3)Um Atendimento (A)típico no CAPS: uma Clínica Possível1 Heloene Ferreira da Silva, Verónica Raquel Puga, Ademir Pacelli Ferreira Resumo Propõe-se neste trabalho analisar elementos da experiência clínica enquanto residentes no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS-UERJ). Entende-se que o CAPS adquire valor estratégico na Reforma Psiquiátrica Brasileira ao funcionar como dispositivo clínico e visar à construção de autonomia de seus frequentadores, onde estes são convidados a implicarem-se e responsabilizarem-se em seus processos terapêuticos. Parte-se da singularidade de um caso clínico, onde uma escuta psicanalítica permitiu diferenciar uma suposta não adesão ao dispositivo, da possibilidade de construir, na transferência, uma clínica possível. Apresentam-se também, elementos da estratégia de acompanhamento à mãe da paciente, cuja relação com a filha suscitava estranhamento e instigava a equipe. Finalmente, considera-se que a construção do caso clínico enriquece a práxis clínica ao contribuir para a elaboração e reflexão teórica, para a construção dos dispositivos assistenciais e para o ensino e a formação profissional. Introdução Os Centros de Atenção Psicosocial (CAPS) tem um papel central nas políticas atuais em Saúde Mental. Esse papel resulta de largos anos de luta cujo começo podemos situar nos anos ´70, ao iniciar-se o conhecido “Movimento Sanitário”, em prol da democracia na Política Nacional de Saúde. No campo da “loucura”, os movimentos de trabalhadores (MTSM) (Ferreira, 2006; Amarante, 1992) denunciaram as precárias 1 O presente trabalho surgiu como elaboração de nossa prática no programa Atividades, Laços e Espaços de Vida, coordenado e supervisionado pelo Prof. Ademir Pacelli Ferreira junto ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS-UERJ), enquanto residentes da Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar, do Instituto de Psicologia/HUPE-UERJ. condições de trabalho e de assistência, exigindo a transformação das práticas psiquiátricas. Dentre as propostas, sublinhamos os questionamentos aos valores culturais e sociais que legitimam a reclusão dos “loucos”, e a segregação da diferença; em palavras de Foucault: “a doença só tem realidade e valor de doença numa cultura que a reconhece como tal” (Foucault, 2000: 85). Na esteira das ofertas inovadoras e revolucionarias em saúde mental, temos também o trabalho pioneiro de Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Pedro II no Rio de Janeiro que rompeu com as práticas asilares e com os métodos invasivos da psiquiatria tradicional, desde 1946. Antecipou ainda os atuais CAPS, ao criar a Casa das Palmeiras em 1956. Primeira oferta de assistência externa ao hospício, que continua funcionando como importante dispositivo terapêutico até os dias de hoje, representa o que temos de referência mais importante para as práticas renovadoras no Brasil (Ferreira, 2014). Em 2001, foi sancionado a Lei de Reforma Psiquiátrica, que incorpora ao campo dos cuidados formas de intervenção ampliadas: trabalho protegido, residências terapêuticas, projetos de moradia, lazer assistido, além, claro, dos serviços ambulatoriais, atendimento à emergência, e espaços de internação quando necessária. Essa nova perspectiva exige uma rede articulada de serviços na qual os CAPS têm papel central. Conduzidos coletivamente por uma equipe multiprofissional de técnicos, visando à ética do cuidado e a valorização da singularidade de cada caso, oferecem ao usuário variadas possibilidades de vínculo. Indagamos aqui: de que usuários se trata? Em nossa inserção no CAPS-UERJ2 nos deparamos com essa questão sempre presente para a equipe. Segundo portarias que regulamentam as modalidades assistenciais do Ministério da Saúde a