UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS UELITON VAGNER ROCHA DE ARAÚJO JÚNIOR O DISCURSO RELIGIOSO “ARCAIZANTE” EM O “ORTO DO ESPOSO”: UMA ABORDAGEM FILOLÓGICA JOÃO PESSOA 2006 O DISCURSO RELIGIOSO “ARCAIZANTE” EM O “ORTO DO ESPOSO”: UMA ABORDAGEM FILOLÓGICA UELITON VAGNER ROCHA DE ARAÚJO JÚNIOR O DISCURSO RELIGIOSO “ARCAIZANTE” EM O “ORTO DO ESPOSO”: UMA ABORDAGEM FILOLÓGICA UELITON VAGNER ROCHA DE ARAÚJO JÚNIOR O DISCURSO RELIGIOSO “ARCAIZANTE” EM O “ORTO DO ESPOSO”: UMA ABORDAGEM FILOLÓGICA Dissertação de mestrado realizada por Ueliton Vagner Rocha de Araújo Júnior apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras, Área de Concentração em Linguagem e Ensino, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do Prof. Dr. Juvino Alves Maia Júnior. JOÃO PESSOA - PB 2006 TERMO DE APROVAÇÃO UELITON VAGNER ROCHA DE ARAÚJO JÚNIOR O DISCURSO RELIGIOSO “ARCAIZANTE” EM O “ORTO DO ESPOSO”: UMA ABORDAGEM FILOLÓGICA Esta dissertação foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Mestre em Letras, Área de Concentração Linguagem e Ensino, no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Aprovação: João Pessoa, ______ de ___________ de 2006. ___________________________________________________________________ Elisalva Madruga Dantas Coordenadora PPGL/UFPB ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Juvino Alves Maia Júnior - UFPB Orientador ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Milton Marques Júnior – UFPB Examinador ___________________________________________________________________ Prof ª Dr ª Marinalva Freire da Silva - UEPB Examinadora ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo Suplente para a prof. ª Eurídice Rocha de França Araújo, para Francisca Aires, minha mãe, Eurídice, minha irmã e meus sobrinhos, à memória de Ueliton Vagner Rocha de Araújo , meu pai e de Belino, meu avô paterno. AGRADECIMENTOS: A publicação desta dissertação seria uma injustiça, se não manifestasse meus agradecimentos, que são muitos, a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, colaboraram com o meu trabalho e me incentivaram durante todo o percurso: ao Prof. Dr. Juvino Alves Maia Júnior, por interceder sempre que possível , por confiar e acreditar em meu trabalho; à Prof.ª Dr ª Marinalva Freire da Silva, de quem aprendi durante minha passagem na UEPB o amor às palavras e o gosto pela pesquisa filológica; à coordenadora da PPGL/UFPB , Prof ª Elisalva Madruga Dantas, pelo carinho e compreensão; a todos os meus professores do Curso de mestrado da UFPB, pela qualidade e valor de suas aulas e sugestões; a todas as secretárias da PPGL/UFPB, pelo atendimento prestado, até nos horários fora do expediente; a France Murachco, professora de latim da UFCG, pela ajuda nas traduções em francês; a todos os meus colegas de trabalho e funcionários da UEPB (Campus III – Guarabira) pelo apoio e amizade, aos meus alunos da UEPB (Campus III – Guarabira) e de outras instituições onde trabalho, que torceram por mim; aos meus familiares que suportaram pacientemente minhas ausências, em especial, à minha tia “Teca” e à prima Candice Geysa Diniz pelo apoio. Verba volant, scripta manent. RESUMO A obra o Orto do Esposo, em seu Livro I, Do nome de Jhesu, composto de cinco capítulos, possui uma peculiaridade de construção discursiva baseada em um código de linguagem arcaizante, focada no oral / escrito, ininteligíveis a priori ao leitor moderno. Assim, atualizar este Livro em uma edição crítica, a partir deste aspecto, focalizando e remetendo a fontes diversas, de acordo com sua predisposição discursiva, torna o discurso religioso medieval compreensível e relevante ao leitor. Pretende-se analisar a linguagem da obra sob uma perspectiva retórico-discursiva, definir seu contexto pragmático lingüística e ideologicamente, e demonstrar a modernidade das imagens presentes neste discurso da Literatura de Exempla, retomado constantemente pelos meios de comunicação. Ao comparar essas linguagens, centralizando-se em passagens discursivas, aplicando-se pressupostos teóricos adequados, torna o ensino de língua materna atrativo e significativo, sem desprezar as contribuições das modalidades do latim, que também são registradas na atualidade jornalística na formação da língua portuguesa, fazendo jus aos antigos gramáticos. Palavras-chave: Filologia , Discurso, Literatura de Exempla RESUMEN La obra el Orto do Esposo, con su Libro I , Do nome de Jhesu, compuesto de cinco capítulos, possee una peculiaridad de construcción discursiva basada en un código de lenguaje aracaico, centrado en el oral / escrito, ininteligible a priori al lector moderno. Así, actualizar, este Livro en una edición crítica, a partir de este aspecto, evidenciando y remitiendo a fuentes diversas, de acordo com su predisposición discursiva, hace el discurso religioso medieval comprensible y relevante al lector. Se pretiende analizar el lenguaje de la obra bajo una perspectiva retórico discursiva, definir su contexto pragmático lingüistica e ideológicamente, así como também demostrar la modernidad de las imágenes presentes en este discurso de la Literatura de Exempla, retomado constantemente por los medios de comunicación. Al comparar estos lenguajes, centralizándose em pasajes discursivos, aplicándose presupuestos teóricos , hace la enseñanza de la lengua materna atractiva y significativa, sin desprezar las contribuciones de las modalidades del latín , que también son registradas en la actualidad periodística en la formación de la lengua portuguesa, haciendo jus a los gramáticos antiguos. Palabras-claves: Filología , Discurso, Literatura de Exempla SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................12 CAPÍTULO 1 ................................................................................................................17 1.0.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................17 1.0.2 CORPUS DO NOME DE JHESU CAPITULO PRIMEYRO..............................29 1.0.3 CORPUS DO NOME DE JHESU CHRISTO CAPITULO SEGUNDO ............. 35 1.0.4 CORPUS DO NOME DE JHESU CAPITULO TRECEYRO .............................39 1.0.5 CORPUS DO NOME DE JHESU CAPITULO QUARTO..................................45 1.0.6 CORPUS DO NOME DE JHESU CAPITULO QUINTO...................................49 1.0.7 ESTADO LINGÜÍSTICO NO LIVRO I DO ORTO DO ESPOSO .....................53 CAPÍTULO 2 Do código de linguagem do Hortus Sponsi: precisando as circunstâncias .......................................................................................68 2.0.1 Hortus Sponsi: Do lingüístico ao literário inter-relacionados ...............................68 2.0.2 Hortus Sponsi: Biografia de Hortus ......................................................................68 2.0.3 Hortus Sponsi: Dos elementos simbólicos ............................................................ 69 2.0.4 Hortus Sponsi: Sobre a língua literária no século de sua composição ..................73 2.0.5 Hortus Sponsi: Sobre a importância da Gramática no século de sua composição 73 2.0.6 Hortus Sponsi: Sobre a importância artística de sua linguagem ...........................76 2.0.7 Hortus Sponsi: Sobre a teoria das correspondências.............................................77 2.0.8 Hortus Sponsi: Sobre mudanças fonéticas no tempo............................................80 2.0.9 Hortus Sponsi: Do seu “religioso” ........................................................................82 2.1.0 Hortus Sponsi: Do seu gênero e estudos retóricos ................................................86 2.1.1 Hortus Sponsi: Da interação texto e leitor............................................................. 91 2.1.2 Hortus Sponsi: Do autor anônimo como tradutor..................................................94 2.1.3 Hortus Sponsi: Sobre sua edição corrigida , tendências e critérios .......................100 CAPÍTULO 3 ................................................................................................................105 3.0.1 Hortus Sponsi: A sintaxe “arcaica”da ordem das palavras ...................................105 3.0.2 Hortus Sponsi: Aspecto semântico da frase ..........................................................110 3.0.3 Hortus Sponsi: Aspecto sintático da frase .............................................................113 3.0.4 Hortus Sponsi: Estrutura “normal” da frase padrão ..............................................115 3.0.5 Hortus Sponsi: fator intelectual de construção das idéias .....................................119 3.0.6 Hortus Sponsi: fator biográfico-religioso..............................................................121 3.0.7Hortus Sponsi: A “sintaxe” do discurso religioso “arcaizante” .............................123 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................134 5 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................138 6 ANEXO.......................................................................................................................142 17 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este trabalho parte da idéia expressa por Milton (1998, p.80) que cita Pound, afirmando que Traduções são uma maneira excelente para estudar o desenvolvimento de uma língua. Num contexto filológico , as edições críticas podem muitas vezes se confundir com tradução , para um leitor desavisado. Não é fácil para o leitor estabelecer limites entre a tradução e a atualização textual, esta um trabalho filológico, pois segundo relatório da UNESCO, diz Olmi (2001, p.56): inclui trabalhos de filologia entre as traduções literárias. Desta maneira, para os leitores de um modo geral, as atividades de atualização não passam de simples tradução, pois quando se deparam com textos escritos em linguagem medieval, pensam que a versão em um mesmo código, trata-se de uma tradução.Sabe-se que a tradução se vale de códigos diferentes e a atualização do texto, se apropria do mesmo código. Pode-se afirmar que tanto a tradução quanto a atualização auxiliam o estudo do desenvolvimento de uma língua em diferentes códigos lingüísticos ou no mesmo código lingüístico. Para Maingueneau (1995, p.104), a maneira como a obra gere a língua faz parte do sentido dessa obra. Esse sentido é relevante ao trabalho do tradutor e filólogo: saber decifrar o que as obras têm a dizer. Segundo R. Robin, citado por Maingueneau (1995, p. 105): Quer se escreva numa única língua ou numa língua estrangeira, o trabalho de escrita sempre consiste em transformar sua língua em língua estrangeira, em convocar uma outra língua para a sua língua, língua diferente, língua do outro, outra língua. Maneja-se sempre o hiato, a nãocoincidência, a clivagem. 18 Assim , insere-se a obra Orto do Esposo, da literatura medieval portuguesa escrita em português arcaico do fim do século XIV ou início do século XV, que é ininteligível ao leitor contemporâneo por parecer escrito em “ língua estrangeira”. Na Universidade, há um grande desinteresse dos alunos em estudar textos literários medievais portugueses por não se dominar a fase medieval da língua portuguesa, também denominada arcaica. Essa literatura associa o oral e o gráfico. Assim , conforme Maingueneau (1995, p.91): num universo dominado pela oralidade, o autor reatualiza, em função de circunstâncias particulares, algo que ouviu de outros recitarem, costura pedaços (fórmulas, listas, episódios...) preexistentes. A Filologia emerge e se engrandece nestas particularidades do texto, pois abrange um largo enfoque crítico e metodológico que prima por essa escrita fonética que quer estabilizar-se rumo ao sentido da obra, voltado ao leitor. Deste modo, em termos modernos, ela possui um caráter multidisciplinar ou transdisciplinar. Sobre a Filologia enquanto disciplina, posiciona-se Ilari (1999, p.13) em nota prévia a triste realidade: Algumas décadas atrás, a Lingüística (ou “Filologia”) Românica ocupava, na formação do professor de Português, um lugar privilegiado, com outras disciplinas referentes à história da língua...Mais recentemente, o ensino tem tomado por base teorias que encaram a língua por um ângulo sincrônico, valorizando seu caráter sistemático ou procurando expressar com rigor suas regularidades. É comum os alunos de Letras saírem da graduação sem noção alguma do medieval, em nível de língua e em literatura, o que é lamentável . E são para estes leitores e demais pesquisadores que este trabalho foi elaborado . Partindo-se de pressupostos teóricos clássicos e contemporâneos, nos moldes discursivos, procurou-se realizar uma edição crítica através de uma atualização filológica voltada às atividades de reflexão e ensino de língua materna . Para tanto, pretende-se abordar o discurso 19 religioso “ arcaizante” em o Orto do Esposo: uma abordagem filológica, tomando-se como objeto de estudo os diversos arcaísmos tão próximos de nós por conter elementos diafásicos próprios de certos grupos da zona rural, e distante, ao mesmo tempo, por estar escrito em português arcaico necessitando ser compreensível. É nestes aspectos, entre outros, que reside a importância dos textos para a Filologia. No capítulo 1, encontram-se normas de transcrição para textos medievais portugueses, o texto atualizado do Orto do Esposo, Livro 1 , composto de cinco capítulos , intitulados DO NOME DE JHESU , seguido de notações histórico-teóricas sobre este código de linguagem , mostrando sucintamente as características fonéticas, morfológicas e sintáticas de modo geral. Na literatura e Cultura, a importância da obra está no próprio desenvolvimento da língua da prosa. Ver capítulo 2. Do código de linguagem do Hortus Sponsi: precisando as circunstâncias. Parte-se do emprego da palavra Orto e Esposo, tanto lingüístico como literariamente falando, abordando-se do simbólico, até chegar na grande metáfora não dicionarizada da literatura medieval portuguesa: Orto do esposo. Destaca-se o tratamento da linguagem , comparando-se com a linguagem jornalística, para fazer com que esse discurso religioso tenha sentido para o leitor , despertando seu interesse em desenvolver estudos posteriores nesta área do conhecimento. Com a palavra esposo temse o inverso, buscou-se na própria modernidade das encíclicas papais, para demonstrar como este discurso é bem presente na questão da fé em seu mistério, vindo culminar em edição da Veja , como também em outros veículos de comunicação, persiste esse Mysterĭum Fidĕi. Abordam-se questões também modernas sobre estética da recepção, comunicação entre texto e leitor, a questão de tradução na composição da obra e no final uma reflexão, alertando o leitor da necessidade de correção das edições com duas 20 tendências e visões sobre normas de edição baseadas no aspecto fonético, que orientará pesquisas posteriores. O capítulo 3 intitulado Hortus Sponsi: Por uma sintaxe discursiva do português “arcaico” discute a importância da fuga dos estudos sintáticos de esquemas muito mecanicistas. Mostra que o conceito de arcaísmo é relativo com exemplos abundantes, mostrando a necessidade de respeitar o grupo fraseológico da composição e disposição da obra na particularidade de sua criação e expressão estética oriundas do latim quanto construção das frases, exemplificado nos discursos religiosos, o padrão normal da frase portuguesa, comparando-se Huber (1986) e Pádua (1960) e mostrando a freqüência das demais modalidades da ordem das palavras, com uma discreta abordagem teórica da ordem direta e uma ordem rara no português arcaico. É nesta contribuição lingüística, entre outras, a importância da obra. São discutidas também questões próprias da natureza da teoria literária e da narrativa como discurso modalizante aplicáveis perfeitamente ao corpus analisado , a referência como circunstância, o sistema temporal do verbo a partir do latim e sua implicação no discurso no jogos do tempo do discurso e da narrativa e por fim aborda-se a polifonia discursiva, essência do Orto do Esposo. Os três capítulos se concatenam harmoniosamente no objetivo de revelar a importância da Filologia nos estudos clássicos, como um instrumento poderoso para estes estudos na área da linguagem , retomando a tradição negligenciada por muitos e defendida por poucos. Felizmente, na pós-graduação em Lingüística, Letras e Artes, essa realidade está mudando. Veja-se o que diz o Guia do Estudante Pós-graduação & MBA, edição 2005, p.38: Talentos de norte a sul 21 Os horizontes do país ficaram mais amplos. Já não é preciso morar na Região Sudeste para ter acesso a uma boa formação nos muitos campos de estudo que compõem esta área. A matéria destaca os estudos clássicos em Letras da UFRJ de letras clássicas e vernáculas, dedicados às línguas e literaturas grega e latina, em que um dos projetos desenvolvidos é a pesquisa de textos renascentistas escritos em latim e outra linha pesquisa a poesia grega dramática, a lírica e a épica. Neste contexto, a UFPB iniciou em 2004 estes estudos de mestrado na área Linguagem e Ensino, vindo a firmar-se na sua atual linha Literatura e Cultura, enquadrando-se à frente das pesquisas no Nordeste, evidenciando uma verdade já não é preciso morar na Região Sudeste e sobre essa boa formação indicada pelo Guia e tão almejada pelos pesquisadores . Fica registrada assim, a importância dos estudos da Filologia na Lingüística, na Literatura, e na Cultura, para “aqueles” que ainda não se convenceram. Sendo este estudo um convite à abordagem filológica do texto, uma contribuição a todos que se interessarem pelos estudos clássicos em sua difusão e pesquisa . Capítulo 2 Do código de linguagem do Hortus Sponsi: precisando as circunstâncias 2.0.1 Hortus Sponsi: Do lingüístico ao literário inter-relacionados 22 O Orto do Esposo, da literatura medieval portuguesa, é uma das fontes de documentação da religiosidade popular e é um texto multíplice pela sua diversidade de temas e visão de mundo que exprime determinadas circunstâncias. Para Bassetto (2001, p.53) Circunstâncias são todas as variáveis que “estão ao redor” de algo. Situar um documento em seu contexto histórico, cultural, social e político pode facilitar a compreensão da mensagem, esclarecer tópicos e alusões, além de alinhar autor e obra segundo as diversas correntes filosóficas, literárias, políticas etc. aqui também se aplicam critérios internos e externos. Pretende-se “contextualizar” o Orto do Esposo em circunstâncias além de históricas, sociais e culturais via religiosidade que remetem a fontes diversas e fazem destacar valores da sociedade e da cultura medieval portuguesa, caracterizando aspectos lingüístico-literários em interação. 2.0.2 Hortus Sponsi: Biografia de Hortus Para tanto, a biografia da palavra latina Hortus feita por Leão (1961:55) é necessária para compreender sobre seu diferente emprego no tempo e no espaço, quanto ao aspecto semântico : Hortus queria dizer primitivamente, “cerca; depois, propriedade cercada, jardim, horta”; no plural, produtos da horta, legumes. Este significado primeiro, confrontando-se com o título da obra pouco tem a acrescentar .Já em um documento português – Portucaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, doc. n° 127 escrito em latim bárbaro, do século X (980), encontra-se o plural ortos citado pela pesquisadora extraído de José Pedro Machado Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa,Editorial Confluência, Lisboa, 1959: 23 Et nostras uineas iuxta illa ecclesia cum suas aquas et suos ortos. O iuxta posposto não é forma usual do latim clássico . O esperado é que ficasse posicionado após a conjunção coordenativa aditiva et. Como se trata de uma forma escrita em latim bárbaro, já anuncia o posicionamento da ordem das palavras no português a ser formado nos moldes do latim vulgar. Ainda que no recorte feito na sentença por Leão não se sabe o contexto do que vem antes da conjunção et , percebe-se que há nesta passagem a importância de três elementos na cultura portuguesa respectivamente: vinhas, igreja , águas e hortos, ao redor da igreja enquanto instituição. Ou seja, três elementos da natureza, com destaque às vinhas,- terreno onde planta a uva-, águas e hortos. 2.0.3 Hortus Sponsi: Dos elementos simbólicos É preciso entender estes elementos simbólicos na composição do discurso religioso que se vale destes, no caso terra e água para a construção de acordo com as necessidades retórico-discursivas. Traduzindo a sentença temos: Junta às nossas vinhas aquela igreja com suas águas e seus hortos. Em que o elemento natureza “vinhas” junto a “ igreja” se fundissem, como se fosse um só elemento nutridor do corpo e espírito acompanhado das águas e hortos. Sobre a utilização dos símbolos nas religiões , título de artigo publicado no jornal Mundo Jovem Ano XLIII n º 354 de março de 2005, diz Pinheiro; Follmann (2005,p.16): Símbolo é um sinal de reconhecimento. É um código de identificação. Por exemplo, os primeiros cristãos se reconheciam mutuamente pelo desenho do peixe. Em grego, “ICHTUS” significa peixe e forma também as iniciais da expressão: Jesus Cristo, de Deus Filho, Salvador (Iesus Christos Theos Uios Soter) 24 E é esta natureza simbólica que justifica em parte a escolha do Livro I, para corpus, como também fica registrada a modernidade temática colocada pela expressão em torno do nome de Cristo no discurso jornalístico, apropriando-se da etimologia grega do mesmo nome, apresentando uma verdade na qual dificilmente pode-se contestar, destacando-se certos valores expressos na antiguidade clássica , retomados freqüentemente em nossos dias nos diversos discursos veiculados socialmente. Para reforçar este caráter simbólico Do nome de Jesus, há um artigo intitulado As faces de Jesus, assinado por Isabela Boscov, na Revista Veja , edição1783, ano35, n º 51 de 25 de dezembro de 2002, p.90 que trata sobre um dos maiores mistérios ligados a Jesus - Ressurreição: De acordo com Lucas, na segunda vez em que apareceu, comeu até peixe assado. E a etimologia grega do nome Cristo é retomada por ela: Daí o título Cristo – em grego, “o ungido” – ter se agregado a seu nome desde cedo. No corpus em análise em seu capítulo I do sermão ocorre essa imagem sugestiva : Oleo espargido he o teu nome. Ca , asy como o oleo cria e matem o lume e cria a carne e abranda a door, bem asy o nome Jhesu he luz e mãyar e meezinha, ca elle luze quando he preegado e da mantiimẽto a [a ] alma quando em elle cuida e abranda-a e hũta-a quando o chama. Atualizado em: Óleo espalhado é o teu nome. Porque, assim como o óleo alimenta e mantém a luz e alimenta a carne e abranda a dor, bem assim o nome Jesus é manjar e remédio, porque ele brilha quando está pregado e dá alimento à alma quando nela cuida, abranda-a e unta-a quando o chama . Na mesma revista Boscov afirma: 25 Nos primeiros séculos da Igreja, Jesus era quase sempre representado num trono, com uma esfera que simboliza o mundo nas mãos . Era o chamado Pantocrator, a palavra grega para “senhor de todas as coisas”. No sermões do capítulo I e IV do Orto do Esposo, respectivamente, há implícito essa sugestão do Pantocrator: Jhesu Christo, que he começo e fim de todalas cousas o uulto do Senhor uee todalas cousas Sobre esses efeitos estéticos em torno de Cristo, nos dois discursos, explica Boscov: Sob forte influência da filosofia helênica, o que se acentuava aí não era a dimensão humana de Jesus, mas, o contrário, a sua majestade – a garantia de que o mundo seria regido por uma ordem eterna e superior. Sobre a transição da imagem de Cristo entre a Antiguidade e Idade Média, Boscov afirma: Mas o que emergiu dele, nos séculos XII a XIV, é um outro Jesus – o Cristo humano. Vêm dessa época as imagens de Cristo crucificado e a ênfase nas suas chagas, seu sangue e sua dor. É o que se verifica no sermão e o último exemplo respectivamente do corpus, no capítulo I: E este nome tragia Sam Paulo por candea ante os gentiis e ante os reis, onde diz Sam Bernardo: Rogo-te que me digas donde ueeo tanta lux de fe ẽno mũdo seno do nome de Jhesu Christo1 preegado. Atualizado em: 1 B não tem Christo. 26 E este nome trazia São Paulo por candeia ante os pagãos e ante os reis, conforme diz São Bernardo: Rogo-te que me digas de onde veio tanta luz e fé no mundo senão do nome de Jesus Cristo pregado. Enno || nome de Jhesu Christo nado da Uirgem, crucifixo, morto, e que resurgio e sobio aos ceeos, uee! E entom disse Dinis ao cego estas palauras, e o cego logo uyo, e Dinis logo creeo a ffe de Jhesu Christo, e depois foy martir glorioso. Atualizado em: Em nome de Jesus Cristo, nascido da Virgem, crucificado, morto e que ressurgiu e subiu aos céus, veja! E então disse Denis ao cego estas palavras, e logo o cego viu, e Denis logo acreditou sobre a fé em Jesus Cristo e depois tornou-se mártir glorioso. É interessante notar que no mesmo capítulo que abre o livro I estão representadas as duas imagens sobre o nome de Jesus, o Pantocrator e o Humano, marcando respectivamente as dimensões divina e terrestre, construídas em dois parágrafos no sermão, marcando-se assim, o caráter retórico do discurso, que persiste no decorrer da leitura, delineando-se uma estrutura fundamental na pregação. Sobre este duplo aspecto existente no Orto, Boscov diz: A doutrina que foi se cimentando nos primeiros séculos da Igreja ensina que Cristo tem uma dupla natureza: é integralmente divino e integralmente humano. É divino porque é uma das três formas de Deus – a Santíssima Trindade, composta por Pai, Filho e Espírito Santo -, e como tal, existe desde antes da Criação. Jesus é, assim, Deus encarnado em homem, e por ser Filho é que seu sacrifício tem poder para redimir toda a humanidade de seus pecados. Mas Jesus é também humano porque nasceu de uma mulher e viveu entre os homens. E, mais importante, porque se entregou à cruz com um temor e um coração humanos. É de extrema importância para o leitor compreender este aspecto para se ter uma idéia do corpus enquanto construção, na formulação dessas imagens harmoniosas que não se opõem com o objetivo ético e pragmático de ensinar e moralizar. 