março | abril | maio 2015 MARIANA XIMENES | LUCAS FONSECA | CLÓVIS DE BARROS FILHO | MADELINE PUCKETTE REVISTA DO ITAÚ PERSONNALITÉ N O 30 | ANO 8 MARIANA XIMENES “Ser ator é querer dizer alguma coisa... Provocar, instigar” LUCAS FONSECA CLÓVIS DE BARROS FILHO MADELINE PUCKETTE EXEMPLAR DISTRIBUÍDO NAS AGÊNCIAS PERSONNALITÉ EDITORIAL E m 1969, seis dias depois da chegada do homem à Lua, o jornalista norte-americano E. B. White, um mestre do estilo nas páginas da revista The New Yorker, escreveu uma pequena celebração. Anotou: “A lua, no fim das contas, é um bom lugar para o homem. Um sexto da gravidade deve ser bastante divertido, e quando Armstrong e Aldrin se dedicaram a uma animada dancinha, feito duas criancinhas felizes, não foi apenas um momento de triunfo, mas também de alegria. A lua, em compensação, é um lugar ruim para as bandeiras. A nossa parecia dura e estranha ali, em sua tentativa de flutuar numa brisa que não sopra. [...] À maneira de todos os grandes rios e mares, a Lua pertence a todos e a ninguém. Ainda traz o segredo da loucura, ainda controla as marés que banham as praias, ainda vigia os beijos daqueles que se amam em toda parte, debaixo de bandeira nenhuma, somente do céu”. Esta edição que você tem em mãos, à sua maneira, reverbera o pequeno encômio escrito por White. Para festejar nossa trigésima edição decidimos levar o leitor para uma viagem pelas grandes e universais experiências humanas. Assim, para começar, no intuito de estampar nossa capa, visitamos o Rio de Janeiro e a estrela Mariana Ximenes, em um perfil que captura sua surpreendente adoração pelas artes plásticas. Em São Paulo, nossa jornada mergulhou nas questões internas que afetam todos nós. Para isso, conversamos com o filósofo Clóvis de Barros Filho, um pensador que, ao versar sobre a vida que vale a pena ser vivida, nos ensina que a felicidade está em perseguir aquilo que nos faz feliz. Uma caminhada que dura por toda a vida, um dia de cada vez. Simples assim. Fizemos também uma parada em Seattle, nos Estados Unidos. Lá, aprendemos com a sommelière Madeline Puckette como é possível rodar o mundo a partir de uma taça de vinho, em busca de uma recordação inesquecível. A viagem desta trigésima e especial edição se encerra fora do planeta. Percorremos 500 milhões de quilômetros e desembarcamos na trajetória do cientista Lucas Fonseca, único brasileiro a participar da operação europeia que levou o módulo Philae a pousar, de forma pioneira, em um cometa para investigar a origem do universo. Em oito anos de vida, a Revista Personnalité vem cumprindo sua missão de garimpar experiências que merecem ser contadas. Investigar biografias inspiradoras, visitar lugares especiais, resgatar personagens adoráveis: nossa fórmula tem como meta levar aos seus olhos os sonhos que são construídos na realidade. Eis a receita que um dia levou o homem à Lua. Eis a receita que levou o paulista Lucas Fonseca rumo à origem de tudo. Pequenas e grandes viagens. Esteja convidado a embarcar conosco. VAPOR 324 VAPOR 324 Um abraço e boa leitura, ILUSTRAÇÃO DO MÓDULO PHILAE SAINDO DA SONDA ROSETTA PARA POUSAR NO COMETA 67P/CHURYUMOV-GERASIMENKO. O ENGENHEIRO LUCAS FONSECA, UM DOS PERFILADOS DA EDIÇÃO, FOI O ÚNICO SUL-AMERICANO A PARTICIPAR DA MISSÃO André Sapoznik Itaú Personnalité COLABORADORES EXPEDIENTE Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Agenor S. Santos Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba O jornalista RUY CASTRO, 67 anos, é autor de biografias de personalidades como Carmen Miranda e Garrincha. Em sua quarta colaboração consecutiva para a Revista Personnalité, ele assina o perfil de Zé Carioca. “Somos velhos camaradas. Quando o li pela primeira vez no gibi, o presidente da República ainda era o Getúlio Vargas, imagine! Depois, lhe assisti no filme Você já foi à Bahia?, e me empolguei vendo-o tapear o Pato Donald.” Diretor de Redação Décio Galina Editor Carlos Messias Produtora Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de Produção Flávia Ribeiro Projeto Gráfico Beth Slamek Departamento Comercial Assistente Comercial da Diretoria Gabriela Trentin Assistente de Arte Marketing Publicitário Fabiana Cordeiro Gerentes de Contas Flavia Marangoni, Roberta Rodrigues e Juliana Ruiz Assistente de Tráfego Comercial Aline Trida Assistente de Opec Cristiane Moraes Para anunciar [email protected] Representantes AL/SE Pedro Amarante BA Caio Silveira CE Ananias Gomes DF Alaor Machado ES Dídimo Effgen GO Antonio Cordeiro MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ X² Representação RS/SC Ado Henrichs SP Antonio Carlos Bonfá Junior SP interior/ litoral Daniel Paladino SP Permutas Denis Oliveira USA Multimedia [email protected] Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz (coordenação) Bibliotecário Daniel de Andrade Estagiários Mayã Maia e Arthur Fernandes Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtor Gráfico Cleber Trida Tratamento de Imagens Roberto Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação), Janaína Mello, Daniela Uemura e Marcos Visnadi Projetos Especiais e Eventos Coordenação Regina Trama Editor de Arte Rafael Kendi Analista Mariana Beulke Trade e Circulação Analista de Trade Renata Vilar Coordenadora de Assinaturas Andrea Fernandes Gerente de Circulação Adriano Birello Analista de Circulação Vanessa Marchetti Projetos Digitais Editor Digital Thiago Araújo Editores de Arte Débora Andreucci e Diego Maldonado Site Carla Braga Gerente de Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação Joana Cooper Produção Lorena Almeida Assistente de Produção Juliana Carletti Assistente de Finalização Viviane Gualhanone Montador Pitzan Oliveira Diretor de Fotografia Pedro Marques Relações Públicas Analista de RP Monalisa Oliveira Assistentes de RP Julio Hercowitz Estagiária Luiza Nascimento Colaboram nesta edição: Colaboram nesta edição: Vanina Batista (direção de arte), Giovanni Tinti (edição de arte), Edmundo Clairefont (edição de texto), Bruna Bopp, Carol Nogueira, Carol Sganzerla, Daniel Benevides, Filipe Luna, Ines Garçoni, Joselia Aguiar, Luciana Lancellotti, Luis Patriani, Mariana Filgueiras, Ricky Hiraoka, Ruy Castro, Salvador Nogueira (texto), Amanda Koster, Camila Fontana, Daryan Dornelles, Gabriel Rinaldi, Leonardo Finotti, Paula Giollito, Pedro Loes (foto), Mauricio Pierro, Vapor 324 (ilustração), Ana Hora (produção) Su Tonani (figurino) Ricardo Tavares (Make) O fotógrafo mineiro LEONARDO FINOTTI, 38 anos, é referência em publicações de arquitetura no Brasil e fora dele: tem contato com 400 títulos ao redor do mundo. Já trabalhou com grandes nomes como Herzog & de Meuron e Isay Weinfeld. Atualmente, está revisitando o modernismo da América Latina, em um projeto com um grupo de estudos da Universidade do Texas, que será exposto em março no MoMA, em Nova York. São dele as imagens da reportagem “Verde concreto”. Especializado em ciência, o jornalista paulistano SALVADOR NOGUEIRA, 36 anos, tem oito livros publicados. É autor do blog Mensageiro sideral, da Folha de S. Paulo, jornal onde começou sua carreira, e colunista do Jornal das dez, da GloboNews. Nesta edição da Revista Personnalité, Salvador assina o perfil de Lucas Fonseca, engenheiro brasileiro que participou da missão da sonda espacial Rosetta. A paulistana radicada no Rio de Janeiro INES GARÇONI é autora do perfil da atriz Mariana Ximenes. A jornalista de 37 anos começou sua carreira em 1999 na editoria de política da revista IstoÉ. Desde então, escreveu para o Jornal do Brasil, para a revista Poder, revista da GOL, Marie Claire e Elle. É autora de dois volumes do Guia carioca da comida de rua. “A conversa com Mariana fluiu naturalmente. Ela não só responde às perguntas, mas interage de fato com o repórter.” Reconhecido por suas fotos de grandes estrelas da música brasileira, o carioca DARYAN DORNELLES começou na profissão por acaso: era nadador do Vasco e, em uma competição no Chile, seu técnico precisou de um fotógrafo – Daryan ficou com a vaga. Para a capa desta edição, ele enquadrou Mariana Ximenes na Cidade das Artes, no Rio. “O ensaio foi tranquilo. Ela fez tudo o que pedimos com carinho.” Formado em fotografia pelo Rochester Institute of Technology, no estado de Nova York, o catarinense GABRIEL RINALDI, 31 anos, já teve suas imagens veiculadas em publicações nacionais, como Trip, Playboy, Bravo!, Época e Audi Magazine, e estrangeiras, como Bloomberg, Surface e Fast Company. São dele os retratos que ilustram o perfil do filósofo Clóvis de Barros Filho. Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon, André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Camila Carneiro e Elisangela Bonamigo Colaboradores DPZ Propaganda Marcello Barcelos e Elvio Tieppo ARQUIVO PESSOAL / HELOISA SEIXAS (RUY CASTRO) O coletivo VAPOR324 é formado pelos arquitetos paulistanos Fabio Riff, Fabrizio Lenci, Rodrigo Oliveira e Thomas Frenk. O quarteto se conheceu em 2009, quando ainda estava na faculdade, abriu o escritório em 2012, em São Paulo, e já teve seu trabalho publicado em veículos como Trip, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Eles ilustram a reportagem “O céu não é o limite”. COLABORADORES Capa e quarta capa Daryan Dornelles Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité. Endereço para correspondência: Rua Cônego Eugênio Leite, 767, 05414-012, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] www.tripeditora.com.br A Trip Editora, consciente das questões ambientais e sociais, utiliza papéis Suzano com certificado FSC (Forest Stewardship Council) para impressão deste material. A Certificação FSC garante que uma matéria-prima florestal provenha de um manejo considerado social, ambiental e economicamente adequado. Impresso na Stilgraf – Certificada na Cadeia de Custódia – FSC Depois de ter passado por Veja e Folha de S. Paulo, a jornalista paulistana CAROL NOGUEIRA, 25 anos, se mudou para Los Angeles em 2014, de onde escreve sobre cinema e cultura pop para diversos veículos. Para esta edição, ela foi a Seattle entrevistar a sommelière Madeline Puckette, do site Wine Folly. “Madeline é uma mente brilhante. É interessante como seu background em artes e música faz o seu trabalho com vinhos ser tão diferente.” SUMÁRIO 10 Cá entre Nós Música, gastronomia, esporte, viagem – dicas de quem sabe viver bem 15 Prestígio O BALÉ MAIS DANÇADO 16 54 76 Para celebrar os 40 anos do Grupo Corpo, os irmãos Pederneiras escolheram uma foto da peça Parabelo, apresentada 426 vezes 16 NAS TELAS e cinema e o prazer que ela tem em colecionar obras de arte. Dois caminhos costuram a personalidade da atriz 26 REUNIÃO DE FAMÍLIA Neta de Dorival, filha de Danilo e sobrinha de Nana, Alice Caymmi abre seu baú de lembranças para buscar no legado familiar os ingredientes da música que produz 34 O CÉU NÃO É O LIMITE O cientista Lucas Fonseca foi o único sul-americano a participar da missão europeia que pousou uma sonda em um cometa a 500 milhões de quilômetros da Terra em 2014 44 ATRÁS DA CORTINA Tão essenciais quanto os artistas, escolhemos sete profissionais que trabalham nos bastidores para que os espetáculos apresentados pela Osesp na Sala São Paulo sejam impecáveis 34 DARYAN DORNELLES / GABRIEL RINALDI / AMANDA KOSTER / EDSON SILVA/FOLHAPRESS Como Mariana Ximenes elabora seus personagens para TV 54 “A FELICIDADE DISPENSA TEORIZAÇÃO...” 76 VINHO: QUER QUE EU DESENHE? Autor de 15 livros, o professor de filosofia Clóvis de Barro Filho faz A designer Madeline Puckette, criadora do portal Wine Folly, tornou-se sucesso misturando Platão e Nietzsche a um jogo de futebol. Assim, uma referência ao simplificar o universo do vinho. “Ninguém sabe tudo criou um jeito leve de investigar a existência sobre a bebida. Você poderia passar a vida toda aprendendo” 62 REAL E IMAGINÁRIO 84 VERDE CONCRETO O melhor museu da Europa fica em uma pequena casa de Istambul. Para dar outra cor às paredes dos edifícios paulistanos e melhorar Seu acervo, criado pelo escritor Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de a vida de quem mora ali, jardins suspensos brotam em São Paulo Literatura, conta a história de um casal que nunca existiu 68 ZÉ CARIOCA EM PESSOA 90 Primeira Pessoa Quem inspirou Walt Disney a criar o papagaio era paulista e teve ESPÍRITO POÉTICO uma vida que pode ser resumida à palavra que ele adorava: Vera Holtz costuma comprar objetos sem saber exatamente o motivo. “Demais!”. Com vocês, José do Patrocínio de Oliveira, o Zezinho “Um tempo depois, sempre acontece algo que ‘explica’ o porquê” de espírito poético, um momento desconhecido da minha experiência, como é a imensidão do mar.” CÁ ENTRE NÓS CÁ ENTRE NÓS VIAGEM, GASTRONOMIA E CULTURA – CONVIDADOS ESPECIAIS ABREM SUAS PREFERÊNCIAS _TRILHA SONORA CARMINHO, cantora e compositora _SONHOS MAURÍCIO ARRUDA, arquiteto e designer A fadista portuguesa, que emocionou Caetano e tem parcerias com Chico Buarque e Milton Nascimento, fala das canções marcantes de sua vida POR CARLOS MESSIAS Laos, Camboja e Vietnã impressionaram bastante o viajante, que agora planeja comemorar seu aniversário no México POR CAROL SGANZERLA 2 1 4 5 6 8 1. “PRAIA NUA”, TERESA SIQUEIRA “É difícil escolher uma canção da minha mãe. Esta me traz muitas lembranças. A partir dela, passei a me relacionar com o fado. Foi uma grande revelação quando vi que esta canção era ouvida por gente do mundo todo.” 2. “MAN ON THE MOON”, R.E.M. “Como sou a caçula, copiava tudo que meu irmão fazia. Comecei a ouvir este disco [Automatic for the people, de 1992] por causa dele. Eu tinha 8 anos, e músicas como ‘Man on the moon’ ou ‘Everybody hurts’ me tocaram profundamente.” 3. “A KIND OF MAGIC”, QUEEN “O Queen é a minha banda anglo-saxã favorita. Eles elevaram o pop e o rock a outro patamar com elementos de ópera e música clássica, sem perder a verve dançante. E ‘A kind of magic’ representa muito bem isso.” 4. “MEU CORPO”, BEATRIZ DA CONCEIÇÃO “Uma grande inspiração no fado, tanto para mim quanto para a minha mãe. Ela é tradicional e foi importante na minha formação. Cresci vendo-a tocar. Suas interpretações são sempre muito verdadeiras.” 5. “COM QUE VOZ”, AMÁLIA RODRIGUES “Outra fadista portuguesa inspiradora. Em certo momento, 10 IVAN SHUPIKOV / IAN TROWER / WOJTEK BUSS 7 ela começou uma parceria com o compositor franco-português Alain Oulman e sofreu preconceito dos puristas. Mas ela sempre fez o que o coração mandou – e isso é uma grande lição.” 6. “O GRANDE CIRCO MÍSTICO”, CHICO BUARQUE E EDU LOBO “Não é fácil escolher uma música do Chico. Vou ficar com uma das primeiras que conheci, aos 15 anos. E, graças às voltas que o mundo dá, acabei gravando com ele uma canção [“Carolina”] no meu disco.” 7. “A BARCA DOS AMANTES”, MILTON NASCIMENTO “Entrei no altar [em 2013] ouvindo esta canção. O Milton é um padrinho musical e um padrinho de vida. Ninguém canta como ele. Sua música não é MPB, não é nada mais. É Milton.” 