O LIVRO DO
Sumário
Sumário
Prefácio | Domenico de Masi
Boni, em alguns capítulos pessoais | Regina Duarte
Entrando no ar
A infância e a família
Quem tem tio vai ao Rio
TV chuvisco
Nossa próxima atração
Um piano ao cair da tarde
Nosso céu tem cinco estrelas
Lever no espaço
Plantando lasanha
Não é mesmo uma tentação?
Corinthians 0 X Maysa 10
Varig, Varig, Varig
O Real Madrid
E agora, José?
Você também está no 9
A noite de São Bartolomeu
Na zona do mercado
O direito de nascer
Se cair na rede...
Turbulência no ar
O Telecentro
O calote
Não me leve a mal, hoje é carnaval
Bravura indômita
Chegando à Globo
Daniel Filho na cova dos leões
Vai dar certo
O modelo de negócio
A carne assada da Dercy
Quem não se comunica se trumbica
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Um terremoto chamado Janete
Arriba! Tarcísio y Glória
Acorda que está pegando fogo
O penico está voando
Armando Nogueira e o Jornal Nacional
Globo: o maior índice de produção própria do mundo
Janete, Regina e Cuoco
Os festivais... do Solano ao fim do FIC
In the end of the world
Chico Anysio é um show
Viva o Jô!
Ridendo Castigat Mores
Plim, plim por Plim, plim
O Globo Repórter e o Fantástico
Anos de chumbo e TV em cores
Dias, Gracindo e Lima – Os Bem-Amados
A censura e o milagre de Roque Santeiro
Onde há fumaça, há fogo: a saída do Walter Clark
Hans Donner, o mago e seu universo
Novela ou novelo? As “25 mais”
Os anos dourados das minisséries
Começar de novo
Glória, Malu, Fagundes e Tony
De fora para dentro
Deu curto-circuito na babá eletrônica?
Emoções eu vivi
Um chopinho com o Tom Jobim
Globeleza
É taça na raça, Brasil
Dos musicais da Globo ao Sinatra de Itaparica
A volta das garotas-propaganda e o filme publicitário
Homero Icaza Sánchez – o “bruxo”
Sem medo de errar
O padrão Globo de qualidade
Meu capítulo com o Joe Wallach
A família Marinho
A Rede Vanguarda
A TV aberta tem futuro?
Índice Onomástico
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457
460
emalguns
Boni,
em
Boni, alguns
capítulospessoais
pessoais
capítulos
Regina Duarte
PENSO NO BONI E EM MINHAS LEMBRANÇAS abre-se o ano de 1968.
Capítulo 1
Estou no ar em horário nobre na TV Excelsior fazendo Pom-Pom de
Ivani Ribeiro na novela Dez vidas. Recém-casada, há quatro meses sem receber salário, tenho prestações de apartamento, geladeira, fogão, cama,
mesa e banho, tudo atrasado, tudo indo por água abaixo. Assustada, me
sentindo no fundo do poço, recebo um telefonema do Guimarães, da Globo de São Paulo, dizendo que o Boni (da Globo do Rio) me chama para
uma conversa na sede paulista. Era um teatro velho que ficava ali na praça
General Osório da avenida São João, onde eu já tinha estado antes para
receber o Troféu Imprensa do Silvio Santos, da TVS, como revelação do
ano por Malu, meu personagem em A deusa vencida de Ivani Ribeiro com
direção de Walter Avancini, em 1966.
Numa salinha exígua, bem mequetrefe, Boni diz que gosta do meu trabalho, me pergunta quanto estou ganhando, me oferece o dobro e me propõe um contrato de dois anos pra gravar na Globo Rio, começando dentro
de 15 dias, a novela Véu de noiva, de Janete Clair, com direção de Daniel Filho.
Tudo isso bem rápido, como era o jeito urgente que sempre teve para lidar
com as coisas. Taquicárdica de emoção, ainda balbucio: “Mas... e a novela?
O meu contrato?”. E Boni, muito sério, quase bravo: “Que contrato? Você
não recebe seu salário há quatro meses, minha filha! Que contrato?!”
