IMAGENS – MEMÓRIAS – EXPERIÊNCIAS. Sueli Zutim. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação. Grupo de Estudos e Pesquisas: Linguagens, Experiências e Formação. [email protected]. Prof. Dr. César Donizetti Pereira Leite. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências – Campus de Rio Claro/ Departamento de Educação. [email protected] Resumo: Imagem, experiência e infância se entrelaçam em um álbum de fotografias em que histórias narradas compõem sentidos e formas, produzindo afetos e realidades. Este trabalho faz parte de uma pesquisa, em andamento, que discute por meio da fotografia aspectos da linguagem. Para a presente comunicação selecionamos três imagens: a primeira, de um álbum de família - desencadeadora de memórias e movimentos. A segunda, do livro Êxodo de Sebastião Salgado imagem artística produtora de experiências e afetos, e a terceira - do Jornal Folha de São Paulo, onde encontramos possibilidades de transgressão de sentidos no detalhe da infância. A discussão se apoiará na referência benjaminiana e terá como eixo central a temática da educação. Palavras chaves: imagem – experiência – infância – memória “Já se disse que ‘o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar’. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto?”, (BENJAMIN, 1994, p. 107). Walter Benjamin pode ser considerado um visionário para sua época, pois nos alertou, em 1931, por meio de seus escritos, que viveríamos uma época em que a imagem seria, das linguagens, a mais presente em nossas comunicações. Para ilustrar esta constatação, o provérbio – uma imagem vale por mil palavras. O referido autor já destacava a importância de compreender essa linguagem, bem como, perceber o discurso inserido atrás de cada uma delas e de que maneira estas poderiam estar nos educando. Nós vivemos este tempo agora. É o momento, pois, de aprendermos a ler as nossas próprias imagens também, já que hoje somos submetidos diariamente a elas, pelas revistas, jornais, anúncios de propagandas, televisão, internet, etc. “Os psicólogos da percepção são unânimes em afirmar que a maioria absoluta das informações que o homem moderno recebe lhe vem por imagens. O homem de hoje é um ser predominantemente visual” (BOSI, 1988, p.65), por isso a imagem é considerada o meio mais eficaz de informação. Mas de onde vem todo este fascínio pelas imagens? A imagem utilizada pelo ser humano como meio de linguagem é algo muito antigo. Benjamim nos lembra dos desenhos das paredes das cavernas deixados pelo homem paleolítico, que nos revelam a imagem com um sentido de valorização ao culto: 2 A produção artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas. O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. (BENJAMIN, 1994, p. 173). Elas vêm como herança de nossos ancestrais – imagens que sobreviveram há diferentes tempos e culturas, modificando-se ao longo da história. Com a Revolução Industrial, temos o aparecimento das imagens fotográficas, o que resulta em uma mudança de sua valorização: das cavernas, onde serviam à magia, as imagens são expostas porque precisam ser vistas. As imagens enquanto linguagem podem ser uma ferramenta de controle, ideologia, manipulação, intimidação e opressão, mas, podem ser também o resgate da sensibilidade do nosso olhar diante da vida, do outro e de nós mesmos, podem ser uma das possibilidades de perceber mais, sentir mais, ler mais... Partindo do principio de que a imagem pode ser um resgate da sensibilidade por meio do olhar, buscamos fazer este exercício “bordando” três imagens: nas quais temos a figura humana como elemento constante. Em duas, temos ainda a natureza como cenário (álbum) ou “habitat” (Êxodo), pois sentimos o índio integrado à natureza. Podemos dizer ainda, num primeiro olhar, que estas imagens podem ser desencadeadoras de memórias e movimentos, produtoras de experiências, afetos, sentidos. Bordando imagens.... Em minhas mãos uma peça de étamine. Sob meu olhar: tesoura, agulhas, alguns motivos para bordado e linhas de muitas cores e tonalidades. A tesoura corta, separa. A agulha passeia entre as tramas do tecido e leva consigo a linha que, timidamente, ponto a ponto, vai compondo imagens nos movimentos que entrelaçam mão – agulha – tecido e finalmente a linha que compõe outras imagens fazendo um jogo plural de tramas que como as linguagens produzem histórias. O que está sendo bordado? Que imagem está sendo construída? As mãos, os olhos, o corpo de quem borda é que, por não saber, dirige, indica, vive a ilusão de saber, mas são nestas linhas nos tecidos, como nas linhas da linguagem que se ancoram possibilidades, afetos, devires. O bordado está no início e para quem olha externamente é impossível decifrálo. Para estes são apenas pontos perdidos em uma peça de tecido e/ ou dependendo das imagens em ação - imaginação, muitas outras possibilidades. O que prende as linhas ao tecido? Os nós? Os afetos? As linhas não se prendem pelos nós – elas se interligam com as tramas do tecido, comungando do mesmo espaço por meio da agulha – não se soltando. 