clientela indicada seria composta por aqueles que sofrem de transtornos mentais psiquiátricos graves ou, mais frequentemente, transtornos psicóticos e neuróticos graves. Mas no dia a dia, cabe aos profissionais delimitar a situação de gravidade que justifique ao sujeito frequentar o CAPS. 2 O CAPS-UERJ tem a característica particular de ser um CAPS universitário, onde a assistência está aliada à questão do ensino, da pesquisa e da extensão. A participação de residentes, especializandos, estagiários de pesquisa, de extensão e de estágio curricular, e presença dos professores-supervisores e orientadores de pesquisa das várias áreas da assistência, contribui para a constante reflexão sobre os desafios da assistência e da singularidade da clínica. O CAPS tem lastro histórico que vem desde a criação do Espaço de Atividades e Convivência em 1979 e do Hospital Dia em 1993, na Unidade de Psiquiatria da universidade. A criação do CAPS foi resultado da transformação deste e se localiza em Unidade externa ao Hospital. Outra questão se refere à direção ou condução dos tratamentos. Para a psicanálise, o que orienta a clínica é exatamente o impossível de universalizar. Além disso, um tratamento não visa normatizar ou ajustar o sujeito ao padrão social vigente. Como adverte Quinet (2006), o clínico não deve tentar a qualquer custo fazer de um psicótico um neurótico. Deve respeitar os fenômenos do sujeito, não tanto como transtornos da norma, mas abordando-os como o retorno do foracluído (no caso da psicose). Como afirma Allouch (1997: 387), "seja com o que for que a psicanálise lide na clínica, jamais se trata de outra coisa que não de sujeito”. Apresentaremos o caso clínico de Carmelita para ilustrar e refletir sobre nossa prática no CAPS. Hoje com 34 anos, ela teve seu primeiro surto ainda na adolescência, com recorrentes internações psiquiátricas desde então, todas por agredir fisicamente a mãe. Seu encaminhamento para o CAPS UERJ foi feito como última tentativa de adesão a um tratamento que nunca se dava, pois Carmelita “nunca conseguiu se vincular”. Carmelita entrou no CAPS “desfazendo o estabelecido... o instituído... o conhecido...” (Quinet, 2006: 36), trazendo à tona, mais uma vez, as perguntas antes mencionadas. Ao chegar ao CAPS nos primeiros encontros chamados de recepção, Carmelita concluiu logo que o técnico que a atendeu estava apaixonado por ela e queria comê-la; disse então que nunca mais voltaria àquele lugar. Em supervisão institucional ficou estabelecido que a psiquiatra, mulher, passaria a ser a técnica de referência. O primeiro técnico trouxe à reunião suas impressões de Carmelita: descreve-a como tendo uma aparência bizarra, que inclui uso de casaco mesmo nos dias mais quentes e um lenço que lhe cobre a cabeça. Disse também que ela desejava ser freira da ordem das Carmelitas, mas que nunca foi possível por não ter a sanidade mental necessária. A mãe da paciente, por sua parte, apresenta um discurso bastante “estranho”, chegando a afirmar que “Carmelita foi gerada sem penetração”. Carmelita aceitou retornar ao CAPS para a consulta com uma mulher, mas durante o atendimento, concluiu que a médica era lésbica e estava apaixonada por ela. Nesse momento a psiquiatra pede ajuda e sou convidada a entrar na sala de atendimento. Assim se produz meu primeiro encontro com Carmelita. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Carmelita dispara: “qual é a sua opção sexual?”