8. “PART I”, KEITH JARRETT “Abertura do concerto que ele gravou na Casa de Ópera de Colônia [Alemanha]. Em breve, vou ter a oportunidade de pisar no palco dessa sala tão emblemática. Nem tudo me toca em jazz, mas o Keith Jarrett é fenomenal!” Ouça no tablet músicas da fadista Carminho MÉXICO PRÓXIMA PARADA “Em maio deste ano, no meu aniversário, viajo para o México. Nunca planejei com tanta antecedência uma viagem, mas conhecer melhor a América Latina sempre foi um sonho. Dividi a viagem em dois destinos: Cidade do México e Tulum. Na primeira, quero visitar museus, ver os trabalhos de Frida Kahlo, Diego Rivera e algumas obras do arquiteto Ricardo Legorreta, meu ídolo na época da faculdade. Além de pesquisar a arte e o artesanato local. Em Tulum, vou conhecer alguns cenotes [grutas repletas de água]– quem sabe finalmente aprendo a usar um snorkel – e as ruínas maias, as únicas construídas à beira-mar.” LEO AVERSA / DIVULGAÇÃO 3 SUDESTE ASIÁTICO, 2012 JORNADA INESQUECÍVEL “Em minha primeira viagem ao Oriente, escolhi Vietnã, Camboja e Laos. As cidades vietnamitas Hue e Hoi An são imperdíveis. A primeira foi capital imperial e ainda é possível ver a Cidade Proibida – o que restou depois da Guerra do Vietnã. Hoi An é famosa pelos mais de 600 alfaiates que reproduzem qualquer roupa que você queira. No Camboja, Angkor Wat é de uma beleza inesquecível. Em Siem Reap, cidade que serve de base para visitar os mais de 50 templos de Angkor, sugiro um jantar no hotel Amansara. Construído na década de 50 para ser uma guest house, o lugar hospedou John F. Kennedy e Jacqueline Onassis. Terminei a viagem no Laos, em Luang Prabang, uma cidade pequena, mas grandiosa pela filosofia de vida presente no rosto de cada cidadão. Voltaria amanhã.” NO ALTO, MULHER VESTINDO ÁO DÀI (TRAJE TÍPICO VIETNAMITA) CAMINHA NO PALÁCIO IMPERIAL, NA CIDADE DE HUE. ACIMA, TULUM, UM DOS DESTINOS NO MÉXICO ONDE MAURÍCIO CELEBRARÁ SEU ANIVERSÁRIO ESTE ANO 11 CÁ ENTRE NÓS CÁ ENTRE NÓS _A MENSAGEM DA GARRAFA JUNINHO PERNAMBUCANO, comentarista _PASSE A PASSE GLENDA KOZLOWSKI, jornalista Ex-jogador de futebol do Lyon, ele não bebia até ir para França e provar os vinhos locais. Agora, no Rio, construiu adega própria para 80 garrafas Na Praia de Copacabana lotada, a ex-atleta não conteve a emoção e comemorou junto com a torcida o gol decisivo de Branco, em 1994 POR LUCIANA LANCELLOTTI POR BRUNA BOPP “Em 2001, quando fui jogar no Lyon, já sabia que a França era o país do vinho, mas eu não bebia. Os jogadores abriam champanhe no vestiário para comemorar a vitória e eu nem provava. Com o passar do tempo, me apresentaram as regiões do Côte-Rôtie e Châteauneuf-du-Pape. Foi aí que comecei a beber com mais frequência. Me arrependo de não ter curtido naquela época, mas, hoje, celebro, abro uma garrafa, quero estar com as pessoas que amo. Quando a minha filha Giovana fez 18 anos, abrimos um vinho bom da adega para comemorar, não lembro qual, mas era especial [ao todo, Juninho tem três filhas]. Tenho aqui em casa um Château Palmer de 2001, ano em que a Maria Clara nasceu. Quem sabe a gente não guarda para o aniversário de 18 dela também?” Conheça outros vinhos franceses. Acesse: itau.com.br/personnalite/experiencia 12 Ç / ALEX CARVALHO/CGCOM / IMAGO SPORTFOTODIENST O NOME Um dos mais respeitados vinhos de Bordeaux recebeu este nome graças ao general britânico Charles Palmer, que se aposentou e mudou para Bordeaux em 1814, onde adquiriu a propriedade, o então Château de Gascq. O lugar já era intimamente ligado ao vinho – um dos preferidos da corte de Luís XV. / A SAFRA As variedades são sempre as mesmas, mas as proporções do corte variam a cada ano. Em 2001, foram utilizados 51% de Cabernet Sauvignon, 44% de Merlot e 5% de Petit Verdot. Com potencial de guarda estimado em até 2025, é uma safra que recebeu 93 pontos do crítico norte-americano Robert Parker. / A EMPRESA A Sociedade Civil Château Palmer se formou em 1938 por um consórcio de quatro famílias produtoras, que revitalizaram a propriedade. As três bandeiras que hoje tremulam no château correspondem à origem dessas famílias: inglesa, francesa e holandesa. Desde 2004, a empresa tem como CEO o jovem produtor bordalês Thomas Duroux. MARCELO FONSECA / BRAZIL PHOTO PRESS/FOLHAPRESS / DIVULGAÇÃO A PROPRIEDADE É considerada uma das mais bonitas e acolhedoras da Apelação de Origem Controlada de Margaux. Com 55 hectares de vinhedos, está localizada em um platô no Cantenac. Dos jardins, se avista o rio Gironde por meio das vinhas velhas de Merlot. O solo é de cascalho grosso, com 4 metros de profundidade. “A Copa do Mundo de 1994 foi a primeira que cobri como repórter. No jogo das quartas de final do Brasil contra a Holanda, fui para a rua com a missão de gravar a reação dos torcedores. Me vi em Copacabana com a pista tomada, telões espalhados, sem conseguir andar. A partida estava difícil, o placar marcava 2 a 2 e Branco, que era perseguido pela torcida, se preparou para bater uma falta. Ele deu um chutaço. A bola saiu incandescente. Romário, na malandragem típica dos campinhos de terra espalhados pelo Brasil, tirou o corpo na hora exata e a bola entrou no cantinho da trave. Comemorei junto, gritando com todos os torcedores. Tinha deixado de competir havia um ano no bodyboarding, então, naquele momento, ainda tinha o coração de competidora. Era uma atleta brincando de ser jornalista.” FICHA TÉCNICA BRASIL 3 X 2 HOLANDA 9/7/1994, Cotton Bowl Stadium, Dallas, Estados Unidos. Quartas de final da Copa do Mundo. 63.500 pagantes. BRASIL Taffarel, Jorginho, Aldair, Márcio Santos, Branco (Cafu), Dunga, Mauro Silva, Mazinho (Raí), Zinho, Bebeto, Romário. Técnico: Carlos Alberto Parreira. HOLANDA De Goey, Koeman, Valck, Witschge, Winter, Jonk, Rijkaard (De Boer), Wouters, Overmars, Bergkamp, Van Vossen (Roy). Técnico: Dick Advocaat. GOLS Romário aos 7, Bebeto aos 17, Bergkamp aos 18, Winter aos 30 e Branco aos 35 minutos do segundo tempo. 13 PRESTÍGIO | GRUPO CORPO CÁ ENTRE NÓS POR Luis Patriani _ CARLOS VALENTÍ, chef ÁGUA NA BOCA 2. PRATO BRASILEIRO Moqueca. Gosto muito de azeite de dendê. Quando fui a Salvador, assistir ao jogo da Espanha na Copa, fiz questão de experimentar a moqueca nordestina. 3. TEMPERO PREFERIDO Azeite de oliva. Ele tem, além de muitas notas diferentes, a capacidade de transformar o prato. 4. VOCAÇÃO Na minha casa sempre comemos muito bem. Minha mãe adorava cozinhar e isso despertou em mim a paixão pela culinária. Desde muito cedo já sabia que seguiria pelo caminho da gastronomia. 5. HÁBITO NO TRABALHO Trabalhar em silêncio. Emulsão 1 colher de sobremesa bem cheia de mostarda Dijon 4 colheres de gema de ovo pasteurizada ½ colher de sobremesa de molho inglês Perrins ½ colher de sobremesa de molho de pimenta Tabasco 1 colher de sobremesa de conhaque 400 ml de azeite extravirgem Pimenta-do-reino Sal Modo de preparo Misture tudo e sirva gelado (a carne deve estar bem gelada; faça a mistura sobre um bowl com gelo). Com um aro, monte em um prato fundo o steak tartar. Ao lado, coloque salada de folhas verdes temperadas com molho vinagrete de azeite balsâmico e, por cima, três batatas souffleés. Rendimento: 1 porção. Tempo de preparo: de 20 a 30 minutos. 6. DESTINO GASTRONÔMICO Quando tiro férias, gosto de passar 15 dias em Cádiz, no sul da Espanha, lugar com as melhores ortiguillas (anêmonas) fritas que já comi. Experimente Baby Beef Rubaiyat Av. Brigadeiro Faria Lima, 2954, Itaim Bibi, São Paulo (SP). Tel.: (11) 3165-8888 7. INFLUÊNCIA NA COZINHA O tempo que tenho passado no Brasil deixou minha mão mais pesada na hora de temperar. Tenho caprichado, principalmente, quando uso limão. O Baby Beef Rubaiyat faz parte do Menu Personnalité. Conheça os pratos em: itau.com.br/personnalite/ experiencia 14 Ã A rotina de Carlos Valentí é assim: ele mal volta de Brasília e já tem que voar para o Chile, onde vai preparar o cardápio de mais uma unidade do Baby Beef Rubaiyat. Chef executivo do grupo há dois anos, o madrileno se divide entre os sete restaurantes da marca – além de Brasília, são três em São Paulo, um no Rio, um em Madri e um na Cidade do México. “É a chance de descobrir o que cada lugar tem a oferecer de melhor”, diz. Aos 38 anos, Carlos passa de dois a três meses em cada lugar, criando pratos e investindo na formação das equipes. Ao lado, ele ensina a receita de um dos pratos mais pedidos na unidade da avenida Faria Lima: o steak tartar. Para celebrar os 40 anos do Grupo Corpo, os irmãos Pederneiras escolheram uma foto da peça Parabelo, que já foi apresentada 426 vezes È POR BRUNA BOPP FOTO PEDRO LÓES Ingredientes 150 g solomillo 1 colher de sobremesa da emulsão (veja abaixo) 2 colheres de café de alcaparras picadas 1 colher de café de pepino em conserva picado 1 colher de café de cebola picada 1 colher de café de salsinha picada 1 colher de café de mostarda Dijon JOSÈ LUIZ PEDERNEIRAS/DIVULGAÇÃO No comando dos sete restaurantes do Grupo Rubaiyat, o espanhol ensina o passo a passo de um de seus pratos prediletos, o steak tartar 1. UMA SAUDADE Levar meus filhos, Hector e Carlota, que moram em Madri, para a escola. E depois ir a um restaurante com eles, de preferência japonês, culinária que adoram. _ O BALÉ MAIS DANÇADO STEAK TARTAR O ano de 2015 é especial para o Grupo Corpo: a companhia de dança contemporânea mais importante do país completa 40 anos. Não foi fácil chegar a um consenso da foto mais emblemática da história do grupo mineiro, que tem os irmãos Pederneiras como miolo criativo. Enfim, Paulo, diretor artístico, e Rodrigo, coreógrafo, fecharam a escolha em uma imagem da peça Parabelo, criada em 1997. Explica-se: “O Parabelo é o nosso balé mais dançado. Até hoje foram 426 apresentações, das quais 137 só no Brasil. Ela é um marco de sucesso do Grupo Corpo”, diz O BALÉ PARABELO FOI O MAIS APRESENTADO PELO GRUPO CORPO NOS 40 ANOS DE HISTÓRIA DA COMPANHIA MINEIRA Paulo. Rodrigo, por sua vez, destaca a longevidade da montagem e o fato de ela ainda fazer parte do repertório da companhia, além de ser muito pedida no exterior. “A coreografia de Parabelo é a mais brasileira e regional de todas as minhas criações. Ela é pujante e tem um brilho especial.” O consenso, porém, não foi simples. Ao longo de quatro décadas, o grupo produziu peças muito marcantes, sendo que algumas com significados subjetivos para cada um deles. “É muito pessoal, mas a Missa do orfanato, de 1989, tem um significado especial para mim. 15 Criei a coreografia de uma vez só. Não parei para arrumá-la. Foi direto. Até hoje, quando assisto, sinto força e emoção”, revela Rodrigo. A pioneira Maria Maria, de 1976, que estreou com trilha musical de Milton Nascimento, um ano após a fundação da companhia, em Belo Horizonte, e o balé 21, cuja linguagem particular desenvolvida em 1992 rendeu ao grupo sua assinatura até hoje, foram carinhosamente lembradas por Paulo. “O começo de tudo foi com Maria Maria, que trouxe reconhecimento no Brasil. Com a peça 21, passamos a ser respeitados no exterior.” POR Ines Garçoni, do Rio de Janeiro FOTOS Daryan Dornelles NAS TELAS Como Mariana Ximenes elabora seus personagens para TV e cinema e o prazer que ela tem em colecionar o trabalho de artistas plásticos, de quem acaba se tornando amiga. Dois registros (um em dourado; outro em preto) desvendam a personalidade da atriz em sua relação profunda com a arte PERSONNALITÉ MARIANA XIMENES A ATRIZ A APRECIADORA DE ARTE hoje uma das mais importantes atrizes de sua geração. No currículo extenso – sem contar os tempos de garota-propaganda na infância e na adolescência – não faltam elogios da crítica e prêmios. Da protagonista Aninha, de Chocolate com pimenta (2003), passando pela vilã Clara, de Passione (2010), até a vedete sexy Aurora Lincoln, de Joia rara (2013), se tornou popular graças às novelas de televisão, mas transita por outras searas — teatro, cinema e até artes plásticas, como personagem de algumas obras: “Ser ator é querer dizer alguma coisa, se expressar. Podemos provocar, estimular, instigar, e sermos provocados também. A cada processo eu me transformo”, diz. “Busco sempre aprender e evoluir. Para me tornar um ser humano melhor.” O carro vai chegando à Cidade das Artes, pavilhão que abriga um complexo cultural na Barra da Tijuca, zona oeste carioca, e em 40 minutos de viagem Mariana já falou com entusiasmo sobre a descoberta de uma “cultura superdiferente” na Índia, onde passou o réveillon, sobre como foi “incrível” escalar o Morro da Babilônia e ver o Pão de Açúcar por um ângulo diferente. ariana Ximenes entra no carro, põe delicadamente a mão no ombro do motorista, “como é seu nome?”, pede mil desculpas pelo atraso de meia hora, “perdão, Roberto, eu tinha muitas coisas para fazer nesta manhã”, e bate o olho na televisão do painel. Vê uma imagem sem som do lutador Anderson Silva. O interesse é imediato: “Ah, olha ele! Vai lutar de novo. O que será que estão dizendo?”, pergunta. “Não, não é que eu goste de MMA. Eu curto histórias de superação. Adoro conhecer a trajetória das pessoas, saber quais caminhos escolhem na vida.” Às 9 da manhã, 29 graus do lado de fora, de cabelo preso e sem maquiagem, carregando “uma pasta, uma bolsinha e um bolsão” cheios de papéis e objetos de trabalho, Mariana já está absolutamente atenta a tudo ao redor. “Sou curiosa”, solta, quase sem querer. Sempre foi assim, ela conta. A curiosidade impulsiona sua carreira há quase 20 anos: “Por que essa personagem age de tal maneira? Ah, então ela é feliz desse jeito? Eu aprendo com elas e amplio horizontes, me questiono”. Aos 34 anos, a paulistana Mariana Ximenes do Prado Nuzzi é 18 NO ALTO, MARIANA COMO A VEDETE AURORA LINCOLN, NA NOVELA JOIA RARA (2013) M ARQUIVO PESSOAL / DIVULGAÇÃO /VICENTE DE MELLO M amizades entre pintores, fotógrafos, escultores, grafiteiros. E as lembranças de museus, galerias e obras são tantas que ela quase se perde, entusiasmada, ao contar algumas das experiências. “Ai, espera! Esqueci de falar do Hermitage, em São Petersburgo! Fiquei três dias chorando de emoção com aqueles Rembrandts maravilhosos.” Descontado o exagero, Mariana é, de fato, bastante sensível às artes. Quem diz isso são os amigos. O artista carioca Ernesto Neto vê na atriz “uma forte sensibilidade para a coisa artística, muito aberta e curiosa. Como a arte é um mundo que beira o sobrenatural e transcende essa realidade brutal que a gente recebe hoje em dia, o interesse da Mariana faz com que ela tenha uma conexão, uma ponte de ordem espiritual, com esse universo oculto e simbólico”. Gustavo, um d’OSGÊMEOS, outro amigo da atriz, acha “muito importante alguém como ela, com tanta sensibilidade, dividir o que tem dentro de si, filtrar o que enxerga, escuta e vivencia, e passar para outras pessoas. E ela faz isso de forma tão simples e direta”. Mariana tenta definir do que se trata a sua própria sensibilidade: “Não sei… Apenas adoro tudo o que mexe com os sentidos”. ariana Ximenes caminhava pelo vão da Cidade das Artes durante o ensaio fotográfico quando deparou com uma grande escultura de ferro. “Que lindo, de quem é?”, perguntou ao léu, caso alguém pudesse responder. Diante do silêncio, abordou uma funcionária da casa que perambulava por ali. Nada feito. Horas depois, ensaio quase terminado, a atriz cruza com um sujeito de crachá: “Por favor, o senhor sabe de quem é aquela obra de ferro?”