Foi como se no mar revolto da tempestade, em que eu me encontrava, ele tivesse me estendido uma prancha de surfe bem grande em que eu
podia me agarrar. Mais que isso: um bote a motor e capota com direito a
colete salva-vidas e fone de ouvido tocando “... rumo, estradas, curvas, só
despedidas, por entre lenços brancos de partida, em cada curva, sem ter
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você vou mais só...”. Leila Diniz, de um dia para o outro passou a ser, na
Excelsior, a Pom-Pom! E eu me tornei Andréa, apaixonada pelo piloto de
automobilismo vivido por Claudio Marzo, na Globo.
Capítulo 2
A memória abre, aleatória, outra pasta e Boni aceita ir lá em casa
(honraria!) para uma noitada de conversa e brincadeiras. Era Copacabana
ainda. Somos então quatro casais empolgados com o jogo de formar palavras com dadinhos de letras arremessados na mesa. Em um minuto, marcado na ampulheta, o grupo que compusesse o maior número de palavras
com aquelas letras ganhava os pontos. Boni e eu, em times adversários,
fazemos sucesso. Bons tempos.
Capítulo 3
Boni e Lou convidam eu e minha família para um fim de semana,
um réveillon, em sua casa de Angra dos Reis. Promovem um encontro com
Armando Nogueira e me sinto presenteada com um curso de sabedoria
condensado em três dias e três noites que passam voando. Dias de sal, sol
e mar que deixam gravados para sempre na mente e no coração a generosidade, o humor inteligente, a visão lúcida e abrangente do mundo em
que vivemos, o amor à vida, à boa mesa, o culto às amizades, a paixão pelo
exercício de aprender e informar, entreter, propor e curtir o riso, a reflexão
e... a lágrima. Boni se confirmou para mim, naqueles dias, para além do
chefe, o sentimental, o humano, o pai de família, o nutriente provedor de
todos nós.
Capítulo 4
Boni tinha uma plaquinha em sua mesa com a frase THINK BOLD.
Meu sonho foi sempre levar a sério a proposta, não podia, afinal, decepcionar meu ídolo. Reunião com ele tinha que ser marcada com no mínimo
15 dias de antecedência. Poderia durar 15 minutos ou horas. Eu escrevia
todas as minhas dúvidas, críticas, meus anseios em papeizinhos numerados que tirava da bolsa e ficava ali, meio disfarçando e lendo, nervosa.
Sabia que não havia tempo a perder. Ele falava depressa, impunha um ritmo acelerado à conversa, perguntava de supetão, exigia agilidade na ex14
O livro do Boni
posição de qualquer argumento. Comigo foi sempre muito gentil, atento,
sorridente, carinhoso. Mas eu sabia de histórias horripilantes, de broncas
homéricas que ele dava em profissionais de todas as áreas (com direito
também a memorandos malignos); isso sem falar nas demissões sumárias, nos açoites humilhantes à la Steve Jobs (fala-se muito, é verdade!), a
qualquer hora do dia ou da noite, mas especialmente nas reuniões de pauta das segundas-feiras. Daí, eu sempre entrava na sala dele com as mãos
geladas, suor na testa e a garganta seca. Dez minutos depois ele conseguia
me descontrair e eu abria, como no confessionário, no divã do analista,
como no bar com meu melhor amigo, toda a minha história.
Capítulo 5
Boni nunca deixou de abraçar qualquer (qualquer!) funcionário vítima de doença, acidente ou perda de parente próximo. Ele se solidarizava
– no sentido lato da palavra –, dando apoio moral, afetivo, financeiro e
tudo mais que se fizesse necessário pelo tempo que fosse. Mais de uma vez
vi seus olhos transbordarem de lágrimas ao se referir a um companheiro
envelhecido, adoentado, em crise.
Capítulo 6
Boni é capaz de montar a equipe certa para levar ao telespectador de
todas as classes a obra que atende ao desejo, preenche a carência do público em cada momento histórico. Sabe arquitetar o mais afinado enfoque
estético, técnico e ético. Quer sempre um degrau a mais na busca de cada
emocionada e/ou racional proposta artística/jornalística. Consegue ser
mercadológico, antropológico, político, provocador, acessível e arrojado,
tudo junto.