. A psiquiatra, visivelmente angustiada, começa a se desculpar por não ter me avisado antes, que era muito importante para a paciente não ser atendida por homens, nem por lésbicas. Carmelita e eu, tranquilas, olhamos para ela. De repente, Carmelita diz: “ela não é. Eu sei que ela não é lésbica”. Segundo Pollo (2010), “a psicanálise verifica que estar fora da partilha homem/mulher equivale a estar fora-do-sexo. Testemunham-no os sujeitos psicóticos, que nela só se inscrevem mediante a invenção de uma sexualidade inédita”. Assim, Carmelita inaugura o que pode ser lido como: homem, lésbicas e não-lésbica. Carmelita introduz sua história dizendo que tudo começou no dia em que foi crismada porque o bispo tinha pacto com satanás e porque sua mãe disse: “você está escolhendo seguir esse caminho, mas esse não é o meu”. De repente Carmelita para e diz que pensou em algo engraçado: - Sabe que eu sonhei com você antes de te conhecer? - E como foi esse sonho?, pergunto. - Na verdade não foi um sonho, eu estava acordada e te vi na televisão. Eu estava tentando entrar para o convento e você estava tentando ser a madre-abadessa. - O que é madre-abadessa? - Você não sabe? Você não é católica? Novamente nada respondo e ela prossegue. - Madre-abadessa é a chefe superior de todas as madres. Eu estava tentando ser freira e você já tentava ser a chefe. Na semana seguinte, ela retorna e diz que ficará em silêncio: não quer falar e também não quer ouvir nada. “Tudo bem”, respondo, oferecendo assim uma presença silenciosa. Ela então diz que não queria estar ali, que queria ter ido à Igreja da Candelária, local aonde vai quase todos os dias se confessar e onde antigamente era a igreja de Nossa Senhora da Cabeça, “protetora dos que têm problemas de cabeça”. No seu primeiro surto, Carmelita invadiu a casa onde a mãe morava com o padrasto e seu irmão menor e jogou todas as roupas da mãe pela janela. Acreditava que o padrasto queria matar sua mãe e seu irmão e pretendia protegê-los. Foi internada. Tempo depois, teve um segundo surto, uma semana antes de começar o curso de arquitetura: conta que viu venderem por dez milhões o desenho que ela teria feito na prova discursiva do vestibular. Posteriormente, passou em novo vestibular, só que agora de psicologia, mas a faculdade era muito cara; foi trabalhar para poder pagá-la, porém nunca retomou os estudos. Trabalhou dois anos como operadora de telemarketing, até que descompensou de novo. Teria parado de tomar a medicação e, segundo a mãe, ficou “paranoica” com os colegas do trabalho. Dessa época em diante seus delírios e alucinações agravaram-se, a agressividade em relação à mãe aumentou e as internações tornaram-se recorrentes. Quando pergunto se deseja o “acompanhamento psicológico”, Carmelita diz que sim, porém quando a mãe retorna à sala Carmelita diz: “eu não quero. Ela não é Deus, mãe. Ela não pode me ajudar e eu sei que ela vai me decepcionar. Então, para que começar o que vai ser uma decepção?”. Nesse momento impõe-se a questão formulada por Lacan (1964) no Seminário 11: o que quer ser o analista para o seu paciente? Uma coisa é certa, ele não quer ser Deus. Digo então: “você poderia vir um dia, depois outro, depois outro e assim quem sabe você poderá decidir se quer vir ou não”. Ao que Carmelita responde: “se é assim, então eu venho”. A realidade de Carmelita é estruturada da seguinte forma: ela e a mãe, Rita de Cássia, fundariam uma nova ordem de freiras, a Trinitatem Recolhitos, que seria fundada em seu apartamento, herança de sua avó, Santa Francisca Romana. Teria se comunicado com o Papa através de cartas e ele já teria autorizado a fundação da nova ordem. Com o decorrer dos atendimentos, aos quais comparece semanalmente, Carmelita diz não gostar do ambiente do CAPS: “vindo aqui eu posso acabar pegando o delírio de alguém. Aqui tem muita gente perturbada”. Por esse motivo recusa-se a participar das oficinas terapêuticas que o CAPS oferece. Decisão que não foi fácil acompanhar, uma vez que a equipe insistia para que Carmelita tivesse um “técnico de referência” e