A Primitiva Colonização da Madeira
Deve fixar-se o início da colonização madeirense nos primeiros anos do segundo
quartel do século XV.
(1)
0 Os capitães donatários, apesar de se acharem
investidos dos mais amplos poderes de administração, teriam que cingir-se,
quanto à distribuição das terras virgens, às instruções emanadas do infante D.
Henrique, crendo-se que o sistema das sesmarias, já então regulado no continente
português por leis especiais
, se houvesse aplicado à Madeira, embora sofresse
(2)
as indispensáveis modificações que as circunstancias de momento pudessem
aconselhar e de harmonia com as clausulas exaradas nessas mesmas instruções.
.
(3)
A amenidade do clima e a notável ferocidade do solo eram um poderoso
incentivo para o amanho e cultivo das glebas, mas o inverosímil acidentado dos
terrenos, de par com o basto revestimento florestal e ainda outras inevitáveis
condições do meio, tornavam sobremaneira difícil uma larga exploração agrícola,
_________________
(1) Na obra Alguns Documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo..., publicados por ocasião da celebração do
quarto centenário do descobrimento da América, vera transcrito o trecho duma carta de doação, feita pelo infante D.
Henrique à Ordem de Cristo e com a data de 18 de Setembro de 1460, concebido nos seguintes termos: «...comecei a
povoar a minha ilha da Madeira averá ora trinta e cinco anos, e isso mesmo a do Porto Santo, e deshi, proseguindo, a
Deserta, das quais ilhas que assim edifiquei e novamente achei...». Este trecho dá aproximadamente o ano de 1425
como o do começo do primitivo povoamento da Madeira.
(2) Vid. Gama Barros: História da Administração Pública em Portugal, vol. III, pag. 699 e seg.
(3) As instruções, anteriormente concedidas, tiveram sua plena confirmação nas cartas dos anos de 1440, 1446 e 1450,
em que o Infante D. Henrique faz aos donatários Tristão, Perestrelo e Zargo doação das capitanias de Machico, Porto
Santo e Funchal, lendo-se na última delas (e o mesmo mutatis mutandis se leem nas outras) estas palavras: « - E me
praz que ele possa dar per suas Cartas a terra desta parte per ho forall da ylha a quem lhe prouver com tall condiçom
que aquelle a quem der a dita terra aproveyte atee cinco anos e nom aproveytando que Eu a possa dar a outre e
depois que aproveytada for a leyxar por aproveytar atee outros cinco anos que por yso mesmo a possa dar - ». (Saud.
da Terra pg. 454 e seg). Estas disposições foram posteriormente modificadas, concedendo-se mais amplas regalias aos
cultivadores das terras, como o direito à propriedade das bemfeitorias, a faculdade de poderem aforar e até vender as
mesmas terras, observadas certas clausulas, que não eram tídas por onerosas ou vexatórias. Numa carta de sesmaría,
de 1503, que concede umas terras em Santana, a Urbano Lomelino, lê-se «...has possam bender dar doar arrendar
aforar por quanto nos lhas damos para elles e todos seus herdeyros acedentes e decedêtes... ».
para um tão limitado número de colonos e povoadores.
(4)
Essa deficiência foi
suprida pelo escravo africano, que durante séculos regou com o seu suor o torrão
madeirense, e cruzando-se com os sesmeiros continentais, tão profundamente
abastardou a pureza nativa da raça. Iam surgindo os primeiros núcleos de
população e -formando-se as chamadas «fazendas povoadas», que, prosperando e
desenvolvendo-se, se constituíam em povoações importantes. O principal centro
destes nascentes povoados era uma pequena e modesta ermida e em torno dela se
adensava a população, que em breve se transformava em uma freguesia populosa,
com a sua regular constituição da família e da sociedade.
(5)
Por meados do
século XV, já existiam na Madeira algumas paróquias, que gozavam a
independência duma completa autonomia civil e religiosa, e que, multiplicandose, determinaram sem demora a criação de vários municípios.
______________
(4) Era, na verdade, muito reduzido o número dos primitivos colonizadores, se tivermos de compara-lo com as
dificuldades que assoberbavam os trabalhos do incipiente povoamento. As antigas crónicas poucos nomes fixaram
desses primeiros pioneiros da colonização madeirense. Nada se sabe com respeito aos mais activos e qualificados
companheiros de Bartolomeu Perestrelo e Tristão Vaz, os primeiros donatários do Porto Santo e de Machico, mas
conhecem-se os nomes de Gonçalo Aires Ferreira, João Afonso Correia, Francisco de Carvalhal, João Lourenço, António
Gago, Rui Pais e Álvaro Afonso, como dedicados auxiliares de João Gonçalves Zargo, primeiro capitão donatário do
Funchal, sendo alguns deles troncos das mais antigas e distintas famílias do arquipélago.
(5) Como ampliação do assunto esboçado na nota (3), convém acrescentar que una dos factores, que mais
contribuíram para o referido desenvolvimento da colonização madeirense, foi o das concessões territoriais feitas pelo
sistema da sesmarias, atraindo um número considerável de colonizadores, que activamente se dedicaram á cultivação
das terras, que lhes eram confiadas. Estabeleceram estes muitas «fazendas povoadas», em que residiam com as suas
famílias, com os seus colonos e escravos, superintendendo directamente nos trabalhos da lavoura e arroteamento dos
campos incultos. A breve trecho se tornaram senhores das terras e ao regímen das sesmarias sucedeu o da vinculação
da -propriedade, deixando o exercício da industria agrícola aos escravos e colonos menos favorecidos da sorte e
nascendo então o chamado sistema ou contrato de colona que ainda perdura. E, como diz o ilustre anotador das
Saudades da Terra (ed. de 1873), «o sesmeiro rico enfastiou-se da vida campesina, ufanou-se da sua originária
fidalguia e apeteceu vivenda de mais aparato e bulício, desprezou a terra, vinculou-a e veio assentar residência luxuosa
e desperdiçada nas povoações populosas. As instituições vinculares multiplicaram-se extraordinariamente, chegando
elas a abranger cerca de duas terças partes das terras aráveis da Madeira. É certo que bastantes colonos se
encontravam numa situação deplorável, mas o maior número deles vivia numa regular mediania, tendo uma parte
considerável dos «caseiros» e «meeiros, com a abolição dos vínculos e com a divisão fragmentária das grandes
propriedades rústicas, passado a ser os proprietários e senhorios das terras que cultivavam.
II
Lugar, Freguesia e Vila da Ponta do Sol
Ao iniciarem-se os trabalhos da colonização desta ilha, foi o lugar da Ponta do
Sol um dos primeiros em que a monda dos arvoredos e o arroteamento das
lombas e vertentes se não fizeram esperar muito. Entre os antigos povoadores
conhecidos, sobressai o nome de Rodrigo Anes o Côxo, geralmente considerado
como o «fundador deste lugar. Diz o distinto comentador da História Insulana
que descendia da família nobre dos Furtados e que ao chegar à Madeira
«procurou aquele lugar despovoado» e o fez cultivar sem demora. Levantou ali a
igreja de Nossa Senhora da Luz, onde jaz sepultado, junto do altar da padroeira,
como dispôs em seu testamento, aprovado em Abril de 1468, mandando que na
lápide sepulcral se inscrevesse que fôra ele o primeiro que dera princípio aquela
povoação. Cresceu rapidamente em importância e no número dos seus habitantes,
o que determinou a elevação deste lugar à categoria de paróquia, criada no
alvorecer segunda metade do século XV.
(6)
Entre os antigos povoadores
destacam-se os nomes de várias pessoas nobres, nacionais e estrangeiras, tendo
____________
(6) Rodrigo Anes fundou uma pequena capela, dedicada a Nossa Senhora da Luz, nos princípios do terceiro quartel do
século XV. Passou ela por várias transformações e foi inteiramente reedificada nos primeiros anos do século XVIII. O
aumento rápido da população determinou a criação dum curato no ano de 1589 e pouco depois a da Colegiada, servida
por cinco eclesiásticos. Houve muitas capelas nesta freguesia, sobressaindo a todas a da Lombada, de que no texto se
dará mais ampla noticia. Tem um porto de bastante movimento, especialmente de passageiros, por entestar com a
sede da Comarca e servir de trânsito para algumas freguesias circunvizinhas, sendo dotado com um aparatoso cais,
mandado construir pela Câmara Municipal no ano de 1848. Esta paróquia foi visitada pelo Infante D. Luís, depois rei de
Portugal, no mês de Outubro de 1858. São distintos filhos desta freguesia o padre Leão Henriques (1589), o dr. António
da Luz Pita (1802-1870), o dr. João Augusto Teixeira (1845-1907) e o dr. Nuno Silvestre Teixeira (1847-1928), cujos
dados biográficos se encontram no 2.º vol. do Elucidário Madeirense, da nossa co-autoria. O Censo da População de
1920 da a esta paróquia o numero de 6.660 habitantes.
algumas delas ou os seus mais próximos descendentes estabelecido importantes
casas vinculadas, como sejam Rodrigo Alies o Côxo, o fundador» da primitiva
povoação, Rui Gonçalves da Câmara e João Esmeraldo, os primeiros possuidores
da Lombada, D. João Henriques, que viveu no sítio chamado Pomar de D. João,
Pedro Delgado com terras de sesmaria no Lombo das Adegas, Rodrigo Anes
Coelho, no Lombo de D. João, António Leme, que deu o nome ao sítio dos
Lemes, Diogo Ferreira de Mesquita, com vinculação em terras do Livramento, e
muitos outros, uns ainda conhecidos e um número ainda maior de que já se não
conserva memória. A sempre crescente prosperidade industrial e agrícola desta
freguesia, especialmente apreciada pela produção do açúcar, trouxe-lhe também
uma correlativa importância social e politica, levando o governo da metrópole à
criação dum município, o primeiro estabelecido neste arquipélago, além dos das
sedes das três capitanias. Lemos algures que a Ponta do Sol «fôra sempre mais
fértil em enxada do que em lanças». A Carta Régia de 2 de Dezembro de 1501
elevou o lugar da Ponta do Sol á categoria de vila, desmembrando-o do
município do Funchal, com os foros e privilégios inerentes aos concelhos, e
estendendo a área da sua jurisdição desde a ribeira que atravessa a paróquia até
aos terrenos que hoje constituem a freguesia das Achadas da Cruz. No ano
imediato foi, porém, o novo município largamento cerceado na sua superfície e
reduzido a bem mesquinhas proporções, com a criação da vila da Calheta, e no
ano de 1546 passou pelo vexatório desaire de ser suprimido, por haver a Câmara
desacatado as ordens do poder central, dando-se dois anos mais tarde o
restabelecimento do concelho. O decreto de 12 de Novembro de 1875 criou a
Comarca da Ponta do Sol, com sede na vila do mesmo nome, que, das comarcas
de segunda classe, é uma das mais importantes de todo o país.
III - Lombada da Ponta do Sol ou dos
Esmeraldos
Os primitivos povoadores, ao aportarem às costas desta ilha, tendo deixado
ancorados os navios da expedição, na baía que posteriormente se chamou do
Funchal, empreenderam sem demora uma exploração sumaria ao longo do litoral,
tomando um rápido conhecimento da terra ignorada, e assinalando e delineando
desde logo os lugares mais apropriados para o estabelecimento dos futuros
núcleos de população. Dessa exploração, capitaneada por João Gonçalves Zargo,
deixou-nos Gaspar Frutuoso uma pitoresca e talvez hiperbólica descrição,
(7)
da
qual vamos destacar os períodos referentes ao lugar da Ponta do Sol: « ... e
chegou a uma ponta que se faz abaixo huma legoa, e entra muito no mar; e,
porque na rocha que está sobre a ponta se enxerga de longe e se vê claro huma
vea redonda na mesma rocha com uns rayos que parece sol, deolhe nome o
capitam a Ponta do Sol; onde tambem traçou uma villa, que depois se fundou, a
primeira da sua jurisdição. Aqui está a nobre e rica fazenda, que se diz a
Lombada do Esmeraldo, tão celebre por nome como por fama
, pelos muitos
(8)
assacares que nella se recolhem, que foi ano em que deo vinte mil arrobas delle :
a qual Lombada o capitam tomou para seus filhos, e depois correo tais trances,
que agora nenhum delles a possuhe, por se dividirem e a venderem» (9).
_________________
(7) «Saudades da Terra», ed. de 1873, pág. 6
(8) Não deixa de ser curioso que Gaspar Frutuoso, para enaltecer a Lombada da Ponta do Sol pela sua exuberante
fertilidade, se apropriasse da conhecida frase mais celebre por nome que par fama que Camões (Est. 5.ª, Cant. V)
aplicou à Madeira, exaltando-a e consagrando-a, frase que, como é sabido, tem dado motivo a muitos controvertidos
juízos, em que Manuel Correia (1613), Faria e Sousa (1619), Garcez Ferreira (1731), José Agostinho de Macedo (1820),
Dr. José Maria Rodrigues (190.5), Epifânio da Silva Dias (1908), Alfredo Pimenta (1931) e ainda outros a comentaram e
interpretaram segundo o sabor das suas opiniões ...
(9) Saud. pág. 68.
Em outro lugar da mesma obra, refere-se o historiador das Ilhas à Lombada dos
Esmeraldos nos seguintes termos, que merecem sêr aqui arquivados:- ... está a
Lombada de João Esmeraldo, de nação genoez, a qual chega do mar à serra, de
muitas canas de assacar, e tão grossa fazenda que já aconteceo fazer João
Esmeraldo vinte mil arrobas de sua lavra cada anno; e tinha como outenta almas
suas captivas, entre mouros, mulatos e mulatas, negros e negras, e canarios. Foi
esta a mayor casa da ilha, e tem grandes casarias de aposento, engenho, e casas
de purgar, e igreja. E depois do falecimento de João Esmeraldo, ficou tudo a seu
filho Cristovão Esmeraldo, que o mais do tempo andava na cidade do Funchal
sobre uma mulla muito formosa, com outo homens detraz de si, quatro de capa e
quatro mancebos em corpo, filhos de homens honrados muito bem tratados: e
trazia grande contenda com o capitam do Funchal sobre quem seria Provedor
d'Alfandega d'El-Rey, que he uma rica cousa de renda de Sua Alteza, e ricas
casarias.» (10)
Por esta, embora exagerada narrativa, se vê que João Gonçalves Zargo, numa
primeira visita de rápida exploração ou em subsequentes visitas, como é mais
provável que tivesse sucedido, descobriu na Lombada da Ponta do Sol, mais
tarde chamada dos Esmeraldos, os indispensáveis requisitos para ser
transformada em uma vasta e rica herdade, reservando-a inteiramente para seus
filhos, que sem duvida a converteriam num dos centros de maior actividade
industrial e comercial, que então existiam em toda a ilha. É de presumir-se que as
condições orográficas e hidrográficas daquela Lombada, a sua grande extensão, a
fera cidade do seu solo e a benignidade do clima, tivessem ferido a atenção dos
antigos exploradores, sendo então concedida a preferência ao chefe da primeira
colonização madeirense.
_______________
(10) Saud. pág. 95.
Estendia-se da orla do oceano até o elevado planalto do Paul da Serra; tendo
portos de desembarque, lombas e encostas abrigadas dos ventos, serras de
matagais e florestas, águas cristalinas e abundantes, que lhe davam os foros duma
propriedade privilegiada e certamente apetecida por um grande número de
povoadores. Compreendia então o sítio que hoje propriamente se chama a
Lombada dos Esmeraldos, o sítio do Jangão e o sítio do Lugar de Baixo, em que
ao presente vivem cerca de quatro mil e duzentos habitantes, em casais dispersos
e distanciados uns dos outros, cuja vasta área correspondia aproximadamente ás
duas terças partes da actual freguesia da Ponta do Sol, estendendo-se «do mar à
serra», no dizer de vários documentos antigos. Pelo lado oriental tinha coma
limite a Ribeira da Caixa, na partilha da freguesia da Tabúa, e pelo lado ocidental
a Ribeira da Ponta do Sol, confinando, ao norte, como já fica dito, com os
acidentados montes que entestam com a planície do Paul da Serra e ao sul, com
as águas do Oceano Atlântico.
Toda a Lombada coube em doação a Rui Gonçalves da Câmara, segundo filho
varão do capitão donatário do Funchal João Gonçalves Zargo, ficando ao
primogénito João Gonçalves da Câmara a sucessão na donatária com todos os
privilégios que lhe andavam anexos. Embora nos escasseiem elementos seguros
para o afirmar, parece indubitável que Rui Gonçalves não se dedicou com grande
entusiasmo ao cultivo das suas terras, das quais fez venda ou antes aforamento ao
fidalgo flamengo João Esmerado, como abaixo mais largamente se dirá. Foi este
que procedeu ali a uma larga exploração agrícola, atraindo um número
considerável de colonos e cultivadores, fundou as capelas de Santo Amaro e do
Santo Espírito, instituiu os dois importantes morgadios do Santo Espírito e do
Vale da Bica e fez construir a primeira casa solarenga da Lombada.
Não repugna acreditar que o grande navegador Cristovão Colombo, amigo
devotado de João Esmeraldo e de quem foi hospede na então vila do Funchal,
houvesse honrado este lugar com a sua presença, embora não tivesse ainda
adquirido o nome ilustre que o havia de imortalizar. Aproximadamente por essa
época, ter-se-ia dado o celebrado rapto de D. Isabel de Abreu, que teve seu
epílogo nesta Lombada, nas casas de João Esmeraldo, cunhado da protagonista
dessa façanha.
Estes terrenos permaneceram intactos, em regímen de vinculação, na posse e
usufruto dos sucessivos administradores dos dois morgadios, sendo seus últimos
senhorios directos o segundo Conde do Carvalhal, com a Lombada dos
Esmeraldos e o Lugar de Baixo, e o conselheiro Aires de Ornelas, com o sítio do
Jangão. Os primeiros foram vendidos em hasta pública, no ano de 1893, à firma
comercial do Funchal A. Giorgi & C.ª, e os segundos cedidos em 1920, por
venda amigável, aos respectivos caseiros e meeiros.
