representado por uma primorosa estátua esculpida em madeira, objecto de especial veneração por parte dos habitantes daquelas vizinhanças. A capela de Santo Amaro ou antes o montão de ruínas que dela resta e a magnifica Igreja do Santo Espírito, ambas de propriedade particular e pertença do antigo morgadio da Lombada dos Esmeraldos, foram cedidas pelo governo da metrópole à Diocese do Funchal, com os seus respectivos anexos, para o livre exercício do culto, ficando sob a direcção imediata do pároco da freguesia da Ponta do Sol. (26) _________________ (25) As 133 missas deveriam ser aplicadas pela seguinte maneira: 10 por alma de Francisco do Couto, 20 por João de Moura Rolim, 2 por Pedro Ribeiro Esmeraldo, 1 por D. Maria de Vasconcelos, 1 por Beatriz de Andrade, 20 por João Esmeraldo o Velho, 10 por D. Guiomar do Couto, 1 por D. Maria da Câmara, por Francisco Manuel Moniz, 2 por Rui Mendes de Vasconcelos, 1 por Gaspar de Vasconcelos, 2 por D. Maria Figueiroa, 1 por D. Bernardo de Beteneourt de Sá Machado, 1 por D. Serafina de Menezes, 2 por D. Guiomar de Moura, 1 por D. Guiomar de Sá, 10 por João Rodrigues Mondragão, 10 por Manuel Fernandes Tavares, 8 por D. Isabel Correia, 5 por Afonso Enes, 1 por João de Ornelas e Vasconcelos, 1 por Baltazar Machado de Miranda, 11 por D. Maria de Betencourt, 7 por Gonçalo Dias, 1 por Luiz António Esmeraldo Teles de Menezes, 1 por D. Lourença de Mondragão. (26) Art.º São cedidas para exercício do culto, a favor da diocese do Funchal, as capelas denominadas Nossa Senhora da Conceição ou Santo Espírito, no sítio da Carreira, na Lombada dos Esmeraldos, Concelho da Ponta do Sol; e Santo Amaro, no dito sítio da Lombada com os seus anexos (Decreto n.° 19268, de 24-1-1931). Capela de Nossa Senhora da Piedade. É mais vulgarmente conhecida por capela do Jangão, tomando o nome do sítio em que se encontra edificada. A parte oriental da grande propriedade constituía o morgado do Vale da Bica e sendo dele 8.° administrador António de Carvalhal Esmeraldo, mandou construir, no sítio do Jangão, uma capela consagrada a Nossa Senhora da Piedade, nos primeiros anos do último quartel do século XVII, isto é, pouco anteriormente ao ano de 1679, data em que, num documento autentico, se faz referencia à dita capela, então recentemente edificada. Em 1777 o morgado Francisco Xavier de Ornelas de Vasconcelos procedeu nela a várias reparações, sendo novamente benzida no mês de Agosto daquele ano. No ano de 1879, o conselheiro Agostinho de Ornelas de Vasconcelos, 15.º administrador da casa vinculada do Vale da Bica ou do Jangão, mandou também executar nela alguns trabalhos de restauração, por se encontrar em estado já adiantado de ruína, tendo procedido à sua bênção, no dia 12 de Outubro do referido ano, o arcebispo de Goa D. Aires de Ornelas de Vasconcelos, irmão do proprietário da capela. Capela de Santo António. Os vastos terrenos, que constituíam a Lombada da Ponta do Sol, foram divididos em duas partes distintas, por ocasião da instituição dos morgadios do Santo Espírito e do Vale da Bica ou Jangão, ficando pertencendo a este último o importante sítio do Lugar de Baixo, mas em virtude duma divisão amigável feita entre os dois primeiros administradores daqueles vínculos, passou poucos anos depois a ser pertença do morgadio do Santo Espírito. Presumimos que tivesse sido João Esmeraldo de Atouguia, terceiro administrador deste último vinculo, o fundador da capela de Santo António, no sítio do Lugar de Baixo, pelos primeiros anos do século XVII. Os últimos proprietários destas terras, a firma comercial A. Giorgi & C.ª, demoliram a capela e a casa adjunta, já então bastante arruinadas, fazendo-as substituir por uma construção inteiramente nova, com uma excelente moradia e uma pequena capela anexa, também dedicada a Santo António, que foi solenemente benzida a 25 de Fevereiro de 1906 pelo prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto. Os encargos pios da antiga capela de Santo António Lambem foram reduzidos por sentença episcopal de 5 de Abril de 1819, ficando os respectivos padroeiros obrigados a manter o serviço dum capelão permanente, que diria a missa aos habitantes do sítio em todos os domingos e dias santos, e à celebração perpetua de quarenta missas conforme as intenções exaradas na referida sentença. (27) XII - A Administração dos Vínculos Como já fica dito e repetido, o fidalgo flamengo João Esmeraldo quis transmitir aos seus descendentes com carácter de perpetuidade os vastos domínios territoriais de que era possuidor e também as honrarias e privilégios dei que gozava como nobre de origem e que o rei de Portugal confirmara e ampliara nos diplomas atrás referidos e transcritos. As instituições vinculares, tão ambicionadas na época, satisfaziam absolutamente esses desejos, dando-se a criação do vinculo do Santo Espírito ou da Lombada e o do Vale da Bica ou do Jangão, no tempo e nas condições, que já deixámos descritas em capítulos anteriores. Tendo João Esmeraldo falecido no ano 1536, logo os seus dois filhos João Esmeraldo e Cristóvão Esmeraldo, em observância das disposições paternas, procederam ao sorteio dos dois morgadíos, cabendo a João Esmeraldo, ____________________ (27) Seriam as 40 missas celebradas pelas almas de Afonso Enes Colunibreiro, António Malheiro o Velho, Francisco Aurélio da Câmara Leme, Pedra Leme, D. Antónia Maria de Menezes, Sebastião de Morais o Velho, Sebastião de Morais o Moço, João Gomes de Andrade, D. Antónia de Morais, João Nunes, D. Mariana de Menezes, D. Catarina Leme, João Gomes da Ilha, D. Catarina de Barros, João Lopes, Henrique Moniz, D. Isabel de Andrade, D. João José de Sá e Francisco Fernandes. filho mais velho e do primeiro matrimónio, as terras do lado oriental que confinavam com a Ribeira da Caixa, isto é os sítios do Jangão e do Lugar de Baixo, e caindo em sorte a Cristovão Esmeraldo, filho do segundo matrimónio, os terrenos do lado ocidental, que tinham como limites a Ribeira da Ponta do Sol. Por pouco tempo se guardaram as últimas vontades do velho João Esmeraldo, com respeito á divisão dos bens territoriais da Lombada, por isso que a viúva D. Agueda de Abreu e o filho Cristovão Esmeraldo, considerando-se lesados, persuadiram o enteado e irmão a consentir em uma nova partilha, ficando o importante sítio do Lugar de Baixo fazendo parte do dote da viúva e fora dos bens que constituíam as áreas dos dois morgadíos. Parece que mais uma vez se repetiu a conhecida partilha da fabula, em que Cristóvão Esmeraldo fez o papel de leão, sendo manifesta a inferioridade do vinculo do Vale da Bica com relação ao do Santo Espírito, ainda mesmo antes do cerceamento das terras do Lugar de Baixo. Mas essa inferioridade reveste as proporções duma injusta e violenta extorsão, se considerarmos a situação, natureza e extensão dos terrenos que formavam o morgado do Santo Espírito, comparadas com as do Vale da Bica. A este propósito, deparámos com a seguinte interessante informação, que temos por fidedigna: «...Cristovão Esmeraldo, já então Provedor da Fazenda Real e homem prático e positivo levou a pari du lion, deixando ao irmão, homem de genio folgasão e gastador, uma parte muito menor do que na primeira partilha». A propriedade do sítio do Lugar de Baixo, por morte de D. Agueda de Abreu, ocorrida em 1545, foi integrada no morgadio do Santo Espírito e nele permaneceu até à abolição das instituições vinculares. João Esmeraldo, diz-nos o conselheiro Agostinho de Ornelas, pouco tempo sobreviveu àquele contrato leonino e deixou uma filha única, D. Antónia Esmeraldo, que o tio Cristóvão Esmeraldo, logo tratou de casar com seu filho António Esmeraldo, ainda impubere. Obtida a necessária dispensa de Roma, celebrou--se o casamento em Lisboa no ano de 1539, sendo o contraente representado por seu pai como procurador. O rei D. João 3.