frequentasse as oficinas. Perguntávamo-nos: oficinas devem ser tomadas como medicamentos? Carmelita fala sobre o pai uma única vez, logo nos primeiros atendimentos; “meu pai morreu quando eu tinha um ano. Ele foi assassinado por um czar russo. Eu vi tudo na televisão”. Algumas falas de Carmelita, nos remetem ao corpo despedaçado da esquizofrenia: anos atrás raspou todo o seu cabelo por acreditar que este atraia os homens. Hoje está deixando o cabelo crescer, pois descobriu que o que atrai aos homens são orelhas descobertas e cotovelos de fora. Chegou a arrancar pedaços do rosto com as unhas para ficar feia para que ninguém a quisesse. Tatuou ela mesma em seu braço, a lança do arcanjo Miguel para protegê-la do mal. Também costuma colocar-se piercings, que provocam inflamações. Deve fazer sacrifícios, pois tem sobrenome “Oseias”, que é o nome de um profeta sofredor. Carmelita diz que não consegue olhar-se no espelho, o que só será possível “no ano de 4000 d.c, quando sairemos da alta idade média”. “Eu olho no espelho do banheiro e vejo Santa Carmela... Mas na maioria das vezes eu vejo uma inimiga”. Um dia ela me diz: “tenho dúvidas se minha mãe está viva ou morta. Eu também não a vejo no espelho, às vezes a vejo como uma inimiga, uma bruxa do mal”. Segundo Alberti (1999), para o esquizofrênico, “o analista sabe do real”. No âmbito da transferência na esquizofrenia, o analista é igual aos outros, “o verdadeiramente diferente é ele próprio, sujeito a e de experiências que os outros não têm”. Porém, o analista ocupa “um lugar de exceção para o sujeito – uma vez que ele, analista, intervém sobre o próprio gozo do sujeito”. Carmelita um dia chega dizendo: “eu ia perguntar isso para o meu mentor espiritual, mas como você está me ajudando vou perguntar para você mesma: eu acho que o meu amor ao próximo está atrapalhando o meu amor a Deus sobre todas as coisas. O que você acha? Eu vou para o inferno?”. “Como é mesmo o mandamento bíblico?”, pergunto. “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”, ela responde rapidamente. Para Alberti, “surpreendentemente é no senso estético que algo da gestaltisação se dá na transferência”. Carmelita costuma dizer que pareço com sua sobrinha. “Você tem Nascimento no seu nome? Porque a minha sobrinha tem e você é igualzinha a ela. Esses seus olhinhos piscando, seus dentinhos para fora. Você tem um sorriso lindo e dentes lindos também”. Numa sessão, Carmelita me conta como se dá o sistema de proteção de sua casa. Anjos que expulsam e cortam cabeças cuidam de portas e janela. Neste mesmo dia sua mãe viaja e ela fica sozinha em casa. Na manhã seguinte me telefona e ordena: “Se mata! Se mata agora ou você vai morrer de peste negra. Você ontem mandou um bandido entrar aqui em casa. Ele entrou e me contou tudo que eu te falo. Você tem que se matar. Ou então eu vou ter que parar de tomar os remédios para descobrir a cura da peste negra para salvar você. Eu não posso mais ir aos atendimentos com você, senão coisas terríveis podem me acontecer”. Sem saber o que fazer, nem o que estava acontecendo e depois de algumas intervenções frustradas, intervi: “Carmelita, estou vendo que você está muito nervosa. Tome seu remédio e durma um pouco. Quando acordar você volta a me ligar”. Ela então se acalma, diz que vai tomar seus remédios e não volta a ligar. Durante a semana recebo um telefonema da mãe que me conta que ela tinha levado um desconhecido para o apartamento e deu a chave do prédio para ele. As pessoas do condomínio, que ora a hostilizam, ora riem dela, querem a sua saída do prédio, inclusive fizeram uma carta solicitando a sua retirada. Instaurou-se um momento difícil no tratamento. Carmelita não retorna ao CAPS e quando eu telefonava, falava grosseiramente: “eu já te disse que você fica falando da minha vida para os outros e eu não confio em você”; “você está me ligando só porque você acha que eu sou um perigo para a sociedade?”