Capítulo 7
Quando penso em líder que estimula o livre pensar, o livre criar, a livre expressão, lembro do que Boni me disse quando Del Rangel e eu gravamos o piloto da série Retrato de mulher – Era uma vez, Leila, de autoria de Doc
Comparato. Liguei para ele e contei: “Ficou bem forte. Você vai ver que
tem uma audácia ali, uma coisa meio maldita, repara.” Depois de ver, ele
me ligou dizendo que tinha gostado, que o seriado estava aprovado para a
Boni, em alguns capítulos pessoais
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grade do ano seguinte e concluiu assim: “Eu não esperava outra coisa de
você.” A gente riu muito.
E agora, por favor, uma breve e indispensável carta ao Boni:
Meu querido Boni:
Pela atenção e cuidados, pelo apoio incondicional ao longo de mais de trinta
anos, por todos os estímulos que fizeram dos meus sonhos de criatividade e da minha
vontade irrefreável de ser atriz uma realidade bem-sucedida – minha gratidão.
Não existem palavras que possam abrigar todo o sentido de sua fundamental
importância em minha trajetória artística e pessoal.
Sem os personagens e textos propostos, sem a confiança em mim depositada,
que teria feito eu da minha vocação? Do meu histórico de boa moça disciplinada,
da minha garra e paixão por interpretar outras vidas? Pouco, eu sei. E sei também
que existe, na história da TV brasileira, a era Boni. A Era de Ouro, a Renascença do
fazer televisão no Brasil. Não há quem não saiba, no nosso meio, na nossa classe,
nos núcleos de interessados em comunicação, que existe, até aqui, a era a.B. e a era
d.B. É só ligar no canal Viva e ver: sua obra está toda lá, sucessos de ontem, de hoje...
de sempre!
E eu, privilegiada, podendo fazer parte, viver de perto tudo isso.
Sua força criativa, sua capacidade de realização, seu humor, sua sensibilidade e
audácia, sua obsessiva busca de perfeição fazem com que minha admiração por você
seja incomensurável, Mestre.
Muito carinho também, sempre,
Regina Duarte
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O livro do Boni
Entrando no ar
Entrando
no
ar
CRIAR EXPECTATIVAS É PRODUZIR FRUSTRAÇÕES. Não esperem deste livro nenhuma informação bombástica ou a revelação de segredos dos bastidores ou das empresas, até hoje ocultos. Nada disso. Também não é uma
autobiografia, uma vez que, a exceção do capítulo “A infância e a família”,
narro apenas minhas experiências profissionais, limitando-me aos fatos
dos quais participei ou testemunhei, sem pretender fazer um relato abrangente da história do rádio, da publicidade e da televisão.
Portanto, este livro é uma coletânea de episódios, alguns com informações importantes e outras curiosas, registradas durante minha trajetória por diversas áreas da comunicação em mais de 60 anos de atuação
e não apenas sobre a minha passagem na Rede Globo. Em alguns desses
episódios, tomei a liberdade de incluir depoimentos de companheiros que
participaram ativamente da minha vida profissional. Dentro dos limites da memória, e de acordo com informações pesquisadas, procurei me
aproximar o máximo possível de datas, nomes, locais e da veracidade dos
acontecimentos, mas este não é o principal objetivo deste livro e alguma
discrepância poderá ocorrer.
Realizar tudo, ou parte do que sonhei, só foi possível com a parceria
dos amigos e dos profissionais, todos de altíssimo valor, que comigo trabalharam no aprimoramento da comunicação no Brasil e na implantação
de uma televisão de qualidade, reconhecida em todo o mundo. Por todos
os lugares que passei e em todos os cargos onde atuei nunca deixei de participar intensamente de todos os acontecimentos. Mas também nunca fiz
nada sozinho. Portanto, o que este livro pretende ser é uma homenagem
carinhosa a todos os profissionais da nossa televisão.
A todos, mesmo os que, por limitações naturais, não puderam ser citados, o meu muito obrigado.
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AAinfância e a
infância
famíliae a
família
NASCI EM OSASCO, EM 1935, em uma casa geminada, na rua da Estação, 77 A.
