O CORPO DESEJOSO NA POÉTICA DE FLORBELA Lígia Mychelle de Melo Silva Mestranda em estudos da linguagem pela UFRN. Resumo Abstract This paper approaches the sensual into Florbela Spanca's poetics. Through the analysis of some poems from the work "Charneca em flor" (1999), the paper’s main ain is to show that exploring one's own body is the main resource used by the Lyrical voice to attract the attention from others. Keywords: Florbela Espanca; sensuality; body. n. 35 2010 p. 129-138 vivência Palavras-chave: Florbela Espanca; sensualismo; corpo. 35 O presente artigo aborda o sensualismo na poética de Florbela Espanca e tem como principal objetivo demonstrar, através da análise de alguns poemas da obra “Charneca em flor” (1999) que a exploração do próprio corpo é o principal recurso utilizado pela voz lírica para atrair o olhar do Outro. 129 Introdução O corpo gera sensações, emoções e imagens (Guaiarsa, 2002). Essa assertiva constitui-se em um dos princípios fundamentais para fazermos uma leitura da poética de Florbela Espanca (1894-1930)1, a qual apresenta como uma das características mais marcantes o amor erótico. Ao fazer uma leitura minuciosa dos sonetos que compõem a obra “Charneca em flor” (1999), foi verificado que de uma forma geral a temática do erotismo em Florbela se manifesta através do desejo que a persona lírica revela em fundir-se ao amado. vivência 35 Em Florbela Espanca, o erotismo é uma forma de sentimento, as imagens eróticas que percebemos nos sonetos estão ligadas diretamente ao desejo do “Eu” em encontrar, em possuir o “Outro”, podemos dizer, então, que o erotismo em Florbela é o “querer ter”. Dessa forma, o erotismo se manifesta em sua poética através do desejo que a persona lírica revela em unir-se ao amado e somente através dessa união é que, supostamente, o sujeito poético alcança a sensação de fazer-se completo. Sendo assim, a poetisa Florbela vai ao encontro da idéia do escritor e ensaísta francês Georges Bataille (2002, p.33-34) que diz: “... Sofremos pelo nosso isolamento na individualidade descontínua. A paixão nos repete incessantemente: se você possuísse o ser amado, este coração que a solidão estrangula formaria um só coração com o ser amado”. 130 Então, para que essa união seja possível, para que a persona consiga saciar sua vontade de se juntar ao amado a quem ela se dirige nos sonetos, ela quer fazer-se desejada, ela mostra-se sensual. Esse sensualismo é manifestado em alguns poemas florbelianos através da descrição do corpo da persona lírica. Desse modo, a nossa proposta, nesse artigo, é verificar nos poemas “Realidade”2, “Passeio ao campo”3, “Toledo”4, “Volúpia”5, “III”6 de que forma o corpo é utilizado para atrair o olhar do Outro. Antes de adentrarmos na análise dos poemas, faremos um breve comentário acerca da vida e da obra dessa poetisa portuguesa, que foi “ignorada por completo pelo público leitor e pela crítica, sua obra tina sido saudada na altura, pelos comentaristas de plantão, como mais uma das (abundantes e inexpressivas) flores do galante ramalhete das poetisas de salão[..]”, conforme aponta a pesquisadora Dal Farra (1999), só veio ter o reconhecimento da sua obra muitos anos após sua morte. Em meio às damas que encantavam com uma poesia pueril e casta, a qual reafirmava o discurso machista de que a mulher tinha que ser fútil, e tinha que está sempre “atrás” de um homem, numa posição inferior, Florbela escandalizava com seus versos que mostravam uma mulher bem á frente de seu tempo, que sentia desejo e “oferecia-se” ao amado (“... Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!”) ao invés de esperar ser cortejada como era comum na época. Florbela Espanca, de acordo com Rosana Gonçalves (2001), ultrapassou a sua condição feminina e transcendentalizou sua arte e, tendo sido, de forma involuntária, precursora do movimento feminista em Portugal, foi muito além da sociedade machista a qual pertenceu. A mulher Florbela não era submissa, como era comum na época, ao marido, ao casamento. Espanca era submissa ao desejo, à volúpia, aos prazeres do corpo e, exatamente por esse motivo, por ter quebrado as regras de uma sociedade arcaica, patriarcal, machista e hipócrita, Florbela Espanca pagou um preço muito alto, sendo tão incompreendida, rejeitada e criticada pela sociedade a qual estava inserida. Atualmente, a fortuna crítica da moça de Alentejo já é considerável, embora seja importante ressaltar que grande parte dos estudos acerca de Espanca n. 35 2010 p. 129-138 tendem a identificar a obra com a biografia, “não distinguindo, ao menos tenuamente, as fronteiras entre o eu da pessoa empírica e o eu-lírico, persona, da escrita poética. É, pois, esta a questão que figura o primeiro lugar na fortuna crítica da poeta” (Santos, 2006, p. 17). Em vida, a poetisa alentejana publicou apenas dois livros: em 1919, ela publicou o “Livro de mágoas” e em 1923, O livro de Sóror Saudade, que tiveram cada um, a pequena tiragem de duzentos exemplares, conforme registrou Dal Fara (1999). Todo o restante da sua obra - Além dos conhecidos e refinados sonetos, a obra literária florbeliana consta também de contos, de cartas e de um diário íntimo, “O diário do último ano” - foi publicada postumamente. “Charneca em flor” foi o primeiro a ser publicado após o suposto suicídio da poetisa (em janeiro de 1931). Dal Farra (2007, p. 189) registra e comenta a nota que o “Diário de noticias de Lisboa” publicara ao sair a primeira edição do livro: “E sábado lhe enviarei o manuscrito, sem falta. Tenho uma tão grande vontade de ver o livro pronto, que parece-me hei de morrer antes disso. Mande-me noticias e depois as provas para as emendar convenientemente.”7 (Dal Farra, 2007, p.188) Ainda de acordo com Dal Farra (1999): “Em pouco mais de uma semana a edição de janeiro se esgota, e outra e mais outra são produzidas a partir de então...”. Devido a esse acontecimento, “o extraordinário boom editorial”, Battelli empolga-se e publica, ainda em 1931, tudo o que encontra de Florbela. Até mesmo o livro de contos inéditos, “As Máscaras do destino” e as correspondências que a poetisa trocara com Júlia Alves. É interessante notar que, para alguns críticos, embora, cronologicamente, Florbela Espanca tenha pertencido ao movimento modernista lusitano, ela não estava associada claramente a qualquer movimento literário. Massaud Moisés (2004) reforça esssa afirmação e diz que Florbela se impôs com valor próprio, pertencendo a um pequeno grupo o qual ele nomeia de interregno, sem maiores vínculos com as tendências que estavam em voga. Para esse críticos, não é possível limitar a produção poética da poetisa a um único estilo. Para alguns sua obra está mais perto do neo-romantismo, já que encontramos, em sua poética, temáticas como o pessimismo, o desencanto e o ceticismo e de certos poetas de fim-de-século (devido a seu decadentismo e obsessão pela morte), portugueses e estrangeiros, do que da revolução dos modernistas, a que foi alheia. Já outros, levam em consideração o caráter confessional e sentimental de sua poesia e afirmam que Florbela segue linha de Antônio Nobre, fato reconhecido pela poetisa. Por outro lado, a técnica do soneto, que a celebrizou, é, sobretudo, influência de Antero de Quental e, mais longinquamente, de Camões. n. 35 2010 p. 129-138 vivência O livro foi publicado, conforme foi registrado, devido ao esforço do professor e amigo Guido Battelli, com o qual Florbela trocava correspondências e a quem a ela confiou os manuscritos da obra: 35 “No dia 25 de janeiro de 1931 a nota do “Noticias ilustrado”, edição semanal do Diário de noticias de Lisboa, registrava então que ‘acaba de vir a público a edição póstuma de alguns lindíssimos sonetos de Florbela Espanca, o Charneca em flor, graças aos cuidados do professor Guido Battelli, da Universidade de Coimbra’, e completava: ‘como a sua poesia era desvairada e profunda, mas não perfeita e acabadinha, como não teve quem a exaltasse em vida nos grandes jornais; o público desconheceu-a. A sua morte deixou um rasto de silêncio, que é preciso acordar.’” 