º levou muito a mal que para esta aliança se não pedisse o seu consentimento, mandando logo tirar a noiva da casa de seu tio D. Pedro de Moura, onde se achava, e recolhe-la no Paço, condenando Cristóvão Esmeraldo em duzentos cruzados de multa e dois anos de degredo para Africa. Este degredo não era então o que é hoje e cumpriase servindo o degredado nobre, na guerra, com todas as honras e liberdades que lhe competiam. Apesar do poder real, Cristóvão Esmeraldo apelou para Roma e obteve uma Bula, expedida ao arcebispo o Funchal D. Martinho de Portugal, mandando entregar a noiva ao marido e tirá-la do poder de quem quer que a retivesse por mais elevada que fosse a sua hierarquia (28). O casamento de António Esmeraldo com sua prima D. Antónia Esmeraldo, filhos dos dois primeiros administradores dos morgadíos do Santo Espírito e do Vale da Bica, determinou a reunião das duas casas vinculadas. D. Antónia Esmeraldo morreu sem descendência e nomeou seu marido António Esmeraldo na sucessão do Vale da Bica, o qual, falecendo também sem geração, teve como sucessor na administração de ambos os morgados a seu irmão João Esmeraldo de Atouguia, que morreu em 1618. Neste ano entrou D. Ana Esmeraldo, irmã do precedente, na sucessão do Santo Espírito e Francisco Gonçalves da Câmara, sobrinho e genro do mesmo João Esmeraldo toe Atouguia, na administração do vínculo do Vale da Bisa. Não tornaram a reunir-se as duas casas, de que nos dois capítulos seguintes, daremos a relação completa dos respectivos administradores. ___________ (28) Informa-nos o conselheiro Agostinho de Ornelas que os documentos respeitantes a este interessante caso se encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo no Corpo Cronológico, parte 1.a, maço 62, doc. 12 e seg. XIII - Administradores do Morgadio do Santo Espírito O primeiro administrador desta casa vinculada foi Cristóvão Esmeraldo, filho do instituidor João Esmeraldo o Velho e de sua segunda mulher D. Agueda de Abreu. Nasceu por 1498, tendo-se afirmado que João Esmeraldo dera ao filho o nome de Cristóvão, como preito de homenagem e de devotada estima ao descobridor da América, ao tempo já celebrado navegador, havendo então realizado a sua terceira viagem às terras do Novo Mundo (29). De Cristóvão Esmeraldo refere pitorescamente o historiador das Ilhas que « ... o mais do tempo andava na cidade do Funchal sobre uma mula muito formosa, com oito homens detrás de si, quatro de capa e quatro mancebos em corpo, filhos de homens honrados muito bem tratados; e trazia grande contenda com o capitam do Funchal sobre quem seria Próvedor d'Alfandega d'El-Rey, que he uma rica cousa de renda de sua Alteza, e ricas casarias». Segundo nos informa o Elucidário Madeirense (1- 33) obteve Cristovão Esmeraldo a nomeação de Provedor da Alfandega no ano de 1550 e teria certamente moradia no actual e ainda aparatoso edifício daquela repartição, construído no primeiro quartel do século XVI e cujo andar nobre era destinado à residência dos Provedores, sendo certamente a esta construção que Gaspar Frutuoso, nos fins do século XVI, chamava «ricas casarias». Cristóvão Esmeraldo casou com D. Leonor de Atouguia, neta de Luiz Alvares da Costa, fundador do convento de São Francisco. Combateu em Marrocos, distinguindo-se como valente soldado. Tentou reunir os vínculos do Santo Espírito e do Vale da Bica, casando o seu filho primogénito e sucessor ________________ (29) Vid Memória sobre a residência de Christovam Colombo na Ilha da Madeira por Agostinho de Ornelas, Lisboa, 1892. António Esmeraldo, que ainda não atingira a puberdade, com sua sobrinha D. Antónia Esmeraldo, filha herdeira de João Esmeraldo, como fica descrita no capítulo anterior. Segundo Administrador: António Esmeraldo, filho do, precedente, que casou com sua prima D. Antónia Esmeraldo, filha herdeira e sucessora do administrador do morgado do Vale da Bica, ficando assim reunidas as duas casas vinculadas. Este casamento, que se realizou em Lisboa, provocou um ruidoso processo, como já deixámos referido. Não houve descendência. Terceiro Administrador: João Esmeraldo, irmão do anterior, sucedeu nesta administração, tendo tido também a do vínculo do Vale da Bica. Casou com D. Ana Correia, filha de António Correia o Grande e morreu sem geração legitima, sendo seu sucessor no vinculo do Santo Espírito sua irmã D. Ana Esmeraldo. Quarto Administrador: D. Ana Esmeraldo, irmã dos dois precedentes, que casou com António Carvalhal, conhecido pelo Sansão madeirense, em virtude da grande força muscular de que era dotado (30) Tinha muitas terras na freguesia da Ponta Delgada, que vinculou a favor de seus descendentes e aos quais se transmitiram, sendo o últimos possuidor delas o segundo Conde do Carvalhal. Com este casamento, entrou na descendência dos Esmeraldos o apelido Carvalhal, nome pelo qual se tornou mais conhecida esta antiga e nobre família madeirense. _______________ (30) Gaspar Frutuoso, com aquela conhecida prolixidade que ás vezes dedica a assuntos de pequena monta, ocupa-se com largueza dos actos de valentia muscular praticados por António Carvalhal, pondo também em relevo as acções de generosa liberalidade com que recebia todos os que procuravam a sua casa, que era então a mais afamada e acolhedora existente em todo o norte da ilha. Era cavaleiro de Cristo e fidalgo escudeiro, tendo morrido no ano de 1598 e sido sepultado na Igreja do Senhor Bom Jesus da freguesia da Ponta Delgada. Quinto Administrador: Pedro Ribeiro Esmeraldo, filho dos anteriores, cuja posse foi contestada e pleiteada nos tribunais, seguindo-se longas demandas. Casou com D. Joana de Noronha, filha herdeira de Francisco Gonçalves da Câmara. Sexto Administrador: Francisco Gonçalves da Câmara, filho do precedente, que casou com a sua parenta D. Isabel Esmeraldo, filha bastarda do 3.° administrador. Não deixou descendência e morreu em 1630. Sétimo Administrador: Luís Esmeraldo de Atouguia, e Câmara, sobrinho de Francisco Gonçalves da Câmara 6.