27 2.0.4 Hortus Sponsi: Sobre a língua literária no século de sua composição Sobre A língua literária no século XV no item fatores educativos e culturais em Portugal diz Paiva (1988, p.9): a) O latim, na época funcionava como língua internacional, servindo de veículo de comunicação da filosofia, da ciência e das letras; por conseqüência, foi um dos elementos mais relevantes da educação e da cultura; b) Na Igreja seu uso já se tornara corrente de há muito e, como a hegemonia do ensino sempre estivera em suas mãos, em todas as escolas monacais e episcopais, o estuda da língua latina tinha presença constante; c) Sobre o ensino durante a Idade Média, registra-se que, em 1269, o abade D. Frei Estevão Martins organizou as escolas alcobacenses, determinando que no mosteiro houvesse aulas de Teologia, Lógica e Gramática (língua latina), não só para religiosos. d) Da Universidade de Coimbra, estabelecida por D. Dinis, em Lisboa, no século XIII, têm-se informes mais circunstanciados por uma carta do rei, datada de 1309, que regulamentava os Estudos Gerais. 2.0.5 Hortus Sponsi: Sobre a importância da Gramática no século de sua composição Sobre a Importância da Gramática, continua Paiva (1988, p.9): a) A iniciação aos conhecimentos elementares da Gramática, nos Estudos Gerais, consistia em aprender a ler e a escrever em latim; quanto à língua portuguesa, 28 embora convertida em língua oficial desde o reinado de D. Dinis, continuava a ser aprendida ; b) A Gramática era, pois, elemento imprescindível no elenco das sete artes liberais que compunham, nos cursos universitários , o Trivium – Gramática, Dialética e Retórica – e o Quadrivium – Música, Aritmética, Geometria e Astronomia; c) Seu estudo desenvolvia-se em dois graus: no primeiro, os alunos aprendiam a ler na Cártula (Cartulla), espécie de cartilha, passavam às Regras, talvez de composição escrita, e , em seguida, ao estudo de sintaxe, nas Partes ou Partes orationis e ao Gaton; d) Deste Gaton há uma tradução castelhana, Castigos e Enxempros de Caton, impressa em 1531. Tratava-se de um manual de sentenças e máximas, que servia ao mesmo tempo de “vocabulário de leitura, de pauta escrita e de coleção de ensinamentos morais”; e) No segundo grau, completava-se a aprendizagem com os “livros maiores”, de nivel mais elevado, todos versando assuntos gramaticais e outros correlatos; f) Quanto aos dois graus, no alvará de outubro de 1357, dirigido por D. Pedro I ao reitor da Universidade de Coimbra, com a determinação expressa de que “bacharéis e escolares” ao darem aulas particulares, só tinham licença de usar os livros “menores”. Para exemplificar e facilitar o entendimento da prática considerada por Paiva nos itens anteriores, no livro I, corpus do estudo, ocorrem duas frases nominais em que os respectivos predicativos do sujeito são elementos da natureza, com valor simbólico: Hic Iesu nomen manducare est Iesu nomen medicina est. Este nome Jhesu he manyar O nome Jhesu he meezinha 29 Em que o primeiro predicativo tem origem provençal, conforme o capítulo anterior, possivelmente da forma latina manducare, e o segundo é originado do latim clássico que resultou na palavra mezinha (“remédio”) do português moderno,conforme Faraco (1998, p.28): latim clássico medĭcīna → latim corrente *medecina → port. pré-histórico *medezina → *meezina → port. proto-histórico meezĩa → port. arcaico meezinha → port. moderno mezinha. Vale ressaltar que esta última forma, a moderna, é dicionarizada, vindo-nos provar que o conceito de palavra arcaica isolada é relativo, pois a forma moderna se deu a partir da queda de um e geminado da forma arcaica . Esta discussão sobre a relatividade do conceito de arcaico será retomada com pormenores, no próximo capítulo. Outra observação pertinente feita por Faraco é que o asterisco precedendo a palavra, em lingüística histórica, indica que se trata de uma forma hipotética, obtida por reconstrução, e não de uma forma atestada em documento. Por este exemplo medĭcīna, segundo Faraco(1998,p.28-29) é possível representar vários dos processos gerais de alterações fonético-fonológicas da longa história latim → português: a) ĭ ( i breve) passa a e; b) ī ( i longo) permaneceu como vogal alta; c) d intervocálico, como outras consoantes sonoras no mesmo contexto , desapareceu; d) k (grafada c) intervocálica seguida de i tornou-se fricativa e se sonorizou, confluindo para z; e) n intervocálica nasaliza a vogal anterior e desaparece; 30 f) no contexto ĩ forte + vogal, desenvolve-se a consoante nasal palatal ň (grafada nh); g) duas vogais idênticas, justapostas pela queda de consoante intervocálica, passam por crase. As alterações fonético-fonológicas do latim ao português garantem a expressividade da frase através dos traços prosódicos e conseqüentemente ela adquire um efeito estético de musicalidade de acordo com a disposição das palavras na frase e oração, ainda que não se perceba tal efeito na prosa. 2.0.6 Hortus Sponsi: Sobre a importância artística de sua linguagem Sobre o fator artístico da linguagem na ordem das palavras, posiciona-se Padua (1960, p.31-34): a) A linguagem é instrumento de arte, e é-o muito principalmente pela colocação das palavras; b) A linguagem realiza sua ação de elemento artístico nas manifestações mais habituais; c) A linguagem, espontaneamente, procura determinadas formas que melhor sirvam a tendência ao Belo,a uma certa harmonia e o mais perfeito equilíbrio; d) A linguagem continuamente transparece um valor musical, e este tem ainda muita importância relacionado com o ritmo - o que há de mais individual e característico nas línguas- conceituando-o com Lerch: é a alternativa de sílabas, palavras ou partes da oração mais fortemente pronunciadas e menos fortemente pronunciadas. O ritmo é considerado agradável quando uma sílaba, palavra ou parte da oração acentuada é seguida de uma ou mais não acentuadas. Porque depois de se ter pronunciado uma sílaba, palavra ou parte da oração forte, a voz está, por 31 assim dizer, gasta. Exige-se uma pausa e esta é feita, desde que uma pausa natural não tenha surgido, por sílabas, palavras ou partes da oração fracamente acentuadas. e) Na prosa, o ritmo passa mais despercebido; no entanto, quando se trata de uma prosa declamada, tem já muito valor, pois as palavras impressionarão correspondente à perfeição rítmica com que foram ditas; f) Quanto às figuras de estilo, encontramos assim construções paralelas, repetições, marcando o desejo de insistir sobre qualquer representação, intelectual ou afetiva; encontramos, outras vezes, construções cruzadas, fazendo salientar noções opostas. 2.0.7 Hortus Sponsi: Sobre a teoria das correspondências Comentando sobre a teoria das correspondências, Gomes (1998, p.19) cita um fragmento da obra Du ciel et de l´enfer do místico sueco, Emmanuel Swedenborg, dizendo que tudo na natureza teria um sentido simbólico e tudo manteria estreita correspondência com o mundo celeste: Todas as coisas que existem na natureza, desde o que há de menor ao que há de maior, são correspondências. A razão para que sejam correspondências reside no fato de que o mundo natural, com tudo o que contém, existe e subsiste graças ao mundo espiritual, e ambos os mundos graças à Divindade. Assim, na literatura medieval, esses predicativos na frase manyar e meezinha possuem uma capacidade sugestiva, dão musicalidade e expressividade à Divindadesujeito, nome Jhesu, garantindo um ideal de mundo medieval, aproximando-se das características do Simbolismo bem posterior, lógico que na poesia. 32 Assinala sobre o Simbolismo, Gomes (1998, p.15) dizendo que a essência misteriosa das coisas só é possível de ser captada pela palavra evocadora, pela palavra que supera a limitação da linguagem comumente utilizada pelos homens. É o que justifica em termos literários, simbolicamente falando o título Orto do Esposo, em que o primeiro Orto refere-se ao mundo terreno e o segundo Esposo ao mundo celeste. E é essa a razão que justifica a biografia do termo que abre este capítulo. Considerando-se o conteúdo da citação de Gomes, filologicamente falando , vale destacar que temos um caminho contrário na escola Simbolista com o método Palavras e Coisas, mais especificamente, como diz Ilari (1999, p.31) que os estudiosos da língua considerem com mais interesse as “ coisas”, em oposição a uma tradição que se preocupou exclusivamente com as palavras. Para o mesmo pesquisador: a onomasiologia, consiste no levantamento de todas as expressões que designam um mesmo objeto ou conceito. Este estudo leva naturalmente a representar o vocabulário como um conjunto de “campos semânticos” estruturados por relações de sinonímia e oposição. Assim, as relações entre manyar e meezinha são “sinonímicas” da expressão nome Jhesu. A onomasiologia para Bassetto (2001, p.76): é o estudo das denominações, se propõe a investigar os vários nomes atribuídos a um objeto, animal, planta, conceito etc, individualmente ou em grupo, dentro de um ou vários domínios lingüísticos. Seus objetivos são, portanto, semânticos e lexicológicos, buscando descobrir os aspectos vivos e as forças criadoras da linguagem. 33 As relações de sinonímia e oposição manifestam-se na estética simbolista para Swedenborg, citado por Gomes (1998, p.20) os animais da terra em geral correspondem às afeições; os que são dóceis e úteis, às afeições boas; os que são selvagens e inúteis às afeições más. Vale frisar que tais relações são bem explícitas e dispostas na estética da literatura medieval nestes pares de opostos. Parece ser esta a utilidade da obra: hũũ liuro dos fectos antygos e das façanhas dos nobres barõees e das cousas marauilhosas do mũdo e das propiedades das animalias. Com essa passagem, citada por Maler (1964, p.21), fica evidente um destaque e conseqüentemente uma preocupação do autor implícita com as propiedades das animalias que para a estética simbolista essas propriedades correspondem às afeições. É interessante notar esta aproximação de duas escolas distanciadas no tempo e no espaço que complementam-se em um eixo temático comum: a questão da divindade e do religioso. Assim, Gomes interpreta Swedenborg, dizendo que descarta a idéia de que os objetos do real tenham um sentido em si; na realidade, não passam eles de símbolos do mundo espiritual, da Divindade. Para Maler (1964, p.21), o autor na composição da obra mistura o profano com o espiritual: trabalhei-me de fazer este liuro das cousas cõteudas ẽnas Escripturas Sanctas e dos dizeres e autoridades dos doutores catholicos e de outros sabedores e das façanhas e dos exemplos dos sanctos homẽẽs. E co esto mesturey as cousas que me tu demandaste, asy como pude, segundo a bayxeza do meu ẽtendimento e do meu saber. 34 Outros elementos da natureza terra e água são explorados no Livro II em 14 capítulos , em que se pode citar alguns: Cap. III.. Das plantas do horto da Santa Escritura. Exemplo. Cap. VII. Dos frutos do horto da Santa Escritura. Exemplo. Cap. XII. Dos quatro rios do horto da Santa Escritura: Geon, Físon, Tigre e Eufrates. Exemplo. Nota-se que a palavra horto é abundantemente empregada, merecendo uma atenção, pois no prólogo do referido livro há uma comparação alegórica entre a Santa Escritura e o Paraíso Terreal, para poder ajudar o entendimento da expressão Orto do Esposo. 2.0.8 Hortus Sponsi: Sobre mudanças fonéticas no tempo Citando Niedermann, Leão aborda a mudança fonética do vocábulo Orto: no começo do período literário latino, o h era mudo. Justamente por não ser fonema, raramente se escreve na fase arcaica da língua portuguesa: o h que hoje vemos no início de horto e huerto é reconstituição, devida aos estudos latinos que tiveram o apogeu no Renascimento. Renascimento este, em que Maler (1964, p.23) aborda enquanto período em Composição e Fontes do Orto do Esposo: Indiretamente porém podemos dizer que o Orto do Esposo tem um certo interesse pela história da evolução da civilização portuguesa. É que a obra revela uma curiosidade incipiente no público cultivado – e neste público devemos contar a irmã do autor que lhe encarregou repetidas vezes que escrevesse o livro – pelas cousas mararauilhosas do mũdo e das propiedades das animalias, uma curiosidade um apetite intelectual que podemos considerar como anunciador do Renascimento e do Século de Ouro português. É pena que nosso anônimo estivesse ligado demais à sua ideologia teológica para melhor satisfazer o desejo de sua irmã. Voltando-se ao aspecto fonético do termo hortus diz Leão (1961, p.56): 35 O italiano conserva o timbre aberto que o latim vulgar dera ao o breve tônico em português houve metafonia: por influência do u final fechou-se o timbre da vogal tônica hŏrtu->hôrto (...) Em espanhol verificou-se a ditongação da vogal aberta uma das características do vocalismo castelhano: hortu > huerto. Citando Pidal, Leão sintetiza: a série de correspondências fonéticas foi a seguinte: latim clássico ŏ > latim vulgar ó > romance uo, depois ue,contextualizando com Cintra na obra A linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, Livraria Sá da Costa, Lisboa,1959: Nos foros de Alfaiates, antiga vila portuguesa da região de Ribacoa, pertencente a Leão até 196 e só então ocupada por Portugal – foros que remontam à época leonesa – encontra-se um exemplo de uortho, a par de uertho. Já nos foros de Castelo Rodrigo – que, embora também se situem quase no mesmo momento histórico, representam uma mistura do galego-português e de leonês – pode-se ler, várias vezes, orto e, uma vez, horto (devendo-se explicar o h inicial pela presença da grafia latina no espírito do copista). Houve assim, um emprego cultural do termo orto entre o português, leonês e o galego-português que possivelmente influenciou e inter-relacionou as formas de hortunas línguas românicas: ital . orto,fr . ant ., prov. e cat. ort , esp. huerto, port horto(arc. orto),cf. Leão(1961, p.55). Continuando a abordagem dos aspectos fonéticos no Ibero-romance, diz Bassetto (2001,p.271): Na fonética, o português e o galego conservam o sistema de sete fonemas vocálicos, encontrado também no catalão e no provençal, ainda que com menor nitidez e alcance fonológico, particularmente na oposição entre os pares /e/ e /ẹ/ e /o/ e /ọ/. Por manter clara esta distinção, o português e o galego desconhecem totalmente a ditongação espontânea, comum no castelhano (...); observe-se que na Ibéria apenas o castelhano tem essa ditongação. A ausência dessa ditongação e a conservação das vogais finais, em oposição ao catalão, fazem do português( e do galego em parte) a língua mais arcaizante dentre as línguas da região. 36 É desta língua arcaizante e conservadora nos aspectos fonéticos, que foi composta com uma grafia também fonética, o discurso religioso no Orto do Esposo, justificando assim, o título da dissertação – O discurso religioso arcaizante em o Orto do Esposo: uma abordagem filológica - vindo chamar a atenção para a sua singularidade de obra enquanto código de linguagem por possuir diversos arcaísmos lingüísticos relevantes no estudo de uma variedade lingüística do português medieval que de certa maneira perdura no falar de certos grupos da zona rural e merecem um tratamento especial pelo pesquisador. 2.0.9 Hortus Sponsi: Do seu “religioso” Vale salientar que para Jung citado por Nichols (1999, p.297) a origem latina da palavra “religioso” significa considerar cuidadosamente. Dentro deste ponto de vista, a abordagem filológica também seria essencialmente um labor religioso, não pela doutrina religiosa em si, mas sim, pelos cuidados que o pesquisador deve ter e qualidades que deve possuir na análise dos fatos. Ao se falar no discurso religioso, Leão (1961,p.57) cita o emprego de Hortus no evangelho de São João, na Vulgata: Haec cum dixisset Iesus , egressus est cum dicipulis suis trans torrentem Cedron, ubi erat hortus in quem introivit ipse et discipuli eius . Traduzido por: Como tivesse dito Jesus essas coisas, ele saiu com seus discípulos pela torrente Cedron, onde havia um horto no qual ele mesmo entrou com seus discípulos. 37 É interessante perceber que até neste trecho da Vulgata os elementos terra – horto – e água – torrente Cedro – estão harmoniosamente dispostos na composição do discurso especificando ao nomear a torrente onde havia um horto. Quanto ao emprego de Horto na literatura medieval portuguesa Leão prossegue: Horto teve emprego metafórico na literatura medieval portuguesa, em obras de tendência moralizante, coletâneas de exemplos e milagres, como o Orto do Esposo. A imagem se fazia, também, à custa de outras palavras semanticamente aparentadas (...) A razão do título o próprio autor anônimo explica: E puge nome a este liuro Orto do Esposo, scilicet Jhesu Christo, que he esposo de toda fiel alma, porque asy como emno orto ha heruas e aruores e fruitos e especias de muytas maneyras para delectaçõ e mãtimẽto e meezinha dos corpos , bem asy em este liuro som conteúdas muitas cousas pera mãtimẽto e deleitaçom e meezinha e cõsolaçõ das almas [dos homẽẽs] de qualquer condiçom Para Maler (1964,p.22), a palavra hortus e sinônimos empregava-se muito amiúde como título de compilações de diferentes classes (...) e Esposo indica claramente o cunho religioso e místico que o autor quis dar à obra inteira. Para Leão (1961,p.58), o horto é, pois, o próprio livro, coleção de bons exemplos que a alma vai colher, para deleite e sustento. A metáfora não foi dicionarizada. Percebe-se que o conceito de Leão foi fidedigno ao trecho acima no aspecto semântico-lexical e Maler foi mais específico quando restringe Hortu como título de compilações de diferentes classes. Levando-se em consideração os dois posicionamentos pode-se afirmar que o Orto do Esposo é um livro que foi elaborado com fins doutrinários por um autor anônimo que evocou diversas vozes de materiais sacados de diversas fontes, isto é seria uma obra polifônica em que fosse construída textualmente em linguagem simples a 38 palavra de Jesus, que he esposo de toda fiel alma, assim, metaforicamente falando o Esposo seria uma imagem alegórica do próprio Jesus , e o Horto seu livro, voltado aos homens de qualquer condição, ou seja a humanidade. Modernamente, esta metáfora de Jesus como esposo é reforçada na modernidade em uma encíclica papal Mysterĭum Fidĕi, O mistério da Fé, registrada e traduzida por Rónai (2002, p.113): Mysterĭum fidĕi, ineffabĭle nempe Eucharistĭæ donum, quod a Sponso suo Christo tamquam immensæ charistatis pignus accepit, Catholĭca Ecclesĭa velŭt thesaurum, quo nihil pretiosĭus, sancte iugĭter custodivit eique novam solemnissĭmamque fidĕi et cultus exhibŭit in Concilio Vaticano II professionem . De Cristo, seu esposo, a Igreja Católica recebeu a inefável dádiva da Eucaristia, Mistério da Fé, o mais precioso dos tesouros, testemunho da caridade imensa, tesouro que ela guardou com suma veneração, tributando-lhe nova e solenissima profissão de fé e de culto quando do Concílio Vaticano II. O contexto o próprio Rónai esclarece: Primeiras palavras de uma encíclica do Papa Paulo VI sobre a doutrina e o culto da Santíssima Eucaristia datada de 3 de setembro de 1965. No Orto do Esposo, a imagem de Cristo como esposo, aparece no sermão do capítulo quatro, quando o anônimo cita Salomão: Outrossy, este nome Jhesu he espantoso, porque ha en sy poderio e dereytura, e porem aquelles que som direytos amã Jhesu Christo, onde diz Salomõ2 ẽnos Cantares do Amor, falando do esposo Jhesu Christo: Os que som direitos amam ty3. Atualizado em: Também este nome Jesus é espantoso, porque há em si poderio e retidão, e por isso aqueles que são direitos amam Jesus Cristo, onde diz Salomão nos Cantares do Amor, falando do esposo Jesus Cristo: Os que são direitos amam a ti. 2 3 B Salamõ. B a ti, mas a foi entrelinhado por outra mão. 39 Não é por acaso que o autor anônimo dedicou após o prólogo, o livro primeiro, composto de cinco capítulos intitulados Do nome de Jhesu atualizados neste trabalho no capítulo anterior, pois esta metáfora Mysterĭum Fidĕi é constantemente retomada nos discursos não só religiosos, como também na atualidade jornalística. Em termos macrotextuais pode-se denominar o Orto do Esposo como texto multíplice,conforme Calvino (2002,p.132), que substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo. Este é um conceito moderno, como também é moderno o termo que Maler (1964:22) emprega ao tratar-se da cultura, da leitura e da fama de erudição do autor anônimo ao chamar de divulgação científica a obra. Este termo foi bem empregado pois, basta o leitor consultar o vol. III de Maler sobre a composição e Fontes do Orto do Esposo para se ter uma noção da grandiosidade e da riqueza do material que o anônimo teve à sua disposição para compor a obra . Tanto isso é verdade que o próprio Maler afirma: o Orto do Esposo é um típico representante do gênero ascético moralizante e caracterizado por uma certa tendência didática e enciclopédica. 2.1.0 Hortus Sponsi: Do seu gênero e estudos retóricos Quanto ao gênero da obra: o Exempla, bem delineado com o Sermão e os Exemplos, posiciona-se Reboul (2000, p.57) na Idade Média vai constituir-se uma nova retórica da narração; desliga-se do gênero judiciário, mas insere-se na da pregação, com os exempla, histórias geralmente fictícias que ilustram o tema do sermão. Sobre a maneira de como eram os estudos de retórica , citando Carvalho, afirma Paiva (1988,p.16): 40 Os estudos de retórica a serviço da religião faziam-se quer pela leitura dos clássicos, quer através de sermonários, repertórios de textos, coletâneas de exempla (exemploshistorietas, apólogos, parábolas ,fábulas etc e artes praedicandi (artes de pregar) . Há uma metáfora com Hortus ,- Hortus conclusus - no item c. Escola e Educação do tema maior Conhecimento, Educação e Instrução no Dicionário de sentenças gregas e latinas de Tosi (2000,p.180) que significa Jardim cercado: Essa expressão é usada atualmente para indicar um campo restrito de trabalho intelectual, em que determinada pessoa é ciosa especialista; além disso, em italiano,Coltivare il suo orticello [cultivar o seu jardinzinho] é usado para quem cuida com inigualável competência de um setor específico, sem grandes aberturas mentais. Pode-se afirmar que o autor do Orto apear de anônimo, cultivou seu jardinzinho pois para Maler deve ter tido uma cultura de certo nível, por dispor de uma biblioteca bastante rica e variada, composta pelo menos de algumas das obras mais necessárias para uma orientação na cultura daquela época. Para Maler(1964,p.21): Havia nesta biblioteca livros sobre a história da Antiguidade e dos tempos coetâneos, havia ali vários tratados de caráter religioso, estudos de filosofia e ciências naturais, coleções de anedotas e lendas piadosas, florilégios de autoridades clássicas e patrísticas, etc. Assim, não se pode refutar a possibilidade do autor ter sido um especialista . Maler levanta a hipótese dele ter desempenhado no mosteiro de Alcobaça o magistério.Por ter-se perdido os registros dos membros do convento é impossível averiguar esta suposição. Destacando o convento de Alcobaça – possível lugar onde o autor possivelmente teria sido professor, diz Hauy (1989,p.27-28): 41 Antes do século XIII, além dos cartórios, só nos conventos se permitia o trabalho de produção dos manuscritos. Em Portugal, os conventos com oficinas de manuscritos foram principalmente os de Lorvão, Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça. Neste último formou-se a maior livraria medieval portuguesa. Representaram também esses conventos os focos de uma atividade cultural importante, a que se denominou literatura médio-latinista, monástica ou clerical, responsável pela tradução do latim, de obras religiosas, morais e didáticas. Contextualizando a língua literária no século XV, e conseqüentemente relacionando língua e cultura no desenvolvimento da prosa, e mostrando o objetivo específico dos mosteiros de Alcobaça e Santa Cruz na época, destaca Paiva (1988, p.9): Para o desenvolvimento da língua da prosa contribuíram diversas fontes, entre as quais as mais importantes foram as que resultaram de traduções do latim, feitas por religiosos, principalmente, dos mosteiros de Alcobaça e de Santa Cruz, centros afamadíssimos de cultura. Destinadas a instruir e edificar os fiéis sobre assuntos religiosos, e já não entendendo eles o latim, estudado e conhecido, na época, apenas pelos clérigos, tais traduções foram de suma importância para o enriquecimento da cultura e da língua, mormente pelo fato da alargarem o vocabulário, fornecerem exemplos de construção sintática e de tipos de frase, além de outros processos de ampliação de capacidade expressiva. Já em Maler(1964, p.34) a habilidade do anônimo como tradutor: resulta então que o seu domínio do latim, como era de esperar ,é respeitável(...) e com atenção à forte dependência das autoridades na Idade Média também não se pode excluir a possibilidade de que o tradutor haja preferido seguir a expressão lingüística do seu modelo literalmente, até com o perigo de não serem compreendidas as suas palavras. Abordou-se a questão da competência do autor em uma área específica. Houve casos em que o autor não teve grande abertura mental haja vista que nos meados do século XIV, em razão de diversos acontecimentos históricos, o galego-português cedeu lugar à língua portuguesa. Cf. Paiva(1988, p.8), tendo que compor sua prosa, seguindo seu modelo e estilo pessoal. 