Em 1923 surgiu uma proposta de compra das terras da Lombada e do Lugar de
Baixo, destinada à revenda das glebas aos colonos e rendeiros delas. Essa
revenda, simulada ou fictícia, foi-se realizando pelo pretenso comprador, vendose os proprietários, que eram súbditos estrangeiros, compelidos a recorrer ao
governo da sua ilação, para haver o valor ou a entrega das suas propriedades. 0
governo português, depois dum prudente e consciencioso estudo do assunto,
resolveu expropriar àqueles terrenos e indemnizar os seus senhorios dos graves
prejuízos que lhes tinham sido injustamente causados. Conserva-se o estado na
disposição de ceder essas terras, por venda e em condições favoráveis, aos
antigos cultivadores, aguardando-se apenas o preenchimento de certas
formalidades, para a celebração dos respectivos contratos. Por ocasião dessa
expropriação, o governo português cedeu gratuitamente à junta Geral do Distrito
e à Câmara Municipal da Ponta do Sol alguns tratos de terrenos, destinados à
construção de estradas, e à Diocese do Funchal, na pessoa do respectivo prelado,
a capela do Santo Espírito para ser aplicada ao exercício do culto, como sempre o
fora em todos os tempos, ficando reservado ao Ministério das Colónias e para
uso das nossas missões ultramarinas as diversas dependências que constituíam o
antigo solar dos morgados Esmeraldos. Dos diversos pontos, sumariamente
expostos neste capítulo, nos ocuparemos, com o devido desenvolvimento, em
capítulos subsequentes.
IV - Rui Gonçalves da Câmara
Não são concordes as opiniões dos linhagistas com respeito ao lugar do
nascimento de Rui Gonçalves da Câmara, dando-o alguns como natural do
continente português e afirmando outros que foi o primeiro filho de João
Gonçalves Zargo nascido na Madeira
. Não andará muito distanciado da
(11)
verdade quem fixar, nos fins do primeiro quartel do século XV ou nos princípios
do quartel seguinte a data aproximada do seu nascimento. Nas nossas lutas, com
os mouros, no norte de África, tomou parte em vários recontros com seu irmão
João Gonçalves da Câmara, segundo donatário do Funchal, e encontrou-se nos
cercos de Arzila e Tanger, distinguindo-se sempre corno valente e esforçado
cavaleiro
. A sua vida agitada de soldado ou quaisquer outras circunstancias
(12)
para nós desconhecidas não o deixaram entregar-se fanhosamente à cultura da
extensa Lombada, cujas terras virgens, de relevo muito acidentado e quase
totalmente cobertas de basto e fechado arvoredo, exigiam um prolongado e
gigantesco esforços que mal se compadecia com os minguados recursos de que
poderia dispor-se nos primeiros anos da colonização madeirense.
__________
(11) o primeiro capitão donatário do Funchal João Gonçalves Zargo, ao iniciar o povoamento da sua capitania, vinha
casado com Dona Constança Rodrigues de Sá ou de Almeida, trazendo os filhos mais velhos João Gonçalves da Câmara,
sucessor no governo da donatária, Helena Gonçalves da Câmara e provavelmente Rui Gonçalves da Câmara, que alguns
nobiliários também dão como nascido na Madeira.
(12) Vid. «A Madeira e as Praças de Africa», 1933, pelo tenente-coronel Alberto Artur Sarmento.
Pouco se sabe acerca da primitiva exploração agrícola empreendida por Rui
Gonçalves da Câmara, que era, por certo, homem de mais largas aspirações,
cabendo sem duvida ao seu sucessor o estado de grande prosperidade, que
rapidamente atingiu a Lombada da Ponta do Sol.
O segundo capitão donatário da ilha de São Miguel João Soares de Albergaria,
sobrinho de Gonçalo Velho Cabral, veio à Madeira pelos anos de 1470
acompanhar sua mulher D. Beatriz Godiz, que se achava atacada de grave
enfermidade e que faleceu pouco tempo depois da sua chegada ao Funchal.
Informa-nos o doutor Gaspar Frutuoso que Soares de Albergaria, em virtude dos
«muitos custos» que fizera e em atenção aos serviços que lhe dispensaram o
capitão donatário da Madeira e seu irmão Rui Gonçalves da Câmara, resolveu
vender a este a capitania de São Miguel «por seiscentos mil reis, segundo uns, e
por setecentos mil reis e cem mil reis de sócos, segundo outros, tendo-se por
mais certo que a compra se efectuou por dois mil cruzados em dinheiro de
contado e quatro mil arrobas de assucar» (13). Esta venda foi confirmada, a 10 de
Março de 1474, pela infanta D. Beatriz, como tutora e curadora de seu filho o
duque D. Diogo, grão-mestre da Ordem de Cristo. Passou-se então Rui
Gonçalves da Câmara, com sua mulher, filhos e outros indivíduos que o
quiseram acompanhar, à ilha de São Miguel a assumir o governo da sua
capitania, sendo ali donatário no período aproximado de vinte e quatro anos,
vindo a falecer em Ponta Delgada em 1497 ou 1498. Deixou boas tradições na
administração da sua donatária e foi tronco das casas nobres dos condes da
Ribeira Grande, de Vila Franca e ainda outras.
_____________
(13) Saudades da Terra, (Ponta Delgada, 1926) Livro IV, Cap. 66.
Antes, porém, de abandonar a Madeira fez a João Esmeraldo o aforamento
perpétuo da Lombada da Ponta do Sol, como abaixo vamos ver.
De Rui Gonçalves da Câmara, traça o padre G. Frutuoso este rápido e pitoresco
perfil: «Era bem apessoado, grande e grosso, discreto e solicito em fazer cultivar
e povoar a terra, visitando-a pessoalmente muitas vezes, só, a cavalo, vestido
com uma peliça de martas e uma touca na cabeça, como naquele tempo se
costumavam ... e com um cão grande de traz de si... e algumas vezes andava em
mula ... ».
V - João Esmeraldo
É sabido que os descobrimentos e conquistas marítimas iniciadas no alvorecer do
século XV despertaram o interesse e a curiosidade da Europa inteira. Não
faltaram então espíritos ambiciosos e irrequietos, que, deixando o rincão natal, se
arriscassem aos azares da sorte, procurando nas longínquas terras descobertas a
glória e as vantagens materiais, que a pátria não podia de modo algum dispensarlhes. Se a muitos impulsionava apenas o amor da aventura, e desejo do
imprevisto e do desconhecido, o ardor pelas empresas e façanhas arriscadas, é
todavia indubitável que a maior parte ia atraída pela sede das riquezas, pela
conquista do veio de ouro, que mais uma vez ponha em sobressalto as ambições
dum tão grande número de audaciosos aventureiros. Sendo a Madeira o mais
importante empório comercial, que rios tempos primitivos da colonização se
formou nos nossos domínios ultramarinos, foi também o mais apetecido ponto de
atracção para os forasteiros que demandavam as novas plagas descobertas (14).
Um deles foi João Esmeraldo. Não gozando os privilégios de primogenitura, que
era o grande apanágio das casas nobres, lançou-se nos riscos duma suspirada
fortuna a tentar numa ilha afastada, que já então mantinha relações comerciais
com a Flandres, especialmente pela exportação do precioso e apreciado produto,
que era o açúcar madeirense. Conjecturamos que tivesse aportado ao Funchal por
meados do terceiro quartel do século XV.
Decorrendo então um dos períodos mais movimentados da colonização e
povoamento do arquipélago, eram bem recebidos todos os nacionais e
estrangeiros que viessem colaborar na exploração das terras incultas mas
ferocíssimas, arrancando pelo trabalho e pela inteligência a riqueza e a
prosperidade que elas lhes ofereciam. Se a essas apreciáveis qualidades vinha
juntar-se a condição de origem fidalga, tão exageradamente apreciada na época,
tinham os novos colonizadores campo aberto para a satisfação das suas mais
largas aspirações.
Assim teria sucedido a João Esmeraldo. Da sua proveitosa e esclarecida
actividade, dão-nos eloquente testemunho os importantes haveres adquiridos, dos
quais conhecemos o aforamento da Lombada, a instituição dos dois morgadios,
com a sua igreja e solar, a casa apalaçada da rua do Esmeraldo e a larga
___________
(14) De muitos desses estrangeiros se conservaram os nomes na história da colonização madeirense e alguns deles
foram troncos de distintas famílias, sendo-lhes reconhecidos os foros de nobreza de que gozavam nos seus paises.
Podemos mencionar Simão Acciaioli, João e Henrique de Betencourt, Pedro de Lemilhana Berenguer, João Drumond,
António Espinola, Urbano Lomelino, António Leme, João Rodrigues Mondragão, João Salviati, João Valdavesso, João
Baptista, Rafael Catanho, Adrião Espranger, André Gonçalves de França, Lucas Salvago, Fr;incisco Soares Sesmeiros e
ainda outros.
exploração agrícola, com muitas dezenas de colonos e escravos, dos vastos
terrenos da Ponta do Sol. Dos seus títulos de nobreza são provas concludentes a
concessão dos foros de fidalgo, outorgados pela Carta Régia de 13 de Agosto de
1511, e mais ainda o alvará de Brasão de Armas, mandado passar por D. Manuel
a 16 de Maio de 1522, em que se faz referencia à Carta anterior e em que se
reconhecem e ratificam os privilégios de nobreza de que gozavam os seus
antepassados
(15)
Tinha no seu país de origem o nome de Jeanin Esmeraut, que
depois se aportuguesou no de João Esmeraldo, cujo apelido se transmitiu aos
seus numerosos descendentes, sendo tronco de algumas das mais distintas
famílias desta ilha.
___________
(15) « Dom Manuel, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d' aquem e d' além mar em Africa, Senhor da
Guiné e da Conquista Navegação e Comércio da Etiopia, Arábia, Pérsia e India, a quantos esta nossa carta virem,
fazemos saber que João Esmeraldo, fidalgo da nossa casa e morador na nossa ilha da Madeira, nos fez informação
como êle descendia da linhagem e geraçã dos Esmeraldos e dos Dallavaigne e da casa Fienes da geração dos de
Nodouchel, os quais todos nas partes da Picardia, Flandres e Brabante são nobres e fidalgos da antiga linhagem,
pedindo-nos, por mercê, que pela memória dos seus antepassados se não perder, gouvir e gozar da honra das armas
que pelos merecimentos de seus serviços ganharam e lhe foram dadas e assim dos privilégios, honras, graças, mercês
que por direito por bem delas lhe pertencem, lhe mandassemos dar nossa carta das ditas armas que estavam
registadas em os livros dos registos das armas dos nobres e fidalgos dos nossos reinos que tem Portugal nosso
principal Rei de Armas, a qual informação vista por nós e como nós somos certos o conteúdo nela sêr verdade por uma
carta patente asselada com o sêlo do Império, pendente e assinado por os do seu Conselho e com outra carta de
Armas patente assinada por Tosão de Ouro Rei de Armas, e asselada, na qual se contem como direitamente êle João
Esmeraldo descende das ditas gerações e linhagens, que as suas armas lhe pertencem de direito as quais lhe
mandamos dar em esta nossa carta com seu brazão, elmo e timbre, como em meio desta carta são divisadas, e assim
como fiel e verdadeiramente se acharam divisadas e registadas nos livros do dito Portugal Rei de Armas, as quais
armas são as seguintes: «o campo esquartelado, o primeiro de prata com uma banda preta; o segundo de azul com
uma faixa de ouro carnelea ; o terceiro de prata com um leão preto e por cima dêle um filete vermelho em banda, de
redor dele bilhetas pretas; o quarto de azul e uma banda fimbrada de vermelho: Elmo de prata aberto guarnecido de
ouro, paquife de ouro e de azul e por timbre um leão preto, o qual escudo, armas e sinais possa trazer e traga o dito
João Esmeraldo, assim como as trouxeram e delas usaram seus antepassados... queremos e nas apraz que haja êle e
todos seus descendentes todas as honras, privilégios e liberdades, graças, mercês, isenções e franquezas que hão e
devem ter os fidalgos nobres de antiga linhagem... Dada em a nossa e sempre lial cidade de Evora a dezaseis de Maio.
El-Rei o mandou pelo bacharel António Rodrigues Portugal seu Rei de Armas Principal, Pedro de Utra escrivão da
nobreza a fez. Ano de Nosso senhor Jesus Cristo de mil quinhentos vinte e dois». (Do «Nobiliário», de Henrique
Henrique de Noronha, Manuscrito existente na Biblioteca Municipal do Funchal).
Parece ter nascido na província da Picardia, que juntamente cora as de Artois,
Hanaut, etc. conservavam então a denominação genérica de Flandres e desta
circunstância provém o ser conhecido pelo Flamengo. A sua família era aliada
com as nobres casas de Delavaigne, Fienes, Nedouchel e outras, possuindo o
importante senhorio de Fraxelles.
A Lombada da Ponta do Sol, que começou a chamar-se do Esmeraldo e depois
dos Esmeraldos, era nos fins do século XV, e continuou a ser até os nossos dias,
a mais vasta e rica propriedade rústica de todo o arquipélago, apesar dos
cerceamentos que sofreu em diversas épocas. Rui Gonçalves da Câmara, o seu
primeiro possuidor, não se alargou muito, como já ficou acentuado, na expansão
cultural e fabril do seu latifúndio, porque as naturais tendências do seu espírito a
isso o não compeliam ou porque dificuldades insuperáveis o impedissem de
realiza-lo, ou ainda porque aspirava as mais altas honrarias, deixando â outros a
activa e fecunda exploração, que essas terras estavam imperiosamente exigindo.
Rui Gonçalves da Câmara aforou a João Esmeraldo toda a Lombada, propriedade
ainda então intacta e compreendida entre as ribeiras da Caixa e da Ponta do Sol,
alargando-se desde a orla do Oceano até as mais altas eminências da serrania. O
aforamento realizou-se pela importância de 600.000 rs. e a renda vitalícia anual
de 150.000 rs., o que representava uma soma muito avultada para o tempo. (16)
____________
(16) Esta renda anual e perpétua de 150.000 rs. ficou incorporada no usufruto do morgadio de Água de Mel, na
freguesia de Santo António do Funchal, instituído por D. Maria de Betencourt, mulher de Rui Gonçalves da Câmara, na
pessoa de seu sobrinho Gaspar de Betencourt. Na sucessão de vários administradores coube esta casa vinculada a D.
Guiomar Madalena de Vilhena Betencourt de Sá Machado, de quem foi universal herdeiro e sucessor João Carvalhal
Esmeraldo de Atouguia e Câmara, décimo administrador do vinculo do Santo Espírito da Lombada dos Esmeraldos,
como adiante se verá, passando assim essa renda de 150.000 rs. a fazer parte dos rendimentos deste último morgadio.
Sendo ponto averiguado que Rui Gonçalves da Câmara transferiu a sua
residência para São Miguel no ano de 1474, deve supor-se que aquele aforamento
se teria realizado antes da sua partida para aquela ilha, havendo muitas
probabilidades que militam a favor desta hipótese, embora se indiquem outras
datas para a celebração do referido contrato. É esta a opinião do douto
conselheiro Agostinho de Ornelas, sucessor na administração dum dos vínculos
instituídos por João Esmeraldo, que estudara este caso com o maior interesse e à
vista de documentos existentes no importante cartório da sua casa, assinalando o
ano de 1473 como o do aforamento, que alguns chamaram venda, feito por Rui
Gonçalves da Câmara a João Esmeraldo
0 fidalgo flamengo consagrou-se diligentemente à valorização das terras
aforadas, que na realidade constituíam uma posse perpetua e incontestada,
tornando-as um centro de grande e produtiva actividade agrícola e fabril, com o
largo amanho das glébas incultas, o cuidadoso aproveitamento das águas e a
montagem de vários engenhos e alçapremas. 0 autor das Saudades da Terra,
embora hiperbálicamente e como já fica referido, afirma que João Esmeraldo
chegou a produzir vinte mil arrobas de açúcar em cada ano, para o que dispunha
de oitenta escravos, casas de fabrico e de purgar, abegoarias e outras
indispensáveis instalações, sem contar com os muitos cultivadores e colonos
livres, que seriam certamente os seus melhores auxiliares nesta tão grande e
lucrativa empresa. Esmeraldo comprou ou edificou na vila do Funchal e na rua
que tomou e ainda conserva o seu nome uma grande casa de moradia, que o
cronista diz ser «um. aposento antigo muito rico, com casa de dois sobrados e
pilares de mármore nas janelas e em cima seus eirados com muitas fressuras». Da
construção da casa solarenga da Lombada, da edificação das capelas e da
instituição dos morgadios, devidas à fecunda iniciativa do fidalgo flamengo, nos
ocuparemos em capítulos especiais. Constituiu família e foi tronco de larga
descendencia,
(17)
tendo morrido, em idade muito avançada, a 19 de junho de
1536 e sido sepultado na capela do Santo Espirito, por êle fundada no ano de
1508.
VI - João Esmeraldo e o futuro
descobridor da América
Existe na cidade do Funchal uma via pública, que desde séculos conserva o nome
de Rua do Esmeralda. Até os princípios do ano de 1877, erguia-se nela uma casa
apalaçada, com a arquitectura característica das edificações; do século XV, que
era uma ampla construção de dois andares, encimada por um vasto eirado, e que
tinha para o tempo o aspecto duma sumptuosa habitação aristocrática, destinada à
residência de nobres e opulentos moradores. Dessa aparatosa construção, que em
grande parte se conservou até à idade contemporânea, ficaram interessantes
fotografias, inúmeras vezes reproduzidas em muitos livros e revistas, existindo
ainda uma característica janela bipartida, em estilo renascença, que hoje se
encontra artística e devotadamente colocada nos jardins da magnifica Quinta da
Palmeira, na Estrada da Levada de Santa Luzia, propriedade do inteligente e
benemérito industrial Henrique Hinton, que ali conserva com a maior veneração
e apreço aquela preciosa relíquia do passado.
_____________
(17) João Esmeraldo contraiu primeiras núpcias com D. Joana Gonçalves da Câmara, neta de João Gonçalves Zargo e
filha de Martim Mendes de Vasconcelos e de D. Helena Gonçalves da Câmara, e casou segunda vez com Águeda de
Abreu, filha de João Fernandes de Andrade, mais conhecido pelo nome de João Fernandes do Arco, por ser senhor de
muitas terras no Arco da Calheta, onde tinha casa solarenga e ali instituiu um morgadio. Do primeiro matrimónio
nasceu João Esmeraldo e do segundo Cristóvão Esmeraldo, que foram os primeiros administradores dos vínculos do
Vale da Bica e do Santo Espírito.