3 No bordado de ponto cruz, cada ponto, ou até mesmo a ausência dele, pode comprometer toda a imagem. Geralmente, para muitos, este detalhe passará desapercebido, mas para a pessoa que borda ou para aqueles que possuem um olhar mais atento... aquele ponto ou a ausência dele, parecerá piscar, lembrará Penélope, ou ainda o desejo de cada estabilidade ilusória, ficcional, de sentidos e afetos. Será assim com todas as imagens? Quais os pontos ou ausência deles que nos tocam? Será que a imagem consegue “desenhar” nossos pensamentos e sentimentos? Por que a imagem nos fascina tanto? Pelo que nela falta? Pela cesura do tecido? Pela ruptura acolhida na descontinuidade da história que marca a interrupção de um tempo linear? Talvez seja porque exista uma linha – um fio de Ariadne a nos indicar caminhos, a unir passado, presente e futuro? - que nos remete ao interior das cavernas francesas com suas imagens de búfalos, alces, deixadas pelos homens da pré – história e nos permite estabelecer, hoje, ligações com as imagens das três fotografias? Conseguiremos ver todos as imagens? A caverna está escura! Desejamos ver o que há do lado de fora da caverna. Um desejo que habita no ser humano desde Platão. Fora da caverna encontro outras linhas e estas nos ligam a um mundo de muitas imagens, cores, e conseqüentemente, de infinitas leituras. Para qual delas olhar? A fotografia assim como o bordado nos parece pronta, sem recortes, sem cesuras, sem linhas, como se fosse a lisura de um tempo contínuo representante de uma linearidade, totalidade, que já não é mais, mas podendo ser quase que em um jogo entre a aparência e o aparecer. Olho para ela com o olhar de bordadeira: procurando perceber seus pontos, contornos e ausências. As três imagens, ou os “motivos” escolhidos para este bordado contemplam características particulares: uma, é um retrato de família movimentos de histórias e memórias de um pequeno grupo de pessoas, e também movimentos de invenções e criações dentro e fora deste seleto grupo; outra, impressa em livro comercial destinado a um público apreciador de imagens artísticas criadoras de afetos e a terceira, em jornal impresso, veiculada para um público mais diversificado. O retrato de família é todo branco e preto. 4 Data aproximada, 1925, Fazenda Remanso e/ ou casa do próprio fotógrafo, cidade de Araras, interior do Estado de São Paulo. A disposição das pessoas na fotografia é indicativa de uma hierarquia familiar - meninos atrás do pai; meninas atrás da mãe; entre os pais, sentados, em lugar de destaque, apenas o filho caçula. A postura dos braços, provavelmente orientada pelo fotógrafo – uma imagem nada espontânea uma imagem criada, produzida – constitui-se em modelo para apresentação. Percebemos a importância dada ao retrato por estas pessoas, pelo cuidado que tiveram com as roupas e com os cabelos. Todos vestidos a uma determinada maneira: terno, gravata, vestido longo, porém, as botas de alguns, a terra batida e o próprio cenário escolhido, nos dão a idéia de que esta produção não representa a realidade destas pessoas, a foto que nos parece a princípio pronta, mas na sua produção, vela e revela as fissuras do tecido, as cesuras das histórias, o encontro entre a ilusão do tempo linear – de uma representação - e do momento do agora – a ilusão da foto como totalidade, porém, saturado de outras possibilidades, mentiroso e criador de outras histórias, inventadas, criadas. O que elas desejaram? Serem vistas? Lembradas? Nesta fotografia está inserida toda a história e valores de uma época – valores de família, de comportamento e de uma sociedade, que escapam na produção do “retrato” que os distancia de suas realidades, de seus valores, apresentando de outra forma. Procuro no olhar das pessoas, nos detalhes, as imagens, procuramos o olhar que nos olha e que apresenta outras realidades, capturamos pelo olhar a foto e somos capturados pelo olhar da foto. 5 Percorro o olhar sobre todos eles – busco pela imagem de meu avô paterno. Encontro-o entre tantos rostos – da direita para esquerda, é o quarto rapazinho. Procuro identificar na imagem de meu avô as descrições feitas por meio da memória de meus tios e de meu pai. Quais destas memórias serão verdadeiras? Depois de muito olhar na imagem de meu avô, percebo que as experiências particulares fizeram com que cada um tivesse uma memória diferente da mesma pessoa e conseqüentemente, uma verdade. Encontro no rosto de meu avô o rosto de todos os meus tios, o rosto de meu pai e de todos nós. Compreendo então o poema intitulado Verdade, de Carlos Drummond de Andrade: A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Mas o que é experiência? O que é memória? Nas falas de meus tios e de meu pai, experiência é descrita como tudo aquilo que é sentido: podendo ser um cheiro, uma dor, uma alegria, uma tristeza, um gosto, um olhar, um toque, um sorriso, uma lágrima, um gesto, uma palavra, um som, um acontecimento e até mesmo o silêncio. Enfim, algo que a alma registra e guarda na memória. À medida que procuramos “ler mais” – detemo-nos diante de uma outra imagem, também branco e preto. 