42 A passagem que permitiu “periodizar”o Orto do Esposo segundo M. Martins, citado por Maler (1964,p.17) é a seguinte: aas vezes o aleuãntamento do poboo destrue e desfaz os officiaes e os poderosos. E como prova disso acrescenta:Esto se faz cada dia, e poucos anos ha que uimos esto com nossos olhos ẽ estes regnos de Portugal depois da morte delrey dom Fernando. Isto significa que o autor anônimo não estava tão ligado assim à sua ideologia teológica para melhor satisfazer o desejo de sua irmã.,ou seja, posicionou-se politicamente apesar da forte dependência das autoridades da Idade Média, o que fazse necessário transcrever-se literalmente de Maler a nota de rodapé: A seguir, o autor fala em Pedro o Cruel de Castilha e é interessante observar como, em meios clericais portugueses, se julgava a política deste rei. Assim, como escritor e tradutor, nosso anônimo não era “alienado” politicamente, então a questão de estar ligado demais à sua ideologia teológica dito anteriormente por Maler (1964,p.23) é relativa ,pois o autor não podia se expor ao estender-se no assunto por possível represália das autoridades da Idade Média: Baseando-nos na argumentação do Orto do Esposo, sobre a pessoa do seu autor, este permanece anônimo. E não é uma perda muito sensível. Porque do ponto de vista literário e histórico o seu livro carece de toda a originalidade. Foi composto por um homem que mostra na sua obra pouquíssimo interesse pela sua época e que por isso não nos ensina nada sobre ela. Fechava os olhos a tudo que o rodeava. (...) Só por acaso deixa escapar a alusão que nos permite datar o livro. A alusão histórica referida por Maler (1964, p.17) atualizada é : as vezes o levantamento do povo destrói e desfaz os oficiais e os poderosos. Isto se faz cada dia, e a poucos anos vemos isto com nossos olhos nestes reinos de Portugal depois da morte do rei D. Fernando. 43 Foi esta situação político-historica que permitiu precisar de certa maneira o término da composição do Orto do Esposo: Temos, pois, por esta alusão à sublevação do povo contra a rainha D. Eleonora Telles, a certeza de que o Orto do esposo foi terminado o mais tarde por volta de 1390, provavelmente na segunda metade da década 1380-1390. Sobre não traçar limites rigorosos entre os diversos períodos da língua portuguesa Hauy (1989, p.19),citando respectivamente Vasconcelos em Lições de filologia portuguesa e Huizinga em O declínio da Idade Média, aborda: Uma língua não nasce em dia e hora certa, nem evoluciona, num momento, de um estado a outro (Vasconcelos).Todas as vezes que se quis traçar uma linha nítida de separação entre a Idade Média e o Renascimento, pareceu necessário ir fazendo recuar essa demarcação. Foi-se verificando que já existiam desde o século XIII as idéias e as formas que se estava habituado a considerar características do Renascimento. E por outro lado o Renascimento, quando estudado sem idéias preconcebidas, encontra-se cheio de elementos cujas características são indubitavelmente medievais (Huizinga). Sabendo do término da composição obra, pode-se afirmar que o Orto do Esposo é uma obra de transição tanto lingüisticamente como no âmbito literário, embora ela seja classificada simplesmente como prosa doutrinal por Spina (1961,p.11): Entre a produção poética trovadoresca e a dos poetas palacianos do Canc. Geral medraram outras formas literárias e outras individualidades, mas de importância secundária: a prosa doutrinal de caráter religioso em fins do século XIV e princípios do século XV, cujas obras mais representativas são o Orto do Esposo, o Boosco Deleitoso e o Livro da Corte Imperial.. A respeito da prosa, em outro momento, distingue as novelas de cavalaria e tratados doutrinais da caráter religioso, posiciona-se ao emitir um juízo de valor Spina (1961,p.19): A prosa, que ensaia literariamente seu aparecimento em fins do século XIV e princípios do século seguinte, surge representada, nesta primeira época, pelas novelas de cavalaria e pelos tratados doutrinais de caráter religioso; uma, literatura de ficção, importada; outra, literatura apologética e didática; aquela mais importante do que esta do ponto de vista estético; mas ambas produção anônima. 44 Se o Orto do esposo é desprovido de valor estético ou literário; lingüisticamente , para Maler(1964, p.36)não o é: Seja como for, o estudo da língua do Orto do Esposo não é desprovido de interesse, sendo esta prosa uma das primeiras tentativas para formar da língua portuguesa o instrumento flexível que devia chegar a ser no Renascimento. Silva Neto (1970, p.417) parece ter a mesma convicção da importância do estudo da língua no Orto do Esposo, porque, em termos numéricos, dos cinco exemplos de arcaísmos mais expressivos, ele retirou quatro presentes na obra , em que o primeiro caso de “arcaísmo” analisado, o substantivo çopo, “coxo”, faz parte do corpus em análise: O nome de Jhesu he de muyta uirtude, ca este he o nome que deu uista aos cegos e ouuydo aos surdos e o andar aos çopos4 e fala aos mudos e uida aos mortos, e todos o poderio || do diaboo afugentou dos corpos a uirtude deste nome Jhesu. Atualizado em: O nome de Jesus é de muita virtude, pois é este o nome que deu vista aos cegos e ouvidos aos surdos e o andar dos coxos e fala aos mudos e vida aos mortos, e afugentou dos corpos todo o poderio do diabo em virtude deste nome Jesus. Para o leitor, o substantivo çopo “coxo”, possivelmente causará estranheza, embora este substantivo seja dicionarizado. Assim, não seria um arcaísmo, por estar presente no português moderno, vindo reforçar a tese de que não há arcaísmo referente à palavra e esse conceito é relativo, conforme visto anteriormente. Para algumas comunidades rurais, esta palavra é de uso corrente na oralidade, podendo estar em desuso em outras comunidades. 4 em B outra mão riscou copos e escreveu por cima coxos. 45 Observando-se a nota de rodapé no manuscrito B, forçaria uma atualização para “corpos”, pela falsa analogia com copos, ou pela palavra corpos estar presente após o verbo afugentou, pois a repetição do léxico é freqüente na literatura medieval na mesma oração. É por esta razão que foram mantidas e corrigidas todas as notas de rodapé, para que o leitor tenha discernimento da variação lexical, enriquecendo seu domínio vocabular.Caso desconheça a palavra, pode perfeitamente consultar o glossário do editor ou qualquer dicionário moderno de português para constatar que há esta forma coxo para “manco”. Vale destacar que essa palavra é de uso regional no nordeste brasileiro, vindo reafirmar que a questão do arcaísmo é mesmo relativa, dependente da cultura e mundividência do leitor. 2.1.1 Hortus Sponsi: Da interação texto e leitor Ao apresentar uma posição teórica entre a comunicação que se estabelece entre texto e leitor, Olmi (2001, p.32-3) cita M. Coulthard (1992): ao produzir um texto que poderá ser lido por milhares de leitores, o autor não cria para nenhum desses leitores reais. Pelo contrário, ele constrói um leitor ideal em sua mente, atribuindo-lhe o conhecimento de fatos, a memória de certas experiências , suas preferências ou seus preconceitos e um determinado nível de competência lingüística. Excetuando-se as autoridades da Idade Média, o leitor ideal da obra seria uma possível irmã – companheyra da casa diuinal e hũanal -que seria uma freira cf. M. Martins, Um tratado medievo-português do Nome de Jesus, in Brotéria,50 (1950), citado por Maler(1964, p.22) que adverte: Poder-se-ia objetar que não se deve tomar literalmente aquela asserção do livro lhe ter sido encargado por uma sua irmã. 46 Sabendo-se que o plágio era na época do Orto do Esposo um procedimento absolutamente natural e espalhadíssimo, não é impossível que até a pretensão de que o Orto do Esposo devia o seu nascimento à requisição repetida duma irmãã e conpenheyra da casa diuinal e hũanal pudesse ser tomada pelo autor nalguma fonte. Porque sabemos que na livraria dos monges de Alcobaça figurava um livro intitulado Castello perigoso, do qual existem hoje dois mss. Na Bibli. Nacional de Lisboa. Esta obra mística foi acabada em 1368 (v.J. Leite de Vasconcellos, Crestomatia arcaica, pág 57) e esteve portanto ao alcance do autor do Orto do Esposo; seria singular que a não tivesse lido. Ora bem, do Castello perigoso, ou melhor, do seu original francês Chasteau perilleux, talvez também conhecido do autor do Orto do Esposo.(...) Poderia ser que a pretensão exposta no prólogo de que a obra foi escrita para uma irmãã e conpenheyra da casa diuinal e hũanal do autor, pera leeres e tomares espaço e solaz ẽnos dias em que te cõuem cessar dos trabalhos corporaes, não seja mais do que um plágio, sem fundo real .Parece-nos difícil crê-lo, mas também não temos a possibilidade de refutar tal suspeita. Continuando o raciocínio sobre texto e leitor, diz Olmi (2001,p.33): A partir desse momento, todos os recursos expressivos utilizados pelo autor serão selecionados em virtude desse leitor ideal, de forma que todo texto, ao ser concluído, definirá seu leitor ideal. Por esta razão, Coulthard define o tradutor como alguém que, partindo de um texto inacessível a um determinado grupo de leitores, tenta produzir um novo texto que seja acessível a esses leitores. Vista por esse ângulo, a tradução pode dar-se não só de uma língua para outra, mas também de forma intralingüística . Isto pode ocorrer com textos arcaicos(...) que não podemos tomar aqui como traduções, no sentido restrito do termo. Maler refere-se sobre a curiosidade do público cultivado incluindo o da possível irmã, cita o Orto do Esposo como pertencente aos começos da literatura didática portuguesa, para ele quase o único mérito do livro. Porém, o mais relevante em seu comentário é a afirmação de que a obra gozou de certa popularidade no séc. XV. Consta-nos, por exemplo, que el-rei D. Duarte possuía um exemplar da obra, e outro o Condestável D. Pedro. Implicitamente, Maler (1964,p.24) preocupasse com as relações texto e leitor. Difundidas muito tempo depois pelos pressupostos da Estética da Recepção , iniciada na Alemanha, em que defende a idéia em termos gerais de que o sentido de um texto é a experiência do leitor. 47 Maler levanta, em nota de rodapé, a hipótese de que a obra também pode ter contribuído à popularidade da obra a abundância das citações de autoridades clássicas. Assim não se pode excluir a possibilidade de que o Orto do Esposo tenha exercido certa influência literária e cultural, mas tal influência não se pode demonstrar com certeza. É exatamente este alcance no âmbito literário que somente estudos sobre a receptividade da obra , não foi possível verificar e mensurar. Essa influência literária e cultural, diz respeito à Estética da recepção, na qual, precisamente, nos diz Eagleton (1997,p.102): A mais recente manifestação da hermenêutica na Alemanha é conhecida como a “ estética da recepção”, ou “teoria da recepção”(...) A teoria da recepção examina o papel do leitor na literatura e, como tal, é algo bastante novo. De forma muito sumária, poderíamos periodizar a história da moderna teoria literária em três fases: uma preocupação com o autor (romantismo e séc. XIX); uma preocupação exclusiva com o texto (Nova Crítica) e uma acentuada transferência da atenção para o leitor, nos últimos anos. O leitor sempre foi o menos privilegiado desse trio – estranhamente, já que sem ele não haveria textos literários. 2.1.2 Hortus Sponsi: Do autor anônimo como tradutor Sobre a questão da tradução e do autor do Orto do Esposo como tradutor posiciona-se Maler em dois momentos: Apesar de sérios esforços não achei nesta literatura nenhuma obra da qual o Orto do Esposo seria uma tradução, e deve-se descartar-se tal suspeita(...).Consta-nos que o Orto do Esposo é tradução, não de um livro inteiro mas sim de um sem-número de citações mais ou menos longas tomadas de livros e compilações compostos pela maior parte em latim. No Manual de Filologia Portuguesa, a respeito da Publicação de textos, posiciona-se sobre o Orto do Esposo, Silva Neto (1977, p.206): Orto do esposo, tradução ( ? ) portuguesa de Fr. Hermegenildo de Tancos, manuscrito do códice alcobacence n º CCXXIII ant. – 198 mod., da Biblioteca Nacional de Lisboa, fls 1- 1555. Publicam-se trechos Teófilo Braga nos Contos tradicionais do povo português, Lisboa, 1915, p. 8-9 da 2a. ed., e J. J. Nunes na Crestomatia Arcaica,Lisboa, 1932, p. 52-53. A respeito desse texto medieval cumpre ler o substancioso artigo do Pe. Mário Martins na Brotéria,XLVI, 48 1948, p.164- 176. Publicou uma edição crítica o lusófilo sueco Bertil Maler. É exatamente a edição crítica de Maler que está sendo levada em consideração para análise. Até o presente momento, não se tem outra informação se há uma outra edição crítica da mesma obra feita por outro editor, apesar de esforços neste sentido. Vale salientar também a questão da dúvida que é evidenciada por Silva Neto na questão de o Orto ser uma tradução portuguesa feita por Hermegenildo de Tancos. No posicionamento de Maler há uma ambigüidade sobre este aspecto: ora negando, ora afirmando que é tradução não de um livro inteiro mas sim de um semnúmero de citações mais ou menos longas tomadas de livros e compilações compostos pela maior parte em latim. Parece ser essa idéia truncada de Maler que justifica o uso da interrogação após a palavra tradução na informação de Silva Neto. Para clarear a questão do ser ou não tradução: foi dito anteriormente que o autor escreveu sua obra através de diversas fontes para as quais, ele teve de contribuir com seu estilo inovando lingüisticamente o latim aos moldes do português. Só que há um detalhe: as “traduções” foram compostas no nível da frase, da sentença como se fosse uma colcha de retalhos a que o autor deu uma costura pessoal dispondo no texto um estilo evocado de várias vozes e não de uma única. Assim , a obra não pode ser considerada como tradução no sentido específico do termo. Sobre o autor , exímio tradutor de latim, continua anônimo e esse Hermegenildo de Tancos a que Silva Neto se refere, seria o copista para Maler. A própria palavra tradução traz modificações semânticas no tempo e no espaço da antiguidade aos dias atuais. A este respeito diz Olmi (2001,p.69): Já temos o latim (interpres, interpretari) que assimila no mesmo termo a operação realizada sobre a modalidade oral e escrita. O término da latinidade marcará aproximadamente a distinção específica entre o intérprete que opera sobre a língua e o tradutor que trabalha na língua escrita. Essa 49 distinção é válida até hoje, pois trata-se de atividades bem distintas que operam em bases sempre mais diferenciadas, até opostas ou contraditórias. O período da latinidade, posterior ao fonético tratado no início do capitulo anterior deste trabalho, é chamado de etimológico por Vázquez Cuesta , Luz, (1971, p.370): O período etimológico, ou melhor dito pseudo-etimológico, é pois a adaptação da ortografia grega e latina que se levou a cabo com um total depreciação pela fonética destas línguas e em ocasiões com pedante ignorância, caracterizando-se pela tendência em deixar a escrita da pronunciação para fazê-la retroceder até a sua origem. Ainda que esta prática havia começado já bastante antes em um pequeno grupo de palavras e especialmente em obras traduzidas do latim (escripto por escrito, feicto por feito, nocte por noite, reigno por reino), é com os escritores e impressores do Renascimento que alcança o máximo vigor, perdurando, no entanto, até quase nossos dias. Foi exatamente a escrita etimológica que praticou o anônimo produzindo uma obra pelo seu próprio punho utilizando-se na escrita uma ortografia ou voz fonética, com inovações na língua portuguesa na transposição de palavras do latim ao português que no processo de leitura pode-se perceber e caracterizar muitas formas de latim modificado , ou seja, formas conservadoras na escrita de determinadas palavras, embora o período fosse fonético. Por isso, deve-se ter cautela ao tratar sobre periodização de uma maneira rígida. Para Maler (1964, p.34) por meio da comparação com o latim, podemos ver de vez em quando como o tradutor pugna por dar voz portuguesa a uma voz latina que ele não podia ou não se atreveria a trasladar tal qual. Assim para traduzir ineffabilis não pode achar melhor do que que ele nõ sabia falar nem dizer. A referida passagem refere-se ao penúltimo exemplo do capítulo I do corpus: E emduzia os outros que creessem aquello meesmo, marauilhando-sse muito como se uia assy mudado e dizendo e jurando que era mudado e tragido aa ffe de Jhesu Christo per hũa uirtude que el nõ sabia falar nem dizer. E asy foy fecto fiel per este nome Jhesu. 50 Sendo atualizado assim: E induzia os outros que naquilo mesmo, maravilhando-se muito como tinha mudado e dizendo e jurando que estava mudado e trazido à fé de Jesus Cristo por uma virtude que ele não sabia falar nem dizer. E assim foi feito fiel por este nome Jesus. Se respeitarmos e conservarmos a voz latina ficaria: E induzia os outros que naquilo mesmo, maravilhando-se muito como tinha mudado e dizendo e jurando que estava mudado e trazido à fé de Jesus Cristo por uma virtude inefável. E assim foi feito fiel por este nome Jesus. Percebe-se nesta passagem que o autor fez uma escolha tradutória, preferindo substituir a palavra do latim ineffabilis > port. inefável, que quer dizer inexprimível; por uma oração introduzida pelo pronome que: que el nõ sabia falar nem dizer, com valor semântico de explicação e reforço pela redundância (falar...dizer). Assim, fica claro que foi possível no período do português arcaico, aplicar formas analíticas a partir de uma única palavra sintética , no desenvolvimento de um raciocínio que poderia ficar incompreensível ao leitor, se fosse conservada o sintetismo da palavra . Em Fontes do léxico português, de acordo com Vázquez Cuesta; Luz, (1971, p.285): o núcleo principal do vocabulário português está constituído por palavras que são provenientes do latim. Destas, umas entraram em época remota – apreendidas diretamente dos lábios dos colonizadores pelos primeiros habitantes da Península – e outras foram tiradas dos escritores clássicos e introduzidas artificiosamente na língua, não sofrendo já nenhuma ou maior parte de alterações fonéticas normais nela. São os chamados latinismos ou cultismos. Há uma introdução rara de latinismo e sobre este aspecto diz Maler (1964, p.36): Só alguma vez é que cremos surpreender nele – o autor – alguma tendência neste sentido, como quando admite tal qual a palavra. 51 Em outras palavras, no exemplo anterior o autor substituiu uma palavra por uma expressão, valendo-se de uma forma inovadora; já no exemplo a seguir ele mantém a forma conservadora da expressividade da palavra latina fluxus > port. fluxo não desenvolvendo em frase ou em expressão desenvolvida, no sermão do capítulo terceiro: Ca este nome, chamado, tyra o temor e da forteleza, refrea a sanha e5 amãsa o jnchaço da soberua e saa6 a chagua da ẽveia e restringe o fluxo da luxurya e apagua a chama della e tempera a sede da auareza e afugenta todo o proydo do deseio de toda torpidade. Atualizado em: Porque este nome chamado, tira o temor e dá fortaleza, refreia a ira e amansa o inchaço da soberba e sara a chaga da inveja e restringe o fluxo da luxúria e apaga a chama dela e modera a sede da avareza e afugenta todo o prurido do desejo de toda torpidade. Sobre o quase único mérito da obra, expresso por Maler de pertencer aos começos da literatura didática portuguesa destacando que do ponto de vista literário e histórico o livro carece de originalidade, já foram feitas anteriormente diversas considerações complementadas na posição de Spina sobre valor estético, etc., sendo difícil e penoso precisar e construir uma abordagem que leve em consideração os pontos de vista de uma maneira integral. É o que justifica a dificuldade de subdivisão deste próprio capítulo, pois não se pode dividir caminhos que percorrem juntos: lingüístico e literário, um desencadeando no outro em conjunto, naturalmente na formação e mudança da língua portuguesa, e na formação de uma língua nos moldes da prosa religiosa didática . 5 6 falta em B. mão posterior modernizou em B saa em sara. 52 Se a obra não possui relevância em um ou outro aspecto, do ponto de vista lingüístico, ela merece destaque, e sobretudo no que diz respeito à construção da frase, que também possui seus aspectos e critérios específicos. Isto será desenvolvido no próximo capítulo. Quanto à construção da obra, posiciona-se Maler (1964, p.36) o autor tinha pouquíssimos modelos vernáculos em que estudar a maneira de expressar um raciocínio um tanto complicado; o que achava ao seu dispor foram crônicas, lendas e talvez alguma narrativa de aventuras, escritas todas elas num estilo que não convinha ao seu propósito. Por conseguinte tinha de elaborar ele mesmo a sua prosa, coisa que seguramente não era fácil. Quando Maler fala de modelo vernáculo, parece dizer respeito implicitamente ao critério lingüístico: questões de escolha e disposição dos textos, tradução de partes dos mesmos, etc, quando se trata do labor literário e da construção e classificação como prosa propriamente dita, entramos no âmbito literário, que em conjunto constituise a essência da filologia de extrair o conteúdo dos textos em sua integralidade, respeitando-se forma em que estes se apresentam, como também a apresentação e construção do seu conteúdo. Parece que é assim que se deve encarar os estudos filológicos na modernidade, observação das variáveis conjuntamente com suas circunstâncias, devendo-se ter cautela na emissão de determinados juízos de valor, e quando emiti-los, deve-se fazê-lo por respaldo teórico consistente e confiável, que convide o leitor a percorrer e entender o raciocínio dos autores e editores das obras, não só aceitando e respeitando os respectivos posicionamentos, mas percebendo outros não vistos na construção de um espírito crítico via leitura, objetivo do ensino de língua e literatura . Este cuidado é requisito de suma importância quando se trata de uma obra religiosa da Idade Média, em que muitos teóricos se mostram preconceituosos não achando relevante estuda-las, e pior colocar os estudos que se voltam a estas obras em uma posição marginal, fato 53 que ocorreu com a Filologia enquanto disciplina e os estudos filológicos e a aceitação e eleição da lingüística . Sobre esta diz Olmi (2001,p.84) Os postulados básicos da lingüística serão certamente de grande utilidade para observar aqueles aspectos detectados em todas as línguas estudadas (alguns milhares até hoje). Apesar de estruturalmente diferentes, todas as línguas possuem um denominador comum: todas querem dizer “ quase as mesmas coisas”. Quase, porque em cada cultura certas “verdades” ou conceitos são vistos sob óticas diferentes: basta observar as formas idiomáticas, os provérbios, as gírias, por exemplo, de modo que o tradutor precisa pôs em ação todo o seu conhecimento lingüístico e cultural voltado para aquela língua, a língua a ser por ele traduzida, assumindo posições e tomando decisões próprias. A observação acima é estendida e valida também ao editor do texto como também ao filólogo analista das edições de textos arcaicos ou clássicos. Há um questionamento sobre o trabalho de tradução que harmoniza-se com o trabalho filológico em Olmi (2001, p.69): Será a exegese religiosa a conduzir o trabalho da tradução para uma definição cada vez mais apurada que terá por base as diversas categorias tradutórias: versão, versão linear, interpretação, paráfrase, passando à retórica formal clássica e sobrevivendo até o início do século XIX, no meio de acaloradas discussões, tendo em vista a natureza do processo que configura um problema duplo: literário e lingüístico. Duplo porque o Orto do Esposo traz questões primordiais de cunho literário, como iniciação à literatura didática portuguesa , recepção da mesma, periodização literária, autoria e outras questões de gênero discursivo; e lingüístico, sobre a formação da língua portuguesa desmembrando-se do galego-português, periodização lingüística, construção das frases e orações no período arcaico, conceito de arcaico , ordem das palavras do português arcaico e etc. A resposta é sim , acrescentando-se o triplo: o filológico, de acordo com a natureza e o tipo de estudo específico empreendido. Foi esse o critério que pesou mais no estabelecimento do livro I, composto de 5 capítulos. 