° administrador, que tomou posse do morgadio depois de renhidos processos judiciais e a que já nos referimos no capítulo Casa Solarenga. Matrimoniou-se com sua prima D. Isabel Esmeraldo e Câmara. Oitavo Administrador: Cristóvão Esmeraldo de Atouguia e Câmara, fidalgo da Casa Real, que nasceu em 1665 e casou em 1697 com D. Helena Teresa de Castro, natural de Goa e filha de Aires Teles de Menezes, da casa dos Condes de Vila Pouca de Aguiar. No capítulo referente à capela do Santo Espírito, já nos ocupámos deste oitavo administrador do vínculo, por ter sido o reedificador dessa capela com a magnificência que deixámos descrita. Nono Administrador: Luiz António Esmeraldo de Atouguia e Câmara Teles de Menezes, filho dos precedentes. Nasceu no Funchal a 10 de Maio de 1703 e casou em 1730 com D. Leonor Josefa de Vilhena, filha de Luís de Vasconcelos de Betencourt, morgado do Loreto. Decimo Administrador: João Carvalhal Esmeraldo de Atouguia e Câmara, filho do nono administrador, tendo nascido a 3 de Setembro de 1733 e casado com D. Isabel Maria de Sá Acciaioli, filha do morgado Francisco Aurélio da Câmara Leme. Foi herdeiro da casa vinculada de sua tia D. Guiomar Madalena de Vilhena Betencourt de Sá Machado, possuidora de vários morgadios e a mais rica proprietária da Madeira e uma das maiores de todo o país. Morreu a 7 de Agosto de 1790 e foi sepultado na capela do Santo Espirito da Lombada dos Esmeraldos. Décimo Primeiro Administrador: Luiz Vicente de Carvalhal Esmeraldo de Atouguia e Câmara, que casou com D. Ana Inácia Henriques de Vilhena, tendo falecido em 1798 sem deixar descendência. Lemos a seu respeito, num livro de linhagens, que foi «filho primogenito e herdeiro na administração de mais de dôze morgados ... o que constitui o vassalo mais rico de bens patrimoniais de Portugal.» Décimo Segundo Administrador: João José Xavier de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos de Atouguia Betencourt Sá Machado, irmão do precedente e primeiro Conde do Carvalhal da Lombada. Nasceu no Funchal a 7 de Março de 1778 e morreu na mesma cidade a 11 de Novembro de 1837, sendo sepultado na capela de São João Baptista da Quinta do Palheiro Ferreiro e tendo sido feita a trasladação dos seus restos mortais para o jazigo da família Carvalhal no cemitério das Angustias, pouco depois no ano de 1882. Em outro lugar deixámos exaradas a seu respeito as linhas que vão transcrever-se: Sucedeu na importante casa de seu irmão Luiz Vicente de Carvalhal Esmeraldo de Sá Machado, o qual, segundo afirma um distinto linhagista, «era senhor de mais de doze morgadios grandes, que o constituíam c vassalo mais rico em bens patrimoniais de Portugal». 0 Conde de Carvalhal foi, não só o mais abastado proprietário da Madeira, mas a sua casa era uma das primeiras do país, em que se tinham reunido muitos vínculos e morgadios, possuindo vastas propriedades em quase todas as freguesias desta ilha e ainda no continente do reino e nos Açores deixando além disso, por sua morte, mil e tantos contos de reis em vários estabelecimentos de crédito ingleses. Nur curioso documento oficial, dirigido pelo corregedor desta comarca ao governo da, metropole em 1823, se diz que o conde do Carvalhal tem «grandíssimos cabedais no banca de Londres e em caixa, e um avultadíssimo rendimento anual, que, na presente penúria da ilha, sobe ainda de duzentos a trezentos mil cruzados», o que para a época representava uma renda verdadeiramente colossal para este arquipélago. Vivendo sem fausto nem ostentação, era no entretanto um homem de animo generoso e liberal, de que deu sobejas provas, sobretudo por ocasião de algumas crises por que passou a Madeira, tendo sido uma verdadeira providencia para esta terra, contribuindo poderosamente para debelar essas crises com a força do seu prestigio, da sua influencia e da sua grande fortuna. Arcou por vezes com a ganância desmedida dos negociantes de vinho, principalmente estrangeiros, que, mancomunando-se, faziam baixar os preços dos mostos com grande prejuízo dos pobres lavradores. Afecto às ideias liberais, teve que emigrar para Inglaterra na corveta de guerra inglesa Alligator a 22 de Agosto: de 1828, quando a Madeira foi ocupada pelas tropas miguelistas. Em Londres foi não só o desvelado protector d madeirenses ali emigrados, mas socorreu generosamente todos os compatriotas que a ele se dirigiam, afirmando que nisso despendera muitas dezenas de contos de reis. Estabelecido o governo constitucional, regressou a esta ilha em fins de 1834, e por carta régia de 13 de Setembro de 1835 foi nomeado governador civil deste arquipélago, tendo sido pouco antes, a 5 do mesmo mês e ano, agraciado com o titulo de conde do Carvalhal da Lombada. Os cuidados da administração da sua grande casa e mais ainda as doenças de que há muito sofria, afastaram-no dentro de poucos meses do governo do distrito, que muito violentado aceitara e unicamente para aceder aos desejos dos principais proprietários e influentes desta ilha. Decimo Terceiro Administrador: João Francisco da Câmara Carvalhal Esmeraldo de Atouguia Betencourt Sá Machado, sobrinho do primeiro Conde do Carvalhal, era filho de D. Ana Josefa da Câmara Carvalhal Esmeraldo, irmã do mesmo conde, e do morgado João Francisco d Câmara Leme. Nasceu este décimo terceiro administrador a 2 de Julho de 1801 e casou em 1822 cora D. Teresa Xavier Botelho, filha do distinto escritor e governador e capitão general da Madeira Sebastião Xavier Botelho, da casa dos condes de São Miguel. João Francisco da Câmara Esmeraldo era oficial do exército, moço fidalgo da Casa Real, comendador da Ordem de São Tiago e foi eleito deputado e senador por este arquipélago nos primeiros tempos do constitucionalismo. Morreu no mês de Abril de 1854. Décimo Quarto e Ultimo Administrador: António Leandro da Câmara de Carvalhal Esmeraldo Atougui Betencourt Sá Machado, segundo conde do Carvalhal, que era filho dos precedentes, nasceu no Funchal a 6 de Abril de 1831, tendo falecido no Palácio de São Pedro d mesma cidade a 4 de Fevereiro de 1888. Herdeiro duma das mais opulentas casas nobres de Portugal e das maiores em bens territoriais, veio a falecer numa situação próxima da pobreza, chegando talvez a sentir os primeiros rebates da indigência, que se aproximava a passos agigantados. Foi o último administrador das terras vinculadas do Santo Espírito, que ainda em sua vida foram vendidas em hasta pública, como consequência duma administração insensata e ruinosa. Vamos também transcrever aqui as palavras que no Elucidário Madeirense, da nossa co-autoria, deixámos consagradas à sua memória: «Sem se notabilisar em nenhum ramo do saber humano, nem se ter evidenciado em acontecimentos que ficam registados na história, foi contudo, no dizer dum seu admirador e amigo, «um homem que em vida fora a personalidade mais simpática e mais finamente característica da aristocracia madeirense; cujo nome fora conhecido lá fora no alto mundo das grandes capitais entre as personagens mais ilustres, e cuja existência, ora remansosa e prudente, ora batida das tempestades e agitada dos desvarios da época, teve sempre a linha correcta da gentileza fidalga, as grandes expansões brilhantes de um belo espírito, servido por um temperamento de artista impressionável, ardente, nervoso generoso e bom. Em Paris, em Madrid, em Lisboa, nas festas esplêndidas, nos bailes principescos, nas corridas, nos jogos de sport, na ópera, nos gabinetes da Maison Doreé e do Café Inglês, no Bois, no Prado, nos touros, nas premieres, foi ele o correcto e brilhante fidalgo, o infatigável valsista, o atrevido sportsman, o profligo, o aventureiro viveur, levando a vida a grand train, distinto entre os mais distintos, amavel, elegante e prestigioso. Um dia o pano caiu sobre esse cenário deslumbrante. A realidade inexorável e fatal apagou essa constelação de prazeres falazes e perigosos. A