. A dúvida se desfaz na hora; “a obra, sem título, é de José Bechara”. Ao que Mariana, feliz, emenda: “Ah, é do Bechara, claro! Ele também é meu amigo”. A paixão pelas artes plásticas começou ainda adolescente, estimulada pelos pais, o advogado Pedro e a fonoaudióloga Fátima, eles próprios frequentadores assíduos de exposições. “Lembro até hoje da primeira vez que fui a uma edição do [projeto de intervenções urbanas em São Paulo] Arte Cidade, tinha uns 15 anos e estava com uma amiga”, conta a atriz. “A viagem começava já no vagão, na Estação da Luz, quando o trem entrava em movimento. Na janela, uma obra de arte ia se formando instantaneamente.” Hoje, 20 anos depois, além de algumas obras de arte em casa, Mariana também coleciona “O MEU RETRATO MAIS BONITO”, DIZ MARIANA SOBRE A FOTO DA SÉRIE CONTRE JOUR, DO ARTISTA VICENTE DE MELLO 19 PERSONNALITÉ MARIANA XIMENES 2 3 1 “SER ATOR É QUERER DIZER ALGUMA COISA... PROVOCAR, INSTIGAR” “PERDI A CONTA DE QUANTAS VEZES FUI PARA INHOTIM. É UM LUGAR MÁGICO” 4 Falou também sobre os aniversários que já comemorou em lugares inusitados – uma vez num barco nas Ilhas Cagarras e outra numa cachoeira no Horto, às 7 da manhã, levando um brunch e uma toalha na mochila. “Eu desfruto da cidade”, explica, “sou uma paulista apaixonada pelo Rio. Subo a Pedra da Gávea, vou à Floresta da Tijuca. Amo praia. Tenho até minha própria prancha de stand-up paddle”. Seu carro só sai da garagem para ir ao Projac; no resto do tempo, anda a pé e de bicicleta pela Gávea, bairro onde mora há dois anos. Antes, em Ipanema, “uma delícia de lugar”, viveu com o produtor de cinema Pedro Buarque de Hollanda, com quem foi casada dos 20 aos 28 anos, e com a mãe, depois da separação. Às vésperas do Carnaval deste ano, Mariana foi à quadra da Portela e sambou ao lado do novo namorado, um empresário paulista, como “pinto no lixo”, diziam os jornais no dia seguinte. Flâneur, sim. No entanto, mais do que da rua, Mariana parece gostar de gente. Promove jantares com amigos em casa para debater ideias, arte, política etc. Quando pode, vai à casa do vizinho jornalista Jorge Bastos Moreno, comentarista político de O Globo, onde são famosos os encontros do mesmo gênero. Lá, num desses convescotes, conheceu o escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras Zuenir Ventura, 83 anos, autor de “1968 — O ano que não terminou”, obra que havia lido recentemente. “Mariana é interessadíssima, antenada, um papo superagradável”, diz Zuenir. “Está ligada em todos os movimentos. Conversamos horas sobre cinema, literatura… E é muito natural, sem arrogância ou preocupações com a própria imagem, algo que se esperaria de uma atriz tão famosa.” 6 8 ARQUIVO PESSOAL PESSOAL ARQUIVO 7 20 5 1. MARIANA COM ZUENIR VENTURA 2. DANÇANDO NA QUADRA DA PORTELA 3. INTERPRETANDO A VILÃ CLARA DA NOVELA PASSIONE 4. A PEQUENA MARIANA XIMENES NOS ANOS 80 5. OUTRA OBRA DE VICENTE DE MELLO, DA SÉRIE O CINEMATÓGRAFO 6. SE PREPARANDO PARA VIVER A TRAPEZISTA MARGARETE NO FILME O GRANDE CIRCO MÍSTICO, DE CACÁ DIEGUES 7. COM O ÍDOLO DE INFÂNCIA JASON PRIESTLEY, COM QUEM ESTRELARÁ O FILME ZOOM 8. DESBRAVANDO A ÍNDIA NO RÉVEILLON DE 2015 De alguns artistas, é ao mesmo tempo admiradora e musa. O fotógrafo carioca Vicente de Mello fez um dos seus retratos mais bonitos, na opinião da atriz, com uma Rolleiflex. Os dois viajavam pelo Recôncavo Baiano, ao lado da artista Adriana Varejão, e um dia, caminhando, passaram por uma construção abandonada. “Tinha um patamar e umas árvores, e eu pedi para ela subir ali. Ela foi, fez um movimento que dá a sensação de que está se jogando ou caindo, e indicando uma rosa dos ventos. Foi tudo muito rápido, e ela desceu toda feliz. É alguém que se dispõe naturalmente, sem frivolidades, generosa. Tem uma liberdade própria”, explica Vicente. “Fala de arte com uma esperteza sensacional, pergunta o que você acha da questão, tem curiosidade pela opinião do outro.” Com Varejão – hoje casada com o ex-da atriz, Pedro Buarque de Hollanda –, Mariana visitou Inhotim, em Brumadinho (MG), instituto que abriga uma das mais importantes coleções de arte contemporânea nacional, antes mesmo da inauguração. “Perdi a conta de quantas vezes já fui”, diz. “É um lugar mágico.” Além de arte, Inhotim tem também de sobra outra coisa que a atriz adora: árvores. Como na casa da arquiteta Lina Bo Bardi, em São Paulo, “onde há árvores plantadas por ela mesma há 50, 60 anos”. Lá Mariana visitou uma exposição, em 2013, com uma série de instalações. Uma delas, de Cildo Meirelles, ela considera inesquecível: “Ele deixou uma máquina de café ligada direto e o cheiro invadia o ambiente, enquanto uma gravação com a voz do marido dela, Pietro, dizia ‘Lina, va fare un caffè’. Muito legal, você se transportava para aquele tempo. E a casa, suspensa por pilotis, fica na altura das copas das árvores. Como ela é toda de vidro, você vê a paisagem. Quer mais arte que as copas das árvores?”. 21 “SOU UMA PAULISTA APAIXONADA PELO RIO DE JANEIRO. EU DESFRUTO A CIDADE” 22 GIULIANA ROMANNO / MANUFACT / GIOELLI PANTALENA PARA VILLA EFFETTI / VIRZI DELUCA / ARON & HIRSCHEL / LULI MARTINS AGRADECIMENTOS: FUNDAÇÃO CIDADE DAS ARTES - WWW.CIDADEDASARTES.ORG / WYMANN / REINISCH & GAVA / AREZZO / FRANCESCA DIANA ROMANA PERSONNALITÉ MARIANA XIMENES 23 PERSONNALITÉ O amigo artista plástico Delson Uchôa define Mariana em poucas palavras: “Uma diva contemporânea sem fricote”, brinca o pintor, que vive na Praia de Ipioca, a 20 quilômetros de Maceió. “Ela passou um réveillon aqui em casa, há uns dois anos, e fiquei impressionado com sua capacidade de fazer amizades.” A atriz lembra dessa e de outras viagens com saudades. Quase sempre atraída pela natureza, já fez um safári na Tanzânia — e viu uma leoa e seis filhotes devorarem um búfalo — “sim, gosto de lugares exóticos” . No ano passado, foi a Alter do Chão, no Pará, e passou seis dias num barco, dormindo em rede. Fica “muito emocionada” a cada visita a Fernando de Noronha. Recomenda a qualquer um ir a Nova York no fim de abril para ver o espetáculo das cerejeiras floridas no Jardim Botânico do Brooklyn. Na Índia, dormiu em tendas, navegou rios, andou em elefantes e camelos. Mas também comeu e dançou com novos amigos indianos, “um casal que, se eu não tivesse conhecido, não teria me levado num dos castelos mais lindos que já vi”. Quinze dias não foram suficientes e a deixaram ainda mais curiosa sobre o país. “Recomendo mais tempo. Se eu pudesse, ficava por lá. Mas precisava voltar para trabalhar.” Há cerca de um ano longe da TV, Mariana está se dedicando ao cinema. Em 2015, estreia três filmes, entre eles Zoom, primeiro do diretor Pedro Morelli, ao lado de Gael García Bernal e Jason Priestley, o astro da série Barrados no baile, “meu ídolo de adolescência!”, se diverte. A artista se diz disciplinada e dedicada: “Sem gostar de estudar, o ator não vai longe”. Desde 2004, a psiquiatra e coach de atores Katia Aschcar é sua parceira fundamental. “Nosso trabalho mais marcante foi a psicopata Clara, de Passione, uma difícil composição. Ela tinha três personalidades diferentes. Foram horas e horas de dedicação. Estudamos cena a cena, da interpretação e compreensão do texto, intenções e subjetividade”, lembra Katia, para quem Mariana, “com seu talento e confiança, executa de maneira brilhante o trabalho diante das câmeras ou no palco”. Agora, a dupla está engajada na composição de Margarete, a trapezista de O grande circo místico, filme de Cacá Diegues. A preparação inclui aulas de trapézio diárias: “Para compreender essa personagem, eu preciso fazer, entender a força, o cansaço, a disciplina dela”, comenta Mariana. “Tudo isso também é parte do meu próprio caminho, da minha trajetória.” MARIANA XIMENES _ “No meu caos, eu me entendo” Uma pasta de elásticos verde, simples, guarda um caderno, canetinhas coloridas, a imagem de uma escultura sacra impressa e o roteiro do filme O grande circo místico, onde se lê, com a letra de Mariana Ximenes, “Margarete”. A personagem do filme de Cacá Diegues é uma trapezista devota de Santa Teresa D’Ávila, católica fervorosa, que No caderninho, marcadores de página indicam o lugar de temas como “Filmes” e “Livros”, e há anotações esparsas, aparentemente sem ordem, de ideias que Mariana tem para a construção da personagem. “No meu caos, eu me entendo”, ela brinca. O que a atriz faz é documentar, desde os primeiros papéis que interpretou na vida, o seu processo criativo. Para cada personagem, uma pasta. Em outro caderninho, quando se preparava para o filme Mãos de cavalo, com estreia prevista para este ano, e precisou aprender a escalar, deve ter anotado um pensamento do instrutor que a marcou bastante: “Ele perguntou: ‘você sabe qual é o principal objetivo do escalador?’. A resposta simples é ‘chegar no topo’. Mas ele disse: ‘Errado. É percorrer o caminho. Isso é o mais importante’. Achei tão lindo isso”. 24 NO ALTO, A PASTA E O CADERNO COM O MATERIAL DE PREPARAÇÃO DE MARIANA PARA O FILME O GRANDE CIRCO MÍSTICO E ISABELA SODRÉ / STYLING: SU TONANI / PRODUÇÃO DE MODA: IGOR MIGON / BELEZA: RICARDO TAVARES por um estupro. PRODUÇÃO EXECUTIVA: KIKA PEREIRA DE SOUSA / PRODUÇÃO: FLÁVIA RIBEIRO / PRODUÇÃO RIO: ANA HORA vê o sonho de casar virgem interrompido errados. O que importa é a trajetória em si. “Cada um faz a sua. Cada indivíduo tem uma identidade no seu dedão, cada um é único. Nem eu estou certa, nem o outro está errado. Aprendi, com o meu trabalho, a não julgar ninguém.” Em casa, a atriz tem algumas peças, “muito menos do que gostaria, claro”, de estrelas como Vik Muniz, Ernesto Neto, Adriana Varejão, Ângelo Venosa, Delson Uchôa, Nelson Leirner, Cildo Meirelles, Marcos Chaves, entre outros. São quase todos seus amigos. Inclusive Leirner, 82 anos, de quem ficou próxima quando participou de um trabalho assinado por ele. “Convidei Mariana para ser figura principal na capa de um caderno feminino que fiz a convite do jornal O Globo. Imediatamente houve uma empatia muito grande e nos tornamos amigos”, conta Nelson. “Conversamos bastante sobre arte, cinema, teatro, televisão… Ela é muito culta. Tem alguns trabalhos meus, pequenos, e em datas significativas sempre mando algo feito por mim.” Mas Mariana recusa o rótulo de colecionadora. Rejeita ainda mais o carimbo de “entendida”. “Tenho medo de dizer que entendo de arte porque eles, os artistas, estudaram muito e eu não. Prefiro dizer que sou apreciadora. Mas uma grande apreciadora”, diz, sorrindo. A conjugação arte e natureza também já levou Mariana algumas vezes ao Storm King Art Center, parque de esculturas a 1 hora e meia de Manhattan, “onde tem um Richard Serra, gigantesco, Joseph Beuys… você anda pela natureza e de repente vê uma escultura enorme. É um passeio maravilhoso”. Em Nova York, Mariana seguiu os passos da poeta e cantora americana Patti Smith, descritos por ela no livro Só garotos, no qual narra sua juventude nova-iorquina ao lado do fotógrafo Robert Mapplethorpe. “Anotei as referências que ela dá no livro, fui aos lugares que ela foi naquela época, e por fim consegui ir a um show”, conta, orgulhosa. “É uma brincadeira de estímulos, de curiosidade, de inquietude. Se for algo que me mobiliza e me emociona, vou a fundo na pesquisa.” Foi assim também com a obra do artista irlandês Francis Bacon, de quem é admiradora: “Já gostava do Bacon e comecei a pesquisar toda a obra, fui atrás das fontes de inspiração dele”. Uma das principais atrações para Mariana nas obras de arte são exatamente as fontes de inspiração dos artistas – e que acabam se tornando um pouco as suas também. “Me interesso pelo processo criativo. Como ele chegou nesse raciocínio, o que ele está lendo, quais são as referências, o que o motivou?” Em matéria de caminhos percorridos, tanto faz, para ela, se são certos ou A ATRIZ PAULISTANA POSA AO LADO DE UMA ESCULTURA DE FERRO FEITA POR SEU AMIGO JOSÉ BECHARA NA CIDADE DAS ARTES, NO RIO DE JANEIRO 25 Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista ao vídeo com Mariana Ximenes POR Joselia Aguiar REUNIÃO Neta de Dorival, filha de Danilo e sobrinha de Nana, Alice Caymmi esmiúça seu baú de lembranças para buscar no legado familiar os ingredientes da música que produz DE FAMÍLIA RICARDO TOSCANI/DIVULGAÇÃO A voz grave, parte do repertório e o sobrenome identificam Alice: é uma Caymmi. A cantora nasceu envolta em música e teve lugar para levar adiante a vocação. Mas não é porque segue o cânone que a neta de Dorival (1914-2008), filha de Danilo e sobrinha de Nana tem sido apontada como um dos nomes mais interessantes da MPB. Ao contrário. O jeito particular da artista de 25 anos se alicerça justamente na transgressão, uma combinação ousada de arranjos, interpretação, figurino e maquiagem. Logo nota quem escuta seu segundo disco, Rainha dos raios. Ela reúne de Gil e Caetano a Arto Lindsay, MC Marcinho e Michael Sullivan. A marca da personalidade também nota quem a assiste em shows ou no DVD homônimo. Com cabelo descolorido e piercing, sua apresentação é dirigida por Paulo Borges, idealizador da São Paulo Fashion Week. À música, Alice vem acrescentando o que aprendeu no teatro (é formada pela PUC-Rio), nas exposições que sua mãe, Simone, que foi cantora e atriz e ALICE CAYMMI INTERPRETA CÁSSIA ELLER EM EPISÓDIO DA SÉRIE CANTORAS DO BRASIL, EXIBIDO PELO CANAL BRASIL, EM NOVEMBRO DE 2014 27 hoje exerce a psicologia, a ensinou a frequentar. Desde menina canta, compõe e toca violão. Hoje também desenha e pinta. Diz que tem quadros prontos, mas “experimentações”, nada que pensa em expor. “Minha família foi muito importante na minha formação musical, sobretudo na artista que sou hoje”, explica. “Ela me deu liberdade para que pudesse ser não só mais uma Caymmi, e sim Alice.” A cantora vive uma fase de agenda cheia e busca por experiências. “Estou sempre procurando outras referências, não somente brasileiras. É uma administração estética do trabalho, penso na plasticidade junto ao som, na desconstrução tanto da imagem quanto da música.” Tudo tem acontecido rápido. A estreia foi em 2012. Desde então amadureceu, como diz a crítica. A última, ela soube pela TV, quase por acaso: sua música “Como vês” virou tema da minissérie Felizes para sempre?, da Rede Globo. Pelas fotos retiradas do baú de Alice Caymmi, dá para dizer que nem foi tão rápido assim. Tem já 25 anos. “NO MEU ANIVERSÁRIO DE 1 ANO, NO COLO DO MEU AVÔ” “Lembro-me, entre as cenas que guardo desses primeiros anos, de ver o meu avô pegar no violão e cantar. Ouvir sua voz era de um impacto grande, aquela voz forte, grave como seria a de todo mundo da família. A foto é do meu aniversário de 1 ano. Com 1 ano você nem sabe exatamente quem é, não consegue interagir direito, então