54 2.1.3 Hortus Sponsi: Sobre sua edição corrigida, tendências e critérios O leitor tem em mãos uma edição corrigida, embora Maler (1964,p.5) diga que felizmente, as erratas, na maioria dos casos não prejudicam a compreensão do texto. Foram observadas e feitas as correções propostas pelo editor, tanto nas notas de rodapé como no corpus do texto, em respeito ao leitor ou pesquisador interessado, dispensando-se as diversas consultas em erratas. As correções são necessárias, pois , quanto mais se distanciar do texto, mais erros se cometem, principalmente nas variações de escrita nos manuscritos A e B expressas nas notas. Quanto ao plano da edição de Maler, ele adota para a transcrição do texto as normas aconselhadas por Serafim da Silva Neto e outros. Ideologicamente, essa posição pode perpassar uma tendência conservadora, principalmente sobre a alteração dos elementos fonéticos do texto na grafia. Veja-se o que diz Picchio (1979,p.253): No campo das edições de texto em prosa, a tendência “conservadora” tem um esforço paladino no filólogo brasileiro Serafim da Silva Neto, o qual aceita as normas fixadas já por Leite de Vasconcelos. Sobre a edição crítica do Orto do Esposo adotado especificamente, a pesquisadora não faz nenhum juízo de valor, ela recorda Maler e se refere como edição de prosa religiosa. A propósito dos problemas que dizem respeito aos critérios de publicação, apresenta as tendências, Picchio (1979, p.250): Aqui, como noutros setores, opõem-se , em infindas gradações, os adeptos de duas tendências: da que deseja uma edição textual absolutamente aderente ao original, até no aspecto gráfico, e da que quer um texto que seja inteligível ao leitor moderno, graças a recursos gráficos que 55 não incidam no entanto na específica realidade fonética do texto transcrito. Quanto à fidelidade do texto, a postura seguida por Picchio (1979, p.250) é a de evitar-se o uso do adjetivo fiel, não se posicionando ou tomando partido a favor ou contra certa tendência: Pois ambas as escolas entendem , cada uma a seu modo, ser escrupulosamente fiéis ao original. A primeira na medida em que dele não se afasta a não ser dentro dos limites do indispensável (separação de palavras, desfazer de abreviaturas, adoção da maiúsculas para nomes próprios, pontuação); a segunda porque, considerando o sinal gráfico estreitamente ligado a uma realidade contingente, apresenta ao leitor de hoje um texto transcrito de tal modo que, no caso,hipocritamente convencional, de o autor poder ouvir a leitura. Sobre essa “peleja” das tendências, diz Picchio (1979,p.251): Objetam os adeptos da primeira tendência à segunda: um texto vale como realidade histórica, simultaneamente fonética e gráfica; qualquer alteração a um arbítrio injustificado e injustificável. Contrapõem os segundos: no momento em que a técnica moderna nos permite reproduzir os textos mecanicamente, qual a vantagem de uma edição crítica que não se distingue praticamente de uma transcrição diplomática? A realidade gráfica é irreproduzível enquanto ligada a hábitos individuais do copista, não reproduzíveis com recursos tipográficos, não esquecendo que ela se destinava antes do mais à leitura, e que essa leitura deve ser facilitada, e não dificultada, pela convenção gráfica. Fechando a discussão, Pichio admite que essas tendências ou escolas nos legaram excelentes e exemplares edições e já estavam condignamente representada em Portugal entre os grandes mestres de começo do século pelo posicionamento das “normas”, a exemplo de Carolina Michaëlis que uniformiza a grafia na edição do Cancioneiro da Ajuda. Quanto às normas conservadoras “opostas” as de Carolina, Picchio (1979,p.252) cita Leite de Vasconcelos: Leite de Vasconcelos é absolutamente explícito na defesa da tese oposta: “No nosso país...está...enraizado o 56 preconceito de que os livros antigos, quando se reimprimem, devem ser totalmente modernizados na fonética e nas flexões, para que o público os possa saborear. Tal preconceito todavia, é imbecil e fútil: é imbecil, porque cada livro representa o estado mental da sua época – e alterar a língua dele corresponde a dar da época idéia falsa; é fútil, porque em Portugal o povo não sabe ler, e as pessoas de pouca ou até mediana instrução não lêem senão jornais de 10 réis e cartazes de espetáculos. A edição de um livro antigo é unicamente destinada a indivíduos de certa educação intelectual, e para que esses entendam o que lerem não se torna necessário cometer barbaridades nos textos”. Espera-se que com essa discussão preencha a lacuna no capítulo anterior deste trabalho, quando foram apresentados o Livro I, composto de cinco capítulos atualizados, e as normas de transcrição sem um comentário que situasse o leitor ou pesquisador interessado a respeito do estabelecimento e das edições de textos antigos portugueses. Assim, recomenda-se ao público interessado, a leitura integral do artigo de Picchio, já citada, intitulado A margem da edição de textos antigos portugueses, respaldado na bibliografia de Maria Adelaide Valle Cintra, na segunda edição da coleção do “ Centro de Estudos Filológicos” de Lisboa . Como também o Plano da edição e Notas Preliminares no Glossário da edição de Maler. Sobre as normas seguidas conclui Picchio: Nos últimos trinta anos, as normas seguidas na edição de textos arcaicos conheceram todas as gradações, desde a fidelidade infiel à infiel infidelidade. Sobre os manuscritos, Maler estabelece o seguinte esquema: O (original perdido) | X (perdido) ⁄ \ A B 57 É de extrema relevância que o leitor se familiarize com as alternâncias de escrita nos manuscritos A e B indicadas freqüentemente nas notas de rodapé, pois podem indicar variações em curso, abrindo uma gama de possibilidades de estudos textuais. Sobre essa área de estudo , diz Faraco (1998, p.120): depreender variações na grafia e na estrutura de textos antigos ou mesmo correções em manuscritos do passado ( o escritor ou copista poderia estar se corrigindo para evitar uma forma estigmatizada em seu tempo) é valioso indicador de uma fase de mudança em progresso no passado e, portanto, pode contribuir para a delimitação de fases intermediárias, iluminando o problema da transição. É por esta razão que houve a necessidade de corrigir-se as notas de rodapé da edição de Maler, como também no próprio corpus e juntamente com as normas de transcrição, de difícil acesso, oferecem suporte aos interessados à análise de variação nos textos históricos, como também uma linha de crítica textual, denominada crítica genética que se vale dos conhecimentos filológicos da Edótica, mas com outros propósitos ligados à gênese do texto e seu processo “psicológico” de criação. Capítulo 1 1.0.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 58 NORMAS DE TRANSCRIÇÃO PARA TEXTOS MEDIEVAIS PORTUGUESES Maria Helena Lopes de Castro, Isabel Vilares Cepeda, Virgílio Madureira, Ivo José de Castro (Lisboa) SUMÁRIO: 1. Vocalismo; 2. Consonantismo; 3 Oscilações gráficas; 4. Intervenções do editor; 5. Particularidades dos textos originais. 1. Vocalismo 1.1 – Vogais simples 1.1.1 – Orais: u e i quando aparecem com valor consonântico, serão transcritas, respectivamente, v e j. Ex.: salvo por saluo ; igreja por igreia. Y: em todos os casos será transcrito i; excepcionalmente, poderá valer j e, como tal, será transcrito. Ex.: mim por mym ; igreja por ygreya. 1.1.2 – Nasais: 1.1.2.1.- em sílaba interior: a) antes de consoante: serão transcritas por vogal seguida de m ou n, mesmo quando no original aparecem representadas por vogal com til. Ex.: campo por campo, canpo ou cãpo, emmigo por ẽmigo ou emmigo; anno por ano ou ãnno, vento por vemto , vento ou vẽto. b) antes de vogal de timbre diferente: serão representadas por vogal com til, quer seja esta a grafia original, quer no texto original a nasalidade esteja representada por uma consoante nasal. 59 Ex.: lũa por lũa ou luna; jejũemos por jejunemos ; ẽader por emader, enader ou ẽader. 1.1.2.2.- em sílaba final: transcrever-se-ão por vogal seguida de m: -ã, -am, -an : -am -ẽ, -em, -en : -em -ĩ, -im, -in : -im -õ, -om, -on : -om -ũ, -um, -un : -um Ex.: pam por pã , pam ou pan; etc. 1.2 – Vogais geminadas 1.2.1.1- etimológicas: serão mantidas em todos os casos em que se encontrarem no texto original. No caso de haver oscilação entre formas que mantêm essas geminadas e outras que as simplificam , conserva-se-á a referida oscilação. Ex.: padeiro, aa << à >>, aaquela << àquela>>, creer ; seerei e serei, etc. 1.2.1.2. – não etimológicas: serão sempre transcritas como vogais simples,mesmo que, para alguns textos, se possa suspeitar que, na intenção do escriba, a geminação representava abertura ou tonicidade da vogal.(Em alguns casos, o fato será devidamente registrado na Introdução.) Ex.: taes por taaes, ó ou oh por oo, doe por dooe, ceo por ceeo, som por soom (< SUM). 1.2.2 – Nasais 1.2.2.1 – etimológicas: 60 a) em sílaba interior, antes de consoante: serão transcritas como vogais duplas, seguidas de m no caso de virem antes de consoante labial, e de n nos restantes casos. Ex.: peendença por pẽedença ou peendença; viindo por vĩindo ou viindo; voontade por võotade ou voontade. Serão porém mantidas oscilações como viindo (vogal dupla seguida de consoante nasal) e vĩindo (vogais geminadas das quais pode ser apenas a primeira, por no manuscrito o sinal de nasalidade vir apenas na primeira das duas vogais). b) em posição final,seguidas ou não de s : serão transcritas por vogal geminada com til, mesmo que no original se apresentem seguidas de m ou n (o til será sobreposto a ambas as vogais): Ex.: cristãa e cristãas, homẽe e homẽes, bõo e bõos, algũu e algũus. Nota – Nos casos da 3a. pes dos verbos creer , leer e veer, por não ser nasal a primeira das duas geminadas, segue-se a norma indicada em 1.1.2.2 Ex.: creem por crẽe, leem por lẽe, veem por vẽe. 1.2.2.2. – não etimológicas: serão transcritas como vogais simples nasais. Ex.: cristãos por cristãaos, ũa por ũua. 1.3 Ditongos nasais, em posição final, seguidos ou não de s: serão transcritos por vogal seguida de o, e ou i com til sobreposto a ambas as vogais. Ex.: irmão por irmaom ou irmaon , homẽis por homeins. 2. – Consonantismo 2.1 – Consoantes simples 2.1.1 – g : 61 a) seguido de e ou i se corresponder à oclusiva, será transcrito gu; se corresponder à fricativa, quando for etimológica, manter-se-á como no original; nos casos em que não o for, será transcrito j. Ex.: Migueel por Migeel; majestade por magestade. b) seguido de a, o ou u se corresponder à fricativa palatal, transcrever-se-á sempre j. Ex.: alojado por alogado, anjo por ango. Se corresponder à oclusiva, será mantido. Os dígrafos gu ou go , nesta mesma posição, com valor de oclusiva, serão reduzidos a g ( ex.: sigades por sigades), a não ser em palavras de étimo germânico (como guardar e goardar, guanhar e goanhar) em que tais letras w ou o corresponde ou pode ter correspondido, a semivogal u. Quando em palavras de étimo germânico, se encontrar o dígrafo go, será este transcrito por gu . Ex.: guardar por goardar, guanhar por goanhar. 2.1.2 – qu, se for dígrafo, seguido de a ou o, será transcrito c . Ex.: ca por qua; cinco por cinquo. 2.1.3. – h: a) inicial etimológico: será conservado, se o original o tiver grafado; se for faltar no original, será restituído. Ex.: haver por aver. Nota: de acordo com a grafia atual, o h inicial etimológico não será restituído em casos como o de erva. b) inicial não etimológico : será suprimido. Ex.: é por he 62 c) se indicar hiato intravocabular mantém-se, seja ou não etimológico. Ex.: Comprehender , veheste; mas desonor por deshonor. d) quando tiver , ou tiver tido, o valor da semivogal i, será mantido: Ex.: termho, saibha, superbha. e) associado a uma consoante: será mantido em lh e nh Nos outros casos, será suprimido (mesmo nos dígrafos greco-latinos th, ch). Quando o dígrafo ch tiver valor de oclusiva velar surda, antes de e ou i , será substituído por qu Ex.: teologia por theologia , arca por archa; querubim por cherubim, monarquia por monarchia. 2.1.4 - j e v , quando aparecerem com valor vocálico, serão transcritos respectivamente i e u. Ex.: ainda por ajnda , uvas por vuas. 2.1.5 – sibilantes 2.1.5.1 – etimológicas : respeitar-se-ão as grafias dos manuscritos mesmo nos casos em que divirjam da atual ortografia. Ex.: çujo; çarrar. 2.1.5.2. – não etimológicas: será restituída a forma etimológica, não se deixando em caso algum de registrar e chamar a atenção, em nota , para a forma do manuscrito. Ex.: serviço por çerviço, acendido por asendido , promessa por promeça. 63 2.1.5.3.- de etimologia e/ou pronuncia duvidosa: manter-se-ão as formas do manuscrito original, com todas as oscilações que nele por ventura se encontrarem. Ex.: mesquinho e mezquinho, cinsa e cinza ; consciência e conciencia , formosa e formossa 2.1.6 – implosivas 2.1.6.1 – etimológicas: serão mantidas, mas não restituídas, se faltarem. scriptura e scritura, sancto. 2.1.6.2. – não etimológicas : suprimir-se-ão: Ex .: escrever por esprepver , damno por dampno , coluna por colupna. 2.2 . – Consoantes geminadas 2.2.1 – em posição inicial: reduzir-se-ão a simples: Ex.: façamos por ffaçamos. 2.2.2.- em posição medial: reduzir-se-ão a simples, exceto ss e rr , com valor, respectivamente, de sibilante surda e de sibilante múltipla. Também se excetuam os casos previstos em 1.1.2.1 a) Ex.: pecado por peccado ; ofereço por offereço. 2.2.3.- R : no interior de palavra, com valor de vibrante múltipla, será transcrito rr: r: no interior de palavra, representando o r múltiplo: será restituída a geminada. 64 Ex.: terria por teria ; terra por terá 2.2.4. – ss e rr : depois de consoante gráfica, serão reduzidas a simples de acordo com a ortografia atual. Ex.: consigo por conssigo ; honra por honrra. 2.3- Grupos de consoantes a) gn: manter-se-á. Se houver alternância com n ou in ,será mantida essa alternância. b) ct, precedido de vogal: transcrever-se-á it ou ut , se a forma vocalizada aparecer documentada, ou a rima o exigir, no texto original. Ex.: noite por nocte ; trautado por tratado. c) pt, precedido de vogal: proceder-se-á de modo análogo ao da alínea anterior. Ex.: aceitar por aceptar ; bautizado por baptizado . No entanto manter-se-á a grafia do texto original em todos os casos em que a natureza e/ou emprego da própria palavra justificar uma hesitação. Ex.: refectoiro; fructuosa. 3- Oscilações gráficas a) nos casos não expressamente indicados, transcrever-se-ão as oscilações que os textos originais apresentarem. Ex.: o caso das vogais geminadas orais não etimológicas, referido em 1.2.1.2 e o caso das sibilantes de etimologia duvidosa, referido em 2.1.5.3. b) no caso em que a mesma palavra apresente oscilação gráfica e abreviatura, esta será desenvolvida segundo a maior freqüência da forma completa. 65 Ex.: capítulo, capitolo; discípulo, discipolo, disciplo; omnipotente, onipotente, õipotente. 4 – Intervenções do editor 4.1.- Separação e reunião de palavras 4.1.1.- Separação: a) de acordo com a ortografia atual, separar-se-ão as palavras que apareçam unidas no texto original. Ex.: a tempo por atempo ; em que se por enquesse. b) formas que na ortografia atual aparecem unidas separar-se-ão para evitar possível ambigüidade de leitura. Ex.: em na por ẽna ou enna, nem ũa por nẽhũa; sam mente por sammente. c) hífen: usar-se-á no caso das apoclíticas. Ex.: di-me por dime ; sai-se <<saiu-se>> por saise d) apóstrofo: usar-se-á em casos de elisão da vogal final de um vocábulo em contato. Ex.: d’ Espanha por despanha. 4.1.2.- Reunião: a) segundo o uso atual, unir-se-ão palavras que no texto original apareçam separadas, a não ser que o sintagma que elas constituem tenha uma valor semântico nitidamente diverso do que tem na língua contemporânea. Ex.: todavia por toda via , com o sentido atual; mas toda via, em duas palavras, com o sentido de <<constantemente>> , << de toda a maneira >>; porem (sentido atual) e por em << por isso>>. 66 b) hífen: utilizar-se-á nos casos consagrados pela ortografia atual. Ex.: ha-de por ha de ou hades ; bem-aventurado por bem aventurado ou bemaventurado. 4.2. – Acrescentamentos, supressões e substituições. 4.2.1. – Os acrescentamentos que o editor do texto considerou necessários serão insertos em itálico, e anotados, na sua leitura crítica: a) acrescentamentos pedidos pelo contexto: Ex.: os seus] o seus b) apoiadas por outro texto: Ex.: eu sei] lac A; eu sei B. 4.2.2.- As supressões consideradas necessárias serão feitas no texto e sempre indicadas em nota: a) supressões pedidas pelo contexto: Ex.: corações] corarações. b) apoiadas por outro texto: Ex.: o mais velho] o mais velhos A; o mais velho B. 4.2.3. – As substituições necessárias serão feitas no texto crítico; a versão do texto original virá no entanto, sempre guiada em nota. Ex.: O caso referido em 2.1.5.2. 4.3.- Maiúsculas: será geralmente seguido o uso da ortografia atual. 67 Ex.: Grecia por grecia ; Deus por deus; etc. 4.4. – Acentuação gráfica: será introduzida apenas: a) nos homógrafos verbais. Ex.: cantara e cantará; b) em esdrúxulos cuja pronúncia possa inspirar dúvidas, em casos como postumária por postumaria. c) na forma é do verbo ser. d) Em alguns outros casos de possível ambigüidade: sô << sob>>, mas so <<só >>. 4.5.- Pontuação: sem deixar de ter em conta, se possível, a pontuação dos textos originais, introduzir-se-á pontuação moderna que facilite a compreensão do texto. 4.6.- Parágrafos: abrir-se-ão sempre que, tal como a pontuação, facilitem a compreensão do texto, tendo apenas em relativa conta os caldeirões dos textos originais. 5.-Particularidades dos textos originais 5.1. – Abreviaturas: serão resolvidas sem qualquer indicação especial. 5.2.- Notas: se pertencerem ao texto original ( o que se verifica pelo contexto e pela letra), serão transcritas no corpo do texto e indicada a sua extensão no aparato crítico; se forem de outra mão, serão apenas transcrita em nota. 68 5.3.- Entrelinhados: se forem da mão que escreveu o original, serão incorporados no texto e indicar-se-á em nota a extensão do entrelinhado; se forem de outra mão, apenas se transcreverão em nota. Ex.: com] m entrel. 5.4.- Rasuras: Serão transcritas no texto, se forem da mão original, e será anotada a particularidade; se forem de outra mão, serão apenas anotadas. Ex.: homẽes] sobre...ras. Este lugar ] entre este e logar, aqueste ras. Rasura aproveitando alguma letra: Ex.: convertudo] u ras. em i Rasura ilegível não emendada: Ex.: os homẽes] entre os e homẽes ras. de n. espaços. Rasura ilegível emendada: Ex.: homẽes] sobre ras. 5.5.- Letras ou palavras riscadas: serão assinadas em nota. Ex.: seta] setas: s risc. 5.6.- Letras e abreviaturas duvidosas ou ilegíveis: as interpretações duvidosas serão assinaladas com ponto de interrogação entre parênteses no texto e indicadas em nota; do que não for possível ler, será indicada em nota a extensão de n espaços. 5.7.- Lacunas: a) as de sentido serão assinaladas no texto por meio de (...), e em segunda ordem de notas será indicado o possível conteúdo delas. 69 b) das lacunas materiais ou espaços em branco será apenas indicada a extensão na primeira ordem de notas: Ex.: os homẽes] entre os e homẽes: lac. de n. espaços. 5.8.- Mudanças de fólio e de coluna: será assinalada por um traço obliqúe, no texto, e na margem interior, pelo número de fólio, seguido, conforme os casos, de uma das letras a,b,c ou d, correspondentes às várias colunas, ou de uma das letras r ou v, correspondentes às páginas. 70 [DO NOME DE JHESU] [CAPITULO PRIMEYRO] Ihesu Christo he uirtude e sabedorya de Deus Padre, e em elle som guardados e escondidos todollos thesouros da sciencia e sabedoria, e porem e elle he guiador dos olhos do coraçom de qualquer que com temor e amor7 do Senhor Deus husa aficadamẽte ẽnas Sanctas Escripturas. E asy como pellas portas do ceeo abertas ouuira o Senhor Deus, que fala con elle pella sua propria boca, porque, quando leemos pellas escripturas de Deus, entom fala Deus a nos, e aprendemos as cousas uerdadeyras, per que somos fectos sabedores em Jhesu Christo, que he começo e fim de todalas cousas. E porem o seu nome glorioso deue seer chamado ẽ começo de toda boa obra, e ẽno seu sancto nome deue o homẽ de fazer toda cousa, onde diz o apostolo: Jrmããos, qualquer cousa que fezerdes, todo fazede ẽ nome do Senhor Jhesu Christo, ẽno qual uiuemos, e em elle nos mouemos e somos. E porẽ ẽno começo desta obra puge o nome de Jhesu Christo, e ẽno seu nome a comecey, o qual nome he muy delectoso, onde diz Jhesu, filho de Sirac: Asi como o mel seera doce a renẽbrãça delle, convem a saber do nome que he Jhesu, que quer dizer saude. Onde diz Sam Lucas ẽnos Autos dos Apóstolos que nõ ha hi saude ẽ outro nehũũ seno em Jhesu Christo. E diz Salamõ emnos Cantares do Amor: Oleo espargido he o teu nome. Ca , asy como o oleo cria e matem o lume e cria a carne e abranda a door, bem asy o nome Jhesu he luz e mãyar e meezinha, ca elle luze quando he preegado e da mantiimẽto a [a ] alma quando em elle cuida e abranda-a e hũta-a quando o chama. E porẽ diz meestre Oda que este nome de Jhesu he oleo espargido ẽnas chagas da jeeraçõ 7 e amor] B e co amor. 71 [DO NOME DE JESUS] [CAPÍTULO PRIMEIRO] Jesus Cristo é virtude e sabedoria de Deus Pai, e em ele estão guardados e escondidos todos os tesouros da ciência e sabedoria, e por isso ele é guiador dos olhos do coração de qualquer que com temor e amor do Senhor Deus usa afincadamente as Santas Escrituras. E assim como pelas portas do céu abertas ouvira o Senhor Deus, que fala com ele pela sua própria boca, porque quando lemos pelas escrituras de Deus, então fala Deus a nós, e aprendemos as coisas verdadeiras, porque somos feitos sabedores em Jesus Cristo, que é começo e fim de todas as coisas. E por isso o seu nome glorioso deve ser chamado no começo de toda boa obra, e em seu santo nome o homem deve fazer toda coisa, onde diz o apóstolo: Irmãos, qualquer coisa que fizerdes, tudo fazeis em nome do Senhor Jesus Cristo, no qual vivemos, e nele nos movemos e somos. E por isso no começo desta obra pus o nome de Jesus Cristo, e em seu nome a comecei , cujo nome é muito deleitoso, conforme diz Jesus, filho de Sirac: Assim como o mel será doce a relembrança dele, convém saber do nome que é Jesus, que quer dizer salvação. Conforme diz São Lucas nos Autos dos Apóstolos que não há salvação em outro senão em Jesus Cristo. E diz Salomão nos Cantares de Amor: Óleo espalhado é o teu nome. Porque, assim como o óleo alimenta e mantém a luz e alimenta a carne e abranda a dor, bem assim o nome Jesus é manjar e remédio, porque ele brilha quando está pregado e dá alimento à alma quando nela cuida, abranda-a e unta-a quando o chama . E por isso diz o mestre Oda que este nome de Jesus é óleo derramado nas chagas da geração 72 humana8, ca a força deste nome Jhesu, que quer dizer saluador, da saude a todalas ẽfirmidades e a todalas chagas da alma e do corpo, de que somos chagados pello peccado dos primeyros padres. E este nome tragia Sam Paulo por candea ante os gentiis e ante os reis, onde diz Sam Bernardo: Rogo-te que me digas donde ueeo tanta lux de fe ẽno mũdo seno do nome de Jhesu Christo9 preegado. E em este nome uẽciam os sanctos ẽmiigos da fe, asy como fez hũũ sancto bispo ẽ hũa desputaçõ, segundo || se contem ẽ este recontamento que se segue. Exemplo. Quando o enperador Constantino veeo a hũa cidade que chama Bisancio, ueerõ hũũs filosafos pera o reprehenderem porque tomara a fe de Jhesu Christo e queryã desputar sobre esto cõ hũũ sancto bispo que auia nome Alexandre . Mais10, porque o sancto bispo nõ auia aquella arte nem tal sciencia pera disputar com os filosafos, tomou fiança ẽ Jhesu Christo. E hũũ daquelles filosafos tomou ẽ sy todo aquel negocio de toda a desputaçom11, e o sancto lhe disse, ante que começasse a desputaçon: Filosapho, eu te mando logo ẽno começo, ẽ nome de Jhesu Christo que nõ fales. E, tanto que esto disse Sancto Aleixandre, logo o filosapho ficou mudo, com a boca çarrada , que mays nõ pode falar, a assy foy uẽẽncido. Exemplo. Em aquelle tempo outrossy, hũũs daquelles filosaphos que desputauã contra a ffe, atreuẽdo-se ẽna sua palaura, que auia muyto aguda, escarnecia dos sanctos sacerdotes. Mais12 hũũ uelho jnnocente e sinpliz nõ quis soffrer a soberua daquelle filosafo e disse-lhe: Oo tu, filosapho, ẽno nome de Jhesu Christo ouue a ensinança da uerdade! Hũũ he Deus do ceeo e da terra e de todalas cousas , que as fez e criou co a uirtude da sua palaura e as firmou com a sanctidade de seu spiritu. Esta palaura e uerbo, que nos chamamos Filho de Deus, auẽdo misericórdia sobre os homẽẽs, 8 B humanal. B não tem Christo. 10 6) B Mas. 11 desputaçom] A desputaçom en sy. 12 B Mas. 9 73 humana, porque a força deste nome Jesus, que quer dizer salvador, dá salvação a todas as enfermidades e a todas as chagas da alma e do corpo de que fomos privados pelo pecado dos primeiros padres. E este nome trazia São Paulo por candeia ante os pagãos e ante os reis, conforme diz São Bernardo : Rogo-te que me digas de onde veio tanta luz e fé no mundo senão do nome de Jesus Cristo pregado. E neste nome venciam os santos, os inimigos da fé, assim como fez um santo bispo em uma disputa, segundo contém esta narração que se segue. Exemplo: Quando o imperador Constantino veio a uma cidade que se chama Bizâncio, vieram uns filósofos para o repreenderem porque tomara a fé de Jesus Cristo e queriam disputar sobre isto com um santo bispo, que se chamava Alexandre. Mas porque o santo bispo não tinha aquela habilidade nem tal cultura para disputar com os filósofos, tomou confiança em Jesus Cristo. E um daqueles filósofos tomou para si a disputa, e o santo lhe disse, antes que começasse a disputa: Filósofo, eu te mando logo no começo, em nome de Jesus Cristo, que não fales. E, tanto que disse Santo Alexandre, logo o filósofo ficou mudo, com a boca fechada, que não pode mais falar, e assim, foi vencido. Exemplo. Naquele tempo, da mesma maneira, uns daqueles filósofos que disputavam contra a fé, atrevendo-se em sua palavra que era muito engenhosa, insultava os santos sacerdotes. Mas um velho inocente e simples não quis sofrer a soberba daquele filósofo e disse-lhe: Oh tu, filósofo, pelo nome de Jesus Cristo, ouve o ensinamento da verdade. Um é Deus do céu e da terra e de todas as coisas, que as fez e criou com a virtude de sua palavra e as firmou com a santidade de seu espírito. Esta palavra e verbo, que nós chamamos Filho de Deus, havendo misericórdia sobre os homens, 74 liurou-[o] s do error ẽ que eram e soffreu e quis nacer de molher e conuersar com os homẽẽs e morrer por elles e vĩĩra outra uez a julguar a uida de cada hũũs . E estas cousas creemos sem mais escoldrinhar. Pois , nõ queyras mais trabalhar em vãão pera destroir esto que auemos por13 fe, nẽ queyras emquerer a maneira per que podem seer estas cousas ou nõ seer. E se me nõ crees, responde a estas cousas. Tanto que esto ouuio o fillosapho, ficou espantado e disse: Creeo. E dou muytas graças a Deus e ao uelho porque o asy14 uẽẽcera. E emduzia os outros que creessem aquello meesmo, marauilhando-sse muito como se uia assy mudado e dizendo e jurando que era mudado e tragido aa ffe de Jhesu Christo per hũa uirtude que el nõ sabia falar nem dizer. E asy foy fecto fiel per este nome Jhesu. Exemplo. Chegou Sam Paulo aa cidade de Athenas. E os grandes filosaphos da cidade desputauã con el sobre a fe de Jhesu Christo. E dise-lhe hũũ filosapho, que auia nome Dignis: Se tu diseres a este cego, ẽno nome do teu deus, que receba uista e ell uir, logo eu creerey. Mais15 nõ huses de palauras magicas, qua per uẽtura sabes tu taaes palauras que am este poderio. E disse Sam Paulo: Pera tu tolheres toda duuida, eu te escreuerey as palauras, e tu as dy ao cego per tua boca e16 ẽ esta guisa: Enno || nome de Jhesu Christo nado da Uirgem, crucifixo, morto, e que resurgio e sobio aos ceeos, uee! E entom disse Dinis ao cego estas palauras, e o cego logo uyo, e Dinis logo creeo a ffe de Jhesu Christo, e depois foy martir glorioso. E asy parece que o nome de17 Jhesu Christo he luz da fe catholica. 