razão fria e grave veiu sentar-se sobre as ruínas dessa existência estonteadora e capitosa do grande mundo, cheia de ilusões e de insónias, em que a vida e a fortuna se esvaem como o ténue fio de água no deserto árido e nú. E aquele que fora o herói dessa epopeia efémera feita de brilhantismos fugazes, de ilusões esplêndidas, de loucas prodigalidades, veio sentar-se â sombra do lar, até ali mudo e triste, abandonado e esquecido. Trazia a mesma distinção nativa, a mesma elegância própria, a gentil e cortês fidalguia do nome e da condição, mas muita ilusão de menos, muita decepção a mais e para sempre desbaratada a fortuna que irreflectidamente arrojará para aquele vértice enorme e insaciável. A realidade pesava sobre ele fatal, terrível e desapiedada. Para tanto fausta e ostentação, chegando a ocupar um lugar de destaque naquelas capitais, mal podia acudir uma renda anual de cem contos de reis, que lhe dava a sua grande casa. Em Madrid, para assistir ao casamento duma princesa, mandou construir um carro que custou uma dúzia contos de reis, em Lisboa edificou um teatro junto da sua casa, onde representaram notabilidades e onde concorria a primeira sociedade da capital. Em Paris gastou fortunas com o deslumbramento da sua vida faustosa e perdulária... Ficaram celebres as brilhantes festas do Palheiro do Ferreiro, em que à mais alta e requintada distinção se reuniam as prodigalidades dum poderoso nababo. 0 Conde do Carvalhal veio expressamente à Madeira para receber o infante, depois rei, D. Luís, e tanto no palácio de S. Pedro como na quinta do Palheiro, admirou o futuro rei de Portugal os dotes de estremada fidalguia e da mais inexcedível distinção dum genuíno representante da velha aristocracia madeirense. Na casa Carvalhal tinham-se reunido diversos vínculos ou morgadíos, sendo o mais importante o do Santo Espírito, na Lombada da Ponta do Sol. Deste morgado foi o 14.º e último administrador o 2.° Conde do Carvalhal, que também herdará a casa vincular instituída na freguesia da Ponta Delgada por Manuel Afonso Sanha e sua mulher D. Mécia de Carvalhal nos princípios do século XVI, e ainda os vínculos de Agua de Mel, do Paul do Mar, dos Lemes, etc., não contando com outros situados em diversos pontos da ilha e também nos Açores e no continente do reina. Possuía vastas propriedades em todas as freguesias da Madeira, chegando a ser a casa Carvalhal a segunda ou terceira do país em bens territoriais. 0 Conde de Carvalhal, entre outras comissões de serviço público, exerceu o lugar de presidente da Câmara Municipal do Funchal e tinha a gran-cruz da ordem de Isabel a Católica e outras condecorações estrangeiras. Casará em 1854 com D. Matilde Montufar Infante, filha dos marqueses de Selva Alegre, em Espanha, e deste consórcio nasceram D. Maria da Câmara, que casou com o conde de Resende e D. Teresa da Câmara, condessa do Ribeiro Real. Depois duma vida tão agitada, vieram a ruína, o infortúnio, a saudade e a doença defrontar-se com o herói de tantas aventuras. Lutou e lutou nobremente, mas...,. a morte derrubou-o ainda na idade pujante dos 56 anos. Bulhão Pato, nas suas Memórias, e ainda outros escritores contemporâneos do Conde do Carvalhal referem-se várias vezes ao ilustre titular e sempre com grande elogio e com o mais subido apreço. XIV- Administradores do morgadio do Vale da Bica Primeiro Administrador: João Esmeraldo, filho do instituidor João Esmeraldo e de sua primeira mulher D. Joana Gonçalves da Câmara. Consentindo depois da morte de seu pai em fazer novas partilhas com sua madrasta D. Agueda de Abreu e com seu irmão Cristóvão Esmeraldo, perdeu a grande propriedade do Lugar de Baixo, que fazia parte integrante da instituição vincular do Vale da Bica, ficando esta num grande plano de inferioridade relativamente à outra corno já se acha referido noutro capitulo. Distinguiu-se no norte de Africa como valente guerreiro e dele falam com louvor Gaspar Frutuoso nas Saudades da Terra, Faria e Sousa na Africa Portuguesa e Manuel Tomás na Insulana. Casou com D. Filipa de Brito, filha de João Mendes de Brito, herdando de seu pai a administração do importante morgadio da Apresentação, na Ribeira Brava. Segundo Administrador: D. Antónia Esmeraldo, filha do anterior, que casou com seu primo António Esmeraldo, segundo administrador do morgado do Santo Espirito, ficando deste modo reunidas as duas casas vinculadas. Não deixou descendência. Terceiro Administrador: António Esmeraldo, marido da precedente, que herdou este morgado por morte de sua mulher, continuando na administração dos dois vínculos e morrendo, sem geração, no ano de 1545. Quarto Administrador: Cristóvão Esmeraldo, pai do anterior, que entrou nesta administração por morte de seu filho e teve também a do morgadio do Santo Espírito. Quinto Administrador: João Esmeraldo de Atouguia, filho segundo do precedente, que foi terceiro administrador do Santo Espírito, usufruindo ambos os vínculos. Entrou em 1555 na administração do morgado do Vale da Bica. Sexto Administrador: Francisco Gonçalves da Câmara, genro e sobrinho do anterior, que casou com D. Isabel Esmeraldo, não deixando descendentes. Sétimo Administrador: Jorge da Câmara Esmeraldo, irmão do precedente administrador Francisco Gonçalves. A posse de Jorge da Câmara foi impugnada e por esse motivo correram longas demandas, vindo finalmente a suceder nesta administração o seu filho, que se segue. Oitavo Administrador: António de Carvalhal Esmeraldo, filho do anterior, que morreu no ano de 1699, sem sucessor legitimo. Foi este que construiu a capela de Nossa Senhora da Piedade, no sítio do Jangão, pouco antes de 1679. Nono Administrador: Aires de Ornelas de Vasconcelos (1677-1737) sobrinho do precedente, que era o oitavo administrador do importante morgadio do Caniço, cuja instituição data dos fins do século XV. Era moço fidalgo da Casa Real e Patrão-Mór da Ribeira. Casou com D. Cecília Maria Madalena de Aguiar França, herdeira duns vínculos no Porto Moniz e na Calheta. 0 morgadio do Vale da Bica entrou na casa vinculada dos Ornelas no ano de 1699. Décimo Administrador: Agostinho António de Ornelas de Vasconcelos, (17181774) filho do anterior. Mostrando-se hostil à política de Pombal, que tinha como representante neste arquipélago o sobrinho do marquês o governador e capitãogeneral João António de Sá Pereira, foi por este desterrado para as terras do Caniço e ali faleceu no ano de 1774, sendo sepultado na capela de Nossa Senhora da Consolação de que era padroeiro. Décimo Primeiro Administrador: Francisco Xavier de Ornelas de Vasconcelos, (1746-1796) filho do precedente, que foi pessoa muito considerada no meio social madeirense pelas suas qualidades de carácter e vasta cultura intelectual. Décimo Segundo Administrador: Agostinho de Ornelas de Vasconcelos (17741810), sendo filho do anterior e tendo casado com D. Luisa Júlia de Castelo Branco. Décimo Terceiro Administrador: Aires de Ornelas, (1801-1828) filho do anterior e que foi casado com D. Ana da Câmara Leme. Décimo Quarto Administrador: Aires de Ornelas de Vasconcelos, tio do anterior (1779-1852). Décimo Quinto Administrador: Conselheiro Agostinho de Ornelas de Vasconcelos, filho do precedente, que nasceu no Funchal em 1836 e