Esse nome foi uma imposição popular, pois ali ficava a estação de trem
da linha Sorocabana. Com isso, me livrei de ter nascido na rua Glória dos
Runfadores, nome antigo e pomposo, dado porque ali passavam os garbosos desfiles militares que partiam do quartel de Quitaúna, duas estações
depois de Osasco, naquela época uma obscura e desconhecida vila, no subúrbio da cidade de São Paulo. Sempre que me perguntavam onde nasci,
confundiam Osasco com a cidade de Osaka, no Japão:
– Nasceu em Osasco??? No Japão?
Na verdade, Osasco tem origem italiana e possui o mesmo nome de
uma cidade do Piemonte, à beira do rio Pó, onde nasceu Antonio Agu, fundador da cidade paulista. Mas se não sou japonês, tampouco sou italiano. Minha família por parte de mãe é toda espanhola e, por parte de pai,
metade espanhola e metade portuguesa. Mistura dos Fernandes Prado, da
minha mãe, e dos Toledo e Oliveira, do meu pai. Isaías, meu avô espanhol, era um intelectual antifranquista e um negociante mais para artista.
Meteu-se a ser dono de cinema e se deu mal. Importou vinhos quando
ninguém bebia vinho no Brasil e acabou bebendo o seu próprio negócio.
Minha avó, Maria Purificación, Dueña Pura, mulher de fibra e destemida
para o trabalho, segurou a barra da família vendendo roupas como mascate e montando lojinhas de armarinho em Presidente Altino e Santos.
Francisco Caetano, meu avô paterno, gostava de jogo e, jogando, perdeu
toda a grana de minha avó Ana Carolina de Toledo, uma criatura invejável, educada na Europa e que, além de escrever bem em espanhol, português e francês, tinha uma caligrafia que parecia impressa em uma gráfica.
Seu apelido era Dona Nicota, e ela montava a cavalo e atirava muito bem.
Obrigou os filhos a se alistarem no Exército de São Paulo, durante a Revo19
lução Constitucionalista de 1932. Terminado o confronto, agentes federais
quiseram fazer uma revista em sua casa. Dona Nicota os deixou à vontade
e foi para o quarto de casal, onde havia armas escondidas. Trancou-se e
armou-se de uma espingarda de caça. Quando os agentes bateram na porta, ela abriu de arma em punho, engatilhada e apontada para eles.
– Aqui não! Esse é o meu quarto. O único homem que entra aqui é o
meu marido. Para trás! Se derem mais um passo, eu atiro.
Os agentes ficaram sem reação. Não sabiam se ela atiraria e resolveram não arriscar.
– Minha senhora, é só uma olhada rápida.
– Que olhada nada. Não permito que minha intimidade seja violada.
– A senhora tem mais armas aí no quarto?
– A arma que eu tenho aqui é só esta. E não é de guerra, é de caçar
perdiz. Somente esta, mais nenhuma... garanto.
Eles acreditaram e se foram. Minhas avós tinham, em comum, a coragem e a arte de cozinhar. Aprendi com elas que, para cozinhar, era preciso ter as duas coisas.
Meu pai e tio Reynaldo eram dentistas. Na casa da rua da Estação
moravam minha avó Ana Carolina e meu tio Reynaldo, que era solteiro; lá
também funcionavam o consultório dos dois e o laboratório de prótese. A
casinha do meu cachorro Negus e o meu triciclo ficavam na garagem junto
com o carro do meu tio, um Hudson movido a gás de carvão (gasogênio).
Nos fundos, ficava o meu campinho de futebol e, na sala, havia um possante rádio de ondas médias e curtas no qual eu vivia grudado. É claro que
eu passava mais tempo lá do que na minha casa.
Meu tio, além de dentista, era um apaixonado por política e me arrastava com ele em algumas madrugadas para colocar cartazes de propaganda em postes e muros. Aliás, foi Reynaldo de Oliveira que promoveu
o movimento autonomista que deu a Osasco o status de cidade. Foi ele
também que me ensinou a ler e escrever.