eu não devia estar muito feliz com a festa. Mas certamente ele estava. Meu avô adorava criança. A cantar a gente não sabe quando começa, mas a tocar violão foi com 10 anos. Já adolescente, mostrei o que fazia para ele, que dizia gostar, achava bonitinho. Por um tempo me distanciei de sua música para me aproximar de novo, anos mais tarde. Foi quando parei para ouvir um box com toda sua obra. Fiquei muito impressionada e emocionada, um momento importante para mim. No show Dorivália, ano passado, fiz uma releitura do meu avô, do meu jeito.” “NA INFÂNCIA, O QUE ME DEIXAVA MAIS FELIZ ERA FICAR NO ESTÚDIO DO PAPAI” 28 “TOM JOBIM ME COLOCAVA NO COLO E ME DEIXAVA BRINCAR NO PIANO” ARQUIVO PESSOAL “Das coisas que mais me deixavam feliz na infância, ficar no estúdio que o papai tinha em casa era especial. Dá para ver como estou feliz nesta foto, era o auge da minha vida. O neném fica louco com o teclado. Ele me segurava e me botava para tocar dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó. Fazemos apresentações juntos desde os meus 15 ou 16 anos. Temos uma química muito boa, e ele diz que minha presença o deixa mais calmo no palco.” “A minha mãe quando estava grávida de mim fazia parte da Banda Nova, do Tom Jobim. E meu pai também. Então, meu contato com a sua música é anterior a tudo! Foi a primeira coisa que ouvi, até antes do meu avô Caymmi. E havia outro motivo de proximidade também. Meu avô materno, pai da minha mãe, casou com a Helena Jobim, irmã do Tom, nesse que foi o segundo casamento dele. Tenho memória olfativa forte: do charuto, do chão de madeira da sala de ensaio. Lembro que me colocava no colo e me deixava mexer no piano, coisa que raramente deixava alguém fazer, porque era um piano valioso, caro.” 29 “QUANDO A FAMÍLIA SE REÚNE, A GENTE BOTA A TIA-AVÓ DINAIR PARA CANTAR” “Meu tio Dori é um grande maestro e arranjador. Lembro-me de vê-lo regendo, controlando tudo. A sua musicalidade se desenvolveu com um tipo de estudo diferente do que a família seguiu. Foi uma grande influência para mim quando comecei a tocar violão e a compor. Quis entender a obra dele, conhecer as semelhanças e diferenças. Na foto, ele toca violão para minha tia-avó Dinair, que já passou dos 90, cantar. Muito lúcida, ela tem a voz da família. Quando a gente consegue reunir a família, a gente bota a tia-avó para cantar.” “TINHA 12 ANOS EM MINHA PRIMEIRA GRAVAÇÃO COM A TIA NANA” “Vovó [Stella Maris] tinha uma voz maravilhosa, foi uma grande cantora de rádio, época em que conheceu meu avô. Cantava muito em casa fazendo as coisas. De gravação dela, a única que conheço é ‘Canção da noiva’, no disco Caymmi visita Tom. Não sei se existem outras. Tinha um gênio forte e um humor muito interessante. Uma verdadeira matriarca: estava sempre muito próxima de todo mundo, cuidava da família com muita força. Gostava que eu cantasse. Mas ninguém ficou do lado de ninguém dizendo ‘aprenda’, muito menos fizeram isso comigo. Se via inclinação, deixava fluir.” 30 ARQUIVO PESSOAL “VOVÓ TINHA UM GÊNIO FORTE E UM HUMOR MUITO INTERESSANTE” MOACYR LOPES JUNIOR/FOLHAPRESS “Minha tia Nana tem uma voz rara, assim como era a do meu avô. A foto registra a minha primeira gravação. Uma música chamada ‘Seus olhos’, da minha irmã Juliana Caymmi, que é compositora. Eu tinha 12 anos, saí direto do colégio. Gravei o disco e depois cantei no Canecão com ela. A minha mãe me acompanhou nesse dia e está na outra foto. Começou como cantora e atriz, mas largou a trajetória artística para ser psicóloga. A minha relação com as artes plásticas se deu muito por causa do seu estímulo – desde que eu era pequena, me levava para visitar exposições, cresci com essa curiosidade, essa inclinação.” “ESTOU COM O MEU PAI, NO ENCERRAMENTO DO PAN-AMERICANO DE 2007” “Estamos [com o pai Danilo] no Rio de Janeiro, durante o encerramento dos Jogos Pan-Americanos de 2007, pouco antes de eu fazer vestibular para Direito. Passei e um ano foi o suficiente para me desiludir e entender que não nasci para aquela carreira. Então, passei para o teatro.” 31 MARIANA XIMENES PERGUNTA: O QUE MAIS MOTIVA VOCÊ NO TRABALHO? 32 LUCAS FONSECA RESPONDE: A ideia de trabalhar com espaço já é convidativa o suficiente para gerar uma motivação diária. A minha real motivação deriva de um sonho de criança e assim segui até conseguir realizá-lo. Mas minha maior motivação sempre foi o fato de poder acordar e saber que estava criando o incrível a cada dia. Tento aplicar a mesma motivação do incrível para cada atividade que faço na vida. Não precisa ser necessariamente relacionada com o espaço. 33 POR Salvador Nogueira ILUSTRAÇÕES Vapor 324 O CÉU NÃO É O LIMITE O cientista Lucas Fonseca foi o único sul-americano a participar da missão europeia que pousou uma sonda em um cometa a 500 milhões de quilômetros da Terra em 2014. Agora, pensa na próxima: “Quero mandar um satélite brasileiro para a Lua” PERSONNALITÉ LUCAS FONSECA N as primeiras horas da tarde do dia 12 de novembro de 2014, uma quarta-feira, o engenheiro Lucas de Mendonça Fonseca, 30 anos, perdeu alguns de seus poucos fios de cabelo. Ele acompanhava, do Brasil, pela internet, o tenso desenrolar de acontecimentos durante a primeira tentativa de pouso de um artefato humano na superfície de um cometa. Junto ao pequeno módulo Philae, levado até o cometa 67P/ Churyumov-Gerasimenko pela sonda europeia Rosetta, a uma distância de 500 milhões de quilômetros da Terra, voavam os frutos de três anos de trabalho do brasileiro na Europa. Isso sem falar numa vida inteira de sonhos espaciais. “É difícil dizer quando começou. Sempre tive interesse por espaço”, conta Lucas. “Minha mãe e meu pai lembram que eu dizia, desde pequenininho, que não queria ser astronauta, que o que queria era construir uma nave.” Nascido em 1984, com fala mansa e expressão jovial, Lucas define sua infância como a de um geek. “Com a diferença de que naquela época não se usava esse termo, era ‘nerd’ mesmo”, diz. Fã de ficção científica, se apaixonou por Star wars, saga criada em 1977 pelo cineasta George Lucas que reúne duas das paixões de seu xará brasileiro: robôs e exploração espacial. “Gostava muito dos filmes, mas hoje não estou ansioso pela estreia do próximo [prevista para dezembro]. Aliás, não estou ansioso por filme algum.” O desinteresse pela ficção talvez tenha uma explicação: a maioria de seus sonhos infantis, ele tornou realidade. PRIMEIRO PASSO Ao contrário do que está incrustrado na imaginação popular, nem só de Nasa vive a ciência que estuda o que está acima de nós. Existem projetos de sucesso bancados pela China e muitos países europeus. A própria missão Rosetta, ao custo de R$ 4,5 bilhões, conta com uma equipe multinacional, estabelecida em uma base em Darmstadt, na Alemanha. No entanto, anos atrás, ainda moleque, os sonhos de Lucas Fonseca coincidiam com o clichê da maioria das pessoas: qualquer interesse mais ousado pelo espaço era sinônimo de um trabalho na agência espacial americana. Com esse ideal em mente, o jovem iniciou sua jornada acadêmica. “Quando era estudante, não havia no Brasil cursos de engenharia espacial”, explica. “Então, o que fazia mais sentido era cursar mecatrônica.” Assim, em 2003, Fonseca deixou a cidade praiana de Santos, onde nasceu, e se mudou para São Carlos, no interior paulista, onde se formaria em engenharia mecatrônica pela Universidade de São Paulo. No segundo ano de faculdade, já estava enviando currículos para a Nasa. A resposta vinha, polidamente, com uma negativa: as portas estavam fechadas. No Brasil, o setor aeroespacial é ingrato – as oportunidades são poucas e, no geral, resultam em mais frustração que resultados. “Eu já sabia um pouco sobre como as coisas funcionavam por aqui. Em 2006, sem chance nos Estados Unidos, acabei indo trabalhar na indústria farmacêutica.” Empregado na Johnson & Johnson, a vida melhorou. O salário era excelente, a carga horária, leve. O engenheiro encontrava tempo para exercitar hobbies. Entre eles, tocar guitarra. “Mas aí olhava para a baia na minha frente e via um funcionário mais velho, um engenheiro de 40 anos, fazendo a mesma coisa que eu. E pensava: não quero passar o resto da vida aqui.” O sonho da Nasa, claro, não estava morto. _ Nas horas vagas, montanhismo Lucas Fonseca não é só um explorador do espaço. Quando nos encontramos para conversar, ele estava em meio aos últimos preparativos para uma viagem à Argentina. O objetivo: subir o Cerro Plata, a cerca de 6 mil metros de altitude. É a mais recente de uma longa série de aventuras de montanhismo das quais ele já participou. “Comecei muito cedo com história de acampamentos e contato com a natureza”, conta. “Passei por todas as fases do movimento escoteiro. Fiz parte dos 6 aos 18 anos.” Ao subir montanhas, ele encontra tranquilidade e paz. “Tem gente que se ARQUIVO PESSOAL incomoda com o isolamento. Eu gosto”, diz 36 O JOVEM LUCAS NO CABO CANAVERAL, NA FLÓRIDA (EUA), EM 1994 ENCRUZILHADAS o fã do explorador Amyr Klink. A guinada transatlântica veio de súbito. No fim de 2008, ao conversar com amigos e colegas, chegou à conclusão de que precisava investir numa complementação à sua formação, feita no exterior e voltada para a engenharia espacial. Recebeu o apoio da então namorada, Lia, que conheceu nos tempos de faculdade e com quem está até hoje. “Ela disse: ‘Você tem esse sonho. Você tem que ir’.” De início, a solução foi procurar uma bolsa europeia para estudantes de outros continentes – a Erasmus Mundus. Duas boas faculdades vinculadas ao programa de incentivo, na Alemanha e na Inglaterra, ofereciam mestrado em engenharia espacial naquele ano. Lucas foi aprovado nas duas. Mas não era exatamente lá que queria estudar. Seu desejo apontava para a tradicional Supaero (Institut Supérieur de l’Aéronautique et de l’Espace), a melhor escola de engenharia aeronáutica francesa, localizada em Toulouse. “Em janeiro de 2009, escrevi um e-mail para eles, que responderam: ‘Temos o curso de mestrado, mas não estamos dando bolsa este ano. Você pode disputar uma vaga normalmente, mas terá de pagar’.” O brasileiro não levou muito tempo para decidir. “O preço do curso ia dar mais ou menos o valor do meu carro. Ele ia ficar pegando poeira na garagem enquanto eu estivesse por lá, então vendi o carro e paguei os estudos.” Não se arrependeu. “Tudo que me aconteceu depois, devo a esse curso. O método de ensino deles lá é fantástico. Nunca vivenciei nada parecido aqui no Brasil.” A conquista do Cerro Plata, no fim de 37 janeiro, foi o recorde de altitude de Lucas. Mas ele vai além. Até o fim de 2015, quer fazer a Trilha Nacional de Israel (mil quilômetros entre desertos e cidades históricas) e o ponto mais alto no hemisfério Sul, o Aconcágua (6.962 metros). “Vamos ver se consigo.” Em casa, Lucas não desgruda dos livros. “Acostumado a ler muito e de tudo, sempre carrega um livro e vive em busca de atividades que lhe permitam criar. Sejam a letra e a melodia de uma música, um painel de controle eletrônico para nosso sistema caseiro de irrigação ou um delicioso jantar”, entrega a esposa, Lia. O engenheiro também se arrisca como mestre-cuca. “Sua especialidade é salmão ao forno com queijo de cabra e vagem francesa.” Baixe a Revista Personnalité no tablet e veja a receita favorita do Lucas _ A missão PERSONNALITÉ A sonda Rosetta foi lançada no dia 2 de março de 2004 da base de Kourou, na Guiana Francesa, a um custo de R$ 4,5 bilhões. Depois de dez O MESTRADO NA FRANÇA Durante a estadia na França, de 2009 a 2010, Lucas decidiu buscar auxílio do astronauta brasileiro Marcos Pontes. “Não o conhecia pessoalmente, mas era alguém que estava na Nasa e podia me ajudar.” Depois de três meses do primeiro contato, Pontes escreveu a Lucas: “Acho uma ótima iniciativa essa sua de querer vir para a Nasa, mas quero te levar para o programa espacial brasileiro. Precisamos de jovens como você”. Pontes se recorda das tentativas do cientista. “O Lucas é um rapaz brilhante”, diz. “Seria uma excelente adição ao programa brasileiro e por isso apresentei o nome dele à Agência Espacial Brasileira [AEB], mas ainda é difícil desenvolver a carreira de engenheiro espacial no país. Muitas vezes, aos jovens resta buscar experiência e oportunidades fora.” Algum tempo depois da conversa com o astronauta, Lucas recebeu uma ligação. Era Carlos Ganem, então presidente da AEB. Ele queria costurar os arranjos para repatriar Lucas. Ofereceu um estágio prévio de um ano na empresa aeroespacial europeia Astrium. Ficou também acertado que um órgão do governo brasileiro, o CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico), iria reembolsar os gastos que o cientista havia tido com os estudos na França. Só que nada disso aconteceu. “Em defesa do Ganem, ele falou que ia ligar para o presidente da Astrium, e ele de fato fez isso. Mas, de resto, nada andou”, lembra. Em 2011, o momento de apresentar a dissertação do mestrado se avizinhava, e Lucas precisava encontrar um lugar que o abrigasse. Na Supaero, o trabalho final dos alunos é realizado dentro de alguma agência ou empresa espacial. Eis que surgiram duas opções. Em contato com a astrofísica brasileira Duília de Mello, radicada nos Estados Unidos, foi oferecida a Lucas a chance de realizar um pequeno projeto que emparceirava a Universidade Católica da América e... a Nasa. Depois de tanto orbitar seu destino dos sonhos, parecia hora de um pouso de sucesso dos Estados Unidos. Mas uma outra opção despontou: Lucas poderia ir à DLR, a agência espacial alemã, e trabalhar com um projeto então não muito conhecido, mas ousado e promissor, a missão Rosetta. anos de viagem, a Agência Espacial Europeia conseguiu, pela primeira vez na história, enviar um aparelho à superfície de um cometa. O pouso do módulo Philae no astro aconteceu dia 11 de dezembro de 2014, às 13h35, 7 horas após descolar-se da nave-mãe, a Rosetta. A TRAJETÓRIA O pouso aconteceu a 500 milhões de quilômetros da Terra. Desde 2004, a Rosetta percorreu mais de 6 bilhões de quilômetros. A SONDA ROSETTA Com 2,8 metros de altura por 2,1 de largura, a sonda pesa 3 toneladas e está acoplada a painéis solares de 14 metros de extensão. Foi aparelhada com 11 instrumentos de medição que buscarão indícios de água e carbono, fundamentais para a origem da vida. O COMETA NO MEIO DO CAMINHO Diante do dilema, Lucas refletiu: “Por um lado, era a chance de finalmente realizar o sonho e trabalhar na agência espacial americana. Mas era apenas uma ideia, uma vontade, algo que podia nem se materializar”, explica. “Por outro lado, a Rosetta era uma espaçonave que já estava no espaço, era uma missão concreta. Acabei optando pela DLR.” E assim o sonho americano começou a dar lugar à realidade alemã. Quando Lucas chegou à Europa, os engenheiros estavam diante de um grande desafio. Como pousar num cometa uma espaçonave originalmente pensada para descer em outro, muito menor? A Rosetta fora projetada na década de 1990. Seu alvo era o cometa 46P/Wirtanen. Todos os componentes tinham sido