Ainda existem contemporâneos que viram e conheceram de perto essa casa, que
se levantava entre as ruas do Sabão e do Esmeraldo, com as suas frontarias para
as mesmas ruas e no local em que actualmente se abre a Travessa ou Rua de
Cristóvão Colombo. 0 flamengo João Esmeraldo foi possuidor e provavelmente o
próprio edificador dessa antiga e nobre residência, segundo vários livros de
linhagens o atestam, não podendo aduzir-se senos argumentos, que contradigam
essa afirmativa.
Diz uma antiga e ininterrupta tradição, corroborada pela autoridade dos vários
escritores, que o futuro descobridor da América foi, nessa histórica casa, hóspede
de João Esmeraldo, com quem manteve relações da mais afectuosa estima. 0 caso
vem especialmente tratado, com largueza e com mestria, na interessante
Memória sobre a residência de Cristóvão Colombo na Ilha da Madeira, devida à
pena culta e elegante do ilustre madeirense Agostinho de Ornelas, distinto
diplomata e membro da Academia das Ciências de Lisboa. Anteriormente a
Agostinho de Ornelas, abundando na mesma opinião e com a grande autoridade
do seu nome, também se ocupou deste assunto o abalizado professor e académico
dr. Alvaro Rodrigues de Azevedo, o escritor que mais larga e proficientemente se
tem ocupado das coisas históricas deste arquipélago, de que são prova
incontestada as preciosas e eruditas anotações que acompanham a edição das
Saudades da Terra de 1873, além de outros valiosos trabalhos.
Quase todos os autores, que escreveram acerca da vida misteriosa e aventureira
de Cristóvão Colombo, afirmam que ele casara com D. Filipa Moniz, filha de
Bartolomeu Perestrelo, primeiro capitão donatário da ilha do Porto Santo, e que
ali nascera, por 1475, o seu filho primogénito e sucessor Diogo Colombo,
sustentando também que o navegador tivera uma permanência mais ou menos
demorada na Ilha da Madeira, como é natural que houvesse acontecido, sendo
então, porventura, que estreitaria relações amistosas com o fidalgo flamengo que
deu o nome à rua do Esmeraldo. Não há motivos para enjeitar a afirmativa do
veneravel bispo D. Bartolomeu de Las Casas, que na sua conhecida obra Historia
de las Indias, publicada ha cêrca de cincoenta anos, nos diz que Diogo Colombo
nasceu na ilha do Porto Santo, acrescentando que recebera esta informação da
própria boca do filho do descobridor da América. Muitos outros autores têm
sustentado igual opinião, irão sendo para estranhar que a pessoa, que agora traça
estas linhas e quando exerceu um cargo oficial naquela ilha no último quartelo do
século XIX, houvesse recebido vários pedidos da cópia autentica do assento de
nascimento de Diogo Colombo, tão generalizada se tornara essa plausível
opinião.
Como já atrás fica dito, era a Madeira, nessa época, não só o mais importante
empório comercial que se formara nas novas terras descobertas e portanto o mais
apetecido ponto de atracção para os forasteiros que deixavam os seus países em
busca de ambicionada fortuna, mas também o centro quase forçado a que
convergiam todos os que fanhosamente se entregavam ás explorações marítimas,
tornando-se o Funchal uma verdadeira escola de navegação e onde se podiam
colher as mais exactas informações e as mais detalhadas noticias acerca dos
mares, ilhas e continentes, cite muitos pretendiam avidamente devassar e
descobrir. E muito de presumir que Cristóvão Colombo, tendo vivido largo
tempo em Lisboa e feito o seu tirocínio de navegador com marinheiros
portugueses, procurasse também visitar a Madeira, afim de obter novos
elementos para a realização do gigantesco plano, que certamente ha muito lhe
assediava o espírito.
A data mais provável da permanência de Colombo neste arquipélago está
compreendida no período decorrido de 1743 a 1745, sendo no primeiro destes
anos, que João Esmeraldo aforou ou comprou a Rui Gonçalves da Câmara, como
já fica referido, as terras da Lombada da Ponta do Sol. Não será, pois,
inteiramente inverosímil aceitar-se a possibilidade de ter o futuro descobridor da
América visitado aquela propriedade, a admitir-se as estreitas relações de
amizade, que entre os dois se mantinham, chegando a afirmar-se que João
Esmeraldo dera ao seu segundo filho o nome de Cristóvão, como homenagem ao
amigo, que, ao tempo, já era o ilustre e festejado descobridor do Novo Mundo.
VII - O rapto de D. Isabel de Abreu
Vários nobiliários e antigas crónicas referem pormenorizadamente o conhecido
episódio do rapto de D. Isabel de Abreu, a que Gaspar Frutuoso também
consagrou seis estiraçadas páginas,
(18)
o que prova a grande retumbância que o
caso teve na época, havendo até sido aproveitado alguns séculos depois, por
poetas e novelistas, para assunto de diversas composições em prosa e verso (19). A
principal protagonista dessa cavaleirosa e romântica façanha foi D. Isabel de
Abreu, irmã de D. Águeda de Abreu e cunhada de João Esmeraldo, e teve seu
epilogo nas terras da Lombada, que serviram de teatro a essas cenas de puro
feudalismo, que hoje, vistas à luz dos costumes da nossa época, nos causam
tamanha admiração e assombro. Seguindo a larga descrição das Saudades da
Terra, deixámos nas páginas do Elucidário Madeirense uma - breve narrativa
desse episódio, da qual vamos trasladar alguns períodos, que ponham mais em
relevo a acção dramática desse curioso sucesso, ocorrido a pequena distancia da
Idade Média, época fertilíssima em acontecimentos de semelhante natureza.
____________
(18) Saud. pag. 197 e seg.
(19) Entre outros, Silva Lial, no vol. 7.° do Panorama, com o titulo de «Bem querer mal fazer».
D. Isabel de Abreu, que era viúva de João Rodrigues de Noronha, filho do
terceiro capitão donatário do Funchal Simão Gonçalves da Câmara, vivia na sua
casa do Arco da Calheta, possuidora duma avultada fortuna, quando António
Gonçalves da Câmara, sobrinho do mesmo capitão, donatário e que ali morava
próximo, se introduziu violentamente e a desoras nas casas de D. Isabel, com o
fim de a levar a contrair casamento com ele. D. Isabel conseguiu convencer
António Gonçalves Câmara da inconveniência duma proposta de casamento em
tais condições e convidou-o a comparecer no dia seguinte, para se tratar então
das formalidades do matrimónio, a que ela de boa mente acederia. Fez-se
António Gonçalves da Câmara acompanhar duma comitiva de cerca de cinquenta
cavaleiros da Ponta do Sol e Ribeira Brava, dirigindo-se a casa de D. Isabel, que
no dizer dum cronista se fez «forte em suas casas com sua gente que muita tinha,
e achando-se António Gonçalves zombado, injuriado e afrontado se tornou para
sua fazenda, embarcando-se dali a poucos dias para Lisboa.
Decorridos alguns anos voltou António Gonçalves da Câmara à sua casa da
Madeira, sem perder de vista o velho intento de casar com D. Isabel de Abreu.
Dirigindo-se esta à vila da Calheta, em companhia de alguns parentes, e passando
em frente da moradia de António Gonçalves, tomou este as rédeas do cavalo em
que ela montava e auxiliado por gente armada obrigou-a a entrar violentamente
em sua casa. Dado conhecimento do estranho caso ao ouvidor do Funchal, por
estar ausente o capitão donatário, compareceu este com uma numerosa força
armada, tendo esta que defrontar-se com a resistência que ia opor-lhe António
Gonçalves, pois se preparava para desobedecer ás ordens do ouvidor,
conservando D. Isabel de Abreu presa em sua casa. Estava iminente uma
encarniçada luta, em que de ambos os lados havia partidários, parentes e amigos,
quando António Gonçalves da Câmara e D. Isabel de Abreu assomando a uma
varanda da residência declararam que tinham chegado a um amigável acordo e
que podiam retirar-se o ouvidor e a força que o acompanhava.
Quando estes se dispunham a partir, fez D. Isabel de Abreu sentir ao seu
prometido esposo que «vindo com o Ouvidor muitos parentes seus e amigos, não
era razão que sem comer se tornassem por tão comprido caminho e já que tudo
estava em paz os convidasse». Acatando os desejos de D. Isabel de Abreu,
mandou António Gonçalves, que «entrasse o ouvidor com a sua gente, alcaides,
meirinhos e juízes de todas as vilas e lugares daquela capitania na sala, e
arremeteu D. Isabel e apegou-se a ele dizendo e queixando-se que António
Gonçalves forçosamente a tinha naquela casa e que lhe valesse com justiça». Na
companhia do ouvidor e dos cento e cinquenta homens que compunham a força
armada, seguiu D. Isabel de Abreu para o. Funchal, indo, porém, pelo adiantado
da hora, pernoitar nas casas de seu cunhado João Esmeraldo, que ficavam na
Lombada da Ponta do Sol e eram a sede do morgadio do Santo Espírito.
António Gonçalves da Câmara não era homem para resignar-se a sofrer um novo
ludibrio, que ele considerava a maior das afrontas, por parte da mulher que queria
conquistar, levado pela violência do amor, pelo orgulho ofendido ou pela
ambição de possuir a sua fortuna. Logo se preparou para a desforra e desta vez
resolvido ás mais extremas violências. Reuniu imediatamente vários parentes e
amigos e muitos homens armados das freguesias vizinhas, sem exclusão de
ladrões e assassinos que por ali andavam homiziados, preparado também com
dois falcões, que eram peças de artilharia do tempo, afim de atacar casas onde se
encontrava D. Isabel de Abreu com os oficiais de justiça. Pôs-lhe apertado cerco,
até que, no fim de oito dias, considerando os parentes de D. Isabel os males que
podiam resultar desta luta sangrenta, resolveram que a casamento se realizasse,
pondo-se deste modo termo uma contenda em que entravam, além de muitos
outros, quatro irmãos, dois de cada lado, prestes talvez a mutuamente se darem a
morte.
«Chegados D. Isabel de Abreu e António Gonçalves da Câmara, diz Gaspar
Frutuoso, à sua fazenda, e recebendo-se ambos, foram feitas grandes festas e
bodas, em que comeram todas aquelas pessoas que os acompanharam. Estavam
na sala primeira dos seus paços quatro potes de prata fina em quatro cantos dela,
que levaria cada hum deles três almudes de agua, com quatro púcaros de prata,
cada pote com o seu, presos com cadeias do mesmo e toda aquela gente honrada
que se achou naquele banquete, que seriam mais de duzentas pessoas, fora outras,
e servidores que eram mais de outros tantos, comeram todos em baixela de prata,
sem se entre meter no serviço coisa de barro, nem estanho, onde se gastaram
ricos e esquisitos manjares de toda a sorte, como os sabem fazer as delicadas
mulheres da Ilha da Madeira, que além de serem mui bem assombradas, mui
fermosas, e discretas, e virtuosas são extremadas na perfeição delles, e em todas
as invenções de ricas cousas que fazem, não tão sómente em pano com polidos
lavores, mas tambem em assucar com delicadas fructas».
D. Agueda de Abreu, irmã de D. Isabel de Abreu, não se conformando com o
casamento nem com as violências que o precederam, apresentou suas queixas ao
monarca, que mandou à Madeira o desembargador Gaspar Vaz sindicar do
estranho caso, resultando serem alguns condenados à morte e outros a desterro.
António Gonçalves da Câmara homisiou-se e fugiu depois para Canárias,
enquanto sua mulher se recolhia ao convento de Santa Clara. Das Canárias
dirigiu-se à Africa e aí prestou valiosos serviços, assinalando-se pela sua bravura
e coragem. Isto e mais ainda, por certo, a interferência de sua mãe D. Joana de
Eça, que era camareira-mór da rainha, junto do monarca, alcançaram-lhe o
perdão e pôde voltar à pátria, onde ainda viveu alguns anos com sua mulher D.
Isabel de Abreu».(20)
____________
(20) D. Joana de Eça, mãi de António Gonçalves da Câmara, era camareira mor da rainha D. Catarina e gozava de
grande prestigio e influencia na corte, tendo sido por sua indicação que -o padre Luís Gonçalves da Câmara, seu
próximo parente, fora nomeado mestre e aio do rei D. Sebastião. D. Joana de Eça foi a restauradora e padroeira do
convento da Esperança em Lisboa, e ainda há poucas anos se encontrou nas ruínas da respectiva igreja a pedra que
cobria a sua sepultura, tendo nela gravado o seu nome com o titulo de padroeira.
O estranho e pitoresco episódio, que fica sumariamente narrado, deve ter
ocorrido pelo ano de 1531, segundo as indicações fornecidas por alguns antigos
nobiliários madeirenses. Não sabemos se João Esmeraldo o Velho, que ao tempo
era homem de idade muito avançada, se encontrava então no seu solar da
Lombada, mas algures se diz que o filho Cristóvão Colombo estava ausente,
batalhando no norte de Africa, onde se distinguiu como esforçado cavaleiro. E de
presumir que estas circunstancias aconselhassem D. Isabel de Abreu e os que a
acompanhavam, naquela arriscada e porventura trágica aventura, a ceder à brutal
imposição do orgulhoso e tresloucado pretendente, consentindo-se, por fim, no
casamento, que talvez se tivesse realizado na capela do Santo Espírito, sede e
centro do morgadio na Lombada, ainda posta em apertado cerco pelas forças
aguerridas de António Gonçalves da Câmara.
VIII - A Industria Sacarina
Embora as vastas e fertilíssimas terras da Lombada não pudessem produzir, no
tempo de João Esmeraldo e ainda mesmo em época muito posterior, as vinte mil
arrobas de açúcar de que tão hiperbolicamente nos fala Frutuoso, é todavia
indubitável que a Ponta do Sol, não só foi um dos primeiros lugares em que mais
largamente se procedeu ao plantio da cana sacarina, como também em breve se
tornou um dos maiores centros industriais no fabrico do açúcar, graças ao notável
desenvolvimento que o distinto fidalgo flamengo soube imprimir à cultura
agrícola e ás industrias suas derivadas. As referências do autor das Saudades
vêem apenas confirmar a importância desse movimento industrial e fornecer-nos
interessantes notícias acerca dos meios de que geralmente naquela época se
lançava mão para a cultura das terras e outros; elementos de colonização. Haja
vista o que posteriormente se deu, em mais larga escala, com o povoamento e as
explorações agrícolas nas terras brasileiras.
Como já atrás referimos, os escravos africanos foram os melhores auxiliares que
tiveram os sesmeiros continentais no amanho das terras que lhes eram
concedidas. E não admira que chegasse a oitenta o número desses pobres negros
sujeitos á servidão, existentes nas fazendas da Lombada e de que Esmeraldo se
servira para o rápido desenvolvimento agrícola que elas chegaram a atingir.
Eram muito rudimentares os processos empregados o fabrico do açúcar, quando,
por meados do século XV, e desenvolveu largamente a cultura da cana sacarina.
Umas prensas manuais, construídas de madeira e conhecidas pelo nome de
alçapremas, constituíam as primitivas maquinas em que eram esmagadas as canas
e obtidas as respectivas garapas. Vieram depois os «engenhos» com cilindros
feitos de troncos de til, de difícil e penoso manejo braçal, a que os fortes
músculos dos escravos davam um, vagaroso mas continuado movimento. 0
primeiro engenho movido a água data do ano de 1452, em que foi feita a Diogo
Teive uma concessão para o construir
(21)
e levantado na margem duma das
nossas ribeiras, mas em local que hoje se desconhece. Havia então o açúcar
chamado duma e de duas cozeduras, sendo o primeiro de qualidade superior ao
segundo. No livro do doutor Manuel Constantino, publicado em Roma no ano de
1599, encontram-se os seguintes interessantes pormenores: « ...a garapa passa
por cinco recipientes sucessivamente, de modo que a primeira a entrar, logo que
chega a ferver até um certo ponto vai sendo baldeada para outros recipientes,
onde coze a fogo brando, separadamente, até chegar àquele ponto preciso, que
permite a sua condução em receptáculos feitos de terra ou barro.
_________________
(21) Saudades, ed de 1873, pág. 665.
A segunda espuma, pois a primeira é deitada fora, que na continuação da fervura
ou cozedura vai aflorando, é guardada em pipas e é muito parecida com o mel, se
bem que um pouco mais liquida e escura. Os madeirenses chamam-lhe «melaço e
dele se servem apenas para a engorda de cavalos misturado com farelo e palha.
Os comerciantes franceses e ingleses, porém, exportam-no para os seus países,
usando-o em lugar de mel
». Era nas chamadas «casas de purgar» que os
(22)
açucares se depuravam e recebiam os últimos aperfeiçoamentos de fabrico, sendo
ali convenientemente preparados para o consumo local e sobretudo para a
exportação.
Quando João Esmeraldo, nos fins do século XV, desenvolveu um grande
movimento fabril e agrícola nos seus domínios da Lombada, já teria então a
industria açucareira atingido um relativo estado de perfeição nos seus processos
de fabrico, sendo todavia muito provável que Esmeraldo houvesse notavelmente
concorrido para que essa lucrativa industria fosse ainda melhorada e aperfeiçoada
nas qualidades da sua produção, se atendermos ao seu gemo empreendedor e ao
alto de grau de prosperidade a que soubera elevar a cultura daquelas terras, que
então constituíam a mais vasta e rica propriedade de todo o arquipélago. As
«vinte mil arrobas», que hoje corresponderiam a trezentas toneladas, são, sem
dúvida, a maneira hiperbólica de exprimir uma ideia, mas representam, na
realidade, uma produção industrial muito abundante, que o cronista quis fixar por
meio duma frase retoricamente exagerada ...
___________
(22) História da Ilha da Madeira pelo Doutor Manuel Constantino, vertida do latim pelo padre J. Baptista de Afonseca e
prefaciada e anotada pelo autor deste opúsculo. Funchal, 1930.
IX - As Instituições Vinculares
João Esmeraldo, nobre de origem, com foros de fidalguia confirmados pelo rei de
Portugal, senhor abastado de extensos domínios territoriais, quis transmitir esses
direitos e regalias aos seus descendentes e assegurar-lhes a perpetuidade dos
títulos e bens de fortuna de que largamente usufruía. As instituições vinculares,
com a intacta transmissão de haveres inalienáveis em sucessivos administradores
e entre membros da mesma família, perpetuavam os nomes dos seus fundadores e
permitiam manter com prestígio e por vezes com brilho os privilégios e honrarias
inerentes a essas instituições, tão ambicionadas na época e que gozavam da maior
consideração social, ainda mesmo acima da virtude, do saber, do talento e da
riqueza.