Em 1939, quando todos falavam da Segunda Guerra Mundial e o rádio só transmitia notícias do conflito, fiquei curioso e queria saber tudo o
que estava acontecendo. Tio Reynaldo montou na sala de jantar um imenso mapa-múndi, de dois por três metros, comprou alfinetes de bolinha e,
de manhã, quando chegavam os jornais, me ensinava a ler as notícias e
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O livro do Boni
atualizávamos, no mapa, as posições dos aliados e do eixo. Um ano depois
eu estava fazendo isso sozinho. Daí para escrever foi um pulo.
A vida na casa-consultório era ativa e agradável. Meu tio atendia os
clientes das sete da manhã às sete da noite e meu pai, durante o dia, fazia
próteses. Eu ficava ao lado dele. Aprendia a usar o maçarico para fundir
ouro usado em pontes e pivôs, preparava o paladon e dava polimento nas
dentaduras. Às sete da noite, meu pai assumia o consultório, muitas vezes
assistido pela minha mãe, que se metia a dentista só de vê-lo trabalhar.
Jeitosa e revelando sua vocação para a psicologia, que veio a estudar mais
tarde, dona Kina era a preferida das crianças.
Às dez da noite meu pai parava tudo, dispensava clientes, passava a
mão em seu violão e ia para os bares e serestas, onde ficava até altas horas da madrugada. Ao chegar, me acordava e esparramava na minha cama
bombons e chocolates, que trazia em um saco amassado de papel. Nunca
faltava o Diamante Negro, meu preferido. Quando minha mãe ameaçava
uma bronca, ele, como em um truque de mágica, tirava do ar uma flor, uma
bela maçã vermelha ou um pequeno mimo que a encantava. Ela ria e me
dizia que pressentia sempre quando ele estava chegando, independentemente da hora que fosse.
Aos sábados e domingos, ia com a viola para programas de calouros, onde sempre se deu mal como cantor. Como era bom de violão, foi
aconselhado a desistir de cantar e passou a ganhar dinheiro como acompanhante de outros calouros, na Rádio Cultura de São Paulo. Quando não
havia mais o risco de ser gongado, ou buzinado, ele não tinha mais medo
de passar vergonha e me levava para assistir aos programas. Eu ficava
sentadinho na cabine de controle, fascinado com os botões e com os roteiros dos programas que, então, comecei a colecionar. O rádio entrou direto
na minha veia.
Com o apelido de Caçula, integrou o conjunto Chorões de Presidente
Altino, com José do Patrocínio, o Zé Carioca, Aníbal Augusto Sardinha, o
Garoto, e, ainda, o pai do genial escritor João Antônio, que tocava bandolim e tinha uma padaria onde eles ensaiavam e se apresentavam nos churrascos das tardes de domingo. Passou também pelo Regional do Rago,
onde usava o que aprendeu como calouro e era o acompanhante preferido
dos novatos. A arte dele era encontrar rapidamente o “tom” do candidato
A infância e a família
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e, mais do que acompanhar, “perseguia” as peripécias dos cantores inexperientes. No livro Vou te contar, de Walter Silva, o Pica-pau, Rago faz o seguinte comentário sobre o meu pai: “Músico exímio, melhor como acompanhante do que solista.”
Orlando de Oliveira, meu pai, era corintiano roxo e morreu de “corintianite” aguda. Em setembro de 1941, o Corinthians consagrou-se campeão paulista, por antecipação, vencendo o Santos por 3 a 2, em plena Vila
Belmiro. Na noite anterior, meu pai havia levantado para espantar uma
vaca que tentava comer nosso pomar. No dia do jogo, teimoso, saiu de
casa com uma gripe danada, levando o violão a tiracolo e um frango assado debaixo do braço ou vice-versa. Depois da vitória, caiu um pé d’água e,
mesmo assim, ele foi comemorar com os amigos. Minha mãe o encontrou
em um posto médico com um pôster do “Corinthians campeão”, publicado
na Gazeta Esportiva. A gripe virou pneumonia e a pneumonia, tuberculose. A estreptomicina, antibiótico específico para a tuberculose, ainda não
havia sido descoberta. Com o fígado baleado pelo consumo de álcool e a
resistência baixa pelas noites mal dormidas, a progressão da enfermidade
foi rápida. Em 1943, foi internado em caráter de urgência na Santa Casa de
Misericórdia. Minha mãe, cheia de esperança, foi visitá-lo algumas vezes
e, finalmente, recebeu uma notícia-surpresa: meu pai havia recebido alta e
deveria ser tratado em um sanatório ou submetido a uma cirurgia. Comunicaram do hospital que ela deveria levá-lo para casa. Era setembro e
minha mãe faria aniversário em outubro. Ficou radiante. Era o presente
que queria. Lembro-me dela se arrumando e colocando o melhor vestido
para ir ao encontro do meu pai.