131 Há quem diga, inclusive, que a produção de Florbela é uma intersecção das particularidades de várias tendências literárias. De acordo com o crítico e ensaísta José Rodrigues de Paiva (1994) ela pertence a uma linhagem de poetas para os quais não se tem, esteticamente, uma classificação única e definitiva. Não cabe nas “grades” das escolas e movimentos literários. Massaud Moisés (2004) reforça essa afirmação e diz que Florbela se impôs com valor próprio, pertencendo a um pequeno grupo o qual ele nomeia de “interregno”, sem maiores vínculos com as tendências que estavam em voga. Totalmente “alienada” das preocupações sociais - a poetisa chega a confessar, em cartas, que não se interessa por política - e ainda refletindo alguns valores culturais do inicio do século XX como, por exemplo, o culto à forma, poderíamos dizer,a princípio, que ela pode ser considerada neoclássica, visto que há em suas poesias toda uma preocupação e um esmero com a estética .E é justamente isso que a converte numa sonetista de primeira grandeza. vivência 35 No entanto, Florbela soube muito bem – e como poucos poetas - a esse culto à forma, incorporar o conteúdo, conseguindo, assim, um equilíbrio alcançado por poucos escritores da época. Ao utilizar uma forma fixa, tradicional para exprimir uma catarse de sentimentos, de emoções e de desejos, Espanca acaba dando uma roupagem objetiva a seu discurso lírico, íntimo e extremamente subjetivo. 132 Esse equilíbrio pode ser justificado pela clara influência que o movimento simbolista exerceu sobre a poética florbeliana, pois, ao analisar sua produção literária percebemos que ela tinha uma enorme preocupação em não limitar a arte ao objeto, explorando em sua obra poética conteúdos místicos e sentimentais, em que há o predomínio da sensibilidade e da emoção (se opondo à objetividade e à razão tão comuns na estética realista); utilizando uma linguagem ornada e colorida, em que as palavras são escolhidas pela sonoridade, pelo ritmo; o uso do conhecimento intuitivo e não lógico e a concepção espiritual e subjetiva da vida, mergulhando no inconsciente e na introspecção do eu e preocupando-se em buscar a essência do ser humano (a alma), essa poetisa encontrou no soneto a forma ideal para exprimir seus sentimentos, para confessar toda sua mágoa, toda sua dor e para revelar seu sensualismo. Apesar de rótulos como “donjuanismo feminino” e “narcisismo”, Florbela Espanca vai muito além desses rótulos e não é uma poeta de uma só temática: Ela é a poetisa das flores, das cores e das dores, dos sonhos, das sensações, das frustrações, dos desenganos. Para José Rodrigues de Paiva (1994), Florbela é antes de tudo uma poetisa que construiu uma linguagem, uma poética, uma mitologia lírica. No entanto, é sempre significante ressaltar que um dos aspectos que chamam mais atenção na obra poética da poetisa portuguesa Florbela é a vertente erótica, ou seja, seus poemas são fortemente marcados por intensos impulsos eróticos os quais constituem um dos primeiros princípios para se fazer uma possível leitura interpretativa de sua obra. Pensar criticamente a escrita literária dessa sonetista portuguesa é pensar na escrita como perturbação, como excitação. Achamos, portanto, que o erotismo é um dado importantíssimo para se estudar, analisar e compreender a poesia florbeliana. Os apelos do corpo em Florbela O corpo fala, o corpo pede, o corpo revela, o corpo apela. O corpo, na