morreu na Alemanha em 1901. Bacharel em direito, deputado, par do reino, diplomata, escritor e académico, foi um dos mais distintos madeirenses do século XIX. Da pequena biografia que dele deixámos escrita no Elucidário Madeirense, vamos extratar alguns períodos: «Na sua longa carreira como funcionário do Ministério do Negócios Estrangeiros, deu sempre provas eloquentes da robustez da sua inteligência, da sua grande ilustração e das raras qualidades de diplomata, que o distinguiam e o tornavam um verdadeiro homem de estado, sendo por isso considerado como um dos mais acreditados membros do corpo diplomático português. Também trilhou as tortuosas veredas da política portuguesa. Saiu, porém, incólume e sem mancha desse tremedal, em que tantos chafurdam a pureza das suas convicções e até a própria dignidade. Foi eleito deputado pela Madeira para as legislaturas de 1868 a 1869, 1869 a 1870, 1870 a 1871 e 1871 a 1874, sendo por carta régia de 16 de Maio deste último ano nomeado par do reino. Distinguiuse em ambas as câmaras como parlamentar de grandes méritos, assinalando-se sempre nos seus discursos pela mais perfeita urbanidade, de par com uma notável correcção de forma. Não era, sem duvida, um tribuno que arrebatasse os ouvintes em catadupas de eloquência, mas um orador fluente, correcto e conhecedor dos assuntos que discutia, sendo a sua palavra sempre escutada com a maior atenção por toda a câmara. Entre os discursos que proferiu em ambas as casas do parlamento, alguns se contam como notáveis, devendo especializar-se os que pronunciou acerca do padroado da Índia e missões ultramarinas. Foi, como dissemos, um apaixonado cultor das ciências e das letras, sendo na verdade o seu mais constante empenho enriquecer o seu espírito com novos conhecimentos, hauridos quotidianamente em largos estudos e demoradas leituras. Tendo uma brilhante inteligência, servida por uma assombrosa memória, possuía uma não vulgar erudição sobre todos os ramos do saber humano, para o que não pouco contribuía o conhecimento de várias línguas em que era versado, incluindo a própria língua latina. Deu-nos, como literato, provas incontestáveis do seu valor nos escritos que deixou, mostrando que poderia ter alcançado um nome honroso na história do seu país, sede todo se houvera dedicado à carreira das letras. A obra-prima de Goethe, a famosa tragédia o Fausto, era pouco menos do que desconhecida entre nós. 0 Conselheiro Agostinho de Ornelas abalançara-as à arriscada empresa de trasladar em vernáculo o mais admirável produto, da literatura alemã. Árduo e difícil trabalho era esse para o nosso ilustre biografado, que não sendo um poeta quis traduzir em verso português a obra genial do maior poeta da Alemanha. A versão ressentiu-se dessa circunstância, e força é confessar que a forma poética nem sempre saia isenta de imperfeições. Muitas vezes; essas imperfeições obedeceram ao desejo, elevado até ao mais apurado escrúpulo, de traduzir fielmente o pensamento de Goethe, embora com evidente sacrifício da forma. A tradução de António Feliciano de Castilho, que apareceu mais tarde, é sem duvida correctíssima e ornada de verdadeiras galas poéticas, mas feita sobre uma imperfeita versão francesa e com os arrojos e liberdades do seu estro de primorosíssimo poeta, distancia-se com alguma frequência do original alemão, parecendo ás vezes, antes uma paráfrase do que uma verdadeira tradução. Não faltam críticos que prefiram a versão do Conselheiro Ornelas à de Castilho, por ser feita sobre o original alemão e com um inexcedível escrúpulo. É sem dúvida e apesar dos seus defeitos um trabalho de valor, que muito abona os seus méritos literários. Em 1881 publicou-se na porta um grosso volume intitulado Obras de D. Ayres de Ornelas de Vasconcelos, que contém os diversos escritos do antigo e inolvidável bispo desta diocese, que era irmão do conselheiro Agostinho Ornelas. Esses belos escritos vêem precedida larga e primorosa biografia do ilustre prelado, que ocupa perto de 200 páginas do livro, e que no dizer dum distinto escritor e abalizado lente da Universidade, foi escrita e pena de ouro. Traçou essa biografia verdadeiro modelo linguagem e que tem um acentuado sabor clássico conselheiro Agostinho de Ornelas. Em 1892, por ocasião do centenário de Colombo publicou uma interessante Memória sobre a residência de Christovan Colombo na Ilha da Madeira, que foi incluída no volume Memórias, que a Academia Real das Ciências, de Lisboa fez publicar para celebrar aquele centenário. Por todos esses títulos, foi eleito membro daquela Academia, tendo sido um dos sócios por ela nomeados para organizar a publicação das citadas Memórias. Era também membro de outras sociedades cientificas e literárias, tanto nacionais como estrangeiras. Desempenhou distintamente diversas comissões de serviço público de alta importância, como a de representar Portugal nas festas do centenário de Colombo em Madrid, e a de delegado do nosso país na célebre conferência da Haia realizada em 1898. Tinha, entre outras, as seguintes condecorações: as gran-cruzes de Carlos 3.°, de Espanha, de S. Gregório Magno, de Roma, da Coroa de S. Estanislau, da Prússia, grande oficial da Legião de Honra, comendador e cavaleiro de S. Tiago, comendador da ordem de Alberto o Valoroso, da Saxónia, da Águia Vermelha, da Prússia, da Imperial Ordem da Rosa, do Brasil, etc. Morreu a 6 de Setembro de 1901 em Niedervalluf, Alemanha, quando exercia o importante cargo de ministro plenipotenciário de Portugal, na Russia. (31) Ultimo Administrador: 0 conselheiro Aires de Ornelas de Vasconcelos foi o último possuidor das terras do morgadio do Vale da Bica, mas não teve propriamente a administração deste antigo vinculo, porque ao tempo da morte de seu pai já estavam abolidas todas as instituições vinculares do nosso país. Filho primogénito do décimo quinto administrador Agostinho de Ornelas de Vasconcelos e D. Maria Joaquina Saldanha da Gama de Ornelas, filha dos condes da Ponte, herdou todos os bens que constituíam este morgadio, tendo sido o último representante da família que os possuía, pois que no ano de 1920 procedeu à venda total desses mesmos bens aos caseiros e meeiras que o agricultavam. Nasceu na freguesia da Camacha, desta ilha a 5 de Março de 1866 e faleceu em Lisboa a 14 de Dezembro de 1930. Seguiu a carreira das armas, em _____________ (31) Membro duma das mais ilustres famílias madeirenses e irmão do 15.