Foi assim que João Esmeraldo, destinando à vinculação as terras da Lombada da
Ponta do Sol, que correspondem aos actuais sítios da Lombada propriamente
dita, do Jangão e do Lugar de Baixo, e ainda outros haveres que possuía, instituiu
os dois morgados do Santo Espírito e do Vale da Bica, que foram dos mais
importantes que existiram em todo o arquipélago. Por escritura pública de 12 de
Junho de 1522, na presença e com pleno assentimento de sua mulher D. Agueda
de Abreu e seus filhos João Esmeraldo e Cristóvão Esmeraldo, fez João
Esmeraldo o Velho, já então assim conhecido, a divisão da Lombada em duas
grandes propriedades, estabelecendo uma linha divisória, que se estendia do Pico
das Pedras, junto do Paul da Serra, pelo chamado Caminho do Concelho até à
Cova do Pico da Amendoeira e deste ponto até entestar com as águas do mar.
Pela morte de João Esmeraldo seriam lançadas sortes e caberia a cada filho a
parte quê os azares das mesmas sortes houvessem de indicar. Esta escritura,
porém, não criava ainda as instituições vinculares, que foram estabelecidas por
instrumentos públicos de datas posteriores, se é que foram, por este meio,
instituídos os dois vínculos e não somente um, como adiante teremos ocasião de
dizer. O morgadio do Santo Espírito teve a sua fundação no ano de 1527, por
escritura pública de 12 de Dezembro do mesmo ano, sendo aprovado e
confirmado por carta régia de 28 de Janeiro de 1528, a qual, apesar da sua grande
extensão, vamos transcrever aqui textualmente, não só pelo particular interesse
que oferece ao assunto desta memória histórica, mas ainda como um subsidio de
informação para o estudo dos costumes e da mentalidade dos homens dessa
época. Trata-se dum manuscrito original, em pergaminho, lançado com bela
caligrafia e em excelente estado de conservação, que se encontrava na copioso
cartório da casa do segundo Conde de Carvalhal, último sucessor na
administração do morgadio do Santa Espirito. Ei-lo
«Dom johã por graça de Ds. Rey de Portugal e dos algarves daquem e dalem mar
em Africa Snôr da Guinee e da conquista navegaçãm comercio da Ethiopia,
Arabia, Persia e da India a quantos esta minha carta virem: faço saber que por
parte de Joham smeraldo fidalgo de minha casa e Agueda dabreu sua molher
moradores na minha ilha da madeira Me foy apresentado hum puurico stormento
de instituiçam de morgado que ora fizeram dua parte de seus bees no dual o
trelado he o seguinte. Em nome de Ds. Amen. Saibam quantos este stormento de
instituiçam e vinculaçam de bees assim dizimeiros como foreiros em fatiota para
sempre virem que no anodo nascímento de nosso Snôr Jhu Cristo de mil
quinhentos e vinte sete anos em doze dias do mez de dezembro tia ilha da
Madeira na Lombada e assentamento de Joham smeraldo o Velho que he no
termo da cidade do Funchal: sendo elle hi presente e Agueda dabreu sua molher
presente mi notario pruuico e testemunhas ao diantescriptas : estes ambos
ciixeram que elle Joham smeraldo tinha aforada a dita lombada em fatiota a Ruy
Gonçalves que foy capitam da ilha de Sam Miguel e a dona Maria de Betancor
sua molher : e assi na Lombada tinhã comprado muita terra outra por carta de
compra que era dizemeira : e mais tinhã dizemeiras outras terras e casas e
engenhos pegados com a villa na Ponta do Sol: E assim tinhã um muito honrado
aponsentamento na cidade do Funchal cote outras casas pequenas: e que sua
vontade fôra sempre por serviço de Ds. e salvaçam de suas almas: e pelo grande
amor que tem a seu filho Christovam smeraldo lhe fizeram morgado da legitima
pte da fazenda que tem na dita ilha assi dizemeira como foreira: e porque lia
muitos dias que eles Joham smeraldo e Agueda dabreu sua tnolher tem feita
partilha de toda sua fazenda assi foreira como patrimonial antre o dito
Christovam smeraldo e Joham smeraldo seus filhos : por não terem outros filhos
nem herdeiros legitimos e naturais : nem ossperam por via de natureza a ter por
serem já velhos, a qual partilha tem feito antre elles para depois da morte de
qualquer delles seus pais: elles ditos seus filhos lançarem sortes e tomarem
cadaum seu quinham que por sorte lhe acontecer da partilha queeles seus pais
tem feita: por consentimento e aprazimento delles dictos seus filhos a qual
partilha lie confirmada por EI-Rey nosso Snár segundo mïlhor e mais
compridamente tudo consta no stormento da partilha confirmada pelo dicto Snôr.
E porque os passados deste mundo por memória de suas boas obras vivem:
deixando casas e bees de morgado suas almas podem receber de seus sucessores
obras caritativas porque mereçam: temendo ads. e querendo-lhe dar graças das
muitas mercês que lhe tem feitas: querem ordenar como ordenado tem este
morgado: do qual se seguem muitos proveitos a seus sucessores: por que quando
fica cabeça nas linhagens se pode milhor conservar a nobresa e os fidalgos e
homeês nobres ainda que em muitas fadigas se uissem : tendo morgado sempre
seus filhos ficaãm repairados e seus parentes tem abrigo e melhor emparo do que
poderiam ter sendo a fazenda dividida por partes : Porque se viram muitos
liomeês de muito grandes fazendas e rendas por deixarem muitos filhos e suas
fazendas serem por eles repartidas os dictos seus filhos ficarem pobres e fenece a
memória dos dictos defuntos e de seus herdeiros coelles : e portantoeles sempre
tiveram e tem vontade a vincular os ditos bees : para que em nenhum tempo
possam ser vendidos trocados escãibados e sempre andem em o herdeiro legitimo
primo génito baram e seusdescendentes. Do qual morgado cóstituem ao dito
Christovamsmeraldo seu filho em ametade de todos os bees de raiz que
direitainente lhe pertencem por bem da dita partilha; e que aqueles bees que
acontecerem ao dito Christovam smeraldo seu filho em sorte e partilha segundo
forma do stormento das partilhas acimadicto e relatado: desses diceram que
faziam o dicto morgado: e aquella metade que assi lhe acontecer nos ditos bees :
essa será a que sempre andará junta e avinculada e em morgado: da maneiraque
dito tem e nó outros alguns. E quanto lie aos bees do Arco que elia Agueda
dabreu tem herdado por morte de seu hay e may, estes ficam de fóra para ela
Agueda dabreu, delles despoer o que bem lhe vier: segundo se contem no dito
stormento e contrautodas partilhas: e por esta causa o melhoram em parte de suas
terças alem de sua legitima: segundo se contem no dicto stormento de partilhas.
E na socessam do dicto morgado se tem a maneira seguinte: avendo o dicto
Christovam smeraldo filhos barões legitimesde legitimo matrimonio herdam o
primo genita sendo abile e idonio para isso: porque não o sendo o que Ds. não
mande herdará então o segundo e ficará por primo genito : e emquanto houver
filho macho não herdará femea : e sendo caso que não haja filhos machos antam
herdará femea a mayor e primo genito sendo abile para casarporque quando não
fôr abile e idonea para casar o averá a segunda filha de sorte que o dicto morgado
seja possuido e administrado por pessoas idoneas e autas para isso. E quando hi
nó houver maisque hum macho e nó for idoneo e abile para herdar o dicto
morgado: querem que em tal caso que venha a femea mayor sendo para isso abile
e quando o não for vira a segunda: e se não ouver segunda entam ficará com o
primo genito macho sem embargo de nó ser abile e idoneo : porque assi querem
que lhe fique sendo caso que nó aja senõ hum filho. E sendo caso que não seja
para isso abile e idoneo lhe ficará o dicto morgado e sempre andará o dicto
morgadopor linha direita de ascendente em descendente de filho a neto ou neta
nó avendo neto como dicto he : E nó havendo hi descendente do dito Christovam
smeraldo de legitimo matrimonio o que Ds. nómande nem queira: sendo elles
constituintes falecidos herdará o dicto morgado o parente seguinte em grao pela
maneira da socessamacima dieta porque querem q avendo hi parente em grao
macho nó h.erde femea. E porque nossa vontade he enquanto for possivel que o
dicto morgado ande em nossos descendentes para sempre por linhadireita: sendo
caso que o dicto Christovam smeraldo nosso filho nó aja filhos ou filhas
legitimos de sua molher avendo algum filho ou filha bastardo de molher solteira
sendo legitimado por E1-Rey nosso Snôr lhes apraz que o herde tendo-se nelles a
maneira da sucessam acima decrarada. E querem e lhes apraz que esta maneirada
sucessam por eles acima decrarada com todalas clausulas que dietas tem em seu
filho Christovam smeraldo se tenha em todos os sores-sores deste morgado para
todo o sempre. E assim querem e mandamque os socessores do dicto morgado
para o averem de herdar se chame e nomeem para sempre do apelido e alcunha
de smeraldo. Aos quaesmandam que cumprão e paguem o fôro da dita fazenda
foreira ao tempo que elles são obrigados paguar segundo forma do stormento do
aforamento: o qual foro pagaram muito bem ao senhorio que pellos tempos
forem da dita fazenda foreira: e mais os socessores dodito morgado seram
obrigados comprir para sempre os carregos da capela que elles Joham Esmeraldo
e sua molher tem ordenado: segundo se côntem no stormento das ditas partilhas.
E porque El-Reynosso Snôr aprouve dar outorga a este morgado e para milhor
declaraçam e ordenaçam delle foi necessario declarar o que dito he E por que o
dicto Christovam smeraldo seu filho ainda nó temfilho nem filha a que periodíq
na socessam e o dito morgado ser já feito e elles Joham smeraldo e sua mulher
serem ainda possuidoresde toda a dita fazenda e assi dela senhores como sempre
foram e porque suas vontade he comprir se esta instituiçam e vinculaçam no
milhor modo e maneira, que poder ser e por direito mais valer. Epedem por
mercê a sua Alteza que a confirme e a ella dê todo a poder e firmeza para que
sempre seja valiosa e firme e com todas estas declarações a confirme: E se aqui
falecer alguma crasula ou crasulas que necessarias sejam para se cumprir e
afirmar a ditainstituiçam as aviam aqui por expostas e declaradas: e que sua.
Alteza as possa por elles soprir e declarar. E se tambem aqui ha algúá ou algúas
crasulas que empidam a dieta instituiçam e vinculaçam elles as aviam nenhúas
nem expressas porque suas tençõessão o dito morgado ficar húa vez firme e
valioso para sempre. E o disto Christovam smeraldo que a isso presente estava
dixe que era muito contente de os dictos seu pay e may fazerem o dito morgado
da maneira acima dieta e que ainda que no disto morgado entrassemos beês e
fazenda que elle avia de herdar de sua legitima por morte dos dictos seu pay e
may : elle todavia era contente e lhe prazia que delles se fizesse o disto morgado
e nisso consentia expressamente e pormeteo de em todo comprir o neste
stormento conthiudo : por sie por seus socessores decendentes : pede por mercê a
El-Rey nosso Snôr que o confirme da maneira que os dictos seu pay e may o
pedem e requerem. E bem assi a esto presente estava Dona Lionordatouguia
molher do dito Christovam smeraldo : ouvio ler de verbo a verbo este stormento ;
e eu tabaliam lhe perguntei se consentia ella e avia por bem o nelle conthiudo e
por ella foy disto que neste casa nom era necessario seu consentimento:
porquanto ella casara com o disto Christovam smeraldo per dote e arrase nos
dictos beês que assi o disto Joham smeraldo fazia morgado ella não avia de
herdarnem meeyra : porque somente a via daver seu dote e suas arras no caso em
que as vencesse. Porem ella por mais abastança: se seu consentimento aqui era
necessario ella consentia nisso e o aprovava e avia por bem assi como nelle era
conthiudo e queria que se guardasse e comprasse em todo. E em todo o tempo se
obrigaram elles partes ter e comprir este stormento e condições delle, e nenhum
se nom arrepender nem afastar a fora per nenhuã razam : sobre obrigaçam de
todos seus bees moveis e de raiz avidos e por aver que pera ello obrigaram e em
testemunho de verdade mandaram e outorgaram assi ser feito este stormento e
pediam cadauu o seu e osque lhe comprassem deste theor. Testemunhas que ao
presente foram Christovam Fernandes crelego de missa seu capellam e Manuel
Simaão outrossy crelego de missa stantes na dieta Lombada e Ruipires moleiro
do moinho delles João smeraldo e sua molher: e as dietas Agueda dabreu e dona
Lionor datouguia per sy e per suas maãos a firmaram por saberem screver e eu
Joham Gliz escorceonotario pubrico por El-Rey nosso Snôr na dieta cidade e
seus termos que este stermonto de contrauto e instituiçam e vinculaçam de
morgado em meu livro de notas notei e delle tirey e escrevi aqui emdezoito
folhas pera o disto Christovam smeraldo e com o próprio original concertei e de
meu puuico sinal assinei. Pedindo me por merce os ditos João smeraldo e
Agueda dabreu sua molher que lhes, aprouasse e confirmasse o disto stormento
de instituiçam de morgado com todas as crasulas e condições em elle decraradas
asi e tam inteiramente como em elle se contem: e visto por mim o disto
stormento vendo que a tençam e fundamento dos dictos Joham smeraldo e
Agueda dabreu he justo e honesto e assi mesmo que he muito meu serviço e dos
Reys que pelos tempos ao diante forem Tenho por betee lhe aprouo e confirmo o
disto stormento e instituiçam de morgadoassi e tam inteiramente como em elle se
contem e com todalas erasulas e condições em elle conthiudas. E isto nom se
dimenuindo as legitimas doutros herdeiros legimos dos dictos instituidores se
osouurer. E assi quero e mando que em tudo se cumpra e guarde e seja firme e
valioso sem embargo de quaesquer leis e ordenações direitos façanhas e
oupeniões de doutores e de quaesquer outras cousas que em contrario nisso sejam
e possam ser per qualquer' guisa modo e maneira que seja e todo ey por reuogado
e anulado equero que seja nenhum e de nenhum vigor nem força emquanto
contra a dieta instituiçam de morgado forem. E posto que sejam taes que de feito
ou de direito se devesse fazer aqui delias ou de cadahuua dellas expressa mençam
por que assi como se aqui expressamente fossem decraradas quero que haja lugar
esta minha derogação. E porém mando a todos meus corregedores
desembargadores juizes justiças e a todos outros oficiais e pessoas a que esta
minhacarta for mostrada e o conhecimento dela pertencer que em todo a cumpra
e guardem e façam comprir ter manter e guardar o disto stormento de instituição
de morgado como se em elle contém sem duvida nem embargo ne contradiçam
algua que a ele seja posto porque assi he minha merce. Dada em a minha villa
dalmeirim a xxbIII das de janeiro Antonio Godinho a fez de ibcxxbiii. E isto ey
por bem e mando que se cumpra pelo modo sobredito nó prejudicando a qualquer
direito que os senhorios direitos das terras foreiras que nesta carta de morgado
vam metidos nela poderiã ter assi por rezam do direito dominio como por
qualquer outra maneira que seja e como se neste nó fossem postas ne fosse esta
carta por mim confirmada El-Rey».
Era verosímil e até muito provável o admitir-se que João Esmeraldo e sua mulher
D. Águeda de Abreu, logo após a celebração da escritura de partilha das terras da
Lombada em dois grandes lotes, a favor de João Esmeraldo e Cristóvão
Esmeraldo, e ainda também depois de feita a instituição dum morgadio na pessoa
deste último, se seguisse a criação doutro morgadio, que vinculasse a parte
restante das mesmas terras, as quais somente por morte dos instituidores seriam
divididas, por meio de sortes, entre os dois filhos de João Esmeraldo o Velho. Da
instituição vincular, que teve Cristóvão Esmeraldo por primeiro administrador,
deixámos acima transcrita a respectiva escritura e a confirmação do rei, mas do
morgadio de que João Esmeraldo foi o primeiro administrador não temos
conhecimento do instrumento público que o instituiu, e até num processo judicial
de meados do século XVII, havido entre os morgados do Santo Espírito e do
Vale da Bica, se alega que este último não chegará nunca a ser criado e que
portanto não podiam ser alegadas a favor dele as leis que regulavam as
instituições vinculares, no que dizia respeito à sucessão dos seus administradores.
Parece que os senhorios directos dos terrenos do Vale da Bica se consideravam
dentro do regímen e dos privilégios inerentes aos morgadios, porque tinham a
primeira escritura de partilhas feita por João Esmeraldo na conta e com a força
duma verdadeira instituição vincular. Foi esta a doutrina que prevaleceu, apesar
da falta dum documento autêntico, que sem vislumbres de dúvidas provasse a
existência legal dessa criação.
X - A Casa Solarenga
Era sem dúvida a mais ampla e aparatosa casa solarenga dos campos da Madeira,
que ainda situada numa cidade populosa não desonraria a hierarquia dos seus
mais ilustres moradores. A grande e apalaçada frontaria, de aspecto nobre e
senhoril, os seus três espaçosos pavimentos, o numero e largueza das suas salas,
os vastos pátios e eirados, a sua invejável situação sobranceira aos terrenos
circunjacentes, tendo ao lado a magnifica capela, tornavam-na uma sumptuosa
vivenda de ricos e antigos fidalgos, que ali ostentassem o fausto e a grandeza da
sua opulência, de par com o brilho e o aparato dos seus armoriados brasões e
pergaminhos. Volvidos uns tantos anos, como exemplo eloquente da caducidade
das coisas terrenas, vemos a asa negra da miséria roçar sinistramente por estas
paredes, que foram testemunhas mudas das ilusórias vaidades humanas, que por
ali delirantemente se estadearam ...
Presume-se que o primitivo solar da Lombada tivesse sido edificado pelo
flamengo João Esmeraldo, em época coeva da construção da capela do Santo
Espírito, isto é, na primeira década do século XVI. Não seria inicialmente de
proporções tão aparatosas e teria no decorrer dos tempos recebido ampliações e
melhoramentos, à medida que a instituição vincular, por ele criada, fora
crescendo em riqueza, prestigio e importância social. No último quartel do século
XVI, aí por 1590, diz o historiador açoriano «que .. foi esta a maior casa da ilha e
tem grandes casarias de aposentos, casas de purgar, igreja ... », como já atrás fica
referido.