. Nenhuma intervenção é possível, ela está irredutível. Na semana seguinte, chega ao CAPS acompanhada de sua mãe, que diz que sua filha não queria mais ser atendida, mas ela acredita que isso é algo a se dizer pessoalmente. Carmelita sai andando na frente batendo o pé, não fala comigo e nem me olha. Neste momento não sabíamos o que fazer. Decidi então sentar numa cadeira e esperar um pouco. Passados alguns minutos, Carmelita aparece na sala e diz: “vamos Heloene”. Carmelita e a Mãe Rita Nas falas de Carmelita, sua mãe é apresentada numa ligação dual e sem mediação, na qual o corpo de Carmelita não tem proteção, sendo objeto de manipulação e de invasão. Como postula Quinet (1997: 17-18) a partir de Lacan, “para o sujeito psicótico, o Outro não é barrado, é consistente e é um Outro absoluto ao qual o sujeito está submetido, não havendo no Outro a inscrição da lei”. O que está de acordo com concepção de Lacan de que na psicose, a posição estrutural do sujeito é a de ser objeto do gozo do Outro. Carmelita diz, “a minha mãe tem um hálito de lascívia, ela fica tentando me beijar... Vem pra cima de mim tentando me comer. Eu acho que ela quer me chupar”. Segundo ela, sofre do Complexo de Eléctra, que “é quando a menina é ligada a sua mãe... sexualmente ligada”. Diz ainda que a cicatriz que tem no pescoço deve-se ao fato de um dia sua mãe ter cortado sua língua. Quando pequena, viu sua mãe como Medusa, mas não era seu cabelo que se transformou em cobra, todos os seus dedos viraram cobrinhas e queriam atacá-la. “Quando eu era pequena a minha mãe foi me dar banho e apertou o meu clitóris, ela enfiou o dedo lá dentro. Ela é do signo de peixes e todo peixe é pedófilo”. A mãe de Carmelita acompanha sua filha à Recepção do CAPS e o técnico responsável estranha algumas falas e o fato de que nos surtos, Carmelita agride a mãe. Na reunião de equipe é sugerido um acompanhamento para a Rita. Outra residente de psicologia dispõe-se a oferecer esta aproximação. Quando o acompanhamento é oferecido formalmente, a mãe se recusa, dizendo que já necessitou de ajuda muitas vezes, e nunca ninguém a acompanhou. Porém, o espaço de convivência do CAPS permite que a residente mantenha uma aproximação “informal” e ela aceita conversar algumas vezes. Rita, extremamente educada, quer deixar claro que não tem nada contra os “profissionais”, mas, "médicos e psicólogos só estudam uma parte da pessoa e se esquecem da alma, estão muito atrasados". Conta que sempre procurou respostas e que só as encontrou na sua atual religião (Ecumênica), e assim aprendeu a aceitar, porque entendeu que tem uma “missão na vida”, que é “cuidar dessas meninas”. Conta que a irmã de Carmelita teve alguns surtos na adolescência e que seu filho menor passa o dia todo trancado no quarto, sem querer trabalhar nem estudar. Ao ouvir sua própria fala sobre seus filhos, se surpreende: "Estou rodeada de loucura. Cuidar de tantas pessoas, às vezes fica muito cansativo. Mas quando quero deixar Carmelita livre (para tomar medicação, para tomar banho), sinto que ela se desestrutura; ela quer que eu fique supervisionando tudo”. Em uma das conversas diz: "Nosso subconsciente é uma lata de lixo. O que você vai fazer se eu trago todo esse lixo e jogo em você? Mexer no passado não serve para nada. Temos que viver o presente”. E reivindica a importância do silêncio: “É no silêncio que a gente se encontra. Carmelita gosta de ficar lembrando o passado; eu falo para ela não lembrar, para esquecer essas coisas. Não adianta ficar falando porque as coisas do passado não vão mudar”. Só que muitas vezes, é