° administrador deste morgadio do Vale da Bica foi o arcebispo de Goa D. Aires de Ornelas de Vasconcelos, que nasceu no Funchal no ano de 1837 e faleceu em Lisboa a 28 de Novembro de 1880. Pelas suas eminentes virtudes, talento superior, vasta cultura e acendrado zelo apostolico era considerado um dos maiores prelados do seu tempo, não só de Portugal como de toda a cristandade. Abalizado teólogo, distinto poliglota, escritor primoroso, dotado do mais fino e cativante trato, generoso e hospitaleiro, sempre esquecido dos seus pergaminhos e da alta hierarquia do seu cargo, conquistou em Goa e na Índia Inglesa as mais gerais simpatias e admirações, que ainda hoje, passado já meio século, são relembradas com o maior respeito e carinho no meio das populações indianas. Reunidos os seus escritos, foram publicados num volume de 538 pag., sob o título de «Obras de D. Ayres de Ornellas de Vasconcellos», Porto, 1881, e precedidos dum brilhante estudo biográfico, escrito pelo conselheiro Agostinho de Ornelas, irmão do arcebispo, de quem no texto nos ocupamos. que notavelmente se distinguiu, e foi deputado, par do reino, ministro de estado, revelando sempre os fulgurantes dotes duma inteligência privilegiada e duma vasta cultura intelectual de par com as mais firmes e austeras qualidades de carácter: Deixou vários livros e opúsculos, especialmente consagrados a assuntos militares e coloniais, em que era um mestre consumado. No Elucidário Madeirense, (II-250 e seg.) deixamos esboçada uma ligeira biografia do conselheiro Aires de Ornelas. XV - A Venda das Propriedades Como já ficou ligeiramente esboçado, a casa dos condes do Carvalhal da Lombada, apesar de ser uma das mais opulentas de todo o país, não pôde suportar o choque da vida perdulária e faustosa do seu chefe e mais ainda talvez os desencontrados embates duma pouco cuidada e escrupulosa administração. Recorria-se com frequência ao empréstimo, e a Companhia de Crédito Predial Português, que era um grande credor a temer, pôs em praça judicial a maior parte das propriedades, que aquela grande casa possuía em quase todas as freguesias da Madeira. Nessa altura, afirmam-no, vários contemporâneos do facto, teria sido relativamente facial conjurar a derrocada, se uma administração mais sensata e esclarecida fizesse sentir a sua benéfica acção na gerência dos diversos negócios que lhe estavam confiados. As terras que formam os importantes sítios da Lombada dos Esmeraldos e do Lugar de Baixo foram arrematados em hasta pública, no dia 17 de Dezembro de 1893, pela firma comercial estrangeira da praça do Funchal A. Giorgi & C.ª, por uma quantia pouco superior a cem contos de reis. Atravessava então o arquipélago uma grave crise económica com grande falta de numerário e de suficientes créditos na praça, e não tendo havido o previdente cuidado de evitar que as propriedades da casa Carvalhal fossem praceadas em vastas extensões de terrenos, poucos puderam aventurar-se à licitação dessas terras, sendo por isso quase todas vendidas por preços muito inferiores ao do seu verdadeiro valor. As propriedades da Ponta do Sol, que durante um período de tempo superior a quatro séculos, estiveram na administração e usufruto dos sucessores de João Esmeraldo transitaram para a posse de pessoas estranhas, como então aconteceu com tantas outras terras que os Carvalhais possuíam nesta ilha, no continente português e nos arquipélagos dos Açores e das Canárias, sendo caso para recordar o velho proloquio latino: Sic transit gloria mundi. 0 conselheiro Aires de Ornelas de Vasconcelos, último representante da casa vinculada do Vale da Bica ou do Jangão, resolveu vender as terras que constituíam o antigo morgadio, as quais, como as do Santo Espírito, estiveram também durante séculos na posse dos seus antepassados. Para esse fim, organizou-se uma sociedade de vários indivíduos, que realizou a compra total da propriedade, fazendo em seguida a revenda das diversas parcelas aos próprios parceiros agrícolas que as cultivavam. 0 Conselheiro Aires de Ornelas não teve a vida brilhante e aparatosa do segundo Conde do Carvalhal, mas a sua situação especial no nosso país como Lugar-Tenente do rei D. Manuel, obrigando-o a frequentes e dispendiosas viagens ao estrangeiro, apressou a ruína da importante casa que herdara de seus maiores e que desinteressadamente pusera a favor da causa, que ele julgara um indeclinável dever defender a todo o transe. Esta inconfidência, se como tal pode ser considerada, só serve para honrar e enaltecer a memória do conselheiro Aires de Ornelas, que ainda os adversários das instituições monarquias não deixarão de admirar e respeitar devidamente. XVI - Uma compra imaginária... Não querendo imprimir ao nosso ligeiro estudo a feição característica dum panfleto, daremos a este último capítulo o moderado titulo de Compra imaginária..., embora esteja ele a exigir uma epigrafe mais expressiva mais enérgica, para classificar com verdade e com justiça os factos que vamos sumariamente narrar. Delineou-se e pretendeu-se levar a cabo uma arriscada e temerária e preza, em que a uma audácia sem limites andou sempre ligado o mais descarado e revoltante cinismo. Nela encontramos, por vezes, traços do genio de Maquiavel, não sendo também difícil descobrirem-se vestígios duma acentuada: demência. Teve a projectada façanha, desde a sua origem, um plano inteiramente preconcebido e esboçado nos seus mais detalhados pormenores? Ou, concebida a ideia inicial, ir-se-ia a pouco e pouco arquitectando a famosa trama até a sua final execução e conforme as circunstâncias ocorrentes foram aconselhando? E mais plausível aceitar-se a última hipótese e admitir-se também que vários colaboradores houvessem entrado com o seu concurso para a realização do famigerado plano. O importante acontecimento, além dos indivíduos que a ele se achavam mais ou menos proximamente ligados por quaisquer interesses, passou quase despercebido para o grande público, tendo a imprensa periódica guardado a tal respeito um cauteloso e sistemático silencio, e até o governo central, nas diversas «démarches» que empreendeu para dar ao caso uma definitiva solução, julgou acertadamente faze-lo com as mais prudentes reservas, como a gravidade e o melindre da situação então criada estavam imperiosamente exigindo. Realizada a venda das terras que constituíam o vinculo do Vale da Bica, vulgarmente conhecido pelo nome de Jangão, como fica referido no capítulo anterior, surgiu a ideia da compra total dos sítios do Lugar de Baixo e da Lombada dos Esmeraldos, que eram os domínios territoriais do morgadio do Santo Espírito, com o fim de proceder-se à revenda parcial dessas terras aos parceiros agrícolas, que desde séculos e de geração em geração as vinham cultivando no conhecido e generalizado regimen de colonia. Um indivíduo residente na vila da Ponta do Sol, que era ali empregado de justiça e cotado influente político, propôs aos proprietários A. Ciiorgi & C.