poética florbeliana, reclama o direito ao prazer A escrita florbeliana é extremamente convidativa, pois se trata de uma poesia sinestésica, que é cor e som, que é n. 35 2010 p. 129-138 perfume, que é luz e sombra. Eis, portanto, um recurso utilizado pela voz poética para atrair a atenção do amado – e mais do que isso, para fazer suscitar o desejo no objeto amado através da declaração do seu próprio desejo: o uso das diversas sensações; ela apela para o tato, para a visão, para o olfato. Trata-se de um recurso que faz parte do universo feminino, que é próprio do erotismo feminino, conforme aponta Alberoni8: “O interesse das mulheres pelos cremes de beleza, pelos perfumes, sedas, peles, tem um significado mais erótico que social. Já no século passado, um primo de Darwin, Sir Francis Galto, havia demonstrado que as mulheres possuem uma sensibilidade tátil muito mais apurada que a dos homens.”9. “Frêmito do meu corpo a procurar-te, Febre das minhas mãos na tua pele Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel, Doido anseio dos meus braços a abraçar-te, Olhos buscando os teus por toda a parte, Sede de beijos, amargor de fel, Estonteante fome, áspera e cruel, Que nada existe que a mitigue e a farte! Como se vê no soneto acima, os sentidos estão todos apurados, aguçados para viver momentos de paixão; o corpo da persona se confunde com o desejo e chega a arrepiar, a vibrar na procura, na busca pelo amado (“frêmito do meu corpo a procurar-te”). As mãos ardem (“Febre das minhas mãos”) ao tocar a pele do “Outro”, “que cheira a âmbar, a baunilha e a mel.” No segundo quarteto o uso da sinestesia prevalece. O “Eu” continua a buscar o “Outro” para saciar o desejo, pois, ela está já tonta de fome e “nada existe que mitigue e a farte!” a não ser o encontro tão almejado com o amado. Vejamos a seguir um comentário de Francesco alberoni: “O erotismo é uma forma de conhecimento, um conhecimento do corpo. Do nosso corpo, do corpo do outro, um conhecimento adquirido através do corpo. Nosso corpo tornar-se um objeto erótico quando queremos agradar aos outros. É o desejo dos outros que põe em movimento o nosso conhecimento. As religiões ascéticas que combatem o erotismo, não o lavam. Então todos os sentidos se embotam: o tato, a sensibilidade cinestésica, o olfato.” (1986, p.185). Então, como foi observado, para exprimir o desejo de ter o Outro, Florbela utilizou no poema o tato – “Febre das minhas mãos na tua pele”. –; o olfato – “Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel” –; a visão – “Olhos buscando os teus por toda a parte” e o paladar: “Sede de beijos, amargor de fel, / Estonteante fome, áspera e cruel”. Trocando em miúdos com a citação transcrita acima, podemos ver no soneto “III” que a persona poética faz do próprio corpo e do corpo do amado o principal elemento erótico, a principal fonte de sedução. A dinâmica dos sentidos, a mistura das sensações percorre o soneto e é exatamente essa dinâmica que dá o tom erótico e sensual do poema, indo ao n. 35 2010 p. 129-138 vivência E o meu coração que tu não sentes, Vai boiando ao acaso das correntes, Esquife negro sobre um mar de chamas...” 35 E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma Junto da minha, uma lagoa calma, A dizer-me, a cantar que não me amas... 133 encontro de uma citação10 utilizada por Alberoni (1986) a qual afirma que o erotismo feminino é mais tátil, muscular, auditivo, mais ligado aos odores, à pele e ao contato. Outro elemento que aparece constantemente na poética de Florbela é a temática do vinho que, como sabemos, é uma bebida afrodisíaca e, quando bebemos, geralmente, liberamos nossos instintos. O vinho esquenta os corpos e os corações e é, por isso, com freqüência, associado à sedução, à volúpia, ao desejo. Observemos o soneto “Realidade”: “Em ti o meu olhar fez-se alvorada