Por essa época, era administrador dos dois vínculos João Esmeraldo de Atouguia,
que conjecturamos ter sido o que ampliou a casa solarenga, a que alude o doutor
Gaspar Frutuoso. A administração dos dois morgadios separou-se, mas as casas
de habitação ficaram pertencendo a ambos, com grandes inconvenientes para os
dois usufrutuários, até que, no ano de 1679, Luís Carvalhal Esmeraldo, morgado
do Santo Espírito, trocou, por oito dias de água, a parte que nas mesmas casas
tinha António de Carvalhal Esmeraldo, morgado do Vale da Bica. A essa troca se
refere a seguinte inscrição lapidar, que se encontra no pateo interior e sobre o
limiar da porta, que dava entrada para o salão nobre: - «Estas casas reedificou
Luiz Esmeraldo de Atouguia possuidor legitimo do morgado do Santo Espirito
que venceu a primeira demanda por sete votos conformes e a segunda por três
todos confirmaram ser o legitimo sucessor e proprietário e de oito dias de água
ao morgado da Bica 1679-Troquei por metade destas casas arruinadas a dita
água». Pelos dizeres transcritos se vê que Luiz Esmeraldo de Atouguia restaurou
a velha casa solarenga, que então se achava já em adiantado estado de ruína. A
inscrição também se refere ao grave e prolongado pleito judicial, havido entre os
administradores das duas casas vinculadas, com respeito ao direito de
administração e sucessão das mesmas, da qual nos ocuparemos em outro capítulo
deste opúsculo.
Na porta exterior do solar, que dá acesso ao primeiro pateo, encontra-se no alto
do limiar uma pedra lavrada com um escudo esquartelado, tendo no primeiro
quartel as armas dos Câmaras e nos outros três as dos Esmeraldos e lendo-se
nessa pedra a data de 1672 e o nome de Luiz Esmeraldo.
Junto da inscrição, que se acha sobre a porta que comunica o salão nobre com o
eirado, encontra-se gravada na cantaria da mesma porta a data de 1780, que
parece recordar a ligação então estabelecida entre o referido eirado e o sobredito
salão, e também a realização de importantes melhoramentos executados naquela
parte do grande solar.
Ficaram na tradição as noticias das deslumbrantes festas, que em diferentes
épocas se realizaram no vasto solar da Lombada dos Esmeraldos, sobressaindo a
todas as que o segundo Conde do Carvalhal e último administrador deste vinculo
ali estadeou, com o seu costumado brilho e aparato, nas rápidas passagens que
fazia por estas casas, pois é sabido que o mais tempo vivia no estrangeiro, na sua
casa de Lisboa e ainda no palácio de São Pedro ou na suntuosa quinta do Palheiro
do Ferreiro.
Estas arruinadas casas pertencem hoje
(23)
ao Ministério das Colónias com a
faculdade de cede-las para a instalação duma escola, que eduque e prepare o
pessoal missionário destinado ás nossas colónias ultramarinas.
XI - As Capelas
Deve supor-se que na grande propriedade da Lombada, quando a sua exploração
agrícola atingiu um apreciável desenvolvimento e se tornou o foco dum
importante centro de população, se levantaria sem demora uma pequena capela,
como geralmente sucedia nos recintos das fazendas povoadas, espalhadas em
diversos pontos da Madeira.
____________
(23) Art.º 8.º São cedidas a favor do Ministério das Colónias, para os fins designados no decreto n.° 12485, de 13 de
Outubro de 1926, as ruínas do antigo solar do Conde do Carvalhal, na Lombada dos Esmeraldos, e a cerca anexa corte
as respectivas águas (Decreto n.° 19268, de 24 de Janeiro de 1931).
Teria sido, porventura, Rui Gonçalves da Câmara, o flamengo João Esmeraldo
ou talvez os próprios habitantes deste povoado os edificadores da modesta
edícula, cuja existência remontamos aos primeiros anos do terceiro quartel do
século XV, sendo hoje impossível determinar com precisão o local em que fora
construída e o nome da sua invocação.
Capela de Santo Amaro. Diz-nos o ilustre anotador das Saudades
da Terra que João Esmeraldo o Velho instituiu a capela de Santo Amaro antes do
ano de 1500, havendo ponderosos motivos para supor que esta foi posteriormente
edificada àquela de que acima fazemos menção. Da primeira não restam vestígios
e talvez tivesse sido demolida, afim de erguer-se, no seu próprio local, a igreja do
Santo Espírito, como abaixo mais largamente se dirá. Da segunda existem ainda
uns montões de antigos escombros, que bem denunciam a sua incontestável
vetustez. Os restos de velhas paredes e umas características seteiras nelas abertas
indicam-nos a antiguidade destas venerandas ruínas. O abandono a que foi
votada e a sua quase completa destruição devem atribuir-se especialmente à
construção da igreja do Santo Espírito, na primeira década do século XVI, que
pela sua situação e largueza oferecia maiores comodidades dos habitantes do
lugar. Não é para causar estranheza que havendo João Esmeraldo mandado
edificar uma ampla e bem ornada igreja, fizesse convergir para ela as suas mais
cuidadas atenções com prejuízo da capela de Santo Amaro, que anteriormente
mandara construir. O mesmo aconteceu com os diversos sucessores na
administração do vínculo do Santo Espírito, porque, desde há séculos, não se
acha ela consagrada ao exercício do culto.
Capela do Santo Espírito.
Como
já
deixámos
dito,
conjecturamos que tivesse sido, no próprio local da antiga ermida, que João
Esmeraldo levantasse a nova capela, nos princípios do século XVI, que Gaspar
Frutuoso, nos fins do mesmo século, chama enfaticamente igreja, e que, na
verdade, como tal poderia ser considerada, se atendermos a certas condições do
meio. O novo templo não recebeu apenas a ordinária e costumada bênção do
Ritual, ministrada por um presbítero, mas teve a aparatosa sagração episcopal, o
que deve atribuir-se à sua amplidão, à relativa importância do lugar e também,
por certo, à categoria social do seu fundador. Foi o bispo de Tanger Dom João
Lobo que procedeu no ano de 1508 à sua sagração, dizendo-se algures que viera
expressamente à Madeira presidir à celebração dessa cerimónia religiosa, o que
nos parece destituído de todo o fundamento.
(24)
Numa das paredes interiores da
actual igreja, conserva-se uma lápide, porventura a mesma que se encontrava na
antiga construção, onde se lêem as palavras seguintes: «Esta Igreja foi
consagrada por Dó foam Lobo Bispo de Tãiere aos 27 de Agosto de 1508». Teve
capelão privativo desde o tempo do seu fundador, como se vê dum documento
atrás transcrito, constituindo a manutenção do seu culto um dos mais obrigatórios
encargos pios do morgadio do Santo Espírito, havendo sempre os seus
administradores guardado inalteravelmente os deveres que lhes eram impostos
como padroeiros desta capela.
_____________
(24) D. João Lobo, bispo de Tanger, era membro qualificado da Ordem de Cristo, a que pertenciam no espiritual as
novas terras descobertas e conquistadas, em virtude das várias doações feitas pelos monarcas portugueses. Antes da
criação da Diocese do Funchal, aquela Ordem enviava para este arquipélago os sacerdotes que aqui exerciam os actos
do culto, mandando em i 5os o bispa D. João Lobo desempenhar nesta ilha as funções do ministério episcopal, afim de
satisfazer os instantes pedidos dos habitantes, pois que havia já cerca de oitenta anos que se iniciara o povoamento e
ainda nenhum prelado viera à Madeira, o que constituis um grave prejuizo para os interesses religiosos dos seus
moradores. No interessante livro do dr. Vieira Guimarães, intitulado A Ordem de Cristo, lemos - «já em 1508 para
satisfazer os desejos destes reclamantes, o Viário de Tomar (superior eclesiástico da Ordem) lhes enviou o bispo de
anel D. João Lobo, que foi esperado pelo mestre Frei Nuno com toda a clerezia e lhe fizeram: muitas festas. D. João
Lobo demorou-se mais dum ano nesta ilha, percorrendo todas as freguesias e exercendo solicitamente as diversas
funções do seu carga!
Decorridos dois séculos, era administrador da instituição vincular Cristóvão
Esmeraldo de Atouguia e Câmara, moço fidalgo da casa real e uma das pessoas
mais prestigiosas do meio social madeirense, que resolveu alargar as proporções
da pequena igreja e orna-la com o mais aprimorado esmero, imprimindo-lhe a
autentica feição duma capela de antigos paços reais, apesar do isolamento do
lugar e da distancia a que se achava da cidade do Funchal: Demoliu a velha
capela, que foi totalmente reedificada, dando-lhe maior amplidão, levantando-se
nela cinco altares e sendo dotada com as mais primorosas decorações interiores
no precioso trabalho de talha dourada, nas belas telas que revestem as paredes, no
rico e artístico lambris de azulejos que cobre o rodapés do templo e na magistral
esculturas das figuras que adornam os altares. Já alguém chamou a esta capela
um pequeno museu de arte, e sendo na verdade um templo da fé cristã, não deixa
de ser também um templo de «belas artes», em que a pintura, a escultura, a obra
de entalhe e o azulejo têm uma condigna e artística representação, como já fica
dito.
Os quadros a óleo não são, de certo, assinados por mestres conhecidos, mas
oferecem-nos pinturas artísticas do mais correcto desenho, duma perfeita
modelação e do mais harmonioso colorido, talvez copias de distintos cultores das
escolas flamenga e italiana, tendo algumas delas sofrido já a profanação de
incompetentes restaurações. As estátuas de São João, São Luís, Nossa Senhora
da Conceição e de Cristo Crucificado constituem irrepreensíveis modelos de
escultura sacra, em que insignes imaginários imprimiram toda a inspiração do
seu génio e da sua ardente fé religiosa. 0 Magnifico lambris de azulejos, de dois
metros de altura, que reveste completamente o fundo das paredes interiores, é um
primoroso trabalho do tempo de D. João V, representando, em figuras alegóricas,
os chamados Frutos do Espírito Santo, em que as virtudes cristãs da mansidão, da
paz, da bondade, da ciência, da piedade, da sabedoria e da modéstia são postas
em eloquente relevo, por expressivos e admiráveis simbolismos, de que aquelas
figuras são portadoras. A obra de talha dourada, embora executada com esmero e
de reconhecido valor artístico, está trabalhada no decadente estilo barroco, que
tão generalizado se tornou no tempo da construção desta capela.
A reedificação da igreja do Santo Espírito ter-se-ia realizado no primeiro quartel
do século XVIII lendo-se no limiar superior do pórtico a data de 1720, que
parece ser a do ano do seu acabamento. Como já dissemos, é de presumir que o
local escolhido tivesse sido o mesmo em que se erguia a demolida ermida, nas
proximidades do velho solar e em sítio tão pitoresco e de tão dilatados
horizontes, como aquele em que, ela se encontra. É possível que as decorações
interiores não ficassem então inteiramente concluídas, pois que na face anterior
do coro se diz que a igreja foi pintada no ano de 1768. 0 primeiro conde do
Carvalhal procedeu ali a várias reparações e os seus últimos proprietários
realizaram também importantes trabalhos de restauração, que determinaram o
lançamento duma nova bênção, como se vê da inscrição: «Esta capela tendo sido
reparada foi benzida novamente em 10 de Junho de 1894 com as solenidades do
estilo pelo prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto», que se encontra
numa das paredes interiores da mesma capela.
Todas as instituições vinculares estavam oneradas com os chamados «encargos
pios», a maior parte deles de carácter perpetuo e que principalmente consistiam
na celebração de missas e na satisfação de certas obras de piedade e beneficência,
que os instituidores estabeleciam como sufrágio de suas almas e descargo de suas
consciências. Não faziam excepção a esta regra os morgadios da Lombada. Na
capela do Santo Espírito foram impostas certas obrigações aos seus
administradores e tendo o primeiro Conde do Carvalhal, sucessor na
administração deste vinculo, pedido a remodelação e redução dessas obrigações
ao prelado diocesano D. Frei Joaquim de Menezes e Ataíde, obteve deste, por
sentença de 23 de Maio de 1814, que os encargos pios inerentes à mesma capela
consistissem, a partir desta data, em manter ali um capelão privativo, que
dissesse a missa ao povo em todos os domingos e dias santificados e na
celebração de cento e trinta e três missas por várias intenções (25).
Queremos pôr em relevo uma circunstância digna de ponderação. A igreja do
Santo Espírito ou do Espírito Santo, segundo a forma mais comum de linguagem,
somente é conhecida por esta denominação nos diplomai oficiais, documentos ou
livros que a ela se refiram, dando-lhe em geral o povo o nome de Capela de São
João e também da Conceição ou ainda a maneira mais simplificada de Capela da
Lombada. E bastante antiga a denominação popular de São João e talvez devida
ao facto de celebrar-se nesta capela, com grande brilho, a festa do Percursor do
Messias, ali representado por uma primorosa estátua esculpida em madeira,
objecto de especial veneração por parte dos habitantes daquelas vizinhanças.
A capela de Santo Amaro ou antes o montão de ruínas que dela resta e a
magnifica Igreja do Santo Espírito, ambas de propriedade particular e pertença
do antigo morgadio da Lombada dos Esmeraldos, foram cedidas pelo governo da
metrópole à Diocese do Funchal, com os seus respectivos anexos, para o livre
exercício do culto, ficando sob a direcção imediata do pároco da freguesia da
Ponta do Sol. (26)
_________________
(25) As 133 missas deveriam ser aplicadas pela seguinte maneira: 10 por alma de Francisco do Couto, 20 por João de
Moura Rolim, 2 por Pedro Ribeiro Esmeraldo, 1 por D. Maria de Vasconcelos, 1 por Beatriz de Andrade, 20 por João
Esmeraldo o Velho, 10 por D. Guiomar do Couto, 1 por D. Maria da Câmara, por Francisco Manuel Moniz, 2 por Rui
Mendes de Vasconcelos, 1 por Gaspar de Vasconcelos, 2 por D. Maria Figueiroa, 1 por D. Bernardo de Beteneourt de Sá
Machado, 1 por D. Serafina de Menezes, 2 por D. Guiomar de Moura, 1 por D. Guiomar de Sá, 10 por João Rodrigues
Mondragão, 10 por Manuel Fernandes Tavares, 8 por D. Isabel Correia, 5 por Afonso Enes, 1 por João de Ornelas e
Vasconcelos, 1 por Baltazar Machado de Miranda, 11 por D. Maria de Betencourt, 7 por Gonçalo Dias, 1 por Luiz
António Esmeraldo Teles de Menezes, 1 por D. Lourença de Mondragão.
(26) Art.º São cedidas para exercício do culto, a favor da diocese do Funchal, as capelas denominadas Nossa Senhora
da Conceição ou Santo Espírito, no sítio da Carreira, na Lombada dos Esmeraldos, Concelho da Ponta do Sol; e Santo
Amaro, no dito sítio da Lombada com os seus anexos (Decreto n.° 19268, de 24-1-1931).
Capela de Nossa Senhora da Piedade.
É mais
vulgarmente conhecida por capela do Jangão, tomando o nome do sítio em que se
encontra edificada. A parte oriental da grande propriedade constituía o morgado
do Vale da Bica e sendo dele 8.° administrador António de Carvalhal Esmeraldo,
mandou construir, no sítio do Jangão, uma capela consagrada a Nossa Senhora da
Piedade, nos primeiros anos do último quartel do século XVII, isto é, pouco
anteriormente ao ano de 1679, data em que, num documento autentico, se faz
referencia à dita capela, então recentemente edificada. Em 1777 o morgado
Francisco Xavier de Ornelas de Vasconcelos procedeu nela a várias reparações,
sendo novamente benzida no mês de Agosto daquele ano. No ano de 1879, o
conselheiro Agostinho de Ornelas de Vasconcelos, 15.º administrador da casa
vinculada do Vale da Bica ou do Jangão, mandou também executar nela alguns
trabalhos de restauração, por se encontrar em estado já adiantado de ruína, tendo
procedido à sua bênção, no dia 12 de Outubro do referido ano, o arcebispo de
Goa D. Aires de Ornelas de Vasconcelos, irmão do proprietário da capela.
Capela de Santo António. Os vastos terrenos, que constituíam a
Lombada da Ponta do Sol, foram divididos em duas partes distintas, por ocasião
da instituição dos morgadios do Santo Espírito e do Vale da Bica ou Jangão,
ficando pertencendo a este último o importante sítio do Lugar de Baixo, mas em
virtude duma divisão amigável feita entre os dois primeiros administradores
daqueles vínculos, passou poucos anos depois a ser pertença do morgadio do
Santo Espírito. Presumimos que tivesse sido João Esmeraldo de Atouguia,
terceiro administrador deste último vinculo, o fundador da capela de Santo
António, no sítio do Lugar de Baixo, pelos primeiros anos do século XVII. Os
últimos proprietários destas terras, a firma comercial A. Giorgi & C.ª, demoliram
a capela e a casa adjunta, já então bastante arruinadas, fazendo-as substituir por
uma construção inteiramente nova, com uma excelente moradia e uma pequena
capela anexa, também dedicada a Santo António, que foi solenemente benzida a
25 de Fevereiro de 1906 pelo prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto.