desenvolvidos para esse objeto. Mas, quando houve um problema com o foguete que ia levá-la ao espaço, foi preciso adiar o lançamento. O sistema solar não costuma perdoar atrasos. Objetos celestes mudam de lugar com o tempo e, uma vez perdida a janela de lançamento, torna-se impossível repetir a tentativa – pelo menos por um longo período. A alternativa encontrada foi buscar outro cometa. O 67P/Churyumov-Gerasimenko – astro dez vezes maior. Os desafios gerados pela mudança seriam enfrentados durante a longa jornada de dez anos até a Rosetta chegar lá – entre 2004, momento do lançamento, e 2014, a esperada inserção orbital. Caberia aos engenheiros da DLR, 38 O COMETA O MÓDULO PHILAE 67P/Churyumov-Gerasimenko Equipado com painéis solares, foi descoberto em 1969. pesa 100 quilos e se assemelha a Por ser objeto ativo e com uma máquina de lavar roupa, com pouca gravidade, dificultou 1 metro de altura. Ele recolheu os cálculos da trajetória de nas primeiras 64 horas desde o ataque. A sonda passou pouso dados gerados a partir de seis anos em órbita elíptica amostras de solo e fotografias, ao redor do Sol e usou a enviados mais tarde para a sonda gravidade da Terra e de Marte em órbita e depois reenviados para tomar impulso para o 67P. para a Terra, a uma velocidade de 28 kbps (a taxa é metade da atingida por uma conexão de internet discada). PERSONNALITÉ LUCAS FONSECA 40 41 _ Philae quicou antes do pouso O ataque histórico do módulo ao solo do cometa foi bem-sucedido, embora acidentado. O processo levou 30 minutos, entre o primeiro contato e o repouso, a 1 quilômetro de distância do local planejado. Nesse intervalo, o Philae quicou e acabou se estabelecendo em posição desconhecida, na face escura do 67P. A bateria solar do módulo se esgotou após 64 horas de operação, como esperado pelos cientistas. Nesse intervalo, enviou dados para a Rosetta, retransmitidos ao comando em Terra, o que configurou o sucesso da operação. Em modo de hibernação, o Philae deve ser reativado entre maio e junho, quando receberá luz solar novamente, por conta da posição do cometa em relação ao Sol. CÂMERA ACOPLADA À SONDA ROSETTA REGISTRA O POUSO DO MÓDULO PHILAE NA SUPERFÍCIE DO COMETA 67/CHURYUMOV-GERASIMENKO PERSONNALITÉ LUCAS FONSECA responsáveis pelo módulo Philae, analisar as variáveis e preparar um protocolo automatizado de pouso de acordo com as análises e simulações realizadas na Terra. “O foco do Lucas era modelar a dinâmica do módulo de pouso durante a separação, a descida e a chegada ao solo”, explica Koen Geurts, coordenador da missão Rosetta na DLR. “Como foi visto no pouso real, esses aspectos foram fundamentais para o Philae.” Lucas era o único não europeu na equipe. “Uma coisa interessante é que, nas simulações, a gente não tinha a mínima ideia do formato do cometa. Tudo que a gente desenvolveu era com base em como imaginávamos que ele fosse.” O chute inicial apostava num astro com o formato de uma batata. Descobriram, mais tarde, que o cometa se assemelhava a um pato de borracha. “Foi um trabalho de três anos resumido em 7 horas. Vem muito forte a sensação de que participei de algo grande.” Ao fim de 2012, Lucas tinha oferta da DLR para continuar por lá. Mas sentiu que já havia cumprido sua parte. Precisava dar mais atenção a duas outras paixões da sua vida que ficaram relegadas a um segundo plano durante sua jornada espacial europeia – a esposa, Lia, e a vontade de empreender. CERVEJA ARTESANAL Apesar de jovem, Lucas já tem vivência no mundo dos negócios. Encorajado pelo espírito de uma geração que transformou o mundo (e ficou rica no processo) sem sair da garagem de casa, ele não tem medo de arriscar. “Já montei uma porção de negócios. Quebrei umas quatro, cinco vezes. E, em umas duas vezes, podemos dizer que deu certo.” Os ramos são os mais variados. Ele já se meteu com cervejas artesanais: “Ainda produzo as que bebo, mas estou longe de ser um mestre cervejeiro. Sou apenas um aprendiz que copia a receita dos outros”. Hoje tem negócios de estética: “Minha mulher mencionou uma pessoa que trabalhava com micropigmentação e precisava construir uma máquina, e eu fui lá ver o que era”. Segue, é claro, envolvido com a engenharia aeroespacial. Ao voltar da Europa com a Rosetta no currículo, criou em 2013 a Airvantis em São Paulo. “Em tese, é uma empresa de pesquisa e desenvolvimento na área espacial”, conta Lucas. “Mas acaba que, pelo menos no momento, a gente só consegue participar de alguns editais do IAE [Instituto de Aeronáutica e Espaço] ou do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Coisa técnica só. Difícil fazer pesquisa e desenvolvimento no Brasil.” O diagnóstico de Lucas é que o mercado brasileiro tem a tendência de absorver bem apenas serviços, o que trava o progresso da indústria espacial. “Se você quer desenvolver satélites com aplicações em agricultura, ninguém quer saber. Mas se você oferecer o serviço de monitoramento agrícola, aí consegue vender. O comprador não está nem aí se você vai fazer com balão, com avião, com satélite. Ele quer o serviço, mas não se interessa pelos meios.” É um problema maior do que parece, porque os spin-offs (produtos derivados) da pesquisa espacial costumam aparecer somente num segundo momento, depois que você já desenvolveu a tecnologia. Infelizmente, segundo Lucas, o Brasil ainda não entendeu isso. Mas ele não desanima. Ao perguntar ao engenheiro qual é sua grande ambição, ele não titubeia. “Mandar um satélite brasileiro para a Lua.” Os sonhos espaciais de Lucas Fonseca renasceram no Brasil. 42 43 POR Ricky Hiraoka FOTOS Camila Fontana ATRÁS DA CORTINA Tão essenciais quanto os artistas, escolhemos sete profissionais que trabalham nos bastidores para que os espetáculos apresentados pela Osesp na Sala São Paulo sejam sempre impecáveis EM SENTIDO HORÁRIO, A PARTIR DA ESQUERDA: NIL CAMPOS, ANTONIO CARLOS NEVES, IVONE PONTES, XISTO OSVALDO ALVES, ERIK KLAUS, DANIELA MARCONDES, ANALÍA BELLI IVONE PONTES, camareira “Comecei aqui junto com a Sala São Paulo em 1999, me lembro muito do dia da inauguração. Foi muito glamoroso. Teve até maquiador para os funcionários. Gosto daqui por não ter rotina. Cuido da alimentação, do vestuário, da montagem dos camarins e ainda socorro os músicos nas emergências. Se uma calça rasga minutos antes do concerto, vou lá e costuro. Se o músico esquece a casaca em casa, dou um jeito de providenciar uma. Teve uma vez que emprestei meu uniforme para uma solista. Tinham avisado a moça que a roupa deveria ser branca, mas, na verdade, era preta. Aí, ela usou minha roupa de trabalho. Já até dei um jeito no vestido de dona Lu Alckmin, que descosturou durante um evento cheio de autoridades. Comigo não tem trabalho que não seja feito. No começo de tudo, o maestro Neschling obrigava a gente a ver os ensaios da orquestra. Isso me fez tomar gosto por esse tipo de música. Hoje, já não consigo ouvir mais samba. E olha que eu adorava! Por conta do contato que tenho com músicos, inscrevi minha filha para participar do Coral da Gente, de Heliópolis. Lá, ela aprendeu a tocar viola e canta no coro. Ela até já se apresentou aqui na Sala São Paulo. Um orgulho para mim!” 46 ANALÍA BELLI, gerente de divisão operacional ERIK KLAUS, supervisor de acústica “Sou pianista de formação, mas nunca fui boa musicista. Aí, deixei os palcos e fui trabalhar com produção de música erudita. Em 2009, estava pensando em voltar a morar na Argentina, país onde nasci, mas antes mandei um currículo para a Osesp. Deu certo. Fui chamada e comecei aqui em março daquele ano. Desde então, acompanho a rotina dos músicos, alugo instrumentos, analiso a programação e vejo de que materiais eles vão precisar, planejo as viagens, contrato transporte, enfim, dou todo o suporte para a orquestra. Além disso, lido com os músicos estrangeiros que se apresentam aqui. Graças ao trabalho conheci ídolos como a Mitsuko Uchida, pianista japonesa que trouxe o próprio piano para a Sala São Paulo. Ela é para mim o que Justin Bieber é para uma adolescente! Mas há o outro lado também. Teve uma vez que um cantor não apareceu na hora combinada. Faltavam 2 horas para o espetáculo e nada. Fomos até o hotel, ele não atendia, então, arrombamos a porta e o encontramos dormindo [risos]. Ele ficou bravíssimo, mas fazer o quê?” “Quando entrei aqui, em 2003, eu torcia o nariz para a música clássica. Sempre fui do rock’n’ roll, sabe? Com o tempo, comecei a apreciar os concertos. Hoje, acompanho todos. Entrei para ser montador de orquestra e agora meu trabalho é operar as placas que ficam em nosso teto acústico. São 15 placas, cada uma pesa 7 toneladas, e eu as movimento para equalizar o som de acordo com o espetáculo. Nossa acústica é perfeita e as equipes técnicas das orquestras estrangeiras que se apresentam na Sala São Paulo sempre ficam impressionadas. Aqui, o menor dos barulhos reverbera. Na época do maestro John Neschling, ele pediu para a orquestra parar de ensaiar porque tinha ouvido um grilo e mandou a equipe técnica procurar o ruído. Depois de muito procurar, acharam um grilo no fosso. O que é interessante é que havia uma orquestra tocando, e ele percebeu que o grilo dava a entrada na hora errada. Qualquer barulho mínimo reverbera por toda a Sala São Paulo.” 47 NIL CAMPOS, supervisor de iluminação DANIELA MARCONDES, gerente de obras “Durante 12 anos fui bancário, mas larguei a carreira para trabalhar em produções de teatro. Fiz de tudo: fui contrarregra, montei palco, trabalhei com iluminação. Antes de trabalhar aqui, nem sabia da existência da Sala São Paulo. E vim por acaso. Me falaram de uma vaga, fiz o processo seletivo e passei. Hoje, não me imagino longe dessa loucura que são os bastidores da Sala. Tem músico que nem sei o nome, mas sei como ele gosta da iluminação na hora do ensaio, da altura do banco e da posição da estante para ler a partitura. Quando saio de férias, sinto saudades da adrenalina e do desafio de montar um palco em 2, 3 horas. O dia mais alucinante foi o réveillon de 2008 quando transmitimos ao vivo um concerto para a Europa. Foi um sufoco, pois tivemos cinco dias para preparar tudo. Na hora, houve um efeito especial que simulava queima de fogos de artifício e o ambiente ficou cheio de fumaça. Foi um desespero, pois a fumaça não saía. Corremos para abrir as portas dos camarotes, cortinas, movimentamos as placas do teto. No fim, deu tudo certo.” “Brinco que meu trabalho é ingrato, pois minha função é cuidar da manutenção e dos reparos no prédio. Quanto menos os frequentadores notarem nossas ações, melhor. Cabe a minha equipe verificar iluminação, ar-condicionado, arrumar cadeiras etc. Promovo visitas guiadas com quem trabalha comigo para eles entenderem a importância do lugar e criarem uma identidade com a Sala. Assim, eles entendem que uma cadeira rangendo atrapalha o concerto. Nossa jornada de trabalho é de 7 por 24. Tem sempre alguém da equipe no prédio, o que gera casos curiosos. Não é raro quando um funcionário da madrugada me procura para contar que viu fantasmas. Eles juram que já presenciaram uma menina andando com uma boneca e um velhinho que passa e dá boa-noite. Por conta disso, eles sempre andam em dupla. De manhã, também já aconteceram fatos engraçados. Uma vez, estávamos fazendo o restauro de um vitral e um urubu invadiu a Sala e fez um ninho. Só conseguimos tirá-lo três dias depois com a ajuda de bombeiros.” 48 ANTONIO CARLOS NEVES, coordenador do centro de documentação da Osesp “Sou maestro e músico. Estudei piano, composição e regência. Há 44 anos vejo uma partitura na minha frente. Por cinco anos, fui coordenador dos programas educacionais da Osesp. Desde o fim de 2012, gerencio o Centro de Documentação da orquestra, que é formado por 12 músicos. Basicamente, cuidamos da compra e do aluguel de partituras, direitos de execução das obras, direitos de gravação (CD ou DVD e transmissão pela TV, rádio ou live streaming). Tudo que toca na sala é da minha responsabilidade. Cuido também da editora Criadores do Brasil, que disponibiliza no mercado aluguel e aquisição de obras brasileiras e revisa, edita e grava as sinfonias de Villa-Lobos. Esse trabalho me deu o prazer de conhecer e trabalhar diretamente com o maestro Isaac Karabtchevsky, uma grande referência para mim. Juntos, revisamos a obra de Villa-Lobos e consertamos os erros que encontramos nas partituras. Às vezes, ficamos 3, 4 horas no telefone discutindo trechos imprecisos da sinfonia. A gente criou uma grande amizade.” 49 _ Série Osesp Personnalité 2015 Dentre os destaques da temporada, a pianista canadense Angela Hewitt, em abril, e o Quarteto Osesp sob regência de John Adams, em agosto XISTO OSVALDO ALVES, inspetor de orquestra “Vamos deixar uma coisa clara: não sou bedel dos músicos. Eu apenas fiscalizo para que tudo esteja dentro dos conformes: horário, uniforme, ordem de entrada no palco. Sou militar reformado, então, disciplina é comigo! Cada integrante da orquestra sabe de suas obrigações e não preciso fazê-los lembrar de nada. Vez ou outra, dou umas broncas, mas ninguém fica bravo comigo. Se eles passam por algum imprevisto que possa atrapalhar o andamento dos ensaios ou do próprio concerto, me acionam na hora. Uma vez, um músico me ligou da delegacia. Ele estava a caminho da Sala São Paulo para uma apresentação e, sem querer, atropelou um motoqueiro. Não tive dúvidas! Corri até lá, expliquei a situação para o delegado e me comprometi que levaria o músico de volta ao DP tão logo o concerto se encerrasse para que o boletim de ocorrência fosse concluído.” 