E a minha voz fez-se gorjeio de ninho... E a minha rubra boca apaixonada Teve a frescura pálida do linho... Embriagou-me o teu beijo como um vinho Fulvo da Espanha, em taça cinzelada... E a minha cabeleira desatada Pôs a teus pés a sombra dum caminho... Minhas pálpebras são cor de verbena, Eu tenho os olhos garços, sou morena, E para te encontrar foi que nasci... vivência 35 Tens sido vida fora o meu desejo E agora, que te falo, que te vejo, não sei se te encontrei... se te perdi... “ 134 O poema “Realidade” reflete bem a eterna busca, a ânsia por uma totalidade, a eterna procura da persona poética pela paixão de alguém que fosse capaz de saciar seu desejo, e de promover nela a sensação de completude. A leitura interpretativa do soneto permite-nos dizer que o sujeito lírico se prepara para receber o amado: ”E a minha cabeleira desatada / pôs a teus pés a sombra dum caminho...”. O primeiro quarteto do poema já parece ser uma preparação do “Eu” para unir-se ao amado. A expressão “gorjeio de ninho” pede comprovar isso, pois, como sabemos, a palavra ninho conota lugar onde os casais namoram, fazem amor. Já gorjeio é o mesmo que som agradável (canto dos pássaros). Então, quando o sujeito poético diz que “minha voz fez gorjeio de ninho” podemos interpretar como se ela tivesse fazendo um canto de preparação para a relação amorosa, da mesma forma que os pássaros gorjeiam quando estão se preparando para o acasalamento. No segundo quarteto, o primeiro verso “Embriagou-me o teu beijo como um vinho” já indica um contato mais íntimo entre a persona lírica e o amado. O beijo do amado, assim como o vinho, deixou a persona arrebatada, inebriada. Esse verso dialoga com os cânticos de Salomão: “Beije-me ele com os beijos da sua boca; pois melhor é o seu amor do que o vinho11”. E também: “e os teus beijos como o bom vinho para o meu amado, que se bebe suavemente, e faz com que falem os lábios dos que dormem.12”. A expressão “cabeleira desatada” também aponta para um contato íntimo, pois, lembremos que antigamente o ato de soltar os cabelos era algo sensual, sedutor, uma vez que as mulheres mantinham-nos presos e só os soltavam nos momentos mais íntimos. Na terceira estrofe, a persona faz seu autoretrato e no último verso diz que nasceu para encontrar seu amado, como se fosse o destino, a sina dela. É como se o amor dela fosse algo transcendental (indo ao encontro da metafísica e do misticismo tão apreciados pelos simbolistas). n. 35 2010 p. 129-138 E, finalmente, no segundo terceto temos: “Tens sido vida fora o meu desejo”, esse verso dialoga com Bataille (2004, p. 45) no seu ensaio sobre o erotismo quando diz que o erotismo busca incessantemente fora um objeto de desejo, embora ele seja um dos aspectos da nossa vida interior. Observemos agora o soneto “Volúpia”: “No divino impudor da mocidade, Nesse êxtase pagão que vence a morte, Num frêmito vibrante de ansiedade, Dou-te meu corpo prometido à morte! A sombra entre a mentira e a verdade... A nuvem que arrostou o vento norte... – Meu corpo! Trago nele um vinho forte: Meus beijos de volúpia e de maldade! Trago dálias vermelhas no regaço... São os dedos do sol quando te abraço, Cravados no teu peito como lanças. Há vários vocábulos pertencentes ao campo semântico do erótico, como exemplo temos: “êxtase, frêmito vibrante, beijos de volúpia, arabescos etc. é interessante que o uso dois vocábulos juntos que têm o /r/ vibrante provoca, no poema, o próprio efeito vibratório: “frêmito vibrante”. No terceiro verso do segundo quarteto o corpo da persona poética se confunde com o vinho – “– Meu corpo! Trago nele um vinho forte” – o que faz com que o soneto torne-se ainda mais sedutor. O poema termina com a persona envolvendo o amado em “voluptuosas danças” : temos, então, um emaranhado de corpos, pois, arabescos são ornamentos de