Os encargos pios da antiga capela de Santo António Lambem foram reduzidos
por sentença episcopal de 5 de Abril de 1819, ficando os respectivos padroeiros
obrigados a manter o serviço dum capelão permanente, que diria a missa aos
habitantes do sítio em todos os domingos e dias santos, e à celebração perpetua
de quarenta missas conforme as intenções exaradas na referida sentença. (27)
XII - A Administração dos Vínculos
Como já fica dito e repetido, o fidalgo flamengo João Esmeraldo quis transmitir
aos seus descendentes com carácter de perpetuidade os vastos domínios
territoriais de que era possuidor e também as honrarias e privilégios dei que
gozava como nobre de origem e que o rei de Portugal confirmara e ampliara nos
diplomas atrás referidos e transcritos. As instituições vinculares, tão
ambicionadas na época, satisfaziam absolutamente esses desejos, dando-se a
criação do vinculo do Santo Espírito ou da Lombada e o do Vale da Bica ou do
Jangão, no tempo e nas condições, que já deixámos descritas em capítulos
anteriores. Tendo João Esmeraldo falecido no ano 1536, logo os seus dois filhos
João Esmeraldo e Cristóvão Esmeraldo, em observância das disposições
paternas, procederam ao sorteio dos dois morgadíos, cabendo a João Esmeraldo,
____________________
(27) Seriam as 40 missas celebradas pelas almas de Afonso Enes Colunibreiro, António Malheiro o Velho, Francisco
Aurélio da Câmara Leme, Pedra Leme, D. Antónia Maria de Menezes, Sebastião de Morais o Velho, Sebastião de Morais
o Moço, João Gomes de Andrade, D. Antónia de Morais, João Nunes, D. Mariana de Menezes, D. Catarina Leme, João
Gomes da Ilha, D. Catarina de Barros, João Lopes, Henrique Moniz, D. Isabel de Andrade, D. João José de Sá e
Francisco Fernandes.
filho mais velho e do primeiro matrimónio, as terras do lado oriental que
confinavam com a Ribeira da Caixa, isto é os sítios do Jangão e do Lugar de
Baixo, e caindo em sorte a Cristovão Esmeraldo, filho do segundo matrimónio,
os terrenos do lado ocidental, que tinham como limites a Ribeira da Ponta do Sol.
Por pouco tempo se guardaram as últimas vontades do velho João Esmeraldo,
com respeito á divisão dos bens territoriais da Lombada, por isso que a viúva D.
Agueda de Abreu e o filho Cristovão Esmeraldo, considerando-se lesados,
persuadiram o enteado e irmão a consentir em uma nova partilha, ficando o
importante sítio do Lugar de Baixo fazendo parte do dote da viúva e fora dos
bens que constituíam as áreas dos dois morgadíos. Parece que mais uma vez se
repetiu a conhecida partilha da fabula, em que Cristóvão Esmeraldo fez o papel
de leão, sendo manifesta a inferioridade do vinculo do Vale da Bica com relação
ao do Santo Espírito, ainda mesmo antes do cerceamento das terras do Lugar de
Baixo. Mas essa inferioridade reveste as proporções duma injusta e violenta
extorsão, se considerarmos a situação, natureza e extensão dos terrenos que
formavam o morgado do Santo Espírito, comparadas com as do Vale da Bica. A
este propósito, deparámos com a seguinte interessante informação, que temos por
fidedigna: «...Cristovão Esmeraldo, já então Provedor da Fazenda Real e homem
prático e positivo levou a pari du lion, deixando ao irmão, homem de genio
folgasão e gastador, uma parte muito menor do que na primeira partilha». A
propriedade do sítio do Lugar de Baixo, por morte de D. Agueda de Abreu,
ocorrida em 1545, foi integrada no morgadio do Santo Espírito e nele
permaneceu até à abolição das instituições vinculares.
João Esmeraldo, diz-nos o conselheiro Agostinho de Ornelas, pouco tempo
sobreviveu àquele contrato leonino e deixou uma filha única, D. Antónia
Esmeraldo, que o tio Cristóvão Esmeraldo, logo tratou de casar com seu filho
António Esmeraldo, ainda impubere. Obtida a necessária dispensa de Roma,
celebrou--se o casamento em Lisboa no ano de 1539, sendo o contraente
representado por seu pai como procurador. O rei D. João 3.º levou muito a mal
que para esta aliança se não pedisse o seu consentimento, mandando logo tirar a
noiva da casa de seu tio D. Pedro de Moura, onde se achava, e recolhe-la no
Paço, condenando Cristóvão Esmeraldo em duzentos cruzados de multa e dois
anos de degredo para Africa. Este degredo não era então o que é hoje e cumpriase servindo o degredado nobre, na guerra, com todas as honras e liberdades que
lhe competiam. Apesar do poder real, Cristóvão Esmeraldo apelou para Roma e
obteve uma Bula, expedida ao arcebispo o Funchal D. Martinho de Portugal,
mandando entregar a noiva ao marido e tirá-la do poder de quem quer que a
retivesse por mais elevada que fosse a sua hierarquia (28).
O casamento de António Esmeraldo com sua prima D. Antónia Esmeraldo, filhos
dos dois primeiros administradores dos morgadíos do Santo Espírito e do Vale da
Bica, determinou a reunião das duas casas vinculadas. D. Antónia Esmeraldo
morreu sem descendência e nomeou seu marido António Esmeraldo na sucessão
do Vale da Bica, o qual, falecendo também sem geração, teve como sucessor na
administração de ambos os morgados a seu irmão João Esmeraldo de Atouguia,
que morreu em 1618. Neste ano entrou D. Ana Esmeraldo, irmã do precedente,
na sucessão do Santo Espírito e Francisco Gonçalves da Câmara, sobrinho e
genro do mesmo João Esmeraldo toe Atouguia, na administração do vínculo do
Vale da Bisa. Não tornaram a reunir-se as duas casas, de que nos dois capítulos
seguintes, daremos a relação completa dos respectivos administradores.
___________
(28) Informa-nos o conselheiro Agostinho de Ornelas que os documentos respeitantes a este interessante caso se
encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo no Corpo Cronológico, parte 1.a, maço 62, doc. 12 e seg.
XIII - Administradores do Morgadio do
Santo Espírito
O primeiro administrador desta casa vinculada foi Cristóvão Esmeraldo, filho do
instituidor João Esmeraldo o Velho e de sua segunda mulher D. Agueda de
Abreu. Nasceu por 1498, tendo-se afirmado que João Esmeraldo dera ao filho o
nome de Cristóvão, como preito de homenagem e de devotada estima ao
descobridor da América, ao tempo já celebrado navegador, havendo então
realizado a sua terceira viagem às terras do Novo Mundo
(29).
De Cristóvão
Esmeraldo refere pitorescamente o historiador das Ilhas que « ... o mais do tempo
andava na cidade do Funchal sobre uma mula muito formosa, com oito homens
detrás de si, quatro de capa e quatro mancebos em corpo, filhos de homens
honrados muito bem tratados; e trazia grande contenda com o capitam do
Funchal sobre quem seria Próvedor d'Alfandega d'El-Rey, que he uma rica cousa
de renda de sua Alteza, e ricas casarias». Segundo nos informa o Elucidário
Madeirense (1- 33) obteve Cristovão Esmeraldo a nomeação de Provedor da
Alfandega no ano de 1550 e teria certamente moradia no actual e ainda aparatoso
edifício daquela repartição, construído no primeiro quartel do século XVI e cujo
andar nobre era destinado à residência dos Provedores, sendo certamente a esta
construção que Gaspar Frutuoso, nos fins do século XVI, chamava «ricas
casarias». Cristóvão Esmeraldo casou com D. Leonor de Atouguia, neta de Luiz
Alvares da Costa, fundador do convento de São Francisco. Combateu em
Marrocos, distinguindo-se como valente soldado. Tentou reunir os vínculos do
Santo Espírito e do Vale da Bica, casando o seu filho primogénito e sucessor
________________
(29) Vid Memória sobre a residência de Christovam Colombo na Ilha da Madeira por Agostinho de Ornelas, Lisboa,
1892.
António Esmeraldo, que ainda não atingira a puberdade, com sua sobrinha D.
Antónia Esmeraldo, filha herdeira de João Esmeraldo, como fica descrita no
capítulo anterior.
Segundo Administrador: António Esmeraldo, filho do, precedente, que casou
com sua prima D. Antónia Esmeraldo, filha herdeira e sucessora do
administrador do morgado do Vale da Bica, ficando assim reunidas as duas casas
vinculadas. Este casamento, que se realizou em Lisboa, provocou um ruidoso
processo, como já deixámos referido. Não houve descendência.
Terceiro Administrador: João Esmeraldo, irmão do anterior, sucedeu nesta
administração, tendo tido também a do vínculo do Vale da Bica. Casou com D.
Ana Correia, filha de António Correia o Grande e morreu sem geração legitima,
sendo seu sucessor no vinculo do Santo Espírito sua irmã D. Ana Esmeraldo.
Quarto Administrador: D. Ana Esmeraldo, irmã dos dois precedentes, que casou
com António Carvalhal, conhecido pelo Sansão madeirense, em virtude da
grande força muscular de que era dotado
(30)
Tinha muitas terras na freguesia da
Ponta Delgada, que vinculou a favor de seus descendentes e aos quais se
transmitiram, sendo o últimos possuidor delas o segundo Conde do Carvalhal.
Com este casamento, entrou na descendência dos Esmeraldos o apelido
Carvalhal, nome pelo qual se tornou mais conhecida esta antiga e nobre família
madeirense.
_______________
(30) Gaspar Frutuoso, com aquela conhecida prolixidade que ás vezes dedica a assuntos de pequena monta, ocupa-se
com largueza dos actos de valentia muscular praticados por António Carvalhal, pondo também em relevo as acções de
generosa liberalidade com que recebia todos os que procuravam a sua casa, que era então a mais afamada e
acolhedora existente em todo o norte da ilha. Era cavaleiro de Cristo e fidalgo escudeiro, tendo morrido no ano de 1598
e sido sepultado na Igreja do Senhor Bom Jesus da freguesia da Ponta Delgada.
Quinto Administrador: Pedro Ribeiro Esmeraldo, filho dos anteriores, cuja posse
foi contestada e pleiteada nos tribunais, seguindo-se longas demandas. Casou
com D. Joana de Noronha, filha herdeira de Francisco Gonçalves da Câmara.
Sexto Administrador: Francisco Gonçalves da Câmara, filho do precedente, que
casou com a sua parenta D. Isabel Esmeraldo, filha bastarda do 3.°
administrador. Não deixou descendência e morreu em 1630.
Sétimo Administrador: Luís Esmeraldo de Atouguia, e Câmara, sobrinho de
Francisco Gonçalves da Câmara 6.° administrador, que tomou posse do morgadio
depois de renhidos processos judiciais e a que já nos referimos no capítulo Casa
Solarenga. Matrimoniou-se com sua prima D. Isabel Esmeraldo e Câmara.
Oitavo Administrador: Cristóvão Esmeraldo de Atouguia e Câmara, fidalgo da
Casa Real, que nasceu em 1665 e casou em 1697 com D. Helena Teresa de
Castro, natural de Goa e filha de Aires Teles de Menezes, da casa dos Condes de
Vila Pouca de Aguiar. No capítulo referente à capela do Santo Espírito, já nos
ocupámos deste oitavo administrador do vínculo, por ter sido o reedificador
dessa capela com a magnificência que deixámos descrita.
Nono Administrador: Luiz António Esmeraldo de Atouguia e Câmara Teles de
Menezes, filho dos precedentes. Nasceu no Funchal a 10 de Maio de 1703 e
casou em 1730 com D. Leonor Josefa de Vilhena, filha de Luís de Vasconcelos
de Betencourt, morgado do Loreto.
Decimo Administrador: João Carvalhal Esmeraldo de Atouguia e Câmara, filho
do nono administrador, tendo nascido a 3 de Setembro de 1733 e casado com D.
Isabel Maria de Sá Acciaioli, filha do morgado Francisco Aurélio da Câmara
Leme. Foi herdeiro da casa vinculada de sua tia D. Guiomar Madalena de
Vilhena Betencourt de Sá Machado, possuidora de vários morgadios e a mais rica
proprietária da Madeira e uma das maiores de todo o país.
Morreu a 7 de Agosto de 1790 e foi sepultado na capela do Santo Espirito da
Lombada dos Esmeraldos.
Décimo Primeiro Administrador: Luiz Vicente de Carvalhal Esmeraldo de
Atouguia e Câmara, que casou com D. Ana Inácia Henriques de Vilhena, tendo
falecido em 1798 sem deixar descendência. Lemos a seu respeito, num livro de
linhagens, que foi «filho primogenito e herdeiro na administração de mais de
dôze morgados ... o que constitui o vassalo mais rico de bens patrimoniais de
Portugal.»
Décimo Segundo Administrador: João José Xavier de Carvalhal Esmeraldo
Vasconcelos de Atouguia Betencourt Sá Machado, irmão do precedente e
primeiro Conde do Carvalhal da Lombada. Nasceu no Funchal a 7 de Março de
1778 e morreu na mesma cidade a 11 de Novembro de 1837, sendo sepultado na
capela de São João Baptista da Quinta do Palheiro Ferreiro e tendo sido feita a
trasladação dos seus restos mortais para o jazigo da família Carvalhal no
cemitério das Angustias, pouco depois no ano de 1882. Em outro lugar deixámos
exaradas a seu respeito as linhas que vão transcrever-se: Sucedeu na importante
casa de seu irmão Luiz Vicente de Carvalhal Esmeraldo de Sá Machado, o qual,
segundo afirma um distinto linhagista, «era senhor de mais de doze morgadios
grandes, que o constituíam c vassalo mais rico em bens patrimoniais de
Portugal». 0 Conde de Carvalhal foi, não só o mais abastado proprietário da
Madeira, mas a sua casa era uma das primeiras do país, em que se tinham reunido
muitos vínculos e morgadios, possuindo vastas propriedades em quase todas as
freguesias desta ilha e ainda no continente do reino e nos Açores deixando além
disso, por sua morte, mil e tantos contos de reis em vários estabelecimentos de
crédito ingleses. Nur curioso documento oficial, dirigido pelo corregedor desta
comarca ao governo da, metropole em 1823, se diz que o conde do Carvalhal tem
«grandíssimos cabedais no banca de Londres e em caixa, e um avultadíssimo
rendimento anual, que, na presente penúria da ilha, sobe ainda de duzentos a
trezentos mil cruzados», o que para a época representava uma renda
verdadeiramente colossal para este arquipélago.
Vivendo sem fausto nem ostentação, era no entretanto um homem de animo
generoso e liberal, de que deu sobejas provas, sobretudo por ocasião de algumas
crises por que passou a Madeira, tendo sido uma verdadeira providencia para esta
terra, contribuindo poderosamente para debelar essas crises com a força do seu
prestigio, da sua influencia e da sua grande fortuna. Arcou por vezes com a
ganância desmedida dos negociantes de vinho, principalmente estrangeiros, que,
mancomunando-se, faziam baixar os preços dos mostos com grande prejuízo dos
pobres lavradores.
Afecto às ideias liberais, teve que emigrar para Inglaterra na corveta de guerra
inglesa Alligator a 22 de Agosto: de 1828, quando a Madeira foi ocupada pelas
tropas miguelistas. Em Londres foi não só o desvelado protector d madeirenses
ali emigrados, mas socorreu generosamente todos os compatriotas que a ele se
dirigiam, afirmando que nisso despendera muitas dezenas de contos de reis.
Estabelecido o governo constitucional, regressou a esta ilha em fins de 1834, e
por carta régia de 13 de Setembro de 1835 foi nomeado governador civil deste
arquipélago, tendo sido pouco antes, a 5 do mesmo mês e ano, agraciado com o
titulo de conde do Carvalhal da Lombada. Os cuidados da administração da sua
grande casa e mais ainda as doenças de que há muito sofria, afastaram-no dentro
de poucos meses do governo do distrito, que muito violentado aceitara e
unicamente para aceder aos desejos dos principais proprietários e influentes desta
ilha.
Decimo Terceiro Administrador: João Francisco da Câmara Carvalhal Esmeraldo
de Atouguia Betencourt Sá Machado, sobrinho do primeiro Conde do Carvalhal,
era filho de D. Ana Josefa da Câmara Carvalhal Esmeraldo, irmã do mesmo
conde, e do morgado João Francisco d Câmara Leme. Nasceu este décimo
terceiro administrador a 2 de Julho de 1801 e casou em 1822 cora D. Teresa
Xavier Botelho, filha do distinto escritor e governador e capitão general da
Madeira Sebastião Xavier Botelho, da casa dos condes de São Miguel. João
Francisco da Câmara Esmeraldo era oficial do exército, moço fidalgo da Casa
Real, comendador da Ordem de São Tiago e foi eleito deputado e senador por
este arquipélago nos primeiros tempos do constitucionalismo. Morreu no mês de
Abril de 1854.
Décimo Quarto e Ultimo Administrador: António Leandro da Câmara de
Carvalhal Esmeraldo Atougui Betencourt Sá Machado, segundo conde do
Carvalhal, que era filho dos precedentes, nasceu no Funchal a 6 de Abril de 1831,
tendo falecido no Palácio de São Pedro d mesma cidade a 4 de Fevereiro de
1888. Herdeiro duma das mais opulentas casas nobres de Portugal e das maiores
em bens territoriais, veio a falecer numa situação próxima da pobreza, chegando
talvez a sentir os primeiros rebates da indigência, que se aproximava a passos
agigantados. Foi o último administrador das terras vinculadas do Santo Espírito,
que ainda em sua vida foram vendidas em hasta pública, como consequência
duma administração insensata e ruinosa. Vamos também transcrever aqui as
palavras que no Elucidário Madeirense, da nossa co-autoria, deixámos
consagradas à sua memória: «Sem se notabilisar em nenhum ramo do saber
humano, nem se ter evidenciado em acontecimentos que ficam registados na
história, foi contudo, no dizer dum seu admirador e amigo, «um homem que em
vida fora a personalidade mais simpática e mais finamente característica da
aristocracia madeirense; cujo nome fora conhecido lá fora no alto mundo das
grandes capitais entre as personagens mais ilustres, e cuja existência, ora
remansosa e prudente, ora batida das tempestades e agitada dos desvarios da
época, teve sempre a linha correcta da gentileza fidalga, as grandes expansões
brilhantes de um belo espírito, servido por um temperamento de artista
impressionável, ardente, nervoso generoso e bom. Em Paris, em Madrid, em
Lisboa, nas festas esplêndidas, nos bailes principescos, nas corridas, nos jogos de
sport, na ópera, nos gabinetes da Maison Doreé e do Café Inglês, no Bois, no
Prado, nos touros, nas premieres, foi ele o correcto e brilhante fidalgo, o
infatigável valsista, o atrevido sportsman, o profligo, o aventureiro viveur,
levando a vida a grand train, distinto entre os mais distintos, amavel, elegante e
prestigioso. Um dia o pano caiu sobre esse cenário deslumbrante. A realidade
inexorável e fatal apagou essa constelação de prazeres falazes e perigosos. A
razão fria e grave veiu sentar-se sobre as ruínas dessa existência estonteadora e
capitosa do grande mundo, cheia de ilusões e de insónias, em que a vida e a
fortuna se esvaem como o ténue fio de água no deserto árido e nú. E aquele que
fora o herói dessa epopeia efémera feita de brilhantismos fugazes, de ilusões
esplêndidas, de loucas prodigalidades, veio sentar-se â sombra do lar, até ali
mudo e triste, abandonado e esquecido. Trazia a mesma distinção nativa, a
mesma elegância própria, a gentil e cortês fidalguia do nome e da condição, mas
muita ilusão de menos, muita decepção a mais e para sempre desbaratada a
fortuna que irreflectidamente arrojará para aquele vértice enorme e insaciável. A
realidade pesava sobre ele fatal, terrível e desapiedada.