Rita mesma quem fala do “passado”; quando isso é assinalado, ela diz um pouco irritada, “mas eu falo em automático. A gente vive no presente”. Quando perguntada pela pré-história de Carmelita, Rita diz que esta foi concebida sem penetração. "Fiquei grávida só de encostar. E me senti traída pelo meu namorado, porque ele não me falou que isso poderia acontecer”. Durante muito tempo, Rita acreditou que poderia encontrar a completude com um homem, por isso suportou durante alguns anos o casamento com o pai das suas filhas. “Ele era agressivo e não suportava o choro das meninas. Eu tinha que acalmar todo mundo. Agora sei que a completude só existe dentro de mim e que estar com ele fazia parte da “missão de cuidar das meninas”. O pai de Rita morreu no mês do casamento dela, e a família a culpou por essa morte. A notícia da gravidez da filha foi um desgosto para ele. Pouco antes, ela sonhou com um cavalo branco. Não soube o que isso significava até a morte do pai, quando percebeu que o cavalo branco é o chefe da família. “Eu sonhei a morte do meu pai”. Rita diz que sua filha, às vezes, fica com as idéias um pouco confusas. Sobre o porquê dessas “confusões”, Rita elabora várias hipóteses: na época do primeiro surto de Carmelita, esta estava experimentando maconha e tinha sido abandonada pelo seu primeiro namorado. Além disso, Rita diz que Carmelita esteve sempre muito dividida entre a religião da avó (católica) e própria religião da mãe. “Parte dos problemas de Carmelita são devidos a minha ausência, quando ela era pequena eu tinha que trabalhar e minha mãe cuidava dela. E nunca fazia as coisas como eu mandava fazer. Minha mãe compete comigo, ela tem sentimento de inferioridade por não ter estudado”. A mãe de Rita teve cinco filhos, dos quais três morreram quando pequenos, por causas que Rita precisa com dificuldade: “um sei que caiu da rede, outro teve uma infecção da água e o outro, nem lembro”. Carmelita está conseguindo manter o acompanhamento no CAPS, e perguntada sobre isso, Rita responde: "Carmelita está melhor, mas médicos e especialistas não souberam o que fazer. Ela está encontrando o caminho nas orações como eu sempre lhe falei. Só deus pode ajudar, para deus nada é impossível". Pergunto se, para ela, às vezes fica impossível: "Para mim? Não! Eu sei lidar comigo. Só que a gente às vezes carrega outras pessoas. Eu tento fazer o possível para ajudar, mas nunca pensei que ia ser tanto”. Fica um tempo em silêncio, e retoma a fala, divagando a respeito de teorias filosóficas concernentes ao andar do mundo. Rita passa muito tempo falando de sua religião. Diz que nós somos sete seres, que se juntam à medida que a gente evolui. É um encontro difícil de explicar para quem não acredita. Diz ela, “Quem ouve, acha que é doideira, ou alucinações”. Diz que já teve algumas experiências, que prefere não contar porque são parte da sua intimidade e porque é difícil de transmitir. Um dia, com muita amabilidade, pede para não mais falar: “Ficar em silêncio é o que ajuda a encontrar a própria alma”. Ela se questiona sobre que é isso de chegar perto dela e fazê-la falar. O que é que os profissionais querem descobrir? Querem saber a causa dos problemas da Carmelita? Querem saber se a família tem algo a ver? Será que acham que eu também... (detém sua fala, e fica gaguejando, procurando uma palavra), que eu também tenho problemas?”