13 B per. o asy] B assy o. 15 B Mas. 16 falta em B. 17 falta em B. 14 75 livrou-os do erro em que estavam e sofreu e quis nascer de mulher e conversar com os homens e morrer por eles e vir outra vez a julgar a vida de cada um. E nestas coisas, cremos sem mais examinar. Pois não queiras mais trabalhar em vão para destruir isto que temos por fé, nem queiras indagar a maneira por que podem ser estas coisas ou não ser . E se não me crês, responde a estas coisas. Tanto que isto ouviu o filósofo, ficou espantado e disse: Creio. E dou muitas graças a Deus e ao velho porque assim vencera . E induzia os outros que naquilo mesmo, maravilhando-se muito como tinha mudado e dizendo e jurando que estava mudado e trazido à fé de Jesus Cristo por uma virtude que ele não sabia falar nem dizer. E assim foi feito fiel por este nome Jesus. Exemplo. Chegou São Paulo à cidade de Atenas. E os grandes filósofos da cidade disputavam com ele sobre a fé em Jesus Cristo. E disse-lhe um filósofo, que chamava-se Denis: se tu disseres a este cego, pelo nome do teu Deus, que receba vista e ele vir, logo eu crerei. Mas não uses de palavras mágicas, que por ventura sabes tu que tais palavras têm este poder. E disse São Paulo: Para tu tirares toda dúvida, eu te ditarei as palavras , e tu as dê ao cego pela tua boca, desta maneira: Em nome de Jesus Cristo, nascido da Virgem, crucificado, morto e que ressurgiu e subiu aos céus, vê! E então disse Denis ao cego estas palavras, e logo o cego viu, e Denis logo acreditou sobre a fé em Jesus Cristo e depois tornou-se mártir glorioso. E assim parece que o nome de Jesus Cristo é luz da fé católica. 76 DO NOME DE JHESU CHRISTO CAPITULO SEGUNDO Outrosy, este nome Jhesu he manyar, onde diz Sam Bernardo: Dy tu, homẽ ! Per uẽtura nõ recebes tu conforto quantas uezes te lenbras deste nome Jhesu? Certo sy. O, qual he a cousa que asy ẽgrossa18 a alma e a mẽte daquelle que cuyda em este nome Jhesu? O, qual he a cousa que asy repare os sentidos cansados19 do trabalho e que asy aforteleze20 as uirtudes e que asy auiuẽte os bõõs custumes e que asy crie21 e mãtenha as afeccçõões castas e honestas como este nome Jhesu? Certamẽte , todo manjar da alma he seco, se nõ for espargido sobre el este oleo do nome de Jhesu, exabiida he toda uianda da alma, se nõ for condida cõ este sal. Se escreues , nõ me sabe bem, se hy nõ leer Jhesu, se desputas ou rrazoas, nõ acho hy sabor, se hy nõ soar ou for amẽtado22 Jhesu. Jhesu he mel ẽna boca e doce soo[m] ẽna orelha e alegria spiritual ẽno coraçõ , nome manso, benigno, misericordioso. Exemplo. Hũũ caualeyro amaua muyto Jhesu Christo, e, cõ muy23 grande amor que lhe auia, foy-sse a Jhe| rusalem e andou per todolos sanctos lugares hu Jhesu Christo naceu, morreu e resurgiu e cõuersou e fez as outras cousas. E em fim de todo ueeo aquel caualeyro ao monte Oliuete, hu Jhesu Christo sobiu aos ceeos, e disse asy: Meu Senhor Jhesu Christo, nõ sey hu uaa mais depos ty. Em este luguar me faze caminho per que uaa a ty! E, tanto que esto disse, logo lhe sayo a alma, e os seus 18 ẽgrossa] A he grosa. A cansandos. 20 B afortelegue. 21 A primeiro cree. 22 B ẽmentado. 23 muy] B o muy. 19 77 DO NOME DE JESUS CRISTO CAPÍTULO SEGUNDO Da mesma maneira, este nome Jesus é manjar,conforme diz São Bernardo : Dize tu, homem! Por ventura tu não recebes conforto quantas vezes te lembras deste nome Jesus? Certo que sim. O qual é coisa que assim engrossa a alma e a mente daquele que cuida neste nome Jesus? O qual é a coisa que assim repara os sentidos cansados do trabalho e que assim fortalece as virtudes e que assim torna os bons costumes e que assim cria e mantém as afeições castas e honestas como este nome Jesus? Certamente, todo manjar da alma é seco, se não for espalhado sobre ele este óleo do nome de Jesus, insípida é toda carne da alma, se não for temperada com este sal . Se descreves, não sei bem, se então não ler Jesus , se disputas ou discorres , não acho nem gosto, se não fizer ouvir ou for nomeado Jesus. Jesus é mel na boca e som doce na orelha e alegria espiritual no coração, nome manso, benigno e misericordioso. Exemplo. Um cavaleiro amava muito Jesus Cristo, e, com muito amor que ele tinha, se foi a Jerusalém e andou por todos os lugares onde Jesus Cristo nasceu, morreu e ressurgiu e conversou e fez as outras coisas. E no fim de tudo aquele cavaleiro veio ao monte Olivete, onde Jesus Cristo subiu aos céus e disse assim: Meu Senhor Jesus Cristo, não sei aonde eu vá depois de ti. Em este lugar me faça caminho para que eu vá a ti! E, tanto que disse isto, logo lhe saiu a alma , e os seus 78 seuentes24 leuarõ-no a hũũ fisico que25 lhes disesse que entendia daquel feito, e o físico lhe preguntou por suas condiçõões, e elles lhe diserõ que era muy alegre ẽno amor de Jhesu Christo, e dise-lhe o físico: Certamẽte co o grande prazer foy partido per meo o seu coraçõ . E emtam abrirõ-lhe o costado e acharon-lhe o caraçom26 aberto e partido, e era dentro em elle escripto: Jhesu meu amor. Exemplo. Muytas sanctas molheres, contemplando ẽ Jhesu Christo, auiam tam grande dulçura ẽ suas almas que do fauoo do spiritual dulçor, que auiam ẽno coraçom, saya aa boca hũũ dulçor de mel, que ellas ẽ ssy sentiam que lhes fazia lançar lagrimas doces e conseruaua e guardava a sua mente em deuaçõ. Exemplo. Qua [n ] do Sam Paulo foy degolado, saltou logo a cabeça fora do corpo, e , depois que foy asy fora do corpo, chamou cõ uoz clara, per linguagem hebrayca dos judeus, o nome de Jhesu Christo , o qual nome era a elle muy doce || ẽ sua uida, e o elle nomeara tam ameude ẽ suas epistolas, ca el nomeou o nome de Jhesu ou nome27 de Christo quinhentas uezes en suas epistolas. E tam grande dulçura e prazer auia em elle e consolaçom , que tantas uezes o nomeou em sua escriptura, e na28 morte nõ lhe esqueeceu . 24 B sergentes. B o que. 26 B coraçõ. 27 ou nome] B ou o nome. 28 B aa. 25 79 criados levaram-no a um médico que lhes dissesse que entendia daquele feito, e o médico perguntou-lhe por suas condições, e eles lhe disseram que estava muito alegre no amor de Jesus Cristo, e disse-lhe o médico: Certamente com o grande prazer foi partido pelo meio o seu coração. E então abriram-lhe a costela e acharam o coração aberto e partido e estava escrito dentro dele:Jesus meu amor. Exemplo. Muitas santas mulheres, contemplando Jesus Cristo, tinham grande doçura em suas almas que do favo da doçura espiritual que tinham no coração, saía da boca um dulçor de mel que elas em si sentiam que lhes faziam lançar lágrimas doces e conservavam e guardavam suas mentes em devoção. Exemplo. Quando São Paulo foi degolado, saltou logo a cabeça fora do corpo, e depois que ficou assim, chamou com voz clara, pela linguagem hebraica dos judeus, o nome de Jesus Cristo, cujo nome era a ele muito doce em sua vida, e ele o nomeara tão amiúde em suas epístolas, pois ele nomeou o nome de Jesus ou nome de Cristo quinhentas vezes em suas epístulas. E tão grande doçura e prazer e consolação tinha em ele, que tantas vezes o nomeou em suas escrituras e na morte não lhe esqueceu . 80 DO NOME DE JHESU CAPITULO TRECEYRO O nome Jhesu he meezinha, onde diz Sam Bernardo: Se algũũ de uos he triste, uenha-uos ao coraçom Jhesu, e do coraçom salte emna29 boca, e , tanto que nacer este nome ẽno coraçom e ẽna boca, logo o lume dele afastara e derramara toda cousa escura e triste e fara toda cousa clara e lomeosa . Se alguẽ escorregou em peccado e corre pera o laço da morte desesperãdo30, per uentura, se chamar o nome da uida, logo respirara pera vida? Certo ssy. Qual foy aquel que esteue em periigos e ẽ temores e chamou o nome de Jhesu e nõ recebeu saude? Certo nehũũ. Ca este nome, chamado, tyra o temor e dá forteleza, refrea a sanha e31 amãsa o jnchaço da soberua e saa32 a chagua da ẽveia e restringe o fluxo da luxurya e apagua a chama della e tempera a sede da auareza e afugenta todo o proydo do deseio de toda torpidade. Oo alma, este leitoayro as guardado emno uaso deste nome Jhesu, certamente de muita sau|de, ca o acharas pera toda pestelença de peccado por meezinha. Jhesu, amigo doce, conselheyro sages, forte defensor, a este me offreço e deste me fyo, que me pode saluar e quer. Exemplo. Hũũ homẽ foy leuado ao jnferno pera ueer as penas que hi som, e antre aquelles que hy eram, vyo hũũ homem que era todo metido ẽ os tormẽtos, afora a cabeça, que tijnha fora. E pregũtou-lhe33 porque nõ padecia pena ẽna cabeça, e elle lhe disse34: Porque soya muitas uezes poer o nome de Jhesu ẽna cabeça escripto, e porem nõ padeço pẽnas em ella. Exemplo. Hũa uez preguando hũũ frade do nome de Jhesu muytas boas cousas, estaua hi hũũ cidadãão que auia emfirmidade de febre. E, quando ouuiu a uirtude deste 29 A ẽ tua. A desenparado. 31 falta em B. 32 mão posterior modernizou em B saa em sara. 33 B pergũtou-lhe. 34 B respõndeo. 30 81 DO NOME DE JESUS CAPÍTULO TERCEIRO O nome de Jesus é remédio, conforme diz São Bernardo: Se algum de vós sois triste, Jesus vos venha ao coração, e com tanta força que nascer este nome no coração e na boca, logo a luz dele afastará e derramará toda coisa escura e triste e fará toda coisa clara e luminosa. Se alguém incorreu em pecado e corre para o laço da morte desesperado, se por ventura, chamar o nome da vida, logo respirará pela vida? Certo que sim. Qual foi aquele que esteve em perigos e em temores e chamou o nome de Jesus e não recebeu salvação? Certo que nenhum . Porque este nome chamado, tira o temor e dá fortaleza, refreia a ira e amansa o inchaço da soberba e sara a chaga da inveja e restringe o fluxo da luxúria e apaga a chama dela e modera a sede da avareza e afugenta todo o prurido do desejo de toda torpidade . Oh alma, este eleito tens guardado no vaso do nome Jesus, certamente de muita salvação, porque o acharás para toda pestilência de pecado por remédio. Jesus, amigo doce, conselheiro sábio, forte defensor, a este me ofereço e nele me fio, que me pode salvar e quer. Exemplo. Um homem foi levado ao inferno para ver os castigos que lá existem, e entre aqueles que lá estavam, viu um homem que estava atormentado, fora de si. E perguntou-lhe porque não padecia de castigo, e ele disse-lhe: Porque costumava pôr o nome de Jesus em a cabeça escrito, e por isso não padeço de penas em ela. Exemplo. Uma vez pregando um frade muitas coisas boas do nome de Jesus, estava lá um cidadão que tinha enfermidade de febre . E quando ouviu a virtude deste 82 nome, escreueo o nome35 ẽna augua e beueo-a ao tempo que lhe auia de uĩĩr a sazom, e logo o leyxou a febre. Exemplo. Hũũ homẽ auia grande odio mortal a outro por hũũ erro que lhe fezera, e aueo assy que este homẽ , que asy auia esta36 malquerença, veeo a ẽfermar , e , estando em ponto de morte, rogarõ-no muytos que lhe perdoasse pollo amor de Deus, e elle nõ lhe quis perdoar per nehũa maneyra. E antre aquelles que o rogarõ , forõ dous frades religiosos, e, quando virõ que nõ queria perdoar, hũũ daqueles religiosos screue[o] ẽna fronte delle este nome Jhesu, e logo || aquelle homẽ sanhudo foy amãsado, em tanto que elle meesmo pidyo perdom e de grado perdoou aaquelle que lhe auia errado, e perdeo todo o odio que ante auia, per uirtude do nome Jhesu. Exemplo. Sancto Ignacio mandauã deytar aos leõões pella fe de Jhesu Christo, e elle dizia: Muyto me prazeria que eu seia ferido das bestas que me som aparelhadas, e eu as rogo que seiam trigosas pera me matarem, e eu as cõuidarey pera me comerẽ e37 que nõ façã assy a mỹ como fazẽ aos outros martires, que nõ ousam tanger os seus corpos. E sse nõ quiserem uĩĩr, eu farey força pera seer comesto dellas, ca eu sey o que me aproueyta. Agora começo seer descipulo de Jhesu Christo. Non deseio nehũa cousa destas que se ueem, por tal que ache Jhesu Christo. Fogo, cruz, quebrantamẽto dos ossos e partimẽto dos menbros e quebrãtamẽto de38 todo o corpo e todollos tormẽtos do diaboo uenham em mĩ, tan solamẽte que eu huse e ache Jhesu Christo. E, depois que foy deitado aos liõões e os ouuyo rogir, disse: Eu soom trigo de Jhesu Christo, quero seer muudo cõ os dentes das bestas brauas, por tal que eu seia achado pam limpo. 35 B o nome de Jhesu. A este. 37 B não tem e. 38 A do. 36 83 nome, escreveu o nome na água e bebeu-a ao tempo que tinha de vir a febre e logo a febre o deixou. Exemplo. Um homem tinha grande ódio mortal a outro por um erro que lhe fizera, e de tal maneira que este homem que tinha esta malquerença , veio a adoecer, e , estando em ponto de morte, rogaram-no muitos que lhe perdoasse pelo amor de Deus, e ele não lhe quis perdoar de nenhuma maneira. E entre aqueles que o rogaram, foram dois frades religiosos, e, quando viram que ele não queria perdoar, um daqueles frades escreveu em a fronte dele este nome Jesus, e logo aquele homem irado ficou calmo, tanto que ele mesmo pediu perdão e de grado perdoou aquele que lhe tinha errado, e perdeu todo o ódio que antes tinha, por virtude do nome Jesus. Exemplo. Santo Inácio mandava lançá-lo aos leões pela fé em Jesus Cristo, e ele dizia: Muito me daria prazer que eu seja ferido pelas bestas que me são dispostas, e eu as rogo que estejam prontas para me matarem, e eu as convidarei para me comerem e que não façam assim a mim como fazem aos outros mártires que não ousam tocar os seus corpos. E se não quiserem vir , eu farei esforço para ser comido por elas, porque eu sei o que me é útil. Não desejo nenhuma coisa destas que se vêem , por tal que ache Jesus Cristo. Fogo, cruz, destruição dos ossos e divisão dos membros e destruição de todo o corpo e todo os tormentos do diabo venham a mim, tão somente que eu use e ache Jesus Cristo. E depois que foi lançado aos leões e os ouviu rugir, disse: Eu sou trigo de Jesus Cristo, quero ficar mudo com os dentes das bestas bravas, por tal que eu seja achado pão limpo. 84 E este Sancto Ignacio, antre os muytos tormẽtos que lhe fezerõ sempre muyto39 ameude nomeaua este nome Jhesu, e pella uirtude delle tanta forteleza auia | em soffrer con paciencia, que pella dulçura do nome de Jhesu nõ sentia40 os tormẽtos. E disse-lhe o tirãno que, se nõ cessasse de chamar o nome de Jhesu, que lhe mãdaria talhar a lingua e dise-lhe Sancto Ignacio: posto que me talhes a lingua, nõ cessarey porem de chamar o nome de Jhesu, porque o tenho scripto emno meu coraçom. E enton chamou aficadamẽte os liõões, que o ueessem comer, e logo dous leõões o afogarom41 tan solamente, mais42 nõ tangerom mais a sua carne. E, depois da43 sua morte aquelles que lhe ouuirõ dizer que tragia scripto ẽno coraçom o nome de Jhesu Christo quiserom prouar se era asy e tiraron-lhe o coraçom e partirõ-lho per meo e acharõ-no todo scripto cõ o nome de Jhesu em leteras douro, em que dizia asy: Doce amor meu Jhesu Christo, por mi crucifixo. 39 B muy. B sentyo. 41 B afaagarom. 42 B mas. 43 B de. 40 85 E este Santo Inácio, entre os muitos tormentos que lhe fizeram, sempre muito amiúde nomeava este nome Jesus, e pela virtude dele tanta fortaleza tinham em sofrer com paciência, que pela doçura do nome de Jesus não sentia os tormentos. E disse-lhe o soberano que, se não cessasse de chamar o nome de Jesus, que lhe mandaria cortar a língua, e disse-lhe Santo Inácio: Posto que me cortes a língua, porém não cessarei de chamar o nome de Jesus, porque o tenho escrito em meu coração. E então chamou afincadamente os leões , que viessem comê-lo , e logo dois leões o sufocaram tão somente, mas não tocaram mais a sua carne. E, depois de sua morte, aqueles que lhe ouviram dizer que trazia escrito no coração o nome de Jesus Cristo quiseram provar se era assim e tiraram-lhe o coração e partiram-no pelo meio e acharam-no todo escrito com o nome de Jesus em letras de ouro, em que dizia assim: Doce amor meu Jesus Cristo, por meu crucifixo. 86 DO NOME DE JHESU CAPITULO QUARTO Este nome Jhesu he marauilhoso, porque he nouo, e porẽ diz o propheta Ysaias: Sera chamado a ty nome nouo, o qual nomeou a boca do Senhor Deus — falando o propheta a Jhesu Christo em spitiru. E diz Dauid , o grande propheta: Oo Senhor, nosso Senhor, quanto44 he marauilhoso o teu nome ẽ toda a terra! E diz o profeta Ysaias, falando de Jhesu Christo: O seu nome sera chamado marauilhoso. Outrossy, este nome Jhesu he muyto pera louuvar, porque he grande, onde diz o propheta Malachias: O meu nome45 he grande ẽnas gentes, dise o Sen||hor. E diz o propheta Dauid: Des a nacença do sol ataa o poente pera louuar he o nome do Senhor. Outrossy, este nome Jhesu he espantoso, porque ha en sy poderio e dereytura, e porem aquelles que som direytos amã Jhesu Christo, onde diz Salomõ46 ẽnos Cantares do Amor, falando do esposo Jhesu Christo: Os que som direitos amam ty47. E diz outro propheta: Tu, Senhor, asinaste ao teu nome espantoso e louuadeyro, o qual todos temem. Ca o temẽ48 os angios, cõtemplando a tua presença, e temẽ os homẽẽs , atendendo o teu juizo; ham pauor os demõões, sentĩdo a tua muy grande uirtude, porque o uulto do Senhor uee todalas cousas. E este nome Jhesu afuguẽta os demõões. Exemplo. O emperador Diocleciano rogou a Sancto Ciriaco que desse saude a hũa sua filha, que era muy49 maltreyta do diaboo, e Sancto Ciriaco entrou hu estaua a filha do enperador e disse: Em nome do nosso Senhor Jhesu50 mãdo a ty, demõ51, que 44 A quanta. nome] foi entrelinhado por outra mão. 46 B Salamõ. 47 B a ti, mas a foi entrelinhado por outra mão. 48 os ms. tremẽ. 49 B não tem muy. 50 B Jhesu Cristo 51 B demo. 45 87 DO NOME DE JESUS CAPÍTULO QUARTO Este nome é maravilhoso, porque é novo, e por isso diz o profeta Isaías: Será chamado a ti nome novo, o qual nomeou a boca do Senhor Deus – falando o profeta a Jesus Cristo em espírito. E diz Davi, o grande profeta: Oh senhor, nosso Senhor quanto é maravilhoso o teu nome em toda a terra! E diz o profeta Isaías, falando de Jesus Cristo: O seu nome será chamado maravilhoso. Da mesma maneira, este nome Jesus é para louvar muito, porque é grande, onde diz o profeta Malaquias: O meu nome é grande nas nações, disse o Senhor. E diz o profeta Davi: Desde o nascimento do sol até o poente para louvar é o nome do Senhor. Também este nome Jesus é espantoso, porque há em si poderio e retidão, e por isso aqueles que são direitos amam Jesus Cristo, onde diz Salomão nos Cantares do Amor, falando do esposo Jesus Cristo: Os que são direitos amam a ti. E diz outro profeta: Tu, Senhor, assinaste o teu nome espantoso e louvável, o qual todos temem. Pois temem os anjos, contemplando a tua presença, e temem os homens, atendendo o teu juízo; têm pavor os demônios, sentindo a tua muito grande virtude, porque o vulto do Senhor vê todas as coisa. E este nome Jesus afugenta os demônios. Exemplo. O imperador Diocleciano rogou a Santo Ciríaco que desse salvação a sua filha, que estava atormentada pelo demônio, e Santo Ciríaco entrou onde estava a filha do imperador e disse: Em nome de nosso Senhor Jesus mando a ti , demônio, que 88 sayas do corpo desta moça. E o demõ52 respondeu: Se queres que eu saya, da-me uaso em que entre! E dise-lhe Sancto Ciriaco: Se tu podes, ex o meu corpo, entra ẽ elle! Respondeu o demo: Eu nõ posso entrar ẽno teu uaso, porque he çarrado e asinado de cada parte. E disse-lhe Ciriaco: Ẽno53 nome de Jhesu Christo, saae della, por tal que seia fecta uaso limpo pera o Spiritu Sancto. Entõ braa|dou o demo e disse: Oo, Ciriaco, se me lanças daqui, eu te farey hir a Pérsia. E dise-lhe Sancto Ciriaco: Ẽno nome de nosso Senhor Jhesu Christo, saae della! E o demo sayu logo da donzella e bauptizou-a Sancto Ciriaco. E a pouco tempo mandou rey de Persia por Sancto Ciriaco pera dar saude a sua filha que era maltreyta do emmiigo. E, quando chegou a elrey de Persya e emtrou hu estaua a filha delrrey, em esta54 ora braadou o diaboo pella boca da donzella, dizendo: Que queres tu, Cyriaco? E dise Cyriaco: Em nome de meu Senhor Jhesu Christo, saae della! E dise-lhe o diaboo: Cansado es, Ciriaco? Eu te aduxe a Persia asy como te antedisse. E com grande clamor dizia o diaboo ẽno aar: Oo, nome espantoso,que me faz sair forçosamẽte. E des aquella hora foy fecta a donzela sãã, e cõuerteo-a Sancto Ciriaco e bauptizou-a55. Exemplo. Hũũ sancto homẽ mãdou a hũũ demo ẽno nome de Jhesu Christo que se partisse de hũũ luguar e se fosse morar a outro, ẽ guisa que nũca empeecesse a nenhũũ que chamasse a gloriosa Madre de Deus. E o diaboo, tanto que esto ouuiu, feze o mãdado do sancto homem per uirtude do nome de Jhesu. 52 B demo. B Em. 54 B essa. 55 B baupteziou-a. 53 89 saias do corpo desta moça . E o demo respondeu: Se queres que eu saia , dê-me recipiente em que entre! E disse-lhe Santo Ciríaco: Se tu podes, eis o meu corpo, entre nele! Respondeu o demo: Eu não posso entrar em teu vaso, porque está fechado e selado em cada parte.E disse-lhe Ciríaco: Em nome de Jesus Cristo, sai dela, por tal que seja feita vaso limpo para o Espírito Santo. Então bradou o demo e disse: Oh, Ciríaco, se me lanças daqui, eu te farei ir à Pérsia. E disse-lhe Santo Ciríaco: Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, sai dela! E o demo saiu logo da donzela e Santo Ciríaco a batizou. E há pouco tempo mandou o rei da Pérsia para que Santo Ciríaco desse salvação a sua filha que estava atormentada pelo inimigo. E quando chegou o rei e entrou onde estava a filha, nesta hora bradou o diabo pela boca da donzela, dizendo: Que queres tu, Ciríaco? E disse Ciríaco: Em nome de meu Senhor Jesus Cristo sai dela! E disse-lhe o diabo: Está cansado , Ciríaco? Eu te trouxe à Pérsia assim como eu te profetizei. E com grande clamor dizia o diabo no ar: Oh nome espantoso, que me faz sair forçosamente. E desde aquela hora estava curada a donzela, e converteu-a Santo Ciríaco e batizou-a. . Exemplo. Um santo homem mandou a um demônio em nome de Jesus Cristo que partisse de um lugar e fosse morar em outro, de maneira que nunca impedisse a ninguém que chamasse a gloriosa Mãe de Deus. E o diabo, tanto que ouviu isto, fez o que mandou o santo homem por virtude do nome de Jesus. 90 O NOME DE JHESU CAPITULO QUINTO O nome de Jhesu he de muyta uirtude, ca este he o nome que deu uista aos cegos e ouuydo aos surdos e o andar aos çopos56 e fala aos mudos e uida aos mortos, e todos o poderio || do diaboo afugentou dos corpos a uirtude deste nome Jhesu. Outrosy, a uirtude deste nome Jhesu he de grande alteza e de grande excelencia, onde diz Sam Bernardo: O nome do Saluador he nome de meu jrmãão e da minha carne e do meu sangue, nome marauilhoso. Este nome Jhesu subjuga todallas cousas, onde diz o apostolo: Ẽno nome de Jhesu todo geolho se ĩcline das cousas celestiaes57, terreaaes58 e enfernaaes. Exemplo. Em Mõpirle59 hũũ escollar nigromanteco chamou os demõees per sua sciencia, pera dizerẽ nouas a outro escollar seu amigo que60 deseiaua ouuir recado de sua terra, e ueo hũũ demo em semelhança de donzel61 e deu reposta ao escollar do que lhe pregũtou. E, estando asy, passou per aly hũũ sacerdote cõ o corpo de Jhesu Christo e, quando o diaboo sintyu a presença do sacramẽto, ficou os geolhos em terra. E quando esto uio o escolar, disse: Hora nõ creeo que este he demo, ca se o fosse, nõ ficarya os geolhos ao corpo de Jhesu Christo. E disse o demo: Non sabes que he escripto he: Ẽno nome de Jhesu Christo todo geolho seia ẽclinado das cousas celestiaaes e terreaaes e jnfernaaes? E logo despareceu62. Exemplo. Hũũ barõ religioso leixou a esposa e o mũdo por amor de Jhesu Christo. E tanto amor auy|a ao nome de Jhesu, que, por sua reuerença, quando quer que o ouuya nomear, sempre ficaua os geolhos em terra co reuerença. E depois que foy 56 em B outra mão riscou copos e escreveu por cima coxos. celestiaes] entre as linhas e por outra mão. 58 celestiaes, terreaaes] B terreaees e celestriaees. 59 B Mõplele, que parece corrigido em Mõpeler 60 A e. 61 A donzella. 62 B desapareceu. 57 91 DO NOME DE JESUS CAPÍTULO QUINTO O nome de Jesus é de muita virtude, pois é este o nome que deu vista aos cegos e ouvidos aos surdos e o andar dos coxos e fala aos mudos e vida aos mortos, e afugentou dos corpos todo o poderio do diabo em virtude deste nome Jesus. Também a virtude deste nome Jesus é de grande altura e de grande excelência, onde diz São Bernardo: O nome do Salvador é nome de meu irmão e da minha carne e do meu sangue, nome maravilhoso. Este nome subjuga todas as coisas, conforme diz o apóstolo. Em nome de Jesus todo joelho se incline das coisas celestiais, terrestres e infernais. Exemplo. Em Montpellier um estudante nigromante chamou os demônios por sua ciência, para dizer novas a outro estudante seu amigo, que desejava ouvir recado de sua terra, e veio um demo em semelhança de rapaz e deu resposta ao estudante que lhe perguntou. E, estando assim, passou por ali um sacerdote com o corpo de Jesus Cristo, e, quando o diabo sentiu a presença do sacramento, fincou os joelhos na terra. E, quando o estudante viu isto, disse: Ora, não creio que este é o demo, pois se fosse, não fincaria os joelhos ao corpo de Jesus Cristo. E disse o demo: Não sabes o que eu escrevi: Em nome de Jesus Cristo todo joelho seja inclinado das coisas celestiais e terrestres e infernais? E logo desapareceu. Exemplo. Um varão religioso deixou a esposa e o mundo por amor de Jesus Cristo. E tanto amor tinha ao nome de Jesus, que por sua reverência onde quer que ouvia nomear, sempre fincava os joelhos em terra com reverência. E depois que ficou 92 uelho, hũa uez estando ẽno coro, ficou os geolhos em terra ao nome de Jhesu, asy como auia em custume, e, quando se quis leuãtar, nõ pode, per razom da fraqueza da uilhice. E logo aly chegarõ dous angeos que o leuantarõ da terra, e elle ficou muy cõsolado ẽno seu spiritu. Exemplo. Hũũ encantador fez uĩĩr hũũ demo a hũa molher pera lhe dar cõselho como poderia conceber de seu marido, e o diaboo ueeo ẽ semelhãça de homem. E, ante que o pregũtasse, pasou per aly hũũ sacerdote, que leuaua o corpo de Jhesu Christo a hũũ enfermo. E, quando a molher ouuyu a canpaynha, que tangiam ante o sacerdote, temeu-se e rependeu-se , e logo o diaboo ficou os geolhos em terra por reuerẽça do corpo de Jhesu Christo. E a molher prometeu que nõ fezesse tal cousa e chamou logo o nome de Jhesu, e per uirtude do nome ficou afortificada e liure do diaboo. E partiu-se logo o diaboo, cõfondido pello nome de Jhesu. Exemplo. Conta hũũ sabedor, que ha nome Plínio, que ha hũa aruore em Terra de Jndia , que nũca apodrece a madeyra della nẽ a pode queymar o fogo. E esto he, segundo diz hũũ doutor, porque esta ar||uor ha en sy e[n]xertado, em leteras judengas escriptu, este nome Jhesu, e pella uirtude do glorioso nome nõ a pode queymar o fogo. E bem asy, se o homẽ guardar firmemẽte este nome Jhesu ẽno seu coraçom, nunca seera queymado do fogo do peccado nẽ do fogo do jnferno, e porem diz o sabedor ẽno Eclesiástico:Senhor Deus, tu me liuraste da63 pressura da chama segundo a multidom da misericordia do teu nome, e ẽ meo do fogo nõ64 fuy queymado. 