Para tanto fausta e ostentação, chegando a ocupar um lugar de destaque naquelas
capitais, mal podia acudir uma renda anual de cem contos de reis, que lhe dava a
sua grande casa. Em Madrid, para assistir ao casamento duma princesa, mandou
construir um carro que custou uma dúzia contos de reis, em Lisboa edificou um
teatro junto da sua casa, onde representaram notabilidades e onde concorria a
primeira sociedade da capital. Em Paris gastou fortunas com o deslumbramento
da sua vida faustosa e perdulária... Ficaram celebres as brilhantes festas do
Palheiro do Ferreiro, em que à mais alta e requintada distinção se reuniam as
prodigalidades dum poderoso nababo. 0 Conde do Carvalhal veio expressamente
à Madeira para receber o infante, depois rei, D. Luís, e tanto no palácio de S.
Pedro como na quinta do Palheiro, admirou o futuro rei de Portugal os dotes de
estremada fidalguia e da mais inexcedível distinção dum genuíno representante
da velha aristocracia madeirense.
Na casa Carvalhal tinham-se reunido diversos vínculos ou morgadíos, sendo o
mais importante o do Santo Espírito, na Lombada da Ponta do Sol. Deste
morgado foi o 14.º e último administrador o 2.° Conde do Carvalhal, que também
herdará a casa vincular instituída na freguesia da Ponta Delgada por Manuel
Afonso Sanha e sua mulher D. Mécia de Carvalhal nos princípios do século XVI,
e ainda os vínculos de Agua de Mel, do Paul do Mar, dos Lemes, etc., não
contando com outros situados em diversos pontos da ilha e também nos Açores e
no continente do reina. Possuía vastas propriedades em todas as freguesias da
Madeira, chegando a ser a casa Carvalhal a segunda ou terceira do país em bens
territoriais.
0 Conde de Carvalhal, entre outras comissões de serviço público, exerceu o lugar
de presidente da Câmara Municipal do Funchal e tinha a gran-cruz da ordem de
Isabel a Católica e outras condecorações estrangeiras.
Casará em 1854 com D. Matilde Montufar Infante, filha dos marqueses de Selva
Alegre, em Espanha, e deste consórcio nasceram D. Maria da Câmara, que casou
com o conde de Resende e D. Teresa da Câmara, condessa do Ribeiro Real.
Depois duma vida tão agitada, vieram a ruína, o infortúnio, a saudade e a doença
defrontar-se com o herói de tantas aventuras. Lutou e lutou nobremente, mas...,. a
morte derrubou-o ainda na idade pujante dos 56 anos.
Bulhão Pato, nas suas Memórias, e ainda outros escritores contemporâneos do
Conde do Carvalhal referem-se várias vezes ao ilustre titular e sempre com
grande elogio e com o mais subido apreço.
XIV- Administradores do morgadio do
Vale da Bica
Primeiro Administrador: João Esmeraldo, filho do instituidor João Esmeraldo e
de sua primeira mulher D. Joana Gonçalves da Câmara. Consentindo depois da
morte de seu pai em fazer novas partilhas com sua madrasta D. Agueda de Abreu
e com seu irmão Cristóvão Esmeraldo, perdeu a grande propriedade do Lugar de
Baixo, que fazia parte integrante da instituição vincular do Vale da Bica, ficando
esta num grande plano de inferioridade relativamente à outra corno já se acha
referido noutro capitulo. Distinguiu-se no norte de Africa como valente guerreiro
e dele falam com louvor Gaspar Frutuoso nas Saudades da Terra, Faria e Sousa
na Africa Portuguesa e Manuel Tomás na Insulana. Casou com D. Filipa de
Brito, filha de João Mendes de Brito, herdando de seu pai a administração do
importante morgadio da Apresentação, na Ribeira Brava.
Segundo Administrador: D. Antónia Esmeraldo, filha do anterior, que casou com
seu primo António Esmeraldo, segundo administrador do morgado do Santo
Espirito, ficando deste modo reunidas as duas casas vinculadas. Não deixou
descendência.
Terceiro Administrador: António Esmeraldo, marido da precedente, que herdou
este morgado por morte de sua mulher, continuando na administração dos dois
vínculos e morrendo, sem geração, no ano de 1545.
Quarto Administrador: Cristóvão Esmeraldo, pai do anterior, que entrou nesta
administração por morte de seu filho e teve também a do morgadio do Santo
Espírito.
Quinto Administrador: João Esmeraldo de Atouguia, filho segundo do
precedente, que foi terceiro administrador do Santo Espírito, usufruindo ambos
os vínculos. Entrou em 1555 na administração do morgado do Vale da Bica.
Sexto Administrador: Francisco Gonçalves da Câmara, genro e sobrinho do
anterior, que casou com D. Isabel Esmeraldo, não deixando descendentes.
Sétimo Administrador: Jorge da Câmara Esmeraldo, irmão do precedente
administrador Francisco Gonçalves. A posse de Jorge da Câmara foi impugnada
e por esse motivo correram longas demandas, vindo finalmente a suceder nesta
administração o seu filho, que se segue.
Oitavo Administrador: António de Carvalhal Esmeraldo, filho do anterior, que
morreu no ano de 1699, sem sucessor legitimo. Foi este que construiu a capela de
Nossa Senhora da Piedade, no sítio do Jangão, pouco antes de 1679.
Nono Administrador: Aires de Ornelas de Vasconcelos (1677-1737) sobrinho do
precedente, que era o oitavo administrador do importante morgadio do Caniço,
cuja instituição data dos fins do século XV. Era moço fidalgo da Casa Real e
Patrão-Mór da Ribeira. Casou com D. Cecília Maria Madalena de Aguiar França,
herdeira duns vínculos no Porto Moniz e na Calheta. 0 morgadio do Vale da Bica
entrou na casa vinculada dos Ornelas no ano de 1699.
Décimo Administrador: Agostinho António de Ornelas de Vasconcelos, (17181774) filho do anterior. Mostrando-se hostil à política de Pombal, que tinha como
representante neste arquipélago o sobrinho do marquês o governador e capitãogeneral João António de Sá Pereira, foi por este desterrado para as terras do
Caniço e ali faleceu no ano de 1774, sendo sepultado na capela de Nossa Senhora
da Consolação de que era padroeiro.
Décimo Primeiro Administrador: Francisco Xavier de Ornelas de Vasconcelos,
(1746-1796) filho do precedente, que foi pessoa muito considerada no meio
social madeirense pelas suas qualidades de carácter e vasta cultura intelectual.
Décimo Segundo Administrador: Agostinho de Ornelas de Vasconcelos (17741810), sendo filho do anterior e tendo casado com D. Luisa Júlia de Castelo
Branco.
Décimo Terceiro Administrador: Aires de Ornelas, (1801-1828) filho do anterior
e que foi casado com D. Ana da Câmara Leme.
Décimo Quarto Administrador: Aires de Ornelas de Vasconcelos, tio do anterior
(1779-1852).
Décimo Quinto Administrador: Conselheiro Agostinho de Ornelas de
Vasconcelos, filho do precedente, que nasceu no Funchal em 1836 e morreu na
Alemanha em 1901.
Bacharel em direito, deputado, par do reino, diplomata, escritor e académico, foi
um dos mais distintos madeirenses do século XIX. Da pequena biografia que dele
deixámos escrita no Elucidário Madeirense, vamos extratar alguns períodos: «Na
sua longa carreira como funcionário do Ministério do Negócios Estrangeiros, deu
sempre provas eloquentes da robustez da sua inteligência, da sua grande
ilustração e das raras qualidades de diplomata, que o distinguiam e o tornavam
um verdadeiro homem de estado, sendo por isso considerado como um dos mais
acreditados membros do corpo diplomático português.
Também trilhou as tortuosas veredas da política portuguesa. Saiu, porém,
incólume e sem mancha desse tremedal, em que tantos chafurdam a pureza das
suas convicções e até a própria dignidade. Foi eleito deputado pela Madeira para
as legislaturas de 1868 a 1869, 1869 a 1870, 1870 a 1871 e 1871 a 1874, sendo
por carta régia de 16 de Maio deste último ano nomeado par do reino. Distinguiuse em ambas as câmaras como parlamentar de grandes méritos, assinalando-se
sempre nos seus discursos pela mais perfeita urbanidade, de par com uma notável
correcção de forma. Não era, sem duvida, um tribuno que arrebatasse os ouvintes
em catadupas de eloquência, mas um orador fluente, correcto e conhecedor dos
assuntos que discutia, sendo a sua palavra sempre escutada com a maior atenção
por toda a câmara. Entre os discursos que proferiu em ambas as casas do
parlamento, alguns se contam como notáveis, devendo especializar-se os que
pronunciou acerca do padroado da Índia e missões ultramarinas.
Foi, como dissemos, um apaixonado cultor das ciências e das letras, sendo na
verdade o seu mais constante empenho enriquecer o seu espírito com novos
conhecimentos, hauridos quotidianamente em largos estudos e demoradas
leituras. Tendo uma brilhante inteligência, servida por uma assombrosa memória,
possuía uma não vulgar erudição sobre todos os ramos do saber humano, para o
que não pouco contribuía o conhecimento de várias línguas em que era versado,
incluindo a própria língua latina.
Deu-nos, como literato, provas incontestáveis do seu valor nos escritos que
deixou, mostrando que poderia ter alcançado um nome honroso na história do seu
país, sede todo se houvera dedicado à carreira das letras.
A obra-prima de Goethe, a famosa tragédia o Fausto, era pouco menos do que
desconhecida entre nós. 0 Conselheiro Agostinho de Ornelas abalançara-as à
arriscada empresa de trasladar em vernáculo o mais admirável produto, da
literatura alemã. Árduo e difícil trabalho era esse para o nosso ilustre biografado,
que não sendo um poeta quis traduzir em verso português a obra genial do maior
poeta da Alemanha. A versão ressentiu-se dessa circunstância, e força é confessar
que a forma poética nem sempre saia isenta de imperfeições. Muitas vezes; essas
imperfeições obedeceram ao desejo, elevado até ao mais apurado escrúpulo, de
traduzir fielmente o pensamento de Goethe, embora com evidente sacrifício da
forma. A tradução de António Feliciano de Castilho, que apareceu mais tarde, é
sem duvida correctíssima e ornada de verdadeiras galas poéticas, mas feita sobre
uma imperfeita versão francesa e com os arrojos e liberdades do seu estro de
primorosíssimo poeta, distancia-se com alguma frequência do original alemão,
parecendo ás vezes, antes uma paráfrase do que uma verdadeira tradução. Não
faltam críticos que prefiram a versão do Conselheiro Ornelas à de Castilho, por
ser feita sobre o original alemão e com um inexcedível escrúpulo.
É sem dúvida e apesar dos seus defeitos um trabalho de valor, que muito abona
os seus méritos literários.
Em 1881 publicou-se na porta um grosso volume intitulado Obras de D. Ayres de
Ornelas de Vasconcelos, que contém os diversos escritos do antigo e inolvidável
bispo desta diocese, que era irmão do conselheiro Agostinho Ornelas. Esses belos
escritos vêem precedida larga e primorosa biografia do ilustre prelado, que ocupa
perto de 200 páginas do livro, e que no dizer dum distinto escritor e abalizado
lente da Universidade, foi escrita e pena de ouro. Traçou essa biografia
verdadeiro modelo linguagem e que tem um acentuado sabor clássico conselheiro
Agostinho de Ornelas.
Em 1892, por ocasião do centenário de Colombo publicou uma interessante
Memória sobre a residência de Christovan Colombo na Ilha da Madeira, que foi
incluída no volume Memórias, que a Academia Real das Ciências, de Lisboa fez
publicar para celebrar aquele centenário.
Por todos esses títulos, foi eleito membro daquela Academia, tendo sido um dos
sócios por ela nomeados para organizar a publicação das citadas Memórias. Era
também membro de outras sociedades cientificas e literárias, tanto nacionais
como estrangeiras.
Desempenhou distintamente diversas comissões de serviço público de alta
importância, como a de representar Portugal nas festas do centenário de Colombo
em Madrid, e a de delegado do nosso país na célebre conferência da Haia
realizada em 1898.
Tinha, entre outras, as seguintes condecorações: as gran-cruzes de Carlos 3.°, de
Espanha, de S. Gregório Magno, de Roma, da Coroa de S. Estanislau, da Prússia,
grande oficial da Legião de Honra, comendador e cavaleiro de S. Tiago,
comendador da ordem de Alberto o Valoroso, da Saxónia, da Águia Vermelha,
da Prússia, da Imperial Ordem da Rosa, do Brasil, etc.
Morreu a 6 de Setembro de 1901 em Niedervalluf, Alemanha, quando exercia o
importante cargo de ministro plenipotenciário de Portugal, na Russia. (31)
Ultimo Administrador: 0 conselheiro Aires de Ornelas de Vasconcelos foi o
último possuidor das terras do morgadio do Vale da Bica, mas não teve
propriamente a administração deste antigo vinculo, porque ao tempo da morte de
seu pai já estavam abolidas todas as instituições vinculares do nosso país. Filho
primogénito do décimo quinto administrador Agostinho de Ornelas de
Vasconcelos e D. Maria Joaquina Saldanha da Gama de Ornelas, filha dos
condes da Ponte, herdou todos os bens que constituíam este morgadio, tendo sido
o último representante da família que os possuía, pois que no ano de 1920
procedeu à venda total desses mesmos bens aos caseiros e meeiras que o
agricultavam. Nasceu na freguesia da Camacha, desta ilha a 5 de Março de 1866
e faleceu em Lisboa a 14 de Dezembro de 1930. Seguiu a carreira das armas, em
_____________
(31) Membro duma das mais ilustres famílias madeirenses e irmão do 15.° administrador deste morgadio do Vale da
Bica foi o arcebispo de Goa D. Aires de Ornelas de Vasconcelos, que nasceu no Funchal no ano de 1837 e faleceu em
Lisboa a 28 de Novembro de 1880. Pelas suas eminentes virtudes, talento superior, vasta cultura e acendrado zelo
apostolico era considerado um dos maiores prelados do seu tempo, não só de Portugal como de toda a cristandade.
Abalizado teólogo, distinto poliglota, escritor primoroso, dotado do mais fino e cativante trato, generoso e hospitaleiro,
sempre esquecido dos seus pergaminhos e da alta hierarquia do seu cargo, conquistou em Goa e na Índia Inglesa as
mais gerais simpatias e admirações, que ainda hoje, passado já meio século, são relembradas com o maior respeito e
carinho no meio das populações indianas. Reunidos os seus escritos, foram publicados num volume de 538 pag., sob o
título de «Obras de D. Ayres de Ornellas de Vasconcellos», Porto, 1881, e precedidos dum brilhante estudo biográfico,
escrito pelo conselheiro Agostinho de Ornelas, irmão do arcebispo, de quem no texto nos ocupamos.
que notavelmente se distinguiu, e foi deputado, par do reino, ministro de estado,
revelando sempre os fulgurantes dotes duma inteligência privilegiada e duma
vasta cultura intelectual de par com as mais firmes e austeras qualidades de
carácter:
Deixou vários livros e opúsculos, especialmente consagrados a assuntos
militares e coloniais, em que era um mestre consumado. No Elucidário
Madeirense, (II-250 e seg.) deixamos esboçada uma ligeira biografia do
conselheiro Aires de Ornelas.
XV - A Venda das Propriedades
Como já ficou ligeiramente esboçado, a casa dos condes do Carvalhal da
Lombada, apesar de ser uma das mais opulentas de todo o país, não pôde
suportar o choque da vida perdulária e faustosa do seu chefe e mais ainda talvez
os desencontrados embates duma pouco cuidada e escrupulosa administração.
Recorria-se com frequência ao empréstimo, e a Companhia de Crédito Predial
Português, que era um grande credor a temer, pôs em praça judicial a maior parte
das propriedades, que aquela grande casa possuía em quase todas as freguesias da
Madeira. Nessa altura, afirmam-no, vários contemporâneos do facto, teria sido
relativamente facial conjurar a derrocada, se uma administração mais sensata e
esclarecida fizesse sentir a sua benéfica acção na gerência dos diversos negócios
que lhe estavam confiados. As terras que formam os importantes sítios da
Lombada dos Esmeraldos e do Lugar de Baixo foram arrematados em hasta
pública, no dia 17 de Dezembro de 1893, pela firma comercial estrangeira da
praça do Funchal A. Giorgi & C.ª, por uma quantia pouco superior a cem contos
de reis. Atravessava então o arquipélago uma grave crise económica com grande
falta de numerário e de suficientes créditos na praça, e não tendo havido o
previdente cuidado de evitar que as propriedades da casa Carvalhal fossem
praceadas em vastas extensões de terrenos, poucos puderam aventurar-se à
licitação dessas terras, sendo por isso quase todas vendidas por preços muito
inferiores ao do seu verdadeiro valor. As propriedades da Ponta do Sol, que
durante um período de tempo superior a quatro séculos, estiveram na
administração e usufruto dos sucessores de João Esmeraldo transitaram para a
posse de pessoas estranhas, como então aconteceu com tantas outras terras que os
Carvalhais possuíam nesta ilha, no continente português e nos arquipélagos dos
Açores e das Canárias, sendo caso para recordar o velho proloquio latino: Sic
transit gloria mundi.