. Considerações Finais Este trabalho nasce do esforço de tentar situar teoricamente o real do caso clínico. Aquilo que nos instiga e desconserta nossos registros, mas como afirma Lacan (1977), a psicose é aquilo frente a qual um psicanalista não deve retroceder. Este foi o nosso empenho, oferecer nossa presença e sustentar os encontros semanais acompanhando Carmelita no seu esforço de continuar circulando na cidade. Neste relato, indicamos alguns questionamentos sobre as possibilidades de intervenção, a partir da psicanálise, num CAPS. Não pretendemos dar conta do fenômeno, mas simplesmente iniciar uma contribuição da clínica para a sua discussão teórica. No decorrer dos atendimentos, pudemos perceber alguns efeitos subjetivos que entendemos com Soler como sendo a “retificação do Outro”. Se ao chegar ao CAPS Carmelita defronta sempre com o Outro que quer seduzi-la, devorá-la, comê-la, que está “interessado” nela, o mesmo não se pode dizer quando, após cinco meses de tratamento, fala sobre o novo médico psiquiatra e diz gostar muito dele: “ele gosta do que faz? Ele é um excelente médico”. Adere assim também ao tratamento psiquiátrico e medicamentoso. No percurso do primeiro ano de residência, o rodízio pelos serviços tem uma duração de seis meses; passado esse tempo, pensando como seria essa passagem com Carmelita, ela se antecipa: “você disse que nosso tratamento duraria seis meses. Semana que vem fazem seis meses, então vamos terminar”. Diz então que tem um único pedido para me fazer antes da minha saída: “eu quero que você escreva um atestado de sanidade mental para mim, para provar que eu posso ser mãe. Eu estou grávida e tenho medo que quando você for, eles tirem o meu filho de mim. Deus já me explicou tudo... Eu vou sentir uma dor e vou no banheiro, meu filho vai sair como se eu estivesse fazendo cocô. Vai ser rápido. Você escreveria isso para mim”? Embora tenha passado por períodos difíceis, Carmelita não foi internada. Vai ao CAPS apenas para o tratamento psiquiátrico e segue recusando outros atendimentos. Referências Bibliográficas: ALBERTI, S. “O surto esquizofrênico na adolescência”. In: Autismo e Esquizofrenia na Clínica da Esquize. Alberti, S. (org). Rio de Janeiro: Marca D’Água Livraria e Editora Ltda, 1999. ALLOUCH, J. Marguerite ou a "Aimée" de Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 1997. AMARANTE, P. e ROTELLI, F., Reformas na Itália e no Brasil. In: Psiquiatria sem Hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro, RelumeDumará. 1992 FERREIRA, A. Assistência e Ensino na Instituição Psiquiátrica: Interfaces de uma Experiência Plural. Revista Psicologia para a America Latina, no. 5, 2006. Colaboração de Szuchmacher, A. Maya. FERREIRA, A. e MELO, W., Pioneirismo de Nise da Silveira e as Mutações no Campo da Saúde Mental. In: Winigrad, M./Vilhena, J.(org.), Psicanálise e Clínica Ampliada. Curitiba, Appris, 2014. Pp17-36. FOUCAULT, M. A constituição histórica da doença mental. In: Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Sexta. v.11, 2000 [1972]. p. 75-86. LACAN, Jacques (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. LACAN, J. Abertura da sessão clínica (1977). POLLO, V. “Considerações acerca do falo e sua incidência nas estruturas clínicas”. In: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8911/6794, 2010. Ademir Pacelli Ferreira. Professor Associado do IP/UERJ, Pró-cientista, coordenador da EPCI-MRH/IP/HUPE-UERJ e supervisor clínico do Projeto: Atividades, Laços e Espaços de Vida junto ao CAPS-UERJ. Membro da [email protected] Heloene Ferreira da Silva. Psicóloga residente no Hospital Universitário Pedro Ernesto e Especializanda em Psicologia Clínica Institucional/IP-HUPE-UERJ. Graduada em Psicologia pela Universidade Veiga de Almeida/UVA. Endereço: R. Laura Telles, 60. Rio de Janeiro, RJ. [email protected] Verónica Raquel Puga. Psicóloga residente no Hospital Universitário Pedro Ernesto e Especializanda em Psicologia Clínica Institucional/IP-HUPE-UERJ. Graduada em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires/UBA. Endereço: R. Venceslau, 259/104. Rio de janeiro, RJ. [email protected]