28 MAI QUI 21H Cedro Op. 22: O Retorno David Müller-Schott violoncello Mark Wigglesworth regente JOHN ADAMS ROBERT SCHUMANN Measha Brueggergosman Absolute Jest Manfred, Op. 115: Abertura soprano LUDWIG VAN BEETHOVEN Concerto para violoncelo em lá Susa Bickler mezzo soprano Sinfonia nº 7 em lá maior, Op. 92 menor, Op. 129 Stuart Skelton tenor RICHARD STRAUSS Peter Coleman Wright barítono Uma vida de herói, Op. 40 Marcos Thadeu regente [Strauss Essencial] CORO ACADÊMICO DA OSESP CORO DA OSESP 26 NOV QUI 21H Carnaúba 09 ABR QUI 21H Pau-Brasil Seleção de Negro Spirituals Isaac Karabtchevsky regente Sir Richard Armstrong regente Michael Tippett Arnaldo Cohen piano Angela Hewitt piano A Child of Out Time NIKOLAI TCHEREPNIN HECTOR BERLIOZ 28 AGO SEX 21H Painera O Reino encantado, Op. 39 Beatriz e Benedito: Abertura 26 JUN SEX 21H Pequiá Alondra De La Parra regente FELIX MENDELSSOHN- WOLFGANG A. MOZART Thomas Dausgaard regente Tambuco percussão BARTHOLDY Concerto nº 25 para piano Stig Andersen tenor SILVESTRE REVUELTAS Concerto nº 1 para piano em sol em dó maior, KV 503 Gun-Brit Barkmin soprano Ventanas Menor, Op. 25 CESAR FRANCK Denise de Freitas mezzo EGBERTO GISMONTI HEITOR VILLA-LOBOS Sinfonia em ré menor, soprano Adágio Sinfonia nº 9 Op. 48 CARL NIELSEN JAN JÄRVLEPP IGOR STRAVINSKY Abertura Hélios, Op. 17 Garbage concerto O pássaro de fogo: suíte — *23 ABR QUI 21H00 Cedro MAURICE RAVEL SILVESTRE REVUELTAS Versão 1919 Marin Alsop regente Valsas nobres e sentimentais La Noche de Los Mayas WOLFGANG A. MOZART RICHARD STRAUSS As bodas de fígaro, KV 492: Salomé, Op. 54: Parte 2 05 DEZ SAB 16H30 Mogno Abertura *24 SET QUI 21H00 Jacarandá Celso Antunes regente Marin Alsop regente Bertrand Chamayou piano Serenata nº 11 para orquestra 09 JUL QUI 21H Pau-Brasil JOHANNES BRAHMS CLAUDE DEBUSSY de sopros em mi bemol maior, Marin Alsop regente Sinfonia nº 1 em dó menor, Dois Prelúdios KV 375 Matthias Goerne barítono Op. 68 [Orquestração de SERGEI RACHMANINOV JOHANNES BRAHMS Sinfonia nº 2 em ré maior, Colin Matthews] Sinfonia nº 1 em ré menor, Op. 13 Abertura trágica, Op. 81 Op. 73 ALEXANDER SCRIABIN MARC-ANDRÉ DALBAVIE “VEZ OU OUTRA, DOU UMAS BRONCAS, MAS NINGUÉM FICA BRAVO” Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista ao vídeo da Osesp Concerto para Piano em Fá 14 MAI QUI 21H Carnaúba Stimme — Para barítono 17 OUT SÁB 16H30 Jequitibá Sustenido Menor, Op. 20 Stéphane Denève regente e orquestra Ragnar Bohlin regente TORU TAKEMITSU JOHN WILLIAMS GABRIEL FAURÉ Marília Vargas soprano A Flock Descends Into the Contatos imediatos: suíte Pelléas et Mélisande, Luisa Francesconi mezzo soprano Pentagonal Garden BERNARD HERRMANN Op. 80: Suíte CORO DA OSESP CLAUDE DEBUSSY Um corpo que cai: suíte RICHARD STRAUSS TOMASO ALBINONI La Mer JOHN WILLIAMS O Cavaleiro da rosa, Adágio em sol menor A menina que roubava Op.59: suíte GIOVANNI BATISTA PERGOLESI 12 DEZ SÁB 16H30 Imbuia DIVULGAÇÃO livros: suíte 50 Para acompanhar a programação da Osesp Acesse: itau.com.br/personnalite/experiencia Stabat Mater Marin Alsop regente BERNARD HERRMANN 14 AGO SEX 21H Sapucaia FRANCIS POULENC Tamara Wilson soprano Psicose: suíte intriga John Adams regente Gloria MAURICE RAVEL internacional: tema QUARTETO OSESP HECTOR BERLIOZ JEAN SIBELIUS 20 NOV SEX 21H Pequiá GUSTAV MAHLER Sinfonia fantástica, Op. 14 Lendas Lemminkäinen, Fabio Mechetti regente Sinfonia nº 4 em sol maior Le Tombeau de Couperin 51 *CONCERTO COM TRANSMISSÃO AO VIVO PELA INTERNET LUCAS FONSECA PERGUNTA: SE HOUVER VIDA FORA DA TERRA, ISSO IMPACTA A PERCEPÇÃO QUE TEMOS SOBRE NÓS? CLÓVIS DE BARROS FILHO RESPONDE: Impactaria sobremaneira, porque toda construção da compreensão de si mesmo implica o tipo de entendimento que temos do outro. É a partir do outro que nos definimos a nós mesmos, pelas semelhanças, pelas diferenças, enfim, reflexivamente. Se houver vida inteligente fora do planeta, haverá uma redefinição da alteridade, o que obrigará necessariamente a uma redefinição da ideia de si mesmo, e isso modificará completamente a nossa maneira de pensar, de entender o mundo, o homem, a relação entre os homens, a ética, a estética. Tudo terá de se readequar a essa nova realidade. 52 53 Por Daniel Benevides Fotos Gabriel Rinaldi “a felicidade dispensa teorização. Acredito que momentos de especial intensidade são aqueles em que você não busca explicações racionais. É a tristeza que vai patrocinar a reflexão” O filósofo Clóvis Barros Filho e as questões fundamentais da sua vida, como a felicidade PERSONNALITÉ com energia e graça. Diante dos 35 minutos pela frente e do olhar animado dos colegas, seguiu. Enrolou as informações que tinha e não tinha. Fez a coisa com uma paixão tamanha que a atenção dos alunos e do professor tornou-se total, cativa (“Um professor, aliás, que não devia saber muito de petróleo, uma vez que falei ali, sem contestação, até da produção fóssil da região da Sildávia, lugar que tirei das Aventuras de Tintim”). Exultante com o sucesso, atinou: sua grande paixão era pensar livremente e traduzir isso a quem quisesse escutar. Filosofar, pois. Graduou-se em direito, jornalismo e filosofia (fez mestrado na França, onde morou no final dos anos 80, e doutorado na USP). Hoje, Clóvis não inventa fatos sobre o petróleo, mas cria minhocas, por assim dizer. Faz refletir, problematiza. E fala de modo simples para exaltar a complexidade da vida. Assim, surrupia risadas do espectador enquanto o estimula a mergulhar em questões duras e essenciais. Do amor à morte, é capaz de misturar teorias de Kant e de Platão à imagem de um bumbum “apetecível”, tudo para tratar dos desejos que estão diante de nós. Cita Nietzsche e Sartre como quem relembra um jogo do São Paulo (o time para o qual torce). Destrincha a complexidade da ética espinosana enquanto relata uma ida ao Rancho da Pamonha como forma de teorizar sobre a felicidade (“O sujeito, com fome, diante da primeira pamonha é feliz. O sujeito diante da segunda pamonha, transformado pela primeira pamonha, é um pouco menos feliz. O sujeito depois de 20 pamonhas, ou depois de comer pamonha todo o dia, é triste”). O teor de suas palestras, como faz questão de ressaltar, não é motivacional, ou seja, não ajuda a melhorar o desempenho dos funcionários das empresas que o contratam; às vezes chega a acontecer o contrário: alguns (poucos) que o ouvem resolvem se demitir e mudar de vida. Isso porque ele defende “a vida que vale a pena ser vivida”, título de um de seus muitos livros (vários escritos em parceria), e esta não necessariamente passa pelo dia a dia de um escritório. Mas nunca recebeu queixas. Os contratantes, que vão de universidades, grandes empresas públicas e privadas, a tribunais, ONGs e escolas, apostam em suas verdades e na forma como entretém o público. São cerca de 500 pedidos para cada 100 palestras que dá. Seu trabalho, como diz, é também sua fonte de diversão e felicidade. E talvez essa seja, subliminarmente, a maior contribuição que dá para seus ouvintes. Ele é um dos palestrantes mais requisitados do país. Autor de 15 livros, o professor de filosofia faz sucesso misturando Platão e Nietzsche a um jogo de futebol. Assim, criou um jeito leve de investigar como lidamos com a existência P rofessor de ética da comunicação na USP e sócio no Espaço Ética com a ex-mulher, de quem se separou há cerca de um ano, Clóvis dá palestras que misturam improviso, humor, informalidade e carregam ideias que, de outra forma, talvez não fossem compreendidas. A expressão “atleta da comunicação” lhe cabe perfeitamente: só no ano passado ele deu 349 palestras. Já é “íntimo” dos funcionários dos aeroportos de Congonhas e Viracopos. Aos 49 anos, tem três filhos, dois deles adultos. Descobriu sua vocação aos 13, quando precisou dar um seminário no Colégio São Luiz, em São Paulo. O menino que tinha o apelido de Delfim Neto (por conta dos óculos de lentes garrafais e armação grossa) era “um CDF triste e que se arrastava pelo colégio”. Encontrou o “desabrochar da potência” ao ser convocado pelo professor de geografia a falar por 50 minutos sobre petróleo. Em 15, desovou o que sabia 56 clóvis de barros O que as pessoas que te contratam querem saber? Eu não sei se elas querem saber, esse é o problema. Tenho a impressão de que hoje atendo a uma demanda complexa. Em primeiro lugar a minha palestra distrai, atende a uma demanda de entretenimento. Mas é claro que aí eu estaria numa vala comum com mágicos, contorcionistas, ilusionistas, cuspidores de fogo, humoristas etc. Então ela entretém e supostamente também tem algum conteúdo interessante, faz pensar em coisas que normalmente não se pensa. Definitivamente não é uma palestra motivacional, o que dificilmente poderia ser feito com a filosofia, seja ela qual for. Ou seja, não se volta para a obtenção de resultados, pro cara sair dali motivado a bater metas, e portanto, de certa maneira, atender aos interesses do dono do capital. Definitivamente a minha palestra faz um apelo à reflexão sobre a vida do colaborador e essa reflexão relativiza, digamos, o resultado profissional, como critério único de avaliação de uma vida boa. _ A visão de Clóvis sobre seis temas Amor é alegria sentida por quem ama. Ganho de potência. De tesão pela vida. O amado é a causa consciente desta alegria. Quando o amante tem certeza daquilo que lhe faz bem. Felicidade é um estado afetivo muito particular cujo principal sintoma é o desejo – por parte daquele que a sente – de que o instante feliz torne-se eternidade, ou pelo menos dure um pouco mais. Morte não se define por si. Apenas negativamente. É o fim da existência. O deixar de viver. Para muitos linha imaginária ou passagem entre uma e outra vida. O que raramente consideramos é que a cada instante de vida vamos deixando de ser e, portanto, de certa forma, morrendo em vida. Verdade é discurso. Algo que se diz. Que se afirma. Um juízo sobre o mundo. Uma ficção. Ilusão da correspondência entre o discurso e o mundo. Entre a palavra e a realidade que codifica. Entre significante e significado. Trabalho é atividade socialmente significada. Indispensável para o desenvolvimento econômico dos povos. Confere ao trabalhador uma identidade, uma definição de si mesmo, dando-lhe a oportunidade de consagrar parte da sua vida ao outro, ao mesmo tempo que oferece condições materiais de sobrevida. Dinheiro é sempre meio. Instrumento. Nunca fim em si mesmo. A não ser para tristes avarentos. Cujo valor depende dos fins. Do que nos ocorre fazer com ele. 57 Personnalité ularmente feliz. Acredito mesmo que esses momentos de especial intensidade são momentos em que você não teoriza, não tem noção do tempo, não tem grandes dimensões espaciais, não estabelece nexos de causalidade, não busca explicações racionais, portanto são momentos que esgotam neles mesmos a sua magia. É normal que, quando você vá teorizar sobre o que aconteceu, aquele momento já não é tão bom. É a tristeza que vai patrocinar a reflexão sobre o momento de intensidade vivido. Então, se bobear, o que eu tô fazendo é um pouco o contrário do que meus colegas de palestras motivacionais fazem. Em vez de dizer “você tem que ganhar de qualquer jeito”, eu digo “será que esse troféu que você tá disputando é o bom troféu?”. Será que esse troféu vai ficar na sua mão, será que ele é o seu troféu? Como surgiu sua persona de palestrante? Surgiu aos 13 anos, no seminário sobre o petróleo. O jeito de falar ali permaneceu o mesmo, a gesticulação, a energia, não teve nenhum trabalho em cima disso, tudo veio ao sabor do acaso, nunca fiz um curso sequer de apresentação oral, nem de didática, zero. Sei que tem curso de palestrante, para palestrante. Vieram me contar que há uma série de técnicas. Mas o que faço contraria rigorosamente todas... Não tem Powerpoint, não tem porra nenhuma, eu ponho a mão na frente, eu grito, eu esmurro, eu falo alto. Se tem dez mandamentos eu desrespeito os dez. No Powerpoint só cabem verdades e o meu discurso é um discurso de desconstrução, que por definição não entra numa transparência. Como você vê a internet nas relações humanas? Creio eu que não cabe a mim nem apologias nem saudosismos, cabe a mim deixar claro que, nos dias de hoje, se a vida tiver que ser boa, ela terá de ser boa também com a internet, porque a internet faz parte da vida. Em outras palavras, nessa ideia de reconciliação com o real que pressupõe uma vida intensa, o real com o qual temos que nos reconciliar é o real no qual a internet está absolutamente inscrita, inserida e consolidada. E portanto, de certa maneira, qualquer reflexão que busque alguma felicidade longe da internet terá de amputar com a internet 1 milhão de outras experiências que lhe são correlatas, como a vida nas cidades, a vida em grandes espaços de socialização e assim por diante. Como você se diverte? Dando aula. clóvis de barros E o amor nos tempos de hoje? A impressão que se tem é que as separações acontecem com mais facilidade... O amor é vivido em condições sociais específicas e numa sociedade que alguns chamam de líquida e que patrocinam um amor líquido. De certa maneira, há uma volatilidade mesmo, as relações entre pessoas se desinstitucionalizaram a tal ponto que, diante da menor tristeza, você tem a dissolução do vínculo. Antes as pessoas tendiam, por cultura, ameaças ou outros fatores, a suportar muito mais tristezas em série em nome da preservação do status quo de uma relação. Submetidas a essa revolução do baixo ventre, tendemos a de certa forma substituir relações em função das pequenas oscilações de afeto que elas nos proporcionam. “não pretendo ser modelo para ninguém. não faço escola. não quero que me sigam” E isso é bom? Ah, isso é o que é, quer dizer, não tolerar tristezas ad eternum é positivo, por outro lado a descontinuidade das relações ante a menor queda de potência pode ser impeditiva de experiências vindouras, de maturidade na relação. Sua separação teve algo a ver com a teoria da pamonha? Minha separação tem a ver com a preservação do afeto. A manutenção do estatuto institucional de casado... Minha Mas você não tem nenhum hobby? Tenho. Dar aula. Ou como você quiser chamar. Até os alunos me perguntam: o senhor também trabalha ou só dá aula? Eu me divirto tanto dando aula, que, a julgar pelo entendimento comum do trabalho, eu não posso mesmo estar trabalhando. Pra mim trabalho, diversão e felicidade são sinônimos. Mas não pretendo ser modelo pra ninguém, não faço escola, não quero que me sigam. Você é pessimista em relação à vida? Não. Pelo contrário. Acho que a vida intensa, nos instantes em que você vive uma espécie de excelência do próprio ser, de particular harmonia entre você e o entorno, são instantes fantásticos de serem vividos. Nesse sentido vale a pena a busca de uma vida onde as possibilidades de uma situação assim são grandes. Acredito que a vida reserva momentos de intensidade e de excelência vital que são profundamente incríveis. Isso me faz pensar na expressão “eu era feliz e não sabia”. É uma ideia muito possível, porque os momentos de felicidade dispensam uma teorização e uma conjectura racional sobre o que está acontecendo. É justamente porque você não precisa parar pra pensar naquela situação concreta que ela é partic- 59 60 CLÓVIS DE BARROS E como se sentiria nesse mundo? No final das contas tenho um sonho essencialmente cristão, no sentido de que a busca incessante da própria satisfação, do próprio acúmulo de recursos materiais, nos remete a estados afetivos pobres, porque uma alegria não dura sem convivência – se você preferir, sem gente alegre do lado. Isso é uma certeza que tenho. Não há como ficar alegre num mar de tristeza. Em outras palavras, teríamos de ter uma nova escola, uma nova educação. Uma educação de afetos mesmo, de análise das emoções. Isso enriqueceria demais a vida e permitiria a compreensão do quanto o sentido da vida está no outro. esposa, Karina, mora a 60 metros daqui... Morando e trabalhando junto, estava erodindo um patrimônio afetivo que nós consideramos inalienável. Por isso, tentamos uma nova forma de relacionamento para proteger o enorme afeto que temos um pelo outro. Iniciativa bem-sucedida. Temos a Natália, que é uma criança, pra levar adiante, somos sócios no escritório e temos um pelo outro uma admiração e um carinho infinito. Estamos em uma época com a possibilidade de viver mais tempo. Como vê isso? É óbvio que os cuidados orgânicos com vistas à prolongação da vida podem ser positivos, desde