origem árabe nos quais se entrelaçam linhas. Podemos inferir que, na última estrofe, temos a realização do próprio ato sexual. É relevante registrar aqui o comentário que Dal Farra faz sobre esse soneto: “[...] Eis aqui uma peça que privilegia o tato, com seu corolário, aliás pleonástico, de frêmitos vibrantes, bem como a simbólica alimentar que através da imagem transubstanciada do vinho, identifica o corpo feminino ofertado. Resulta daí uma liturgia da volúpia, onde paganismo de divindade se entrelaçam para vencer o destino do corpo que, desde o nascimento prometido à morte, fica desviado, no poema, para as mãos e para o domínio do amado.” No poema abaixo, intitulado “Toledo”, também podemos encontrar a dinâmica do vinho, cujo efeito (a embriaguez, o êxtase) se confunde com a própria libido da persona poética: “Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço /É como um jasmineiro em alvoroço/ Ébrio de sol, de aroma, de prazer!”. A sinestesia permanece: “As tuas mãos tateiam-me a tremer” (o tato); “Meu corpo de âmbar” (olfato), conforme observaremos no poema: n. 35 2010 p. 129-138 vivência O soneto “Volúpia” já carrega no título um teor de erotismo, pois, o significado de volúpia é grande prazer dos sentidos, sobretudo o prazer sexual. O poema inteiro é um ofertório do corpo da persona poética ao amado. 35 E do meu corpo os leves arabescos Vão-te envolvendo em círculos dantescos Felinamente, em voluptuosas danças...” 135 “Diluído numa taça de oiro a arder Toledo é um rubi. E hoje é só nosso! O sol a rir... viv'alma... não esboço Um gesto que me não sinta esvaecer As tuas mãos tateiam-me a tremer... Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço É como um jasmineiro em alvoroço Ébrio de sol, de aroma, de prazer! Cerro um pouco o olhar onde subsiste Um romântico apelo e mudo - um grande amor é sempre grave e triste. Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo Uma torre ergue ao céu um grito agudo... Tua boca desfolha-me num beijo...” Outro recurso utilizado para chamar a atenção do amado é a autodescrição que a voz poética faz também com o intuito de apelar para o olhar do amado. Observemos o soneto “Passeio ao campo”: vivência 35 “Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo! Colhe a hora que passa, hora divina. Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo! Sinto-me alegre e forte! Sou menina! 136 Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina... Pele doirada de alabastro antigo... Frágeis mãos de madona florentina... -Vamos correr e rir por entre o trigo! Há rendas de gramíneas pelos montes... Papoilas rubras nos trigais maduros... Água azulada a cintilar nas fontes... E à volta, Amor... tornemos nas alfombras Dos caminhos selvagens e escuros, Num astro só as nossas duas sombras...” É interessante perceber no poema transcrito acima o retrato que a voz lírica traça de si mesma, com a clara intenção de invocar o outro, a persona lírica faz o seu auto-retrato. Ela se desenha, ela se descreve. É interessante perceber que o auto-retrato que se repete nos sonetos florbelianos não é somente um culto à sua própria imagem. Mais do que um ato tão-somente e puramente narcisístico, é um ato de oferta ao amado; trata-se de um verdadeiro ofertório para envolver o Outro. O Eu se desenha para chamar a atenção do Outro, para ser notada e, mais do que isso, ela espera ter seu desejo reconhecido pelo amado, pois, conforme comenta Palmier (1977, p.100): “O desejo não é um simples apelo ao outro como outro, uma simples busca do amor como o é a solicitação. Não se satisfaz, de forma alguma, com um objeto, como a necessidade. O que é próprio do desejo é que ele se enraíza no imaginário do sujeito. Ele é o desejo de um Outro, mas desejo de um outro desejo, desejo de fazer com que seu próprio desejo seja reconhecido pelo outro. É o que expressa esta fórmula tornada clássica por Lacan: ”o desejo do homem é o desejo do outro.”