63 64 A de. A na entre as linhas e por outra mão. 93 velho, uma vez estando no coral, fincou os joelhos em terra ao nome de Jesus, assim como tinha de costume, e, quando quis levantar, não pode, por razão da fraqueza da velhice. E logo ali chegaram dois anjos que o levantaram da terra, e ele ficou muito consolado em seu espírito. Exemplo. Um feiticeiro fez vir um demo a uma mulher para lhe dar conselho de como poderia engravidar de seu marido, e o diabo veio em semelhança de homem. E, antes que o perguntasse, passou por ali um sacerdote, que levava o corpo de Jesus Cristo a um doente. E quando a mulher ouviu a campainha que tocavam ante o sacerdote, temeu e se arrependeu, e logo o diabo fincou os joelhos em terra por reverência ao corpo de Jesus Cristo. E a mulher prometeu que não ia fazer tal coisa e chamou logo o nome de Jesus, e por virtude do nome, ficou fortificada e livre do diabo. E partiu logo o diabo, confundido pelo nome de Jesus. Exemplo. Conta um sábio, que chama-se Plínio, que existe uma árvore na terra da Índia, que nunca a madeira dela apodrece nem o fogo a pode queimar. E isto é, segundo diz um mestre, porque nesta árvore há em si enxertada, escrito em letras hebraicas, este nome Jesus, e pela virtude do glorioso nome o fogo não a pode queimar. E bem assim, se o homem guardar firmemente este nome Jesus em seu coração, nunca será queimado do fogo do pecado nem do fogo do inferno, e contudo diz o sábio no Eclesiástico: Senhor Deus, tu me livraste do tormento da chama segundo a multidão de misericórdia do teu nome, e no meio do fogo não fui queimado. 12 1.0.7 ESTADO LINGÜÍSTICO NO LIVRO I DO ORTO DO ESPOSO Para justificar a periodização do Orto do Esposo como texto inédito do fim do século XIV ou começo do século XV foi necessária uma análise da ocorrência dos fenômenos lingüísticos nos cinco capítulos que compõem o livro I. Para tanto, o capítulo 2 da obra História da Língua Portuguesa de TEYSSIER (2004, p.29) oferece embasamento teórico sobre o galego-português (de 1200 a aproximadamente 1350), período este que abrange a época em que o Orto do Esposo foi composto. Convenção: para Exemplo (Ex) e Sermão (Ser). Os negritos são meus. Segundo Vázquez Cuesta; Luz (1971, p.188) São muito pequenas as diferenças existentes entre galego e português que antes de 1350 deixem transparecer os textos literários e inclusive documentais, mas durante os reinados dos primeiros momarcas da Dinastia de Avis tais diferenças se vão acentuando progressivamente. Maler afirma que o Orto do Esposo foi terminado o mais tarde por volta de 1390, provavelmente na segunda metade da década 1380 – 1390. Assim, considerando os dois posicionamentos acima, pode-se afirmar que o Orto do Esposo possui em sua linguagem, alguns traços conservadores remanescentes do galego, que paulatinamente se desvencilha deste idioma, formando o português. A partir de análise de documentos escritos, aponta Huber (1986, p.40) : a concluir pelos documentos escritos, também as diferenças lingüísticas entre o português antigo e o galego antigo- quer dizer, entre os antigos textos de Portugal e os da mesma época da província da Galiza – não são consideráveis e manifestamente só mais tarde aumentaram, depois de a província da Galiza estar separada politicamente de Portugal e unida à Espanha. 13 Portanto, os fatos lingüísticos do português arcaico tomam outro direcionamento a partir do contexto histórico e devem ser levados em consideração ao analisar uma obra. É o que se depreende dos autores anteriormente citados. Em Generalidades dos períodos na história da ortografia portuguesa, esclarece Vázquez Cuesta ; Luz (1971, p.188) : A ortografia de um idioma é sempre um convencionalismo nascido do compromisso entre duas forças que se opõem: uma fonética e outra histórica. Se a francesa é eminentemente etimológica e a espanhola fonética, a portuguesa foi sofrendo através dos séculos uma série de mudanças que em ocasiões a separaram, mas hoje tentam aproximá-la a esse padrão ideal na qual cada grafia representa sempre o mesmo fonema e a cada fonema corresponde uma única grafia. É causa , no entanto, da permanente complicação da ortografia portuguesa, a própria complexidade de sua fonologia, com grande abundância de vogais e ditongos tanto orais como nasais, e o propósito de manter a unidade gráfica da língua. Assim, a ortografia é um dos aspectos que fazem um idioma ser mais inovador ou conservador em relação aos outros da mesma família. No Ibero – Romance, diz Bassetto (2001, p.270): o português é mais conservador que o castelhano. No léxico, ambos são conservadores. Já na fonética, o português e o galego conservam o sistema de sete fonemas vocálicos, ainda que com menor nitidez e alcance fonológico. Sobre a grafia nos diz Teyssier (2004, p.29) O til (~), sinal de abreviação, serve freqüentemente para indicar a nasalização das vogais, que pode vir também representada por uma consoante nasal. Na Gramática histórica portuguesa e espanhola de Masip (2003, p.202), o til (~) parece provir do latim titulus , por meio do provençal tille: inscrição, título. Para ele, o til português é um sinal diacrítico sinuoso que marca a nasalização de uma vogal. Tudo indica que a sua origem é uma grafia estilizada de n ou m. 14 As ocorrências do emprego do (~) indicando nasalização de vogais são freqüentes durante o decorrer de todos os capítulos e abundante nesta passagem: Exemplo. Hũũ encantador fez uĩĩr hũũ demo a hũa molher pera lhe dar cõselho como poderia conceber de seu marido, e o diaboo ueeo ẽ semelhãça de homem. ( Ex.Orto do Esposo Cap 5, p.13) Segundo Teyssier, apesar das suas imprecisões e incoerências, a grafia do galegoportuguês medieval aparece como mais regular e “ fonética” do que aquela que prevalecerá em português alguns séculos mais tarde. Em As vogais no português arcaico e no português moderno Tarallo (1990, p.98) analisando um texto do século XIII, datado de 1206 (?) anterior cronologicamente ao Orto do Esposo chama a atenção das muitas vogais indicando nasalidade , e diz que tais exemplos somente podem ser explicados como resultado do m ou n, adjacentes originariamente às vogais em questão. Essa explicação está em Coutinho em Pontos de Gramática Histórica, o qual Tarallo retoma afirmando que o estudioso apresenta poucos fatos sobre as vogais durante o período arcaico do português. Tarallo acrescenta que a ortografia da época era de base fonética e havia grande flutuação na escrita, especialmente durante o período analisado. Quanto ao sistema consonantal : Oclusivas: / p /: Eu soom trigo de Jhesu Christo, quero seer muudo cõ os dentes das bestas brauas, por tal que eu seia achado pam limpo. 15 ( Ex.Orto do Esposo Cap 3, p.10) / b / : Se escreues , nõ me sabe bem, se hy nõ leer Jhesu, se desputas ou rrazoas, nõ acho hy sabor, se hy nõ soar ou for amẽtado Jhesu. (negrito meu) ( Ser.Orto do Esposo Cap 2, p.07) / t / : Ca este nome, chamado, tyra o temor e da forteleza, refrea a sanha e amãsa o jnchaço da soberua e saa a chagua da ẽveia e restringe o fluxo da luxurya ... ( Ser.Orto do Esposo Cap 3, p.09) /d /: Se alguẽ escorregou em peccado e corre pera o laço da morte desesperãdo, per uentura, se chamar o nome da uida, logo respirara pera vida? ( Ser.Orto do Esposo Cap 3, p.09) / k / (escrito c ou qu) : Pois , nõ queyras mais trabalhar em vãão pera destroir esto que auemos por fe, nẽ queyras emquerer a maneira per que podem seer estas cousas ou nõ seer. E se me nõ crees, responde a estas cousas. Tanto que esto ouuio o fillosapho, ficou espantado e disse: Creeo. ( Ex.Orto do Esposo Cap 1, p.06) / g / (escrito g ou gu): E disse Sam Paulo: Pera tu tolheres toda duuida, eu te escreuerey as palauras, e tu as dy ao cego per tua boca e ẽ esta guisa. ( Ex.Orto do Esposo Cap 1, p.07) 16 Constritivas: / f /: E porem o seu nome glorioso deue seer chamado ẽ começo de toda boa obra, e ẽno seu sancto nome deue o homẽ de fazer toda cousa... ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) / v /: Se alguẽ escorregou em peccado e corre pera o laço da morte desesperãdo, per uentura, se chamar o nome da uida, logo respirara pera vida? ( Ser.Orto do Esposo Cap 3, p.09) / ts / (escrito ç e c ): E, tanto que esto disse Sancto Aleixandre, logo o filosapho ficou mudo, com a boca çarrada , que mays nõ pode falar, a assy foy uẽẽncido. ( Ex.Orto do Esposo Cap 1, p.06) Respondeu o demo: Eu nõ posso entrar ẽno teu uaso, porque he çarrado e asinado de cada parte. ( Ex.Orto do Esposo Cap 4, p.11) / dz / (escrito z ): E porem o seu nome glorioso deue seer chamado ẽ começo de toda boa obra, e ẽno seu sancto nome deue o homẽ de fazer toda cousa... ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) / s / (escrito ss em posição intervocálica, e s nas outras situações): 17 Asi como o mel seera doce a renẽbrãça delle, convem a saber do nome que he Jhesu, que quer dizer saude. ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) / tš / (escrito ch): E porẽ diz meestre Oda que este nome de Jhesu he oleo espargido ẽnas chagas da jeeraçõ humana, ca a força deste nome Jhesu, que quer dizer saluador, dá saude a todalas ẽfirmidades e a todalas chagas da alma e do corpo, de que somos chagados pello peccado dos primeyros padres. ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) /(d)ž/ (escrito g ou j): E este nome tragia Sam Paulo por candea ante os gentiis e ante os reis... ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) / š / (escrito x): E, quando ouuiu a uirtude deste nome, escreueo o nome ẽna augua e beueo-a ao tempo que lhe auia de uĩĩr a sazom, e logo o leyxou a febre. ( Ex.Orto do Esposo Cap 3, p.09) Hũũ barõ religioso leixou a esposa e o mũdo por amor de Jhesu Christo. ( Ex.Orto do Esposo Cap 5, p.13) 18 Nasais: / m /: E emtam abrirõ-lhe o costado e acharon-lhe o caraçom aberto e partido, e era dentro em elle escripto: Jhesu meu amor. ( Ex.Orto do Esposo Cap 5, p.13) Laterais: [l] dental: Se escreues , nõ me sabe bem, se hy nõ leer Jhesu, se desputas ou rrazoas, nõ acho hy sabor, se hy nõ soar ou for amẽtado Jhesu. ( Ser.Orto do Esposo Cap 2, p.07) / lh /: E depois que foy uelho, hũa uez estando ẽno coro, ficou os geolhos em terra ao nome de Jhesu, asy como auia em custume, e, quando se quis leuãtar, nõ pode, per razom da fraqueza da uilhice. ( Ex.Orto do Esposo Cap 5, p.13) Sobre a situação do sistema consonantal do latim ao português no período arcaico nos diz Tarallo (1990, p.107): pouco dizem os compêndios de gramática histórica sobre os traços fonéticos-fonológicos das consoantes portuguesas durante o período arcaico. Citando Coutinho (1969), que apresenta algumas características gerais para o sistema morfológico do português arcaico, diz Tarallo (1990,p.120-1): Coutinho faz várias observações sobre os nomes e os verbos no português arcaico que explicam a herança não-herdada do latim clássico, mas que confirmam a manutenção do inventário morfológico a partir do latim falado. Sobre os nomes, Coutinho observa que o português arcaico era caracterizado por uma profunda redução no gênero. Assim, alguns substantivos eram uniformes, enquanto outros nomes eram marcados com gênero diferente ao que sobreviveu no sistema moderno. Alguns nomes, como ourives, que não são mais marcados formalmente 19 no plural moderno, apareciam flexionados no português arcaico. O verbo era marcado por –des na segunda pessoa do plural, mantendo, via evolução fonológica, a forma –tis da conjugação clássica. Os particípios presentes em –nte, vigentes no sistema de então, seriam posteriormente reanalisados em outras partes da gramática. A respeito do saldo efetivo das perdas morfológicas no português moderno, Tarallo (1990, p.121) elege a classe dos substantivos porque neles transparecerá, com grande nitidez, a intersecção entre a fonologia e a morfologia, na passagem do latim ao português. Em virtude de uma série de mudanças fonológicas presentes no latim falado, o sistema morfológico se apresentava empobrecido em relação ao latim clássico: redução no número de declinações e de casos foram duas características morfológicas apontadas para o latim vulgar. Assim , de cinco declinações o latim vulgar conhecia somente três: a primeira(que também recebia palavras da quinta), a segunda (incorporando as palavras da quarta), e a terceira (também como a primeira, recebendo palavras da quinta). Tarallo (1990) citando Coutinho(1969:225): tal confusão entre as declinações já “reinava no próprio latim clássico, onde alguns substantivos da quinta podiam também ser declinados pela primeira: avarities, ei ou avaritia, ae; luxuries,ei, ou luxuria, ae; materies, ei, ou materia, ae”. Ca este nome, chamado, tyra o temor e da forteleza, refrea a sanha e amãsa o jnchaço da soberua e saa a chagua da ẽveia e restringe o fluxo da luxurya e apagua a chama della e tempera a sede da auareza e afugenta todo o proydo do deseio de toda torpidade. ( Ex.Orto do Esposo Cap 3, p.08) Assim, do latim avaritia > auareza (arcaico) e do latim luxuria > luxurya (arcaico). 20 Para Tarallo (1990,p.122), com a tendência do latim vivo e falado a obscurecer e, aos poucos, cancelar o final ( ou os segmentos finais) das palavras, natural foi, portanto, que tanto o número de declinações quanto o número de casos fossem reduzidos. Assim, em Coutinho(1969, p.226-7) no começo da fase românica, as três declinações apresentavam-se constituídas: Primeira declinação Nominativo Acusativo Singular luna luna Plural lune lunas Singular annus annu,o Plural anni annos Singular canes cane Plural canes canes Segunda declinação Nominativo Acusativo Terceira declinação Nominativo Acusativo Tarallo (1990, p.123) apresenta duas explicações para a sobrevivência do acusativo no espanhol e no português: ...observe-se o acusativo plural em /s/ presente nos dois sistemas modernos: evidência cabal de que foi o acusativo, e não o nominativo, que sobreviveu nesses dois sistemas. No caso do singular, podemos dizer que a neutralização entre o nominativo e o acusativo começou com o obscurecimento do /m/ final, indicador do acusativo singular no latim clássico. Assim, com a neutralização entre os dois casos no singular, a predominância do acusativo plural em /s/ nas três declinações transformaria, pois, o acusativo no caso lexicogênico nos dois sistemas. É exatamente a partir do acusativo que Teyssier (2004, p.36) apresenta a morfologia dos nome e adjetivos levando em consideração em sua exposição o exposto anteriormente 21 por Tarallo (1990, p.123) aspectos de caráter fonético que se intersecciona com o inventário morfológico Quanto à morfologia e sintaxe : Morfologia do nome e do adjetivo – A queda do -l – e do - n – intervocálicos tivera conseqüências importantes nos paradigmas: A) Plural dos nomes e adjetivos terminados por - l – ______________________________________________________________________ Singular Plural ______________________________________________________________________ celestial celestiaaes (isto é, celestia-es) terreal terreaaes jnfernal jnfernaaes (isto é, jnferna-es) (isto é, terrea-es) Ẽno nome de Jhesu Christo todo geolho seia ẽclinado das cousas celestiaaes e terreaaes e jnfernaaes? ( Ex.Orto do Esposo Cap 5, p.13) B) Morfologia dos nomes e adjetivos em -on. Aqui é a queda do -n- intervocálico que explica as formas do galego-português. Os nomes provindos do latim –o, -onis , (leo,leonis, “leão”) tinham dado a partir do acusativo, as formas esperadas: ______________________________________________________________________ Singular Plural 22 ______________________________________________________________________ leone- > leon(e) > leon leones > leões ______________________________________________________________________ Veja o plural de “leão” nas seguintes passagens: Sancto Ignacio mandauã deytar aos leõões pella fe de Jhesu Christo... E, depois que foy deitado aos liõões e os ouuyo rogir... E enton chamou aficadamẽte os liõões, que o ueessem comer, e logo dous leõões o afogarom tan solamente, nõ tangerom mais a sua carne. ( Ex.Orto do Esposo Cap 3, p.9-10) Percebe-se que há uma alternância de grafia na forma do plural de “leão” em que “leõões” é uma forma mais conservadora e próxima do latim do que “liõões” que não segue a base latina no radical. Teyssier adverte que, no singular, leone perdeu cedo o – e final. Quando o –n- intervocálico caiu, havia muito tempo que se dizia leon: o -n- não era mais intervocálico, mas final, razão por que não caiu. Para o pesquisador,segue da mesma maneira os adjetivos que em latim terminavam em -anus apresentando as seguintes formas: ______________________________________________________________________ Singular Plural ______________________________________________________________________ 23 masculino: sanu- > sano > são sanos > sãos feminino: sana > sãa sanas > sãas (pronunciar sã-o, sã-os, sã-a, sã-as ) ______________________________________________________________________ E des aquella hora foy fecta a donzela sãã, e cõuerteo-a Sancto Ciriaco e bauptizou-a. ( Ser.Orto do Esposo Cap 4, p.12) Possessivos – Existia para o feminino de meu, teu, seu uma forma átona distinta da forma tônica: ______________________________________________________________________ Masculino Feminino ________________________________________ Tônica Átona ______________________________________________________________________ meu mia,mĩa, minha mia, mha, ma teu tua ta seu sua sa ______________________________________________________________________ E porem o seu nome glorioso deue seer chamado ẽ começo de toda boa obra, e ẽno seu sancto nome deue o homẽ de fazer toda cousa... ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) E diz Salamõ emnos Cantares do Amor: Oleo espargido he o teu nome. ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) 24 Meu Senhor Jhesu Christo, nõ sey hu uaa mais depos ty. ( Ex.Orto do Esposo Cap 2, p.08) E emtam abrirõ-lhe o costado e acharon-lhe o caraçom aberto e partido, e era dentro em elle escripto: Jhesu meu amor. ( Ex.Orto do Esposo Cap 2, p.08) E tam grande dulçura e prazer auia em elle e consolaçom , que tantas uezes o nomeou em sua escriptura, e na morte nõ lhe esqueeceu . ( Ex.Orto do Esposo Cap 2, p.08) O nome do Saluador he nome de meu jrmãão e da minha carne e do meu sangue, nome marauilhoso. ( Ser.Orto do Esposo Cap 5, p.12) Assim, o sistema dos possessivos já estava, portanto, constituído correspondendo às formas do português moderno. 3. Os anafóricos (h)i e ende-en – Estas palavras tinham a mesma origem, o mesmo sentido e os mesmos empregos que y e en do francês.Estes anafóricos no caso hi de acordo com Teyssier encontram-se a cada instante nos textos em galego-português medieval. Onde diz Sam Lucas ẽnos Autos dos Apóstolos que nõ ha hi saude ẽ outro nehũũ seno em Jhesu Christo. ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) 25 Se escreues , nõ me sabe bem, se hy nõ leer Jhesu, se desputas ou rrazoas, nõ acho hy sabor, se hy nõ soar ou for amẽtado Jhesu. ( Ser.Orto do Esposo Cap 2, p.07) Exemplo. Hũũ homẽ foy leuado ao jnferno pera ueer as penas que hi som, e antre aquelles que hy eram, vyo hũũ homem que era todo metido ẽ os tormẽtos, afora a cabeça, que tijnha fora. ( Ex.Orto do Esposo Cap 3, p.09) Nesta passagem duas variantes do anafórico aparecem a primeira (h)i e a segunda (h)y, esta última por influência francesa. O vocabulário Empréstimos do francês e do provençal – A influência da língua d`oïl e da língua d`oc é muito forte durante o período do galego-português, e explica-se por uma série de causas convergentes: presença da dinastia de Borgonha, implantação das Ordens de Cluny e de Cister, chegada à Portugal de numerosos franceses do Norte e do Sul, influência direta da literatura provençal, etc. A última colocação de Teyssier sobre o provençal é pertinente principalmente por causa do emprego constante do til conforme visto anteriormente em Masip (2003) via provençal tille. Empréstimo do francês: 26 Jhesu, amigo doce, conselheyro sages, forte defensor, a este me offreço e deste me fyo, que me pode saluar e quer. ( Ser.Orto do Esposo Cap 3, p.09) Empréstimo do provençal: o nome Jhesu he luz e mãyar e meezinha, ca elle luze quando he preegado e da mantiimẽto a [a ] alma quando em elle cuida e abranda-a e hũta-a quando o chama. ( Ser.Orto do Esposo Cap 1, p.05) Outrosy, este nome Jhesu he manyar ( Ser.Orto do Esposo Cap 2, p.07) Certamẽte , todo manjar da alma he seco, se nõ for espargido sobre el este oleo do nome de Jhesu ( Ser.Orto do Esposo Cap 2, p.07) Registra-se três variantes ortográficas para manjar: mãyar, manyar e o moderno manjar, vindo provar a flutuação na escrita a qual Tarallo se refere anteriormente sobre a ortografia da época arcaica. Palavras eruditas e semi-eruditas: O recurso a empréstimos feitos diretamente ao latim ascende a época muito remota, e nunca deixou de ser praticado. Entre as palavras “semi-eruditas” são aquelas de entrada mais antiga na língua no Orto do esposo são: a) mundo: Exemplo. Hũũ barõ religioso leixou a esposa e o mũdo por amor de Jhesu Christo. 27 ( Ex.Orto do Esposo Cap 5, p.13) b) diabo: Exemplo. O emperador Diocleciano rogou a Sancto Ciriaco que desse saude a hũa sua filha, que era muy maltreyta do diaboo ( Ex.Orto do Esposo Cap 4, p.13) 28 Capítulo 3 Hortus Sponsi: Por uma sintaxe discursiva do português “arcaico” 3.0.1 Hortus Sponsi: A sintaxe “arcaica”da ordem das palavras Segundo Silva Neto (1976:226), os estudos sintáticos precisam fugir a todo e qualquer esquematismo e têm de recair na psicologia; não podem ser encarados por processos mecânicos. Isto quer dizer que ao empreender-se um estudo que tem por objeto o português arcaico o pesquisador tem que levar em consideração fatores intimamente ligados à natureza da linguagem e disciplinas intimamente ligadas à Filologia.. Continuando seu raciocínio Silva Neto nos diz: a par da Sintaxe é preciso levar em conta a Estilística, disciplina que teve largo desenvolvimento nesta primeira metade do século , graças, principalmente, aos estudos de Vossler, Spitzer e Bally. O segundo desses mestres assinala como teoricamente correta a distinção entre a estilística como individual behavior e a sintaxe como colletive mores, mas apresenta que, na prática, os estudos de sintaxe devem tirar a sua seiva da vida do estilo. Nihil est in syntaxi quod non fueri in stylo – escrevera ele vai para mais de vinte anos. Apresentando o conceito de arcaísmo chamando a atenção ao trabalho de Bally quanto à precisão em relação aos outros pesquisadores nos diz Leão (1957:15): Distinguindo arcaísmos referentes às palavras, ao sentido e à sintaxe, acaba praticamente, por eliminar os primeiros. Arcaísmo, diz, não é simplesmente sinônimo de expressão obsoleta e rara. Como Bally considera sempre um estado de língua determinado (sem explicá-lo pela história), isto é, encara todos os fatos numa perspectiva sincrônica, qualquer arcaísmo só poderá fazer parte desse estado de língua se for ainda 29 vivo.(...)Tomemos seu próprio exemplo:brandir um bastão à guisa de lança. (brandir un bâton en guise de lance). A locução à guisa de é corrente, ao passo que o substantivo guisa, que significava maneira está fora de uso. O emprego do substantivo guisa ocorre no último exemplo do Orto do Esposo no capítulo 1, em que aparece fora da locução à guisa de: E disse Sam Paulo: Pera tu tolheres toda duuida, eu te escreuerey as palauras, e tu as dy ao cego per tua boca e ẽ esta guisa: Enno || nome de Jhesu Christo nado da Uirgem, crucifixo, morto, e que resurgio e sobio aos ceeos, uee! Foi atualizado para maneira embora no glossário de Maler (1964:97) a palavra guisa para este contexto signifique modo: E disse São Paulo: Para tu tirares toda dúvida, eu te ditarei as palavras , e tu as dê ao cego pela tua boca, desta maneira: Em nome de Jesus Cristo, nascido da Virgem, crucificado, morto e que ressurgiu e subiu aos céus, veja! Houve assim uma escolha pessoal de atualização concordando com o determinante esta ficando o sintagma desta maneira e não deste modo. Segundo Leão (1957:15):o que diz Bally de um francês médio valeria também para um português ou brasileiro médios. Assim, o trabalho de atualização exige que o filólogo respeite o grupo fraseológico ou locucional em que a palavra está inserida e fazer sua escolha de acordo com o contexto do discurso em questão. São esses os cuidados de se atualizar um texto escrito em 30 português de Portugal para leitores do português brasileiro: preservação da mensagem verificando forma e conteúdo frasal e oracional. Continuando sua leitura de Bally, Leão (1957:16): revela que guisa só é palavra viva graças ao grupo fraseológico à guisa de: é um arcaísmo e como tal pode considerar-se índice do caráter locucional do grupo em que aparece(...) Os arcaísmos se reduziriam, assim, a duas categorias – os semânticos e os fraseológicos ou sintáticos. Embora Bally não o diga explicitamente, é o que deixa entender nos parágrafos em que se refere ao assunto. Percebe-se, assim que o conceito de arcaísmo é relativo: não é a palavra em si que se arcaizou, mas sim, o seu emprego dentro do contexto da oração, e no discurso do texto e é por isso que pode-se afirmar que há no Orto do Esposo um discurso arcaizante visto que não há arcaísmo da palavra propriamente dita e sim do seu emprego dentro do contexto locucional, frasal e textual, observando-se sua posição, e conseqüentemente seu sentido.Veja-se o conceito de arcaísmo de Bally em Traité de Stylistique Française citado por Leão(1957:15-16): Um arcaísmo é um fato de linguagem que pego isoladamente, não é entendido pelo falante e só torna-se inteligível por sua presença em um grupo de palavras. Só este grupo tem sentido, o espírito não fixa mais sua atenção na análise dos elementos desse grupo. Donde essa conclusão importante: todo fato de arcaísmo é indício de uma unidade da qual ele é só um elemento, isto é, o indício de uma unidade fraseológica . Com certeza, este fenômeno não se verifica em todos os casos, mas seu alcance não deixa de ser relevante. Sabe-se que as preposições fazem parte de locuções e expressões, merecendo uma explanação mais pormenorizada visto que estabelece relações entre as palavras. Assim, de acordo com Silva Neto (1976:226) o caminhar do sintetismo para o analitismo acarretava o desenvolvimento do uso das preposições que, assim, passavam a exprimir as funções sintáticas dantes indicadas pelos casos. 