ª a compra dessas propriedades, tendo estes feito uma promessa verbal de venda pela importância de trezentos mil «dollares», que deveriam ser depositados num banco de Nova Iorque até o dia 31 de Dezembro de 1924. No entretanto ia o negociador pontasolense, realizando, sob palavra, a cedência de muitos tratos de terreno e ao mesmo tempo recebendo quantias avultadas, que fizera colocar, em seu nome, numa casa bancária do Funchal. Não faltou quem, desde logo, agoirasse mal do resultado dessas transacções, pelo conhecimento que havia das pessoas e das coisas, mas a negociata decorria normalmente e sem os protestos dos que nela se achavam interessados. Na época aprazada, o dinheiro não deu entrada nos cofres da casa de crédito dos Estados Unidos e o que se achava depositado no Funchal continuava à ordem do proponente da já famigerada compra. Começaram então a circular insistentemente boatos reveladores de suspeitas e de duvidas, acompanhados de ásperos e pouco abonatórios comentários. Os ingénuos colonos, na fundada esperança ele alcançar a posse imediata das terras, lá iam entregando as importâncias totais ou parciais das supostas compras, recebendo apenas em troca umas ilusórias quitações, que não valiam mais do que o simples papel em que estavam escritas. E, a muitos deles, nem essa fugaz esperança lhes foi permitido gozar, porque não conseguiram obter - um pequeno retalho de costaneira com a indicação da entrega dos pobres escudos, que tão laboriosamente lhes custara a ganhar. Começa agora a parte mais interessante da grande façanha. Esboçada um pouco a medo, mas revestindo logo um carácter ostensivo e profundamente hostil, iniciase uma campanha de descrédito, a que várias pessoas se associaram, contra os proprietários das terras, criando-se entre os caseiros e meeiros uma atmosfera de ódios e vinganças, em que a danificação e a destruição da propriedade se fizeram largamente notar. Por uma continua e sistemática propaganda, fez-se acreditar aos colonos que eles ficariam legítimos possuidores das terras, se dentro do período de cinco anos não pagassem aos actuais proprietários as revidas e as de medias, que desde todos os tempos nunca tinham deixado de ser satisfeitas aos antigos administradores do morgadio da Lombada. Por toda a parte se encontra sempre um estado latente de revolta dos colonos ou rendeiros contra os «senhorios» ou donos das propriedades rústicas, não sendo para entranhar que indivíduos sem escrúpulos descobrissem nos pobres e rudes camponeses da Ponta do Sol terreno de fácil germinação para as suas ideias, embora se tratasse de levar à prática os princípios mais diametralmente opostos ao direito, à razão e ao bom senso. E essas perniciosas ideias desenvolveram-se e cresceram rapidamente e até largamente frutificaram, produzindo tal perturbação e desordem, que em breve se transformaram na mais completa anarquia. Os proprietários da Lombada e do Lugar de Baixo, como é natural que tivesse acontecido e no uso do mais legitimo direito, recorreram aos tribunais da comarca, que tem a sua sede, paredes meias, com o foco do incêndio que alastrava sempre. A sua situação era simplesmente esta não realizaram a venda, não recebiam um ceitil das rendas das suas vastas propriedades e estavam ainda ameaçados de ser espoliados da sua posse. Instauraram-se diversos processos judiciais, que em geral não atingiam um andamento apreciável ou não tinham execução as sentenças proferidas. Ia decorrendo o tempo e os interessados no eficaz resultado da audaciosa proeza, apoiados na força de três mil habitantes com centos de homens válidos e dispostos ás maiores violências, julgaram ganha a partida e consideravam-se já senhores absolutos das terras dos antigos morgados Esmeraldos. Era até certo ponto justificada essa suposição à vista da impotência ou fraqueza dos tribunais e mais ainda dos que superintendem nas cousas públicas do nosso país ... A política mesquinha de aldeia também lançou seu manto protector sobre os insignes negociadores, que já contavam com a impunidade para as suas arriscadas mas lucrativas façanhas. Até chegou a espalhar-se, com certos visos de verdade, que um ilustre advogado, professor de leis numa universidade, tinha emitido opinião favorável à dos supostos compradores da Lombada, podendo ainda estes exigir da firma comercial A. Giorgi & C.ª uma indemnização de mil e quinhentos contos pelo prejuízo moral e material de que ela fora causante!!! Esta situação não podia prostrar-se indefinidamente lá veio uma tardia e arrastada ordem de prisão contra o principal protagonista desta comédia, que se não efectuou, porque, mais uma vez ainda, a politica local cobriu os prevaricadores com a protectora capa da misericórdia. E certo que algumas prisões se fizeram, mas de indivíduos que tinham uma responsabilidade muito atenuada nos acontecimentos e que eram apenas instrumentos de ocultos mandatários, não se tendo mantido tais prisões e não havendo contra esses indivíduos qualquer procedimento criminal que correspondesse a um sério correctivo para os des, mandos praticados. No entretanto receava-se fundadamente que se dessem novas e mais eficazes tentativas de encarceramento, seguidas de outras violentas mas necessárias medidas, que teriam como epilogo as células da penitenciária, e tomou-se então a resolução heróica de por o cabecilha a salvo e a bom porto, procurando-se em país estrangeiro um asilo seguro contra as importunas investidas dos beleguins da justiça... Assim se fez. Talvez seja desnecessário acrescentar que os dois mil e trezentos, contos depositados numa casa bancária do Funchal não foram entregues aos donos das terras, não foram restituídas aos colonos e caseiros e não foram postos à ordem de qualquer entidade oficial, como garantia de futuras transacções que viessem a realizar-se. Tudo caiu no insondável abismo . . . da grande proeza, seguindo a marchas forçadas para as distantes terras de além fronteiras. Por uma triste ironia do destino, estava o caso solucionado com respeito aos autores da façanha, mas apresentava um aspecto inquietador e sombrio com relação aos proprietários das terras e aos seus respectivos cultivadores. Esses proprietários, ainda no uso dum legitimo direito e como bons súbditos ingleses que são, solicitaram a interferência do governo do seu país, depois de esgotados os meios que as leis portuguesas lhes facultavam para assegurar a posse dos seus haveres, que durante largos anos tinham adquirido e usufruído à sombra das mesmas leis. 0 nosso governo, na conjuntura ocorrente, seguiu a lei do menor esforço como as circunstancias de ocasião o persuadiam. Podia impor o exacto cumprimento das leis, levar os tribunais a fazer justiça inteira, compelir as autoridades locais a sustentar o respeito devido pela propriedade alheia e a restabelecer a tranquilidade e a ordem no meio de populações assoladas por um vento de anarquia., Como o estado de espírito, mantido em alta tensão por vis especuladores, excluía todas as tentativas suasórias e de conciliação, e como também os magistrados judiciais e os representantes do poder se consideravam impotentes para debitar ou ao menos atenuar o mal, só restava ao governo da metrópole o emprego da violência em pé de guerra ou a adopção de medidas suaves, conducentes a assegurar a posse legitima da propriedade e a restaurar o sossego e a paz, embora estabelecendo algumas sanções para os erros e desvarios cometidos, prestigiando deste modo a acção directa do mesmo governo na solução de tão momentoso assunto. Foi o que sensata e criteriosamente se fez. Para as resoluções tomadas pelo nosso governo e para a liquidação final desta grave e complicada questão muito concorreu o distinto madeirense dr. José de Almada, encarregado pelas estações superiores de propor as bases em que deviam assentar essas resoluções, depois de proceder a um aturado e consciencioso estudo, tendo-se previamente ouvido as reclamações de todas as classes interessadas. 