.” n. 35 2010 p. 129-138 Considerações finais Todos os movimentos, ações, características e explorações do corpo têm um efeito sobre o Outro. É exatamente por esse motivo que a persona lírica dos sonetos que foram aqui analisados faz do corpo o principal artifício para atrair a atenção do amado. O corpo da persona está desejoso e, por isso, os sentidos estão todos aguçados para ser tocado, para ser dominado pelo Outro. Alberoni (1986, p.26) faz o seguinte comentário: O erotismo em Florbela, como já foi comentado, se manifesta através do desejo que a persona lírica revela em estar perto do amado, em unir-se a ele, rendendo-se aos desejos do corpo e tornando-se escrava do prazer. Somente através dessa união é que, supostamente, o sujeito poético alcança a sensação de fazer-se completo. O erotismo é, portanto, uma forma de busca pela completude, pela integração. Temos desse modo, algo que vai bem mais além do ato puramente sexual. Trata-se de um erotismo que ganha uma dimensão mais ampla, transcendendo a barreira do físico e conseguindo alcançar uma dimensão espiritual. No entanto, para que essa dimensão espiritual seja possível, é preciso que, primeiramente, a persona conquiste o amado. Justifica-se, então, a exploração do corpo na poética de Florbela Espanca. Para concluir, tentamos demonstrar no percurso desse artigo, através da análise de alguns sonetos que, Florbela Espanca, incorporada num “Eu” que, ao descrever, se descreve, dialoga com Barthes (2003) que diz que “a linguagem é uma pele: esfregue a minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos ao invés de palavras. Minha linguagem treme de desejo.” É exatamente isso que Florbela/sujeito poético faz: esfrega a linguagem/corpo no outro. A abordagem do erotismo na poesia florbeliana começa, portanto, com um apelo aos sentidos para que o Outro perceba o corpo desejoso – que a voz poética quer que se torne desejado. Através das “sensações, emoções e imagens” do corpo, o “Eu” quer envolver o amado, captando o olhar dele e fazendo com que ele mergulhe no seu universo íntimo. n. 35 2010 p. 129-138 vivência Então, trocando em miúdos com o comentário transcrito acima, podemos inferir que, em geral, a mulher quer sentir a presença física do amado, quer estar perto do amado para que, dessa forma, ela alcance a sensação de completude. Mais do que a efemeridade do prazer carnal, a mulher busca a continuidade. É isso que acontece nos escritos florbelianos: a voz poética busca incessantemente a fusão com o Outro. 35 “Existe uma estreita ligação entre o erotismo tátil, muscular, entre a capacidade de sentir os odores, os perfumes, os sons e o prazer de ser desejada e amada de modo contínuo. A mulher quer sentir a presença física do seu homem, sentir as mãos dele sobre sua pele, a força doce e acolhedora de seu abraço, seu cheiro, a mistura dos cheiros que se torna perfume. Quer ouvir sua voz profunda a chamá-la. Quer sentir a aspereza de seus pêlos, o peso de seu corpo, a força delicada de suas mãos, o leve contato entre seus dedos, o furtivo tocar-se que renova-se que renova a declaração de amor de maneira infinitivamente melhor que quaisquer palavras.” 137 NOTAS 1 Poetisa portuguesa, natural de Alentejo, Vila Viçosa que fica no sul de Portugal. 2 Charneca em flor: 1999, p.212. 3 p.216. 4 p.227. 5 p.238. 6 p.258 7 Carta enviada ao professor Guido Battelli, datada de 28 de outubro de 1930. 8 O erotismo. Fantasias e Realidades do Amor e da Sedução: 1986. p. 9-10. 9 Francis Galton: “The relative sensibility of men and Women at the nape the neck”, Nature, 1894. 10 Beatrice Faust: Woman sex ad pornography, Nova York, Penguin Books, 1981. 11 1995, p.578. 12 p.580. 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