6 Esta imagem feita pelo fotógrafo Sebastião Salgado, datada de 1998, ou seja, cerca de setenta e três anos após a primeira, apresenta uma resolução muito melhor, uma evolução do filme, do papel e da máquina fotográfica – dando ao fotógrafo a possibilidade de utilizar-se apenas da luz natural do ambiente. Salgado seria o fotógrafo previsto por Benjamim? Aquele que sabe fotografar/ produzir e mais, o que sabe ler suas próprias imagens, o que faz dele o artista que é. As crianças aqui são dispostas diferentemente das da primeira fotografia meninos e meninas se misturam, descalços, em contato direto com a água ou sentadas no tronco de uma árvore, em cenário harmonioso com o ambiente onde estão inseridas. Esta imagem ganha movimento em nosso imaginário e nos leva uma idéia da foto como um modo de vida, de acontecimento, ouvir o som do riacho, a sentir o cheiro da mata, o calor do sol, a terra sob os pés, o frescor da água. Nos vemos, dentro da floresta amazônica, entre os índios da aldeia Marubo de Maronal, somos profundamente afetados pela foto. Será que este foi o desejo do fotógrafo/ produtor de imagens e de realidades? Movimentar os leitores da fotografia por meio de uma imagem estática? Quais os sentidos que esta imagem pode provocar? O que é necessário para que isto ocorra? Tempo? Sensibilidade? Técnica fotográfica? O que nos liga a esta imagem? As pessoas? A natureza? Estamos diante da última imagem deste pequeno álbum, ou, do último “motivo” que compõe este “bordado”, publicada pelo Jornal Folha de São Paulo, em junho de 2006. Aparentemente, um ambiente religioso, dado pela postura de todos os adultos inclinados para algo ou para alguém, nossa imagem ideológica nos faz crer, é um evento religioso de caráter fundamentalista. 7 Nessa fotografia não há mulheres, nem meninas, todos são homens e a criança é o destaque, pois produz uma ruptura no estático, no tempo e na verdade única e homogênea, ela se “destaca” ela está em pé. Para o quê ela está olhando? Para quem está olhando? O que ela nos diz? A criança parece transgredir uma ordem? Quando todos nos curvamos ao nosso fatalismo final, a criança parece olhar para o seu devir. Na única foto não produzida vemos a possibilidade de muitos acontecimentos. 8 Arremate... Sempre que terminamos um bordado de ponto cruz, ficamos por algum tempo admirando o trabalho. Admirando os diferentes caminhos que a linha percorreu para chegar àquela imagem. Quando voltamos a olhar para estas fotografias vemos que elas nos proporcionam um bom exemplo da reprodutividade técnica da imagem que estamos vivendo bem como de seu alcance pelos diferentes meios como livros e jornais. Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral. (BENJAMIN, 1994, p. 167). Enfim, podemos perceber neste “bordado” entre imagens de diferentes técnicas, motivos e épocas, que estas são capazes de promover movimentos em nossa alma, e que estes movimentos ou percepção é algo pessoal, porém direcionam nossa leitura e constroem o nosso mundo. “Com agulhas de prata de brilho tão fino bordais as redes de seu destino Bordais as tristezas de todos os dias e repentinamente as alegrias” (Cecília Meireles, 1997) Esperamos que as leituras destas fotografias tenham-nos permitido atingir a performance sugerida por Benjamin no pensamento com que abrimos este texto “Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto?” (BENJAMIN, 1994, p. 107). Embora a leitura que fizemos não seja de fotos nossas, esperamos haver captado o que de mais singular cada uma delas tenha expressado. 9 Referências Bibliográficas ANDRADE, Carlos Drumond de. Verdade. Disponível em http://www.memoriaviva.com.br/drummond/poema072.htm Acesso em: 03 Jul. 2007. BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 91-107. ______. A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165 - 196. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. Jan/ Fev/ Mar/ Abr, nº 19, 2002. p. 20 -28. BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In: Novaes, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 65 - 87. MEIRELES, Cecília. Com agulhas de Prata. (Poesia Completa), 1997. SALGADO, Sebastião. Êxodo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 256 257.