Na casa da minha avó, onde eu os aguardava, o ambiente era de festa.
Minha mãe demorou muito para voltar, aumentando a expectativa. De repente, entrou em casa sozinha e chorando copiosamente. Abraçou-me e,
quase sem voz, sussurrou: “Seu pai morreu.”
Saí em disparada, correndo, sem saber para onde ir. Meus olhos percorreram velozes os corredores da casa, o laboratório de prótese, o quintal e o campinho de futebol, procurando por ele em todos os lugares. Para
mim era inaceitável, era irreal, era mentira. Fugindo da verdade, fui para a
casa das minhas tias. Não tive coragem de voltar para a casa da minha avó,
onde seria o velório. Tive medo de vê-lo.
22
O livro do Boni
Meu pai morreu aos 33 anos de idade. Eu tinha 7 anos e o Guga, meu
irmão, 2. Minha mãe iria completar 28 anos. Ela escrevia poemas, bordava, ajudava no consultório e não tinha recursos financeiros para sobreviver à morte do meu pai. Eu, que era rei mimado no colégio de freiras de
Osasco, fui parar no Grupo Escolar Marechal Bittencourt, uma escola pública onde ninguém dava bola para ninguém.
Tentei ajudar a família, como faziam meus amigos de futebol, indo
engraxar sapatos na estação de trem. Arranjei uma caixinha de madeira,
comprei graxa, escova e fui para lá. Logo de cara, sujei a meia de um cliente
e fui expulso da turma.
Ainda bem que, para meu consolo, eu tinha uma namoradinha, dessas que as famílias decidem que a gente vai namorar. Ela era meiga e, melhor, filha de um dos donos do único cinema local. Dele, ganhei um passe livre para todas as sessões com direito a ver montagens dos filmes na
cabine de projeção. Muitos anos depois, quando vi Cinema Paradiso, quase
morri. As colunas, a boca de projeção e todas as características do Cine
Osasco eram parecidas com as do filme do Tornatore; até o projecionista
tinha o jeitão do Alfredo. Eu ia ao cinema quase todos os dias.
À noite, o Reynaldo me levava para o largo da Estação e eu, em pé em
um caixote, dissertava sobre os acontecimentos do dia no front, como um
Repórter Esso local. Quando terminou a guerra, me embrulharam numa
bandeira do Brasil, me levaram para as casas dos pracinhas de Osasco
que haviam ido para a Itália e, em cada uma, me mandavam fazer um discurso. Eu não sabia o que dizer, mas pelo fato de ser criança, conseguia
arrancar emoção.
Quando completei o primário fui internado no Liceu Coração de Jesus, onde minha mãe arranjou uma vaga gratuita com Porfírio da Paz, político influente na época, amigo de amigos do meu pai. Passei alguns anos
lá e foi uma experiência de vida fantástica. Para pagar os estudos, tinha a
obrigação de abrir o dormitório, verificar se estava tudo em ordem e fechar
as dezenas de janelas existentes. Eu deixava a janela, que ficava ao lado
da minha cama, semiaberta. À noite, quando todos dormiam, eu a abria
silenciosamente e ficava olhando o céu, tentando entender a vida e sonhando com o que faria quando de lá saísse. Repetia isso todas as noites,
por anos.
A infância e a família
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Os avôs paternos Ana Carolina e Francisco Caetano. Os tios José
Bonifácio, Reynaldo e Odovaldo e o pai Orlando (ao centro)
24
Orlando, Reynaldo e Odovaldo na revolução de 1932
Dueña Pura
O livro do Boni
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