que você não reduza a vida à sua extensão. Imagine você vivendo 110 anos tendo de comer linhaça, seria insuportável. A longevidade por si só não é uma variável relevante. Um momento vivido que você queira que perdure porque ele é bom, você lutará por sua eternidade, mas um momento de sofrimento, você lutará pela sua interrupção. Então, perceba, a extensão dos momentos, seja a adolescência ou a idade adulta, pode ser boa ou ruim, depende da intensidade de vida daquele instante. Calipso oferece a eternidade e a juventude a Ulisses e ele não aceita. E o que está por trás disso? Ele diz que prefere viver pouco uma vida boa e finita do que viver eternamente no lugar errado uma vida inadequada. É uma lição interessantíssima. Esse é o sentido da vida: o outro? A gente passa muito tempo pensando no bem-estar do outro, por que não admitir isso? Por que a gente tem de continuar repetindo que a única coisa que importa é a própria glória, se não somos assim? Então, eu vislumbraria um futuro em que houvesse uma verdadeira revolução pelos afetos e em que não só a educação, mas também o trabalho fossem regidos por uma espécie de bem-estar compartilhado e não por metas e resultados que de certa forma só fazem o enriquecimento do dono do capital sem nem mesmo garantir a ele uma vida feliz. Até porque, numa sociedade absolutamente desequilibrada como a nossa, a insegurança de ter o patrimônio dilapidado por conta desse desequilíbrio torna a vida ruim de ser vivida. Seria muito melhor se compartilhássemos mais. Tem um posicionamento político? A sociedade que queremos pra nós resultará das nossas escolhas, das nossas decisões e da nossa firmeza para construí-la. Não há que terceirizar nem os processos decisórios, nem a culpa por eventuais mazelas. Somos todos corresponsáveis pela sociedade em que vivemos, não somos turistas no lugar onde moramos. O Brasil somos nós, se ele não é o que nos convém, façamos acontecer o que queremos que aconteça. E qual é, afinal, a vida que vale a pena ser vivida? A do outro. O que quero dizer é que temos tendência a achar que, como não sentimos as tristezas que os outros sentem, a nossa vida é particularmente pesada e que a felicidade é uma experiência do outro. Quando, na verdade, deveríamos perceber que é ruim pra todo mundo, né. Tenho a nítida sensação de que a vida é uma espécie de reunião particular de paixões tristes, salpicada aqui e acolá de momentos de alegria. Então a alegria tem um valor especial por conta da sua raridade. O normal é que você oscile mesmo entre o enfado, a frustração, a angústia, o tédio, a dor, a melancolia, o medo... Agora, de vez em quando alguém sorri pra você, e aí já basta. Como você vê o futuro do homem? O futuro do homem nada mais é do que uma tentativa de antecipar a existência do homem no mundo em tempos ainda não vividos. Essa antecipação só poderá ser feita a partir de variáveis do presente ou já experienciadas. Portanto, quando falamos do futuro, falamos sempre com um material de conhecimento que não lhe pertence. Suponho que as condições de vida do homem no planeta sejam cada vez mais inóspitas, e suponho que isso seja gerador de afetos que nos tempos de hoje não são presentes. O homem tenderá a ter sensações cada vez mais diferentes, decorrentes de uma presença num mundo cada vez mais inóspito e tecnologizado. Baixe a Revista Personnalité no tablet e veja o vídeo com Clóvis de Barros Filho Com “já basta”, você quer dizer “compensa”? Ah, meu amigo, tenho a impressão de que deve compensar, porque, no final das contas, todos temos a chave da abreviação da existência, temos todos a possibilidade de interromper a vida a qualquer momento, e a grande maioria de nós continua insistindo. É sinal de que deve compensar. 61 POR Mariana Filgueiras, de Istambul REAL E IMAGINÁRIO O taxista não sabe dizer onde fica, pessoas que caminham pela rua Çukurcuma tampouco. A numeração não ajuda, e é preciso errar duas, três vezes, checar mais uma vez a memória, o guia turístico, o Google Maps. É ali mesmo, mas não se acha fácil: o Museu da Inocência fica num discreto sobrado cor de vinho em Beyoglu, um nobre distrito do lado europeu de Istambul, numa via conhecida por abrigar antiquários. Eleito pelo conselho da União Europeia o melhor museu do continente em 2014, o Museu da Inocência passaria por uma casa otomana qualquer: o letreiro é discreto, a bilheteria, quase disfarçada. O recato é proposital. Depois de pagar 25 liras turcas (o equivalente a R$ 28), a primeira peça que se vê no museu é um texto escrito pelo fundador da instituição, o romancista laureado com o Prêmio Nobel Orhan Pamuk. O documento é um manifesto pela multiplicação dos “pequenos museus”, como este aqui, frente aos grandiosos e mais famosos. O escritor acredita que não faz mais sentido concentrar coleções pomposas em galerias nacionais, transformando em patrimônio estatal nacos da história de outros povos. E defende a existência dos 62 ACIMA, A FACHADA DO MUSEU DA INOCÊNCIA, EM ISTAMBUL. AO LADO, REPRODUÇÃO DO QUARTO DE KEMAL (PROTAGONISTA DO LIVRO O MUSEU DA INOCÊNCIA), COM DETALHES QUE REMETEM À SUA INFÂNCIA DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO O melhor museu da Europa fica em uma pequena casa de Istambul. Seu acervo, criado pelo escritor Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura, conta a história de um casal que nunca existiu “Quando Füsun se atrasou dez minutos em acervos modestos, aqueles que contam a história do indivíduo, não a de um povo. Assim, já nos primeiros passos, o visitante depara com o seguinte trecho, escrito numa parede: “Os grandes museus apresentam a história de uma nação como sendo mais importante do que a história do indivíduo, mas as histórias dos indivíduos são muito melhores para explicar as profundidades da nossa humanidade. O que eu quero com este lugar é recriar o mundo de homens simples”. Foi por acreditar veementemente nessa assertiva que o escritor fundou a instituição em 2012 com uma coleção permanente de objetos que conta a história de amor de um casal que nunca existiu, Kemal e Füsun. A trajetória da dupla é um recurso para que o autor – nessa lógica de que o indivíduo é a chave para contar a história de um país – narre os rumos da Turquia entre os anos 1970 e 2000. Assim, o casal, na verdade, é fruto de um projeto ainda maior de Pamuk. Ambos são protagonistas de O museu da inocência, romance lançado em 2008. o pequeno museu – ao mesmo tempo real e imaginário – de Pamuk. Não é preciso ter lido o romance para entender a exposição, mas quem leu fica ainda mais tocado. Não à toa, há exemplares em todas as línguas espalhados pelos quatro andares da instituição. Há um esforço especial para botar o leitor turista dentro das linhas que Pamuk escreveu. Exemplo: a primeira instalação que o público vê é um imenso mural vertical com 4.213 bitucas de cigarro, como borboletas espetadas em caixas de vidro. Catadas ao acaso pelo autor nas ruas de Istambul, representam todos os cigarros fumados por Kemal enquanto esperava a amada, entre os anos de 1976 a 1984. É quase possível sentir o cheiro da fumaça que remete à ansiedade do personagem. Divididos em 83 vitrinas, os objetos obedecem a uma separação por temas e assuntos. Há o setor dos vestuários, o dos objetos de cozinha e o de viagens. Há um mapa com todas as ruas que faziam Kemal lembrar-se de Füsun, com os pontos de onde estiveram juntos marcados a tinta vermelha. Numa outra vitrine, apenas os artigos que usava para se distrair quando a saudade apertava: baralhos, horóscopo de jornal, um aparelho de telefone, um copo de ayran, uma espécie de iogurte local. Muitas surpresas esperam tanto quem leu quanto (e principalmente) quem não leu o romance. A parte final da exposição se concentra no próprio livro: está lá, na íntegra, todo o manuscrito da obra. Pamuk conserva até hoje o hábito de escrever seus textos à mão. Estão lá também, expostas, as capas de todas as versões do livro lançadas até hoje, em mais de 40 idiomas. Trechos do livro O museu da inocência “Era o momento mais feliz da minha vida, mas eu não sabia. [...] Naquele momento, na tarde de segunda-feira, 26 de maio de 1975, em torno de quinze para as três, assim como nos sentíamos além do pecado e da culpa, o mundo todo parecia ter sido liberado da gravidade e do tempo. [...] Quero contar minha história de um modo que faça justiça a seus 4.213 BITUCAS aspectos mais sérios Ao longo de nove anos, tempo que durou a escrita, o autor turco colecionou objetos garimpados em antiquários. A ideia era construir as personalidades de Kemal e Füsun com mais minúcia. Se via um pente de osso antigo, imaginava que pudesse fazer parte da penteadeira de Füsun; se encontrava uma coleção de fotos envelhecidas, logo elas fariam parte da memória familiar de Kemal. Dessa forma, saleiros, vestidos, relógios, pequenos instrumentos musicais, brinquedos, cartas e outras centenas de itens foram sendo coletados, construindo o acervo do que se tornaria relacionados ao sexo e ao desejo: a boca de Füsun tinha o sabor de açúcar de confeiteiro, devido, acho, aos chicletes Zambo de que ela tanto gostava. [...] Assim, toda vez que nos beijávamos, primeiro eu a beijava da maneira como se encontrava à DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO minha frente, e depois da maneira como existia na minha memória.” 64 VITRINE 28: NOS SURTOS DE SAUDADE QUE KEMAL TINHA DE FÜSUN, ELE SE DISTRAÍA LEMBRANDO DE RECORDAÇÕES COMO O CROISSANT DE NOZES, O ESPELHO DE MÃO QUE ELE FINGIA SER UM MICROFONE NO BANHO OU O TREM DO ANKARA EXPRESS QUE ELA BRINCAVA AO LADO, ESCRITOR TURCO ORHAN PAMUK EM FRENTE AO MUSEU 65 nosso encontro seguinte no edifício Merhamet, esqueci na mesma hora minhas resoluções. Não tirava o olho do relógio, um presente de Sibel, e do despertador marca Nacar que Füsun adorava sacudir até fazê-lo tilintar, e olhava toda hora através das cortinas para a avenida Tesvikiye, andando de um lado para o outro pelo piso de tacos que rangiam, incapaz de desviar os pensamentos de Turgay Bey. Logo tranquei o apartamento e saí para a rua. Olhava cuidadosamente para os dois lados, tentando me certificar de que não deixaria de ver Füsun se ela viesse na minha direção, e caminhei até a boutique Sanzelize. Mas Füsun tampouco estava na loja.” _ Um romance para celebrar o Nobel O museu da inocência é o primeiro romance que Orhan Pamuk publicou depois de ter ganhado o Prêmio Nobel de literatura, em 2006. No Brasil, foi editado pela Companhia das Letras em 2011, com tradução de Sergio Flaksman. Seu enredo enfoca Kemal, descendente de uma família rica e tradicional na Istambul dos anos 70. Ele acaba de completar 30 anos e está prestes a se casar com a bela Sibel. À época, representavam um casal moderno, e o exemplo mais marcante desse traço dos personagens são as cenas de sexo descritas antes do casamento. Certo dia, Kemal reencontra-se DIVULGAÇÃO com Füsun, uma jovem prima distante 66 Os leitores brasileiros ficarão felizes ao encontrar a edição em português em meio a tantos objetos. Como o romance é contado a partir do presente, mas fala sobretudo da Turquia nos anos 70, período em que o país começou a viver de maneira mais explícita o conflito entre a manutenção da tradição e o desejo de modernidade, e a narrativa faz tudo isso a partir de um recorte familiar, a mostra proporciona exatamente o que defende Pamuk à entrada do museu: conta a história de uma nação a partir do indivíduo. Ao cabo do passeio, o projeto Museu da Inocência surge, sobretudo, como um jogo intrincado de verdades. Sabe-se (pelo livro ou pela visita) que o próprio Kemal colecionava objetos de antiquários para construir um museu que ele também batizaria de Museu da Inocência. Ou seja, o visitante passeia por um museu que é fruto da mente de um personagem; um personagem criado por um romancista; um romancista que fundou um museu de verdade; um museu de verdade que acolhe as lembranças de um personagem... É um jogo proposital e metalinguístico que concede à experiência uma atmosfera única de estranhamento e encantamento. O melhor museu da Europa, quem diria, está lotado de quinquilharias, instalado numa casinha cor de vinho em Istambul. “Tendo me tornado — com o passar do tempo — o antropólogo da minha própria experiência, não sinto o menor impulso de depreciar essas almas obsessivas que recolhem cacos de cerâmica, artefatos e utensílios em terras distantes e os organizam a fim de expô-los a nós, para podermos entender melhor as vidas dos outros e a nossa própria. [...] Que este conjunto de caneta e tinteiro de cristal, pertencente à minha mãe, com que Füsun brincou naquela tarde depois de tê-lo visto em cima da mesa enquanto fumava um cigarro, sirva como relíquia do refinamento e da frágil ternura que sentimos um pelo outro. que trabalha como vendedora em uma Que este cinto, cuja five- pequena loja de roupas. Os dois passam la grande demais agarrei a se encontrar com frequência, embora e ajustei com uma arro- Kemal não considere romper o noiva- gância masculina de que do com Sibel – e esse conflito é uma mais tarde me arrepen- metáfora para a própria ambiguidade deria tanto, sirva como vivida pela Turquia no final dos anos 70, testemunho da melan- um embate entre a tradição oriental e colia que senti quando a modernidade de um país que quer se cobrimos nossa nudez e aproximar do ocidente. É para provar voltamos novamente os a si mesmo sua estreita ligação com olhos para a imundície Füsun que Kemal começa a colecionar do mundo.” objetos de época. NA PÁGINA AO LADO, PERTENCES DO PAI DE KEMAL, COMO FOTOS ANTIGAS DO EXÉRCITO, REMÉDIOS, JORNAIS E PALAVRAS CRUZADAS. KEMAL VÊ ESSES OBJETOS APÓS DESPEDIR-SE DO PAI MORTO NA CAMA DO QUARTO. NESTA PÁGINA, INSTALAÇÃO COM AS 4.213 BITUCAS DE CIGARRO FUMADAS POR KEMAL 67 POR Ruy Castro, do Rio de Janeiro EM PESSOA DIVULGAÇÃO ZÉ CARIOCA JOSÉ DO PATROCÍNIO DE OLIVEIRA, O ZEZINHO, EM 1936, FOI A INSPIRAÇÃO DE WALT DISNEY PARA O PERSONAGEM ZÉ CARIOCA Quem inspirou Walt Disney a criar o papagaio era paulista, foi um músico de mão-cheia e teve uma vida que pode ser resumida à palavra que ele adorava: “Demais!”