0 ilustre funcionária que no desempenho de importantes comissões de serviço público no estrangeiro e nas nossas colonial ultramarinas, tem dado sobejas provas duma rara competência e do mais atilado critério, solucionou o caso da Lombada dos Esmeraldos, dentro dos limites da possibilidade e sem desprestigio algum para o estado, nas condições mais favoráveis para todos, sem esquecer o melindre e a gravidade da situação política, social e económica do nosso país. O ilustre ministro dos negócios estrangeiros, o dr. Betencourt Rodrigues, aceitou nas suas linhas gerais esses ponderados alvitres, que serviram de fundamento á redacção definitiva dos decretos que deram por resolvida essa importante questão. A reclamação apresentada pelo embaixador inglês em Lisboa foi considerada e aceita nos melhores termos, adoptando-se em principio a expropriação amigável das terras pelo governo português e a venda delas aos caseiros e meeiros nas condições que seriam posteriormente estudadas e decretadas. (32) Em virtude das disposições daqueles decretos, que vieram embora tardiamente restabelecer a ordem, fazer acatar o direito de propriedade e assegurar os legítimos interesses de milhares de indivíduos, o governo do nosso país, depois dum prévio acordo, procedeu à imediata expropriação ou compra das terras dos sítios da Lombada e do Lugar de Baixo, mediante o pagamento de trezentos mil «dollares», quantia esta aproximadamente igual à da promessa de venda feita em 1923 pelos respectivos proprietários ao celebre negociador da vila da Ponta do Sol, e mais o valor das rendas atrasadas e ainda não recebidas. __________ (32) Considerando que se impõe a expropriação por utilidade pública e urgente das propriedades denominadas do Lugar de Baixo e da Lombada dos Esmeraldos, sitas no Concelho da Ponta do Sol, distrito do Funchal, pertencentes à firma A. Giorgi & C.ª, como meio de solucionar as questões a que a exploração delas tem dado lugar e de realizar, sem prejuízo para o estado e com a prévia concordância da firma proprietária, a aspiração dos povos do concelho de adquirirem as terras que cultivam e que têm valorizado com o seu trabalho e capital; Considerando que os tramites usuais do processo de expropriação não se compadecem com a natureza especial deste caso, nem com a conveniência da sua rápida regularização; Atendendo ao disposto no art.° 2. °, n.° 2, da lei de 26 de Julho de 1912; Usando das faculdades que me confere o n.º 2.° do artigo 2.° do decreto n.º 12740, de 26 de Novembro de 1926. Hei por bem, por proposta dos Ministros de todas as repartições, decretar, para valer como lei, o seguinte. Artigo 1.º - É declarado de utilidade pública e urgente a expropriação, pelo Governo Português, das propriedades denominadas Lugar de Baixo e Lombada dos Esmeraldos, sitas na freguesia e concelho da Ponta do Sol, distrito do Funchal, Ilha da Madeira, pertencentes à firma A. Giorgi & C.ª, com todos os direitos que lhe são inerentes. Artigo 2.° - O Governo Português tomará imediatamente posse das ditas propriedades indemnizando pelo seu valor a firma expropriada com dispensa das formalidades e praxes estabelecidas nas leis. § Único - O contrato sobre o valor da indemnização será celebrado por escritura pública na cidade do Funchal entre um representante do Estado e a firma expropriada, executando-se a transmissão nesse mesmo instrumento. Artigo 3.º - Serão isentos do imposto de selo e outras quaisquer taxas ou emolumentos os actos e contratos, documentos ou outras quaisquer formalidades necessárias para se efectivar a transmissão das propriedades mencionadas para a posse imediata do Estado. Artigo 4. - O Governo Português poderá alienar em hasta pública as referidas propriedades, no todo ou em parte, tomando como base mínima o custo da expropriação e tendo preferência os actuais colonos, rendeiros, meeiros ou caseiros que tiverem pago as rendas vencidas. § 1.—O Governo poderá estabelecer o pagamento das terras em três prestações anuais, vencendo juros de 8 por cento ao ano. Na cidade do Funchal e nas notas do tabelião Valentim Pires, no dia 26 de Janeiro de 1928, celebrou-se a escritura pública da cedência ou venda daquelas propriedades ao governo português, representado neste acto pelo dr. José de Almada, feita pelos seus legítimos possuidores, os membros da firma comercial A. Giorgi & C.ª, realizando-se então o pagamento daquelas importâncias, que ascenderam à soma de seis milhões e trezentos e setenta e sete mil escudos. Estava arrumada a questão diplomática e solucionado o assunto como relação aos «senhorios» directos das terras, mas faltava resolve-lo com respeito aos seus colonos e cultivadores, que tinham ingenuamente lançado na voragem da celebre negociata quantias superiores a dois milhões de escudos. Era este o ponto que oferecia maiores dificuldades e exigia uma mais demorada e ponderada solução, para não trilhar-se o caminho dos vexames e das violências, que convinha por todos os motivos evitar. Diremos a titulo de informação, que os sítios da Lombada e do Lugar de Baixo compreendiam cerca de dez mil lotes de pequenos tratos de terreno, cultivados por oitocentos caseiros e meeiros, tendo um número deles superior a setecentos, isto é, quase a totalidade, apresentado mil e cem documentos, passados pelo chefe das «transações» de venda, de várias importâncias pagas e destinadas à compra desses terrenos, que deveria realizar-se na ocasião mais oportuna . . . 0 decreto n.° 15174, de 14 de Março de 1928, que vem acompanhado do respectivo regulamento, foi alterado, em muitas das suas disposições, pelo decreto n.° 19268, de 24 de Janeiro de 1931, tendo este, por sua vez, sido rectificado e novamente publicado no Diário do Governo de 24 de Fevereiro do mesmo ano. Constituem estes diplomas legislativos as directrizes que hão-de orientar as diversas entidades oficiais na resolução definitiva do grave problema, cabendo principalmente ao director de finanças do distrito do Funchal a execução dessas disposições, que foi iniciada com o maior acerto e competência pelo dr. Júlio Gonçalves, que ao tempo exercia esse melindroso cargo. Como actos preparatórios e de segura apreciação, para realizar a venda equitativa das terras aos colonos, proceder-se-ia a um levantamento topográfico de todas elas e em seguida se faria a classificação das suas qualidades produtivas, estabelecendo-se a distinção em terrenos de primeira, segunda e terceira classe. Realizou-se já nas melhores condições o levantamento da carta topográfica do Lugar de Baixo e da Lombada e não tardará que se inicie o trabalho meticuloso da qualificação das glebas, quanto aos seus elementos de produção e fertilidade. Seguidamente se procederá á avaliação das terras, segundo a natureza delas, de cujo resultado se dará inteiro conhecimento aos interessados, recebendo-se destes as reclamações que entenderem dever apresentar com respeito a essas mesmas classificações e avaliações. Serão então os caseiros e meeiros convidados a comprar, em condições favoráveis de pagamento, as terras que cultivam, devendo somente ser vendidas em hasta pública aquelas que esses colonos não pretenderem adquirir. No entretanto foi promovida a venda judicial dos haveres pertencentes ao principal fautor da já decantada proeza, tendo produzido uma importância total superior a quinhentos mil escudos, que o estado arrecadou e ficou servindo de caução às rendas atrasadas dos últimos anos. Essa importância há-de ser proporcionalmente descontada aos caseiros e rendeiros, quando estes realizarem a compra definitiva das terras.