31 O próprio título da obra serve de exemplo: Orto do Esposo equivalente ao latim Hortus Sponsi em que o genitivo singular Sponsi estabelece a idéia traduzida pela preposição de em português. A palavra esposo origina-se para Williams (1975:87) do ns mediais do lat. cl. > lat. vulg. e port. s: sponsum > esposo. Verifica-se, assim, a origem clássica do substantivo esposo em português via acusativo, caso este que originou os nomes em português. Para Dias (1970:131): a prepos. de ligando um substantivo( ou equivalente do substantivo, já diretamente, já por intermédio do verbo ser, julgar, etc. (fazendo as vezes de n. predicativo)-, serve de designar a pess. ou coisa a que a outra pertence por qualquer respeito (posse, parentesco, etc.) (...) A prepos. de, tomada neste sentido é em port. ( e nas demais línguas românicas) de emprego mais lato do que o genit. possessivo do latim clássico, sendo que muitas vezes esta relação tinha de ser expressa por uma adjetivo ou por uma perífrase adjetiva. Aplicando-se o que disse Williams (1975) e Dias (1970), respectivamente, ao título da obra: Hortus sponsi. Segundo Hauy (1989:67): Da grande variedade de preposições registradas nos códices, muitas subsistem na língua, outras desapareceram completamente, e a preposição per manteve-se apenas nas combinações com o artigo definido (pelo, pela) e nas locuções: de per si , de per meio. Quanto ao emprego das preposições, encontra-se uma construção no cap. I do livro I intitulado DO NOME DE JESUS na Sinopse do conteúdo do Orto do Esposo de Maler (1956:191) : 32 Toda obra deve começar pela invocação do nome de Jesus. Exemplos. A expressão sozinha , isolada “DO NOME DE JESUS” significa “Sobre o nome de Jesus” ou “A respeito do nome de Jesus”. O interessante é que inserida na oração a mesma expressão do nome de Jesus complementa a palavra invocação funcionando sintaticamente como Complemento restritivo de especificação, mudando-se o sentido. Retomando Silva Neto (1976:227): De tudo se colhe que as construções preposicionais foram assumindo, cada vez mais, a função de puras distinções casuais, em desproveito do uso dos casos. Tal mudança levava forçosamente, a alterações na ordem da frase latina que, na feliz expressão de Marouzeau, era livre mas não indiferente. Assim se caminhava no sentido das frases curtas e da ordem preferencialmente direta (...) No início deste capítulo o próprio Silva Neto afirma que os estudos sintáticos têm de recair na psicologia, ou seja apresenta um fator psicológico em detrimento de um fator mecânico, isto é não, propriamente lógico ou gramatical ao analisar as frases. Implicitamente o autor possivelmente inclui ao estudo sintático-gramatical a Estilística. Ainda que a Estilística não seja filológica em sua natureza, influenciou o método idealista da filologia conforme Bassetto (2001). Para a sintaxe da frase latina vulgar, considerar-se-á características gerais descritas por Maurer Junior (1959:191-3) entre a construção da frase latina vulgar em oposição à língua clássica, antes de abordar especificamente a frase do português arcaico. 1) A língua vulgar é analítica na construção da sentença; 2) A frase popular caracteriza-se por ser mais determinada e concreta.; 3) A disposição das palavras se simplifica e se fixa, em oposição ao latim literário, no qual a ordem admite grande liberdade, sujeitando-se antes às preocupações de estilo do que às exigências da gramática. 33 Já especificamente para a frase arcaica, tendo-se em vista o item 3 de Maurer Junior, serão considerados o posicionamento teórico da obra A ordem das palavras no português arcaico de Pádua (1960), por utilizar metodologicamente como instrumento aspectos selecionados na prosa arcaica da frase de verbo transitivo cujos elementos essenciais: o sujeito, o verbo e o objeto – são expressos. Sobre a definição de frase, traz as tentativas infrutíferas de uma definição perfeita que leve em consideração a variedade de aspectos que a envolvem, além de outros problemas da natureza da linguagem, destaca na tentativa de tais definições, o predomínio de determinados fatores, como: o lógico, o psicológico etc, que possuem limitações e não são plenamente satisfatórias. Para Padua, segundo o ponto de vista lógico, a frase seria a entidade lingüística destinada a expressar um juízo completo. Esse posicionamento vem cumprir com as exigências gramaticais formais ao qual o leitor , na ausência de algum elemento essencial, deve esforçar-se por subentender claramente a mensagem. Na tentativa da fuga do esquematismo dito por Silva Neto, sobre os estudos sintáticos, surge o critério psicológico na tentativa de sair do mecanicismo, pois há que ter em conta o sentido da frase, tanto relativamente a quem a formula, como relativamente a quem a recebe. Pádua (1960, p.9). Portanto, nos moldes psicológicos, a análise do problema não toma por base a frase formal, mas todo aquele sentido primitivo, primeiramente nascido no espírito que depois a exteriorizou. 3.0.2 Hortus Sponsi: Aspecto semântico da frase 34 Sobre o aspecto semântico da frase no processo de formulação emissor-receptor, ela pode exteriorizar qualquer fenômeno psíquico, não só intelectual mas também afetivo, e ter significado apenas para o seu autor. Ao falar de autor, no caso anônimo do Orto, já foi dito em capítulo anterior que o mesmo se dirige diversas vezes a uma suposta irmã que lhe encarregou repetidas vezes que escrevesse hũũ iuuro dos fectos antygos e das façanhas dos nobres barõees e das cousas marauilhosas do mũdo e das propiedades das animalias. Maler (1964,p.23) lamenta o fato de que o nosso anônimo estivesse ligado demais à sua ideologia teológica para poder melhor satisfazer o desejo da sua irmã. Quanto ao significado frasal para o autor, esclarece Pádua (1960, p.9): este, ao revelar o próprio pensamento ou sentimento, está esquecido do mundo exterior. E é muitíssimo importante, neste aspecto, a colocação de palavras com que brotam as frases – uma colocação geralmente impulsiva, apresentando no princípio o que mais fortemente impressionou determinado espírito e causando, por vezes, uma alteração radical em toda a frase. O esquecimento do mundo exterior, seria a prisão à ideologia teológica, e o que mais impressionou ao autor, não foi o livro e sim os fectos antygos, as façanhas dos nobres barõees , cousas marauilhosas do mũdo e das propiedades das animalias. Prossegue Pádua (1960): Outras vezes, a frase já se destina a alguém,- a irmã - mas nem por isso passa a exteriorizar apenas elementos lógicos. Pelo contrário, destina-se a impressionar outro espírito, quer pelo peso de argumentos, quer pela intensidade de sentimentos. Parece ser o caso do Prólogo: 35 trabalhei-me de fazer este liuro das cousas cõteudas ẽnas Escripturas Sanctas e dos dizeres e autoridades dos doutores catholicos e de outros sabedores e das façanhas e dos exemplos dos sanctos homẽẽs. E co esto mesturey as cousas que tu me demandaste, asy como pude, segundo a bayxeza do meu ẽtendimento e do meu saber. O posicionamento de Pádua é concordante com o de Silva Neto quando ela diz: as definições subordinadas ao critério psicológico são muito mais completas e expressivas do que a definição ditada pelo critério lógico. Embora reconheça que somente este critério não dá conta de todos os requisitos necessários para a frase ser completa, ou que abranja os múltiplos fatores atuantes. Pádua, citando Harri Meier afirma: esta psicologia lingüística não parte das formas gramaticais, mas parte das intenções, dos valores semânticos, das funções das unidades sintáticas. Diz, Pádua: Na frase de dois membros, o conceito mais conhecido, primeiramente expresso, seria o sujeito psicológico; o termo que definisse a relação existente entre os dois, quer dizer, que apresentasse o que até aí era desconhecido seria o predicado psicológico. É o que ocorre no início do Sermão de todos os capítulos I , II , III, IV e V, do corpus analisado respectivamente: Ihesu Christo he uirtude e sabedorya de Deus Padre Este nome Jhesu he manyar O nome Jhesu he meezinha Este nome Jhesu he marauilhoso O nome de Jhesu he de muita uirtude 36 Acrescenta, Pádua (1960, p.14) Numa frase organizada poderemos continuar a distinguir sempre estes dois conceitos, até constituídos não por uma única palavra, mas por uma expressão mais ou menos longa. É a expressão NOME DE JHESU que é o grande leitmotiv do discurso religioso arcaizante de toda a obra, principalmente no corpus analisado do Livro I , o que impulsionou este estudo específico, é o que se torna evidente no decorrer da leitura de todo o texto. Todas estas frases respectivamente fazem parte do início do sermão, vindo atrelar uma carga retórica ao qual este discurso se predispõe, sintetizado em sua essência com precisão por Spina ( 1961,p.20): O Orto do Esposo liga-se ao culto do Nome de Jesus; livro de edificação moral, sua doutrina aparece baseada em histórias exemplares, e seu temário gira em torno do nome de Jesus, das meditações alegóricas sobres as escrituras, e das vaidades do mundo. Vale ressaltar que todas as frases que iniciam os respectivos capítulos do Livro I, do corpus em apreço são nominais e regulares , ou seja , repete-se a mesma estrutura . Levando em consideração os fatores gramaticais – fonéticos, morfológicos e sintáticos, e artísticos, explana sobre o fonético, Pádua (1960, p.26): os elementos frásicos de caráter nominal, tendo uma acentuação própria e independente, podem sofrer muitas variações na disposição que apresentam na frase. Sobre o fator morfológico, a frase organiza-se de acordo com essa constituição ou massa, numa seqüência progressiva e crescente; em que elementos mais extensos seguem os mais breves. 3.0.3 Hortus Sponsi: aspecto sintático da frase 37 Quanto ao fator sintático, Padua chama a atenção sobre construções especiais e particulares pedidas por alguns verbos, oriundos do latim ou inovação das línguas românicas. Na prosa, destaca : o ritmo passa mais despercebido; no entanto, quando se trata de uma prosa declamada, tem já muito valor, pois as palavras impressionarão correspondentes à perfeição rítmica com que foram ditas. É sabido que no latim o ritmo é rigorosamente marcado por um traço prosódico composto de um sistema fonético baseado na quantidade de pronunciação das vogais que são longas e breves, marcadas na escrita pelo mácron e braquia , respectivamente, trazendo implicações no ritmo e na disposição morfológica ou até sintática das palavras na frase. O que não ocorre no português arcaico, em que o sistema foi moldado paulatinamente pela tonicidade das palavras em átonas e tônicas conservando-se seu ritmo peculiar em uma cadeia morfo-fonética, não desprezando totalmente os critérios lógicos e gramaticais , fazendo com que os estudos lingüísticos fiquem restritos ao mero subjetivismo Mattoso Câmara (1976,p.233) apresenta os padrões frasais: A língua portuguesa, como as demais língua românicas, conservou o padrão frasal básico latino, que consiste num nexo entre “sujeito” e “predicado”, segundo os termos que a gramática latina adotou ao traduzir e acompanhar a gramaticologia grega. Sobre as classes gramaticais diz Masip (2003, p.75) e (1999, p.139) e citando Mattoso Câmara: Platão(427-347 a C.) é o primeiro pensador grego a estudar a gramática de modo ordenado. Estabelece uma divisão fundamental entre nome (ónoma) e verbo (rema), a qual subjaz à analise sintática e à classificação lingüística posterior. 38 Vejamos alguns exemplos de ordem ascendente em latim – e descendente em português arcaico respectivamente, para se ter uma noção de todos os fatores integrados: Iesu nomen medicina est. O nome Jhesu he meezinha. Hic Iesu nomen mirabilis est Este nome Jhesu he marauilhoso. Sobre alguns tipos ordem das palavras, Padua (1960, p.25) as divide em ordem ascendente e descendente. A primeira, típica do latim, é aquela em que a palavra que rege se coloca sempre depois da palavra regida; e ordem descendente, típica das línguas românicas, é aquela em que se verifica o fenômeno contrário, figurando primeiro as palavras regentes, seguidas das que são regidas. Conforme Câmara Junior (1976,p.233) na frase nominal em latim o nexo era essencialmente expresso por meio fonológico, através do que se chama a “entoação” , isto é, uma linha melódica ascendente, que se complementa com uma linha melódica descendente. Para o padrão normal português, a forma do verbo ser se intercala entre o sujeito e o predicado. 3.0.4 Hortus Sponsi: Estrutura “normal” da frase padrão A propósito do padrão normal português, Padua(1960, p.19) fixa a estrutura da frase normal, vulgarmente usada na linguagem oral e na escrita: A frase organizada apresenta-se, habitualmente, como tradução dum pensamento completo, exteriorizado só depois de reunidos todos os fenômenos que o constituem. Tem em geral duas partes, nas quais é de muita importância o tom de voz, quer este se ouça realmente na linguagem oral, quer só mentalmente quando lemos ou escrevemos. Na primeira parte há uma subida, na segunda a conseqüente descida. A segunda parte parece fechar o sentido, depois de ter sido completamente iluminado numa seqüência progressiva, desde o princípio da frase até o meio – o ponto 39 onde a intensidade é mais forte. Quase sempre a esse ponto corresponde uma pausa de repouso e expressão introdutória do membro descendente. Depois deste, há uma pausa final. A frase completa dá, por isso, uma idéia de ondulação, numa subida e descida gradual, acompanhando a revelação de todo o sentido. Essa “ordem normal” das palavras para Huber (1986,p.283): sujeito + predicado + complemento (S P C) já se encontram no português antigocomo aliás ainda hoje acontece no português moderno – as mais diversas variações na colocação destes membros na oração. Assim, para complementar este estudo, faz-se necessária uma correspondência comparativa no sistema do português arcaico quanto às possibilidades de colocação das palavras na Gramática do Português Antigo de Huber (1986) e na obra A ordem das palavras no português arcaico – frases de verbo transitivo de Padua (1960). Este por ser uma estudo específico em filologia e aquele por ser a única gramática do português antigo de que dispomos. É importante ressaltar que Huber destaca sintaticamente o predicado ( P ), distinguindo o do complemento ( C ), embora se saiba que o complemento quando aparece, implicitamente faz parte do predicado. Em Pádua a distinção é mais clara, por considerar morfologicamente o verbo ( V ) como categoria gramatical distinta do complemento ( C ). Na correspondência: ( P ) em Huber corresponde a ( V ) em Pádua. Neste momento é valido um questionamento se Huber estaria inadequado.Não, trata-se somente de uma questão de nomenclatura. Se considerarmos o português moderno em sua descrição, a nomenclatura é bem adequada e moderna. O (P) de Huber equivaleria 40 ao núcleo do predicado (NdP) em Perini (1996, p.71) na Gramática descritiva do Português : O verbo desempenha na oração unicamente a função de núcleo do predicado; essa é a única função que um verbo pode desempenhar, e somente um verbo pode ser núcleo do predicado. Em outras palavras, o verbo é sempre o NdP da oração; e o NdP da oração é sempre um verbo. Essa reflexão se faz necessária para que o leitor entenda a comparação que Huber (1986) faz entre no estabelecimento da ordem das palavras no português antigo e moderno. Após estas considerações de ordem nomenclatural, pode-se sistematizar um quadro comparativo e, conseqüentemente, a freqüência do emprego, em termos gerais , das possibilidades na prosa literária arcaica, da qual faz parte o Orto do Esposo: Huber (1986) Padua (1960) freqüência do emprego 1. S P C Sujeito + verbo + complemento ( freqüente) 2. S C P Sujeito + complemento + verbo ( freqüente ) 3. C S P Complemento + sujeito + verbo (emprego raro) 4. P S C Verbo + sujeito + complemento (mais freqüente) 5. P C S Verbo + complemento + sujeito ( menos freqüente) 6. C P S Complemento + verbo + sujeito (mais freqüente) Para facilitar a análise, considerar-se-á o corpus , o Livro I do Orto do esposo, salvo casos excepcionais, em que alguns casos relevantes apareçam em outros livros e que contribuam para o estudo da modalidade. 41 As modalidades que serão abordadas serão a 1 por ser a ordem direta do português antigo e moderno e a 3 por tratar-se de uma construção rara distante da moderna. Razão da escolha: a modalidade “Sujeito + verbo + complemento” é a forma geral, habitual de uma narrativa na prosa nos modernos moldes da linguagem e a construção “Complemento + sujeito + verbo” é uma forma específica de construção existente no Orto, que merece um destaque especial. Ambas virão precedidas de uma sintética abordagem teórica, para que possam servir de fértil embasamento aos pesquisadores quanto à análise sintática do português tanto arcaico como do latim, com propósitos múltiplos: compreender a construção da frase latina no que concerne ao discurso religioso, como também das línguas românicas, melhorar o desempenho em língua portuguesa moderna a partir de reflexão sobre e na língua etc. aplicáveis não só no Orto, mas na prosa literária medieval portuguesa, em sua multiplicidade. Não será preciso deter-se nas outras colocações das ordens das palavras, pois como afirma Paiva (1988,p.81) A colocação das palavras na frase, posto que não faça parte da sintaxe, é um dos aspectos mais característicos da fase arcaica e mesmo da época renascentista. Sabe-se que não se pode exagerar, pois no processo de tradução, a ordem das palavras possui uma certa relevância, principalmente de uma língua sintética como o latim, para uma analítica: o português. Modalidade 1. S P C Sujeito + verbo + complemento ( freqüente) 42 Para Pádua (1960, p.41), é esta a construção mais clara, em que a idéia é traduzida com maior capacidade de ser perceptível. Em todas as línguas românicas ela goza desse privilégio de clareza e representa um esforço de racionalização e disciplina. Esta construção, durante a leitura do corpus é a mais evidente, pois a idéia construída pelo autor, principalmente nos Sermões do Livro I em seus respectivos capítulos tem a importância retórica, religiosa e sobretudo didática, conforme já visto anteriormente, que o autor tinha poucos modelos vernáculos, dando estilo , dispondo as palavras com vistas a um público determinado. Suas idéias devem ser claras e precisas, pois corre o risco de não serem compreendidas pelas autoridades medievais. Segundo definição de Bidois, citado por Pádua (1960, p.40), a ordem [...] que responde às exigências do pensamento refletido até um outro fator que não vem atrapalhar seu funcionamento normal nem sua expressão pela língua. Esta modalidade também é chamada de ordem direta . O motivo esclarece Pádua: porque traduz, sem alteração, o desenvolvimento dum raciocínio. Notamos, por assim dizer, uma paralelismo nítido entre a elaboração dum pensamento no espírito de quem fala ou escreve, e a exteriorização desse mesmo pensamento. Este pensamento seria o fruto do labor literário da construção de uma prosa com fins doutrinários e que tem por primazia a clareza de idéias que foram sacadas de diversas fontes, principalmente das autoridades eclesiásticas , garantindo o posicionamento do discurso religioso tema do Sermão, evidenciado e prolongado nos Exemplos. 3.0.5 Hortus Sponsi: fator intelectual de construção das idéias 43 No capítulo anterior, Maler chama o Orto do esposo de obra de divulgação científica, possivelmente pela predominância do fator intelectual de construção das idéias, concatenização das mesmas, fontes etc. Mas não se pode exagerar, retringindo-se somente ao critério lógico ou racional, temos de levar também em consideração o critério psicológico proposto inicialmente por Silva Neto (1976:226) nos estudos sintáticos e em Pádua (1960,p.42): Na verdade, a colocação direta das palavras na frase, é a conseqüência duma construção prévia, de caráter espiritual, cujos elementos são resultantes da própria atividade psicológica. É a construção que exterioriza um pensamento organizado e completo. E é essa completude que o autor anônimo preocupa-se no tema dos Sermões construídos, elegendo a frase nominal na abertura do discurso religioso, construído previamente , retomados e repetidos com fins persuasivos ao longo dos outros capítulos. Sobre esta ordem, novamente, frisa Pádua (1960, p.42): É a construção que exterioriza um pensamento organizado e completo, citando Ginneken: A ordem sintática ou a ordem das palavras na construção é evidentemente mais recente e secundária. A ordem de adesões e de sentimentos ou a sucessão das unidades independentes é mais antiga e primária tão naturalmente quanto. Baseado também em Ginekken, Pádua (1960) torna mais clara a citação , apresentando o que se entende por adesão: A adesão, o que quer que seja o nome que se queira dar, é o essencial do pensamento, mesmo na narração concreta, a mais simples, tanto para aquele que fala, como para aquele que escuta. Nesse caso, aquele que escuta, estaria para o leitor da obra, em que já no Prólogo voltado a este leitor , comenta Spina (1961, p.71) sobre o plano de construção do Orto: 44 Neste Prólogo o autor anônimo nos informa das razões da elaboração da obra (Orto do Esposo) e do conteúdo das belas e edificantes narrativas por ele coligidas. Então, é provável e natural que o anônimo escolha uma ordem racional de disposição das palavras ao elaborar seu discurso nos moldes diretos, envolvendo um estilo pessoal na forma de construção do conteúdo. Assim, a adesão do pensamento em uma literatura de Exempla, de nosso corpus, está contida essencialmente nos Sermões, e os Exemplos funcionariam como reforço dessa adesão. Este conceito é de extrema importância no Orto do Esposo em que o Sermão e os Exemplos são bem definidos e delineados pelo autor. Para se compreender a ordem direta do português arcaico comparado aos moldes do português moderno, diz Padua (1960, p.43): reconhecemos, sem dificuldade, que ela não é só característica do português arcaico, mas tem um cunho absolutamente atual. E frisa: estende-se a outros idiomas românicos, estende-se ao português, e aqui surge não apenas na época atual, mas em perfeita continuidade de uso, desde os primeiros textos existentes. E é por essa razão que o capítulo anterior iniciou-se com um trecho do Portucaliae Monumenta Histórica , para fazer a biografia do termo hortus. Sobre esta obra, comenta Vázquez Cuesta , Luz, (1971, p.370): Na obra Portucaliae Monumenta Histórica (recopilação do ilustre historiador Alexandre Herculano), editada pela Academia das Ciências de Lisboa) encontramos uma importante coleção de documentos escritos em latim incorreto e avulgarizado que tanto interesse tem para os filólogos. Só nos começos do século XIII começam a aparecer, alternando com eles, outros redigidos total ou quase em português. Como a abordagem deste trabalho é filológica, é importante para o entendimento do discurso religioso, do latim ao português a idéia primeira de hortus, já analisada, na cultura portuguesa, pois o Orto do esposo não deixa de ser uma recopilação de narrativas ou 45 relembrando Maler (1964,p.22): sabe-se que a palavra hortus e sinônimos empregava-se muito amiúde como título de compilações de diferentes classes. A propósito do latim em suas modalidades, faz-se necessário um estudo da ordem das palavras respeitando-se sua origem, para entendermos o emprego dentro do português arcaico por Padua (1960, p.44): Já dentro do próprio latim, onde a existência da flexão nominal constituía uma fonte de riqueza para a variedade da frase, visto que, devido a ela, o sentido seria sempre perceptível e a função de cada palavra bem distinta, se encontra essa tendência para a ordem moderna das palavras. 