0 conselheiro Aires de Ornelas de Vasconcelos, último representante da casa
vinculada do Vale da Bica ou do Jangão, resolveu vender as terras que
constituíam o antigo morgadio, as quais, como as do Santo Espírito, estiveram
também durante séculos na posse dos seus antepassados. Para esse fim,
organizou-se uma sociedade de vários indivíduos, que realizou a compra total da
propriedade, fazendo em seguida a revenda das diversas parcelas aos próprios
parceiros agrícolas que as cultivavam. 0 Conselheiro Aires de Ornelas não teve a
vida brilhante e aparatosa do segundo Conde do Carvalhal, mas a sua situação
especial no nosso país como Lugar-Tenente do rei D. Manuel, obrigando-o a
frequentes e dispendiosas viagens ao estrangeiro, apressou a ruína da importante
casa que herdara de seus maiores e que desinteressadamente pusera a favor da
causa, que ele julgara um indeclinável dever defender a todo o transe. Esta
inconfidência, se como tal pode ser considerada, só serve para honrar e enaltecer
a memória do conselheiro Aires de Ornelas, que ainda os adversários das
instituições monarquias não deixarão de admirar e respeitar devidamente.
XVI - Uma compra imaginária...
Não querendo imprimir ao nosso ligeiro estudo a feição característica dum
panfleto, daremos a este último capítulo o moderado titulo de Compra
imaginária..., embora esteja ele a exigir uma epigrafe mais expressiva mais
enérgica, para classificar com verdade e com justiça os factos que vamos
sumariamente narrar. Delineou-se e pretendeu-se levar a cabo uma arriscada e
temerária e preza, em que a uma audácia sem limites andou sempre ligado o mais
descarado e revoltante cinismo. Nela encontramos, por vezes, traços do genio de
Maquiavel, não sendo também difícil descobrirem-se vestígios duma acentuada:
demência. Teve a projectada façanha, desde a sua origem, um plano inteiramente
preconcebido e esboçado nos seus mais detalhados pormenores? Ou, concebida a
ideia inicial, ir-se-ia a pouco e pouco arquitectando a famosa trama até a sua final
execução e conforme as circunstâncias ocorrentes foram aconselhando? E mais
plausível aceitar-se a última hipótese e admitir-se também que vários
colaboradores houvessem entrado com o seu concurso para a realização do
famigerado plano.
O importante acontecimento, além dos indivíduos que a ele se achavam mais ou
menos
proximamente
ligados
por
quaisquer
interesses,
passou
quase
despercebido para o grande público, tendo a imprensa periódica guardado a tal
respeito um cauteloso e sistemático silencio, e até o governo central, nas diversas
«démarches» que empreendeu para dar ao caso uma definitiva solução, julgou
acertadamente faze-lo com as mais prudentes reservas, como a gravidade e o
melindre da situação então criada estavam imperiosamente exigindo.
Realizada a venda das terras que constituíam o vinculo do Vale da Bica,
vulgarmente conhecido pelo nome de Jangão, como fica referido no capítulo
anterior, surgiu a ideia da compra total dos sítios do Lugar de Baixo e da
Lombada dos Esmeraldos, que eram os domínios territoriais do morgadio do
Santo Espírito, com o fim de proceder-se à revenda parcial dessas terras aos
parceiros agrícolas, que desde séculos e de geração em geração as vinham
cultivando no conhecido e generalizado regimen de colonia. Um indivíduo
residente na vila da Ponta do Sol, que era ali empregado de justiça e cotado
influente político, propôs aos proprietários A. Ciiorgi & C.ª a compra dessas
propriedades, tendo estes feito uma promessa verbal de venda pela importância
de trezentos mil «dollares», que deveriam ser depositados num banco de Nova
Iorque até o dia 31 de Dezembro de 1924. No entretanto ia o negociador
pontasolense, realizando, sob palavra, a cedência de muitos tratos de terreno e ao
mesmo tempo recebendo quantias avultadas, que fizera colocar, em seu nome,
numa casa bancária do Funchal. Não faltou quem, desde logo, agoirasse mal do
resultado dessas transacções, pelo conhecimento que havia das pessoas e das
coisas, mas a negociata decorria normalmente e sem os protestos dos que nela se
achavam interessados.
Na época aprazada, o dinheiro não deu entrada nos cofres da casa de crédito dos
Estados Unidos e o que se achava depositado no Funchal continuava à ordem do
proponente
da
já
famigerada
compra.
Começaram
então
a
circular
insistentemente boatos reveladores de suspeitas e de duvidas, acompanhados de
ásperos e pouco abonatórios comentários.
Os ingénuos colonos, na fundada esperança ele alcançar a posse imediata das
terras, lá iam entregando as importâncias totais ou parciais das supostas compras,
recebendo apenas em troca umas ilusórias quitações, que não valiam mais do que
o simples papel em que estavam escritas. E, a muitos deles, nem essa fugaz
esperança lhes foi permitido gozar, porque não conseguiram obter - um pequeno
retalho de costaneira com a indicação da entrega dos pobres escudos, que tão
laboriosamente lhes custara a ganhar.
Começa agora a parte mais interessante da grande façanha. Esboçada um pouco a
medo, mas revestindo logo um carácter ostensivo e profundamente hostil, iniciase uma campanha de descrédito, a que várias pessoas se associaram, contra os
proprietários das terras, criando-se entre os caseiros e meeiros uma atmosfera de
ódios e vinganças, em que a danificação e a destruição da propriedade se fizeram
largamente notar. Por uma continua e sistemática propaganda, fez-se acreditar
aos colonos que eles ficariam legítimos possuidores das terras, se dentro do
período de cinco anos não pagassem aos actuais proprietários as revidas e as de
medias, que desde todos os tempos nunca tinham deixado de ser satisfeitas aos
antigos administradores do morgadio da Lombada.
Por toda a parte se encontra sempre um estado latente de revolta dos colonos ou
rendeiros contra os «senhorios» ou donos das propriedades rústicas, não sendo
para entranhar que indivíduos sem escrúpulos descobrissem nos pobres e rudes
camponeses da Ponta do Sol terreno de fácil germinação para as suas ideias,
embora se tratasse de levar à prática os princípios mais diametralmente opostos
ao direito, à razão e ao bom senso. E essas perniciosas ideias desenvolveram-se e
cresceram rapidamente e até largamente frutificaram, produzindo tal perturbação
e desordem, que em breve se transformaram na mais completa anarquia.
Os proprietários da Lombada e do Lugar de Baixo, como é natural que tivesse
acontecido e no uso do mais legitimo direito, recorreram aos tribunais da
comarca, que tem a sua sede, paredes meias, com o foco do incêndio que
alastrava sempre. A sua situação era simplesmente esta não realizaram a venda,
não recebiam um ceitil das rendas das suas vastas propriedades e estavam ainda
ameaçados de ser espoliados da sua posse. Instauraram-se diversos processos
judiciais, que em geral não atingiam um andamento apreciável ou não tinham
execução as sentenças proferidas.
Ia decorrendo o tempo e os interessados no eficaz resultado da audaciosa proeza,
apoiados na força de três mil habitantes com centos de homens válidos e
dispostos ás maiores violências, julgaram ganha a partida e consideravam-se já
senhores absolutos das terras dos antigos morgados Esmeraldos. Era até certo
ponto justificada essa suposição à vista da impotência ou fraqueza dos tribunais e
mais ainda dos que superintendem nas cousas públicas do nosso país ... A
política mesquinha de aldeia também lançou seu manto protector sobre os
insignes negociadores, que já contavam com a impunidade para as suas
arriscadas mas lucrativas façanhas. Até chegou a espalhar-se, com certos visos de
verdade, que um ilustre advogado, professor de leis numa universidade, tinha
emitido opinião favorável à dos supostos compradores da Lombada, podendo
ainda estes exigir da firma comercial A. Giorgi & C.ª uma indemnização de mil e
quinhentos contos pelo prejuízo moral e material de que ela fora causante!!!
Esta situação não podia prostrar-se indefinidamente lá veio uma tardia e arrastada
ordem de prisão contra o principal protagonista desta comédia, que se não
efectuou, porque, mais uma vez ainda, a politica local cobriu os prevaricadores
com a protectora capa da misericórdia. E certo que algumas prisões se fizeram,
mas de indivíduos que tinham uma responsabilidade muito atenuada nos
acontecimentos e que eram apenas instrumentos de ocultos mandatários, não se
tendo mantido tais prisões e não havendo contra esses indivíduos qualquer
procedimento criminal que correspondesse a um sério correctivo para os des,
mandos praticados. No entretanto receava-se fundadamente que se dessem novas
e mais eficazes tentativas de encarceramento, seguidas de outras violentas mas
necessárias medidas, que teriam como epilogo as células da penitenciária, e
tomou-se então a resolução heróica de por o cabecilha a salvo e a bom porto,
procurando-se em país estrangeiro um asilo seguro contra as importunas
investidas dos beleguins da justiça... Assim se fez. Talvez seja desnecessário
acrescentar que os dois mil e trezentos, contos depositados numa casa bancária
do Funchal não foram entregues aos donos das terras, não foram restituídas aos
colonos e caseiros e não foram postos à ordem de qualquer entidade oficial,
como garantia de futuras transacções que viessem a realizar-se. Tudo caiu no
insondável abismo . . . da grande proeza, seguindo a marchas forçadas para as
distantes terras de além fronteiras.
Por uma triste ironia do destino, estava o caso solucionado com respeito aos
autores da façanha, mas apresentava um aspecto inquietador e sombrio com
relação aos proprietários das terras e aos seus respectivos cultivadores. Esses
proprietários, ainda no uso dum legitimo direito e como bons súbditos ingleses
que são, solicitaram a interferência do governo do seu país, depois de esgotados
os meios que as leis portuguesas lhes facultavam para assegurar a posse dos seus
haveres, que durante largos anos tinham adquirido e usufruído à sombra das
mesmas leis.
0 nosso governo, na conjuntura ocorrente, seguiu a lei do menor esforço como as
circunstancias de ocasião o persuadiam. Podia impor o exacto cumprimento das
leis, levar os tribunais a fazer justiça inteira, compelir as autoridades locais a
sustentar o respeito devido pela propriedade alheia e a restabelecer a
tranquilidade e a ordem no meio de populações assoladas por um vento de
anarquia., Como o estado de espírito, mantido em alta tensão por vis
especuladores, excluía todas as tentativas suasórias e de conciliação, e como
também os magistrados judiciais e os representantes do poder se consideravam
impotentes para debitar ou ao menos atenuar o mal, só restava ao governo da
metrópole o emprego da violência em pé de guerra ou a adopção de medidas
suaves, conducentes a assegurar a posse legitima da propriedade e a restaurar o
sossego e a paz, embora estabelecendo algumas sanções para os erros e desvarios
cometidos, prestigiando deste modo a acção directa do mesmo governo na
solução de tão momentoso assunto. Foi o que sensata e criteriosamente se fez.
Para as resoluções tomadas pelo nosso governo e para a liquidação final desta
grave e complicada questão muito concorreu o distinto madeirense dr. José de
Almada, encarregado pelas estações superiores de propor as bases em que
deviam assentar essas resoluções, depois de proceder a um aturado e
consciencioso estudo, tendo-se previamente ouvido as reclamações de todas as
classes interessadas. 0 ilustre funcionária que no desempenho de importantes
comissões de serviço público no estrangeiro e nas nossas colonial ultramarinas,
tem dado sobejas provas duma rara competência e do mais atilado critério,
solucionou o caso da Lombada dos Esmeraldos, dentro dos limites da
possibilidade e sem desprestigio algum para o estado, nas condições mais
favoráveis para todos, sem esquecer o melindre e a gravidade da situação
política, social e económica do nosso país. O ilustre ministro dos negócios
estrangeiros, o dr. Betencourt Rodrigues, aceitou nas suas linhas gerais esses
ponderados alvitres, que serviram de fundamento á redacção definitiva dos
decretos que deram por resolvida essa importante questão.
A reclamação apresentada pelo embaixador inglês em Lisboa foi considerada e
aceita nos melhores termos, adoptando-se em principio a expropriação amigável
das terras pelo governo português e a venda delas aos caseiros e meeiros nas
condições que seriam posteriormente estudadas e decretadas. (32)
Em virtude das disposições daqueles decretos, que vieram embora tardiamente
restabelecer a ordem, fazer acatar o direito de propriedade e assegurar os
legítimos interesses de milhares de indivíduos, o governo do nosso país, depois
dum prévio acordo, procedeu à imediata expropriação ou compra das terras dos
sítios da Lombada e do Lugar de Baixo, mediante o pagamento de trezentos mil
«dollares», quantia esta aproximadamente igual à da promessa de venda feita em
1923 pelos respectivos proprietários ao celebre negociador da vila da Ponta do
Sol, e mais o valor das rendas atrasadas e ainda não recebidas.
__________
(32) Considerando que se impõe a expropriação por utilidade pública e urgente das propriedades denominadas do
Lugar de Baixo e da Lombada dos Esmeraldos, sitas no Concelho da Ponta do Sol, distrito do Funchal, pertencentes à
firma A. Giorgi & C.ª, como meio de solucionar as questões a que a exploração delas tem dado lugar e de realizar, sem
prejuízo para o estado e com a prévia concordância da firma proprietária, a aspiração dos povos do concelho de
adquirirem as terras que cultivam e que têm valorizado com o seu trabalho e capital;
Considerando que os tramites usuais do processo de expropriação não se compadecem com a natureza especial deste
caso, nem com a conveniência da sua rápida regularização;
Atendendo ao disposto no art.° 2. °, n.° 2, da lei de 26 de Julho de 1912; Usando das faculdades que me confere o n.º
2.° do artigo 2.° do decreto n.º 12740, de 26 de Novembro de 1926. Hei por bem, por proposta dos Ministros de todas
as repartições, decretar, para valer como lei, o seguinte.
Artigo 1.º - É declarado de utilidade pública e urgente a expropriação, pelo Governo Português, das propriedades
denominadas Lugar de Baixo e Lombada dos Esmeraldos, sitas na freguesia e concelho da Ponta do Sol, distrito do
Funchal, Ilha da Madeira, pertencentes à firma A. Giorgi & C.ª, com todos os direitos que lhe são inerentes.
Artigo 2.° - O Governo Português tomará imediatamente posse das ditas propriedades indemnizando pelo seu valor a
firma expropriada com dispensa das formalidades e praxes estabelecidas nas leis.
§ Único - O contrato sobre o valor da indemnização será celebrado por escritura pública na cidade do Funchal entre um
representante do Estado e a firma expropriada, executando-se a transmissão nesse mesmo instrumento.
Artigo 3.º - Serão isentos do imposto de selo e outras quaisquer taxas ou emolumentos os actos e contratos,
documentos ou outras quaisquer formalidades necessárias para se efectivar a transmissão das propriedades
mencionadas para a posse imediata do Estado.
Artigo 4. - O Governo Português poderá alienar em hasta pública as referidas propriedades, no todo ou em parte,
tomando como base mínima o custo da expropriação e tendo preferência os actuais colonos, rendeiros, meeiros ou
caseiros que tiverem pago as rendas vencidas.
§ 1.—O Governo poderá estabelecer o pagamento das terras em três prestações anuais, vencendo juros de 8 por cento
ao ano.
Na cidade do Funchal e nas notas do tabelião Valentim Pires, no dia 26 de
Janeiro de 1928, celebrou-se a escritura pública da cedência ou venda daquelas
propriedades ao governo português, representado neste acto pelo dr. José de
Almada, feita pelos seus legítimos possuidores, os membros da firma comercial
A. Giorgi & C.ª, realizando-se então o pagamento daquelas importâncias, que
ascenderam à soma de seis milhões e trezentos e setenta e sete mil escudos.
Estava arrumada a questão diplomática e solucionado o assunto como relação aos
«senhorios» directos das terras, mas faltava resolve-lo com respeito aos seus
colonos e cultivadores, que tinham ingenuamente lançado na voragem da celebre
negociata quantias superiores a dois milhões de escudos. Era este o ponto que
oferecia maiores dificuldades e exigia uma mais demorada e ponderada solução,
para não trilhar-se o caminho dos vexames e das violências, que convinha por
todos os motivos evitar.
Diremos a titulo de informação, que os sítios da Lombada e do Lugar de Baixo
compreendiam cerca de dez mil lotes de pequenos tratos de terreno, cultivados
por oitocentos caseiros e meeiros, tendo um número deles superior a setecentos,
isto é, quase a totalidade, apresentado mil e cem documentos, passados pelo
chefe das «transações» de venda, de várias importâncias pagas e destinadas à
compra desses terrenos, que deveria realizar-se na ocasião mais oportuna . . .
0 decreto n.° 15174, de 14 de Março de 1928, que vem acompanhado do
respectivo regulamento, foi alterado, em muitas das suas disposições, pelo
decreto n.° 19268, de 24 de Janeiro de 1931, tendo este, por sua vez, sido
rectificado e novamente publicado no Diário do Governo de 24 de Fevereiro do
mesmo ano. Constituem estes diplomas legislativos as directrizes que hão-de
orientar as diversas entidades oficiais na resolução definitiva do grave problema,
cabendo principalmente ao director de finanças do distrito do Funchal a execução
dessas disposições, que foi iniciada com o maior acerto e competência pelo dr.
Júlio Gonçalves, que ao tempo exercia esse melindroso cargo.
Como actos preparatórios e de segura apreciação, para realizar a venda equitativa
das terras aos colonos, proceder-se-ia a um levantamento topográfico de todas
elas e em seguida se faria a classificação das suas qualidades produtivas,
estabelecendo-se a distinção em terrenos de primeira, segunda e terceira classe.
Realizou-se já nas melhores condições o levantamento da carta topográfica do
Lugar de Baixo e da Lombada e não tardará que se inicie o trabalho meticuloso
da qualificação das glebas, quanto aos seus elementos de produção e fertilidade.
Seguidamente se procederá á avaliação das terras, segundo a natureza delas, de
cujo resultado se dará inteiro conhecimento aos interessados, recebendo-se destes
as reclamações que entenderem dever apresentar com respeito a essas mesmas
classificações e avaliações. Serão então os caseiros e meeiros convidados a
comprar, em condições favoráveis de pagamento, as terras que cultivam, devendo
somente ser vendidas em hasta pública aquelas que esses colonos não
pretenderem adquirir.
No entretanto foi promovida a venda judicial dos haveres pertencentes ao
principal fautor da já decantada proeza, tendo produzido uma importância total
superior a quinhentos mil escudos, que o estado arrecadou e ficou servindo de
caução às rendas atrasadas dos últimos anos. Essa importância há-de ser
proporcionalmente descontada aos caseiros e rendeiros, quando estes realizarem
a compra definitiva das terras.
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