3.0.6 Hortus Sponsi: fator biográfico-religioso Mais uma vez, destaca-se a importância de se fazer a biografia dos termos Hortus e Sponsus que abre o capítulo anterior, contextualizando-os lingüística e literariamente tendo em vista o entendimento do objeto de estudo empreendido: o discurso religioso “arcaizante” que o anônimo deu feição portuguesa a partir do latim. Sobre o deslocamento do verbo latino do fim para o meio da frase , conclui Padua (1960,p.45): podemos concluir que a ordem das palavras moderna românica estava já em embrião antes da própria existência dos idiomas românicos, vivia em potência no latim, desde os mais recuados tempos, e foi o resultado de um desenvolvimento progressivo dessa força que caminhava para uma maior perceptibilidade, e ia ganhando vantagem, à medida que desapareciam outros elementos da língua base, como a flexão nominal, fato que 46 provocava a necessidade do processo analítico e dava forças a tudo que contribuísse para a compreensão mais clara e completa das idéias. O curioso é que a ordem direta já é proveniente do próprio discurso religioso da Peregrinatio ad loca sancta dentro do latim vulgar que vem a exemplificações de Grandgent citada por Pádua (1960, p.45): Haec est autem vallis ingens et planissima, in qua filii Israel commorati sunt his diebus, quod sanctus Moyses ascendit in montem Domini, et fuit ibi quadraginta diebus et quadraginta noctibus. Traduzido por: Este vale é enorme e planíssimo, em que os filhos de Israel se demoraram naqueles dias, quando santo Moisés subiu ao Monte do Senhor e ficou ali quarenta dias e quarenta noites. Outro exemplo, do discurso religioso, foi extraído da Vulgata do Êxodo XXXII, 33, 34: Cui respondit Dominus: qui peccaverit mihi, delebo eum de libro meo; tu autem vade, et duc populum istum quo locutus sum tibi; angelus meus praecedet te. Traduzido respectivamente por: Então, disse o Senhor a Moisés: Riscarei do meu livro todo aquele que pecar contra mim; Vai, pois agora, e conduze o povo para onde te disse: eis que o meu Anjo irá adiante de ti. 47 Podemos levantar a provável hipótese de que é do discurso religioso latino que o autor anônimo deu a forma da ordem direta portuguesa na composição de sua obra pela incorporação de várias vozes nas ínfimas traduções incorporadas a seu discurso. quod sanctus Moyses ascendit in montem Domini quando santo Moisés subiu ao Monte do Senhor angelus meus praecedet te. O meu anjo irá adiante de ti. Em que, segundo Pádua (1960, p.45) apresentam já essa ordem românica, conservando ainda a flexão latina. Modalidade 3. C S P Complemento + sujeito + verbo (emprego raro) Caso excepcional, distante do português moderno, ocorre no Orto do Esposo, em uma oração conjuncional de sentido temporal, extraído de J. J . Nunes, registrado por Padua (1960, p89): E, tanto que as eu tomei e começey de braadar, logo aquelle moço nõ pareceu mais, e eu creo que era angeo de Deos. 3.0.7Hortus Sponsi: A “sintaxe” do discurso religioso “arcaizante” Retomando os estudos sintáticos, agora em moldes mais discursivos nos diz em capítulo intitulado Sintaxe e discurso, Azeredo (1997,p.120): Sabemos, porém, que os períodos se associam no discurso por meios variados, que já não classificaremos como sintáticos, mas como discursivos. Tradicionalmente, as investigações nesse terreno estiveram a cargo da retórica e da estilística. A contribuição do estruturalismo a esses estudos se deve notadamente à teoria literária. 48 É por esta razão que se justifica a abordagem em dois pólos integrados lingüísticoliterário do capítulo anterior, por trazer ao plano do discurso religioso a questão específica do discurso literário em construção, discussão sobre o gênero da obra e recepção da mesma, a questão da Divindade no simbólico aproximando-se da estética simbolista, seguido de tratamento lingüístico paralelo. Sobre esses dois pólos do discurso , afirma Azeredo (1997, p.121): O discurso se situa, inevitavelmente, no ponto de tensão entre dois pólos: a individualidade criativa do locutor/enunciador e o conjunto de variáveis que, externas a ele, limitam, condicionam ou afetam de diversos modos a enunciação: o código lingüístico, o interlocutor, o tempo, o espaço, a situação social, o conteúdo, crenças e valores culturais, o texto , o texto em processo, outros textos. As variáveis apresentadas se materializam no discurso, segundo Azeredo (1997, p.121), através de certos procedimentos que serão descritos didaticamente para fins de análise, facilitando, assim, o entendimento em três categorias discursivas: A modalidade (relações com o interlocutor e o conteúdo), referência (relações com o tempo e o espaço) e a polifonia (relações com outros textos/discursos). As contribuições da retórica e da Teoria literária serão enfocadas, devido a complexidade da natureza do discurso, pela variedade de aspectos e fatores que o condicionam, em que o corpus esteja intimamente predisposto a essas necessidades. As expressões, quando possível, serão colocadas na forma arcaica, seguida da moderna , para facilitar a leitura do corpus. a) modalidade 49 Para Azeredo(1997, p.122), diz respeito à expressão lingüística de dois aspectos: as apreciações do locutor sobre o conteúdo proposicional das orações e seus interesses e intenções quanto às tarefas da enunciação. Veja-se que ocorre o mesmo no que diz respeito à Teoria da Narrativa , quanto ao discurso modalizante, para Carlos e Reis (1988, p.287): Neste, detecta-se indiretamente a presença do sujeito da enunciação através dos modalizadores, expressões lingüísticas que assinalam a atitude do locutor em relação ao conteúdo proposicional do seu enunciado.Advérbios e locuções adverbiais como samica (s) “ talvez”, de cham “sem dúvida, certamente”, expressões do tipo é possível que , é provável que, é incontestável que, e ainda verbos de opinião como parecer, julgar, supor, crer, eis algumas das formas lingüísticas características do discurso modalizante. Este tipo de discurso presta-se obviamente à expressão de um conhecimento limitado. É o que ocorre no final do último exemplo do livro I, capítulo 1 com o verbo parecer: E asy parece que o nome de65 Jhesu Christo he luz da fe catholica. Há uma passagem, no penúltimo exemplo do Livro I, capítulo 1 deste discurso com emprego abundante do verbo crer: Oo tu, filosapho, ẽno nome de Jhesu Christo ouue a ensinança da uerdade! Hũũ he Deus do ceeo e da terra e de todalas cousas , que as fez e criou co a uirtude da sua palaura e as firmou com a sanctidade de seu spiritu. Esta palaura e uerbo, que nos chamamos Filho de Deus, auẽdo misericórdia sobre os homẽẽs, liurou-[o] s do error ẽ que eram e soffreu e quis nacer de molher e conuersar com os homẽẽs e morrer por elles e vĩĩra outra uez a julguar a uida de cada hũũs . E estas cousas creemos sem mais escoldrinhar. Pois , nõ queyras mais trabalhar em vãão pera destroir esto que auemos por66 fe, nẽ queyras emquerer a maneira per que podem seer estas cousas ou nõ seer. E se me nõ crees, responde a estas cousas. Tanto que esto ouuio o fillosapho, ficou espantado e disse: Creeo. E dou muytas graças a Deus e ao uelho porque o asy67 uẽẽcera. E emduzia os outros que creessem aquello meesmo, marauilhando-sse muito como se uia assy mudado e dizendo e jurando que era mudado e tragido aa ffe de Jhesu Christo per hũa uirtude que el nõ sabia falar nem dizer. E asy foy fecto fiel per este nome Jhesu. 65 falta em B. B per. 67 o asy] B assy o. 66 50 Essa questão religiosa entre fé e razão é retomada e tratada no discurso jornalístico moderno, assinado por Hama, na revista Veja de 24 de dezembro de 2003. Mais especificamente em Os gênios falam de Deus ,ver capa e artigo em anexo. Fica evidente, assim, a modernidade do “discurso religioso arcaizante” por este registro modal do discurso presente no Orto do Esposo, em que o filosapho seriam representações “comparáveis” aos gênios Albert Einstein e Stephen Hawking. O caráter ideológico é bem correspondente nos dois discursos, com uma diferença apenas, o discurso religioso desta passagem é subjetivo e o jornalístico é objetivo, de cunho intencionalmente “impessoal” ao se referir a mesma questão. Comparando as duas linguagens literária e jornalística em contexto de linguagem e ensino, ocorre no processo de leitura um processo de produção de significados, signos e valores na vida social, conforme Eagleton (1997, p.15). A lei de modalidade, para Maingueneau (1996, p.126), muitas vezes, contudo ,traduz mais divergências ideológicas do que uma transgressão objetiva. A divergência ideológica, evidencia-se pelos verbos modalizantes: creemos , crees , creeo, creesem, este último, presente do subjuntivo, empregado como potencial, e expressões como podem seer estas cousas ou nõ seer confirmam a lei da modalidade está na passagem do Exemplo do Orto entre o uelho e o filosapho sobre a questão da fé. Quanto às posições discursivas dos aparelhos ideológicos, propriamente ditos, Igreja e Imprensa, respectivamente, percebe-se, segundo definição de Eagleton (1997, p.15), uma conjuntura de discurso e poder. Como também, ideologicamente para Santaella (1996, p.330) na linguagem: a ideologia toma corpo concreto, sensível, material e objetivo nas linguagens que circulam, através dos aparelhos e por meio das instituições, no intercurso social. 51 Por essa comparação de linguagens, pode-se construir um pensamento de identidade com o leitor moderno, e é por isso que se fez necessária a atualização do corpus no capítulo 1 deste trabalho, com finalidade de leitura e que posteriormente serve de múltiplos propósitos aos professores de língua e literatura portuguesas, a partir da prática e apreciação dos textos, cruzando linguagens, pode-se construir um leitor crítico a partir de uma leitura ética, justamente por não negar uma herança cultural ao público leitor a partir dessa aproximação de diferentes ethos culturais. Segundo Nunes (1998, p.175): ethos é o modo de ser e agir do homem e a importância da leitura ética está no seu valor de descoberta e de renovação para a nossa experiência intelectual e moral. Essa abordagem sobre linguagem e ensino, a partir da estrutura e funcionamento da língua, pode oferecer ao público do magistério possibilidades de dissecar as orações, (re)definir funções, identificar relações do enunciador-enunciatário com seu próprio enunciado e outras possibilidades que ampliarão a tarefa de se refletir e analisar outros discursos, um instrumento importantíssimo e relevante ao leitor moderno, como também objetivo de ensino de língua materna, retomando e não desfazendo das contribuições anteriores. b) referência De acordo com Azeredo (1997, p.126), a referência constitui o conjunto dos meios pelos quais o locutor designa no discurso as variáveis do contexto: ele próprio ( o locutor) o interlocutor, o tempo , o espaço, o assunto. Segundo Azeredo a partir de Reyes, o conjunto referência – polifonia faz parte de um “entorno”, ou seja, uma ancoragem que consta de elementos lingüísticos ( que formam 52 o “contexto”, onde cabem todos os textos suscitados,aludidos, transcritos) e elementos extralingüísticos , organizados em função do aqui e agora da enunciação. São equivalentes às circunstâncias – variáveis que estão ao redor de algo- em Bassetto (2001, p.53) que abre o capítulo precedente deste trabalho, quando se refere aos critérios internos e externos, e o que se chama modernamente polifonia , filologicamente equivale ao estudo e pesquisa das Fontes para Bassetto (2001, p.52) citações diretas e as indiretas, as alusões, as imitações, em resumo, toda e qualquer influência de outros autores sobre o texto. Para Maingueneau (1995, p.121), enquanto enunciado, a obra também implica um contexto: uma narrativa, por exemplo, só se oferece como assumida por um narrador inscrito num tempo e num espaço que compartilha com seu narratário. Quanto à linguagem, Maingueneau (1995,p.121) discursivamente denomina os protagonistas da interação da linguagem, enunciador e co-enunciador, assim como sua ancoragem espacial e temporal ( EU↔ E TU, AQUI, AGORA). A essa situação de enunciação é denominada por Maingueneau de cenografia. No caso da prosa doutrinária como Orto do Esposo, literatura de Exempla não é apenas “exempla” por seu conteúdo, mas também pela maneira como institui a situação de enunciação narrativa que a torna “de Exempla”. Assim, para Maingueneau (1995, p.122), o que o texto diz pressupõe um cenário de palavra determinada que ele deve validar através de sua enunciação. Parece ser esta a cenografia no prólogo da obra: 53 trabalhei-me de fazer este liuro das cousas cõteudas ẽnas Escripturas Sanctas e dos dizeres e autoridades dos doutores catholicos e de outros sabedores e das façanhas e dos exemplos dos sanctos homẽẽs. E co esto mesturey as cousas que me tu demandaste, asy como pude, segundo a bayxeza do meu ẽtendimento e do meu saber. Retomando-se o capítulo anterior, a razão do título o próprio autor anônimo explica também,no Prólogo: E puge nome a este liuro Orto do Esposo, scilicet Jhesu Christo, que he esposo de toda fiel alma, porque asy como emno orto ha heruas e aruores e fruitos e especias de muytas maneyras para delectaçõ e mãtimẽto e meezinha dos corpos , bem asy em este liuro som conteúdas muitas cousas pera mãtimẽto e deleitaçom e meezinha e cõsolaçõ das almas [dos homẽẽs] de qualquer condiçom A cenografia define, segundo Maingueneau (1995, p.123), as condições de enunciador e de co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais de desenvolve a enunciação. Vale ressaltar que a cronografia refere-se à inscrição legitimante de um texto estabilizado. É provável que a cronografia se vincule com a preocupação analítica de precisar e estabelecer o tempo, tendo em vista a questão aspectual dos modos da língua nas várias conotações. Aplicando-se essa análise cenográfica nas passagens anteriores do Prólogo, temos: Na primeira passagem, há um dialogismo generalizado em que se mistura –mesturey - as vozes gradativas das cousas cõteudas ẽnas Escripturas Sanctas e dos dizeres e 54 autoridades dos doutores catholicos e de outros sabedores e das façanhas e dos exemplos dos sanctos homẽẽs, passando-se pela cenografia de um compilador que sabe intervir em sua narrativa para estabelecer uma conivência com um leitor próximo dele – a possível irmã. Esse compilador apresenta-se como “pouco instruído” : bayxeza ( pouca altura ) do meu ẽtendimento e do meu saber. Na outra passagem, instaura-se a cenografia do pregador, valendo-se de um aposto explicativo scilicet “isto é ” para construir a idéia metafórica de Jesus que he esposo de toda fiel alma , e outra construção metafórica da topografia: orto ha heruas e aruores e fruitos e especias de muytas maneyras para delectaçõ e mãtimẽto e meezinha dos corpos – que se dirige almas [dos homẽẽs] de qualquer condiçom. As referências colocam em foco questões sobre o sistema temporal do verbo, denominado Contexto mediato e contexto imediato por Azeredo (1997, p.126) : O verbo apresenta duas séries de formas – variações temporais – conforme tenham por pólo de referência o contexto mediato ou o contexto imediato. No interior de cada uma dessas séries as formas verbais variam para representar o conteúdo como ‘perfeito’ ou como ‘potencial’. Uma terceira forma o representa como neutro em relação a essas propriedades. Retomando uma longa discussão do item anterior, Dubois (1974, p.97), traz a contribuição da retórica na sintaxe das frases, em Retórica Geral, destacando o verbos latinos veni, vidi , vinci , nas ações Mais generalizadamente, a sintaxe continua ocupando um território flutuante entre morfologia, lógica e semântica. Assim, quando revela um aspecto icônico ou diagramático nos fenômenos da sintaxe, Roman Jakobson nos conduz a uma lógica da estrutura frásica . Na maioria das línguas, expõe ele, a ordem das palavras corresponde, sob diversos aspectos, à lógica do conteúdo: sucessão de verbo conforme à cronologia das ações veni, vidi, vinci, prioridade do sujeito sobre o objeto, que assinala o “herói” da mensagem, etc 55 Azeredo(1997, p.127) utiliza os verbos latinos veni , vidi , vinci, de acordo com o pólo de referência dos verbos no português moderno: Pólo de referência: contexto imediato Processo perfeito:cheguei, vi, venci Processo potencial:chegarei, verei, vencerei Processo neutro: chego, vejo, venço Pólo de referência: contexto mediato Processo perfeito: chegara, vira, vencera Processo potencial:chegaria, veria, venceria Processo neutro: chegava, via, vencia É curioso notar, em fins de análise, que o potencial é difícil de precisar seus limites semânticos no jogo discursivo, em que as formas do presente distribuem algumas formas do passado, dando progressão à leitura . Para abordar o contexto mediato apenas como tempo passado, Azeredo (1997, p.217) , citando Weinrich que distinguiu “o mundo comentado”(contexto imediato) e o “mundo narrado” (contexto mediato). Desta maneira, o mundo comentado é próprio do Orto do Esposo devido a questão religiosa, cultural, na colocação dos argumentos e disposição das palavras ao defender uma tese. 56 Distinguindo os tempos como plano do “discurso” e da “narrativa”, estabelece um quadro Maingueneau (1996, p.46): Discurso Passado composto/Imperfeito ↑ Presente ↓ Futuro simples /Futuro perifrástico Narrativa Passado simples / Imperfeito ↓ (prospectivo) Oral e escrito Escrito Uso não específico Modalização Uso narrativo Modalização “zero” (= asserção) De um modo geral , é o tempo do discurso que predomina nos sermões e exemplos do Orto, pelos modalizadores já vistos, pela alternância passado/presente. c) polifonia Discutiu-se anteriormente que Orto do Esposo é um texto polifônico por natureza em seu discurso, por ser extremamente religioso e com “status” científico. No científico devido a evolução do conhecimento, da cultura portuguesa, um certo interesse por ela, conforme já observado por Maler e literário como matéria de criação e repetição de informações, um influindo no outro concatenamente. A polifonia automatizada ocorre quando, segundo Azeredo (1997, p.129), uma pessoa assume acriticamente o discurso alheio, tornando-se apenas um instrumento de 57 uma ideologia que ‘passa além’ através de sua boca, exemplificando com os jargões religiosos, abundantes no Orto do Esposo, que uma pessoa repete sob a ilusão de que está dizendo o que pensa. Basta uma simples leitura para se comprovar este fenômeno. Pelo que foi visto anteriormente, a modalidade, a referência e principalmente a polifonia são marcas bem delineadas no discurso religioso , como também presentes em outros, conforme a predisposição discursiva, estes procedimentos podem predominar conjuntamente. 58 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra portuguesa da Literatura de Exempla, Orto do Esposo possui um código de linguagem própria e singular. Não é a toa que vários estudiosos a exemplo de Serafim da Silva Neto , outros filólogos e pesquisadores a citaram constantemente sobre os diversos “arcaísmos” nela contidos. Daí a razão deste trabalho , à luz da contribuição discursiva, não desprezando as contribuições clássicas anteriores para não ferir a orientação filológica. Esta estratégia faz com que o discurso religioso se torne inteligível ao leitor moderno por remeter a fontes e abordagens atuais oriundas da Lingüística, Teoria Literária, Estruturalismo, etc, sem perder o eixo principal: a essência filológica . O conjunto dos capítulos foi elaborado de maneira harmoniosa no intuito de facilitar e convidar o leitor à fonte principal: a edição completa de Maler. O que por si só já é uma valiosa contribuição: compactar em um estudo dividido em 3 partes do livro I, composto de cinco capítulos da edição original feita com um labor filológico conservando a voz oral do texto. Esta foi uma preocupação constante. Outra preocupação foi dar uma idéia ao leitor sobre a dificuldade de estabelecer uma periodização de uma língua em fase de formação, de caráter conservador, e de cunho literário, por isso “arcaizante” em conservar resquícios do galego-português, conforme visto no início do capítulo 1. As normas de transcrição, de difícil acesso ao estudioso formas colocadas para nortear estudos posteriores dando uma noção ao pesquisador do 59 convencionalismo da língua deste período para aplicação em outros textos medievais portugueses, por exemplo, na elaboração de outras edições críticas ou antologias literárias ou ensaios críticos, voltados às atividades de pesquisa e ensino de língua materna , com bases teóricas consistentes e relevantes. Um outro aspecto importante foi desenvolvido no início do capítulo 2 quanto ao tratamento da linguagem, a partir da biografia do termo Hortus e Sponsus, foi possível definir e “precisar” o contexto pragmático do corpus tanto lingüístico como literariamente falando , mostrando ao leitor em que contextos tais vocábulos estiveram presentes, na cultura portuguesa, no discurso religioso oriundo do latim, e atualmente no discurso jornalístico e nas encíclicas papais, delineando assim, seu caráter simbólico, lingüístico e ideológico ao demonstrar a modernidade de certas imagens ou efeitos estéticos que o texto evoca. A discussão sobre as interações sobre o texto e leitor prolonga-se ao chegar na Estética da recepção, do autor como tradutor e exegese religiosa, culminando em um roteiro seguro sobre edições de textos portugueses, valiosa contribuição por trazer posicionamentos concernentes à voz fonética do texto divididas em dois posicionamentos: conservador ou inovador e “normas” a serem seguidas,estas já vistas no capítulo 1. Este aspecto é importante ao escolher-se uma boa edição para trabalhos posteriores.A edição de Maler, é excelente, pois , houve a preocupação de seguir regras já estabelecidas por Serafim da Silva Neto que conseqüentemente já seguia o conservadorismo de Vasconcelos. É importante frisar esta preocupação , porque neste trabalho não houve uma análise comparativa com os manuscritos A e B, do Orto do Esposo conservados pela Biblioteca Nacional de Lisboa. 60 Sabendo-se que a edição de Maler seguiu um bom encaminhamento quanto às regras de transcrição para textos medievais portugueses não foi necessário, no momento o cotejo com os manuscritos, indispensáveis para um trabalho com mais rigor filológico em seu método. Porém fica registrada esta preocupação para estudos posteriores mais aprofundados com a orientação da Edótica que é retomada em estudos literários em uma linha de pesquisa da Teoria Literária denominada de Crítica Genética, que também possui regras de transcrição e todo um convencionalismo, com pólos de contato oriundos das contribuições da Filologia , sempre presente nos estudos textuais tendo o manuscrito e o texto , como seu objeto de estudo. O capítulo 3 parte da relatividade do conceito de arcaísmo sugerido por Bally , citado por Leão, adequadamente exemplificado ao culminar na questão do grupo fraseológico do autor ao se fazer as escolhas lexicais e semânticas na composição do discurso unindo forma e conteúdo oracionais.Seguem-se orientações teóricas da construção da frase latina, enquanto disposição das palavras , conforma a contribuição de Maurer Junior (1959), especificado com Pádua (1960) que utiliza metodologicamente a frase de verbo transitivo em toda a prosa medieval literária portuguesa , em que os elementos essenciais o sujeito, o verbo e objeto são claramente expressos. Mais adiante foi explorada a estrutura das frases nominais do corpus que se repetem, mantendo a mesma estrutura, mostrando o cunho ideológico da mensagem que se quer imprimir na memória do receptor. Seguem-se outras contribuições sobre o “padrão normal”da frase ou “ordem direta”, correspondentes em Huber e Pádua em um quadro comparativo bastante esclarecedor ao trazer contribuições atuais da Gramática descritiva de Perini. São estudadas a partir deste quadro duas modalidades : a ordem direta e uma ordem rara, encontrada no Orto do Esposo, só que em outro Livro, vindo destacar a importância lingüística desta obra . 61 O capítulo 3 completa-se com uma abordagem em moldes mais discursivos oriundos também da retórica e da estilística as quais não se pode perder de vista, apresentando variáveis discursivas aplicáveis ao corpus : modalidade com análise, referência explorando-se a questão verbal português-latim em pólos de referência, culminando com uma reflexão sobre o plano do “discurso” e da “narrativa” de acordo com a distribuição ou jogo dos verbos, ao chegar na questão polifônica do discurso religioso, essência sui generis do Orto do Esposo não só no corpus analisado, mas no decorrer de toda a obra. Essa questão foi minuciosamente explorada e comentada principalmente no que concerne a metáfora da colcha de retalhos, indicando da possibilidade de o Orto do Esposo ser uma tradução. É a questão polifônica do discurso religioso que a faz ser uma composição primorosa ao seguir moldes lingüísticos de estilo próprio alguns oriundos do latim, outros, o autor pôs uma voz portuguesa na qual não se atreveu em traduzir. Isto não acontece com outra obras,do mesmo gênero a exemplo da obra também anônima Boosco deleytoso, que realmente boa parte é tradução de Petrarca em De vita solitária. Neste ponto sim , há possibilidade de outros estudos envolvendo tradução propriamente dita. Voltandose a questão da polifonia as obras referidas dialogam entre si, sendo uma fértil possibilidade de exploração de estudos referentes à composição e fontes, pois levantam-se a hipótese da possibilidade de ser um autor único, questão de natureza filológica e só um estudo aprofundado pode precisar ou esclarecer pontos obscuros. Espera-se que esta contribuição acadêmica seja convidativa aos estudos nesta perspectiva tão “conservadora” e ao mesmo tempo “inovadora” de abordagem filológica voltada e integrada ao texto e, sobretudo, às questões de linguagem e ensino de português, concentração deste trabalho. 62 5 BIBLIOGRAFIA FONTES PRIMÁRIAS MALER, Bertil (ed.). Orto do Esposo. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1956. 2 v. (v.I: Texto crítico; V.II: Comentários) FONTES SECUNDÁRIAS AZEREDO, José Carlos de. Iniciação à sintaxe do português. 4 ed. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor,1997. (Coleção Letras). BASSETTO,Bruno Fregni. Elementos de filologia românica: história externa das línguas.v.1.São Paulo:Edusp, 2001. BOSCOV, Isabela. “As faces de Jesus” In: Veja. São Paulo, Abril, edição 1783, ano 35, n˚ 51, 25 de dezembro de 2002, p.90. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o novo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. COUTINHO , Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7 ed . 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