. Com vocês, José do Patrocínio de Oliveira, o Zezinho uzaninha, aqui é uma maravilha. É Hollywood. Vou te apresentar aos artistas do cinema. Você vai nadar na piscina da Carmen Miranda. E vai conhecer o Zé Carioca!” Esse era Vinicius de Moraes, em 1946, escrevendo da Califórnia para sua filha de 6 anos, Suzana, que ficara no Rio com a mãe, Tati, e o irmãozinho Pedro – tentando cooptá-la para que os três fossem se juntar a ele nos Estados Unidos. Pouco antes de viajar para assumir o cargo de secretário do Consulado brasileiro em Los Angeles, Vinicius se separara de Tati por causa de Regina Pederneiras, uma arquivista do Itamaraty que ele acabara de conhecer. Surdo aos conselhos dos amigos, levara Regina com ele para o posto no exterior, mas não demorou a cair em si. Fora um erro – os dois não se entenderam. Então, Vinicius mandou Regina de volta para o Brasil e, agora, lutava para que Tati o perdoasse e fosse com as crianças para os States. O que acabou acontecendo, e eles seriam felizes para sempre nos quase cinco anos que passaram lá. E Suzana viu realizado tudo que Vinicius lhe prometera. Era mesmo Hollywood. Ela ganhou um beijo de Orson Welles e de muitos outros artistas. Aprendeu a nadar na piscina de Carmen Miranda. E realmente conheceu o Zé Carioca. Mas qual Zé Carioca? Naquele ano, boa parte do mundo já assistira e se apaixonara pelo novo personagem que Walt Disney apresentara em dois filmes, Alô, amigos (Saludos, amigos), de 1944, e Você já foi à Bahia? (The three caballeros), de 1945. Era o Zé Carioca, um papagaio brasileiro, safo e simpático, que contracenava com o Pato Donald e, para deleite geral, sempre levava vantagem. Originalmente, chamava-se José – ou Joe – Carioca. Para nós, desde o começo, ele foi Zé Carioca – obviamente verde, de olhos cor de mel, casaquinho amarelo estilo peço a palavra, calças também verdes, chapéu de palhinha, gravata borboleta, sempre carregando um guarda-chuva, e com um suingue jamais sonhado por qualquer personagem de Disney. Naturalmente, era esse o Zé Carioca que Suzana esperava conhecer. Ao chegar à casa de Carmen Miranda em Beverly Hills e ser apresentada a ele por Vinicius, viu-se diante de um mulato simpático e sorridente, de bigodinho, calça comprida, camisa de malandro, cavaquinho na mão e chinelo. O verdadeiro Zé Carioca. Na intimidade, Zezinho. Zezinho se chamava José do Patrocínio de Oliveira e – essa não! – nem era carioca. Era paulista (de Jundiaí), nascido em 1904 e, em boa parte da década de 30, um dos grandes nomes do rádio de São Paulo, por sua habilidade nos instrumentos de corda, principalmente violão, cavaquinho e bandolim. Carmen Miranda o conhecera numa de suas excursões à Pauliceia e, como todo mundo, se encantara com ele. Zezinho era não só grande músico, mas exuberante e engraçado como pessoa. Falava uma gíria própria, às vezes enriquecida por uma experiência que tivera como funcionário do Instituto Butantã – aprendera o nome das cobras em latim e sempre dava um jeito de incluí-las na conversa, chamando-as daquele jeito. Além disso, tinha uma ginga característica, elástica, malemolente. Desde o Brasil, ele era amigo dos rapazes do Bando da Lua. Quando Carmen e o Bando foram para Nova York, em maio de 1939, já o encontraram lá. Zezinho chegara havia alguns meses, com a orquestra de Romeu Silva, escalada para abrilhantar o pavilhão brasileiro na fabulosa Feira Mundial que estava se realizando na cidade. E foi bom que o encontrassem porque, ainda no Rio, tinha havido um problema com o Bando da Lua: Ivo Astolfi, funda- 70 DIVULGAÇÃO “S ZEZINHO USAVA BIGODINHO, CAMISA DE MALANDRO E CHINELO ZEZINHO SEGURA ZÉ CARIOCA EM FRENTE A WALT DISNEY COM O PATO DONALD, DURANTE A FESTA DE ENCERRAMENTO DAS FILMAGENS DE ALÔ, AMIGOS (1944) dor do grupo, desistira na última hora da aventura americana. E seu substituto, o já lendário violonista Garoto, não estava com os documentos em ordem para embarcar imediatamente para a América. Com isso, Zezinho, à mão em Nova York, foi chamado para substituí-lo. Semanas depois, Garoto chegou e Zezinho voltou para a orquestra de Romeu Silva. Mas nunca ficou longe deles. Em agosto de 1941, com o fim dos contratos, Romeu regressou com a orquestra para o Brasil, mas dois de seus músicos “perderam” o navio e ficaram para trás: o pianista Va- 71 dico e... Zezinho. Não por coincidência, eles se juntaram de vez ao Bando da Lua, no lugar de Vadeco e Helio, dois outros membros que também preferiram voltar. A essa altura, Carmen e o Bando já estavam radicados em Los Angeles, contratados pela Fox e fazendo um filme atrás do outro: Uma noite no Rio, Aconteceu em Havana, Minha secretária brasileira. Neste último, há a hilariante sequência em que Carmen os apresenta ao galã John Payne como seus irmãos que chegaram do Brasil, e eles vão entrando pelo apartamento – todos os ADMIRAÇÃO PELO PAPAGAIO Uma das ideias era a de criar um personagem brasileiro que pudesse contracenar com Donald. Em seu Q.G. no Copacabana Palace, visitado por brasileiros que iam levar-lhe sugestões, Disney achou curioso que, ao contrário de seus vizinhos latinos para quem o símbolo nacional deveria ser uma ave nobre – uma águia, um condor, um falcão –, os brasileiros tinham grande admiração pelo papagaio. Pelo menos, era o herói de todas as anedotas que lhe contavam. E o que era o papagaio? Um bicho pobre, folgado e preguiçoso, como os gringos imaginavam o brasileiro, mas inteligente, esperto e virador – enfim, feliz. Dois grandes desenhistas cariocas, J. Carlos e Luiz Sá, levaram a Disney esboços de como o papagaio deveria se vestir ou parecer. Mas foi só em Hollywood, meses depois, ao preparar as sequências em que Joe Carioca ( já com esse nome) contracenaria também com atores de carne e osso – Aurora (irmã de Carmen) Miranda e o Bando da Lua –, é que Zezinho entrou em cena. Ele era perfeito para o papel. Sua ginga serviu de modelo para o andar do papagaio; suas gírias e expressões foram 72 adaptadas à fala do bicho; e, tanto em inglês (com sotaque) como em português, só poderia ser Zezinho, claro, a dublar o personagem. E, assim, em dois filmes seguidos e de grande sucesso, lançados com pouco mais de um ano de intervalo, José do Patrocínio de Oliveira tornou-se – para sempre – Zé Carioca. Quer saber como ele era? É fácil. Na principal sequência de Você já foi à Bahia?, em que Aurora e Donald cantam “Os quindins de Iaiá”, de Ary Barroso, e Zé Carioca (o papagaio) saracoteia alegremente entre eles, o próprio Zezinho pode ser visto com destaque. É o que toca lápis nos dentes. Ele não ficava longe disso na vida real: era sedutor, imaginativo, agregador, cheio de borogodó. Com pouco tempo de Hollywood, sua casa, em Laurel Canyon, tornou-se, juntamente com a de Carmen, o ponto mais importante de Los Angeles para brasileiros fixos ou de visita. Se não estivesse filmando, Zezinho passava dia e noite recebendo uma quantidade de patrícios que, com o sucesso da estrela NO ALTO, CENA DO FILME VOCÊ JÁ FOI À BAHIA? (1945) EM QUE ZEZINHO ATUA COM ZÉ CARIOCA, PATO DONALD E AURORA, IRMÃ DE CARMEN MIRANDA nos Estados Unidos, resolvera tentar a sorte por lá: músicos, atores, jornalistas, vedetes e simples desocupados. Alguns habitués eram o próprio vice-cônsul Vinicius e família, os correspondentes Gilberto Souto e Alex Viany, o Bando da Lua em peso e suas mulheres, o ex-astro Raul Roulien, o guitarrista Laurindo de Almeida, o famoso Russo do Pandeiro, o escritor Erico Veríssimo (que morava em Los Angeles e aparecia quase todos os dias, mas não abria a boca) e até a cantora Rosina Pagã, que não se sabia muito bem o que fazia por lá, além de namorar metade da Costa Oeste. A própria Carmen comparecia quando lhe davam sossego em sua casa. E quem marcou presença mais de uma vez? Walt Disney. A grande atração das festas de Zezinho era a presença de brasileiros recém-chegados trazendo feijão-preto, carne-seca, pinga, discos com os últimos sucessos da terra e, claro, as piadas recém-inventadas. Em troca, ele os levava a visitar os estúdios de cinema e os impressionava ao passar por alguns astros e cumprimentá-los com a maior naturalidade: “Olá, Betty [Grable]!”; “Oi, Paulette [Goddard]!”; “Tudo bem, Linda [Darnell]?”. E os outros, de volta: “Hi, Joe!”. De onde vinha essa intimidade? Do seu trabalho naqueles estúdios. FESTA NO APÊ WALT DISNEY STUDIOS/PHOTOFEST seis, um a um, para desespero de Payne, e cantando “Chattanooga choo-choo” em português. Foi então que o destino entrou em cena. Também naquele ano, 1941, Walt Disney, considerado o pior patrão de Hollywood, viu-se em apuros com os sindicatos americanos. Seus funcionários – desenhistas, animadores, coloristas e todos os envolvidos na produção dos desenhos animados – o acusavam de reduzir seus salários, negar-lhes crédito como autores dos personagens (alguém sabia, por exemplo, que o verdadeiro criador de Mickey era seu desenhista Ub Iwerks?), não reconhecer o direito de greve e ameaçá-los com demissões coletivas. Para eles, o maior rato do cinema não era Mickey, mas Walt Disney. Antes que Disney perdesse o estúdio, Nelson Rockefeller, em nome do governo americano, sugeriu-lhe que saísse de cena por uns tempos enquanto ele negociava com os funcionários. E propôs a Walt armar uma equipe (com quem ainda se sujeitasse a trabalhar com ele) para uma longa expedição pela América Latina, financiada pelo governo, a fim de recolher material para um ou dois filmes que o ajudassem a consolidar a chamada Política da Boa Vizinhança – um importante programa do governo americano para evitar que o resto do continente simpatizasse demais com Hitler. Walt topou. E, assim, no segundo semestre de 1941, depois de passar por México, Chile e Argentina, Disney e seus rapazes desembarcaram no Rio. Zezinho não era popular apenas com os brasucas. Assim que ele se efetivou no Bando da Lua, Carmen apresentou-o a Darryl F. Zanuck, chefão da 20th Century Fox, e este o repassou a Alfred Newman, diretor de seu departamento musical. Resultado: sempre que precisavam de NAS FESTAS DO ZEZINHO, AS ATRAÇÕES ERAM PINGA, FEIJÃO-PRETO E PIADAS um violão, guitarra ou mesmo banjo “latino”, era a Zezinho que recorriam na trilha sonora. O que fazia com que não lhe faltasse trabalho em Hollywood. Os outros estúdios o descobriram e também se interessaram. Um deles, a Warner Bros., não se contentou em aproveitá-lo na trilha sonora – botou-o em cena, em carne e osso, junto a outro respeitado violonista brasileiro em Hollywood, seu amigo Nestor Amaral. E ali os dois começaram a sua extensa filmografia. No clássico Uma aventura na Martinica (To have and have not, 1944), de Howard Hawks, Zezinho e Nestor acompanham Hoagy Carmichael na sequência em que ele toca piano e canta “Am I blue?”. No mesmo filme, quando Lauren Bacall, escorrendo sensualidade, tartamudeia “How little we know”, lá estão eles de novo – sem contar que, participando de toda a filmagem, assistiram de camarote a Humphrey Bogart se apaixonar alucinadamente por Bacall (foi o filme em que eles se conheceram). Em outra produção da Warner, Romance em alto-mar (Romance on the High Seas, 1948), de Michael Curtiz, que marcou a sensacional estreia de Doris Day no cinema, eles cantam com ela na sequência em que o navio a caminho do Rio faz escala numa ilha. E havia aquilo que, para Zezinho, 73 vinha em primeiro lugar: seu trabalho com Carmen. Apareceu em todos os filmes que ela ainda viria a fazer até 1953; acompanhou-a em sua excursão a Londres em 1948; e sua mulher, Odila, era a camareira oficial de Carmen em viagens, cuidando de seus vestidos, turbantes e sapatos – tarefa nada desprezível. O filho de ambos, também Zezinho e nascido lá, em 1947, era afilhado de Carmen. E o que dizer de sua carreira como Joe Carioca? Durante muitos anos, e usando o nome mágico, Zezinho foi uma sensação em palcos americanos – em teatros, boates, cassinos, bares, restaurantes e até estádios. Abrindo shows ou sendo a atração principal, ele era Joe Carioca, fazendo, inclusive, a voz do papagaio. E só então as plateias se davam conta de que ele era, na verdade, dois artistas: o humorista, que todos conheciam e reconheciam, e o instrumentista – este, sim, uma surpresa para quem o ouvia tocar. Mas, como ocorreu com todos os músicos brasileiros ao redor de Carmen Miranda em Los Angeles, a morte dela, em agosto de 1955, foi um golpe insuportável. Alguns, como Aloysio de Oliveira, incapazes de se sustentar, voltaram para o Brasil. Zezinho não precisou fazer isso. Era querido e disputado, mas também estava cansado. Pelos anos seguintes, limitou-se a trabalhar para Walt Disney, apresentando-se no Clube do Mickey, uma programação do primeiro parque criado por Walt, a Disneylândia. Em 1979, aposentou-se. E, em 1987, aos 83 anos, pegou o boné. Deixou instruções para que, em sua lápide, fosse gravada uma palavra que ele adorava e que bem poderia definir sua vida: “Demais!”. CLÓVIS DE BARROS FILHO PERGUNTA: UM VINHO NUNCA PROVADO TEM GOSTO? MADELINE PUCKETTE RESPONDE: Não importa que o vinho tenha ou não tenha sabor. O que interessa é a questão. É isso que nos torna humanos. 74 75 POR Carol Nogueira, de Seattle FOTO Amanda Koster VINHO: QUER QUE EU DESENHE? A designer Madeline Puckette, criadora do portal Wine Folly, tornou-se uma referência ao simplificar o universo do vinho. “Ninguém sabe tudo sobre a bebida. Você poderia passar a vida toda aprendendo” PERSONNALITÉ 78 _ O primeiro vinho marcante: Vale do Rhône “Já faz muito tempo, mas lembro que tomei um vinho de lá que tinha gosto de azeitonas e pimenta-do-reino! Era tão salgado. Foi a primeira vez que senti gosto de outra coisa em um vinho. Fiquei fascinada e, para falar a verdade, um pouco perturbada. Me abriu para o inesperado.” gostaria de entender. Os temas vão desde dicas sobre harmonização até um glossário de sabores, além de testes para escolher a garrafa perfeita para cada ocasião. Ano passado, a designer largou o emprego de sommelière para se dedicar apenas ao Wine Folly. Sua equipe conta hoje com seis colaboradores. Fechou contrato para lançar um livro compilando alguns de seus principais trabalhos, intensificou a quantidade de posts sobre degustações e os textos de viagens. Começa a mesurar os frutos da investida por conta da atenção e dos elogios que recebe de autoridades da indústria. “O que torna Madeline diferente é sua atitude muito divertida e refrescante”, diz Eric LeVine, criador do Cellar Tracker, site referência que conta com um público cativo de mais de 250 mil pessoas. “Adoro o tom dos textos dela. Há quem leve vinho muito a sério e há gente divertida, mas sem substância. Madeline balanceia os dois. Ela não leva muito a sério, mas sabe do que está falando. Não subestima o leitor”, ACIMA, ILUSTRAÇÃO DE MADELINE PUCKET COM RÓTULOS DA REGIÃO DE BORDEAUX, NA FRANÇA. AO LADO, UM EXEMPLO DE PÔSTER CRIADO PELA DESIGN QUE PODE SER COMPRADO NO PORTAL WINE FOLLY ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO C inco anos atrás, Madeline Puckette, uma aspirante a cantora e designer gráfica de um jornal de Reno, em Nevada, entrou num bar com o pior dos humores. Ela tinha acabado de perder o emprego, resultado da crise econômica que abatia os Estados Unidos desde 2008. O botequim, na verdade um wine bar chamado West Street, era o favorito de Madeline. Por conta da frequência, a jovem tornou-se amiga do proprietário, Rick Martinez. O rapaz ouviu a cantilena da cliente. Pensou e soltou uma proposta: “Olha, eu estou mesmo precisando de uma ajuda, não quer vir trabalhar aqui?”. “E eu fui, sem nunca ter trabalhado num bar”, conta Madeline. Havia uma condição. Para assumir o cargo atrás do balcão, ela teria de se submeter a um teste de conhecimento de vinhos. “Fui para casa e estudei igual uma louca”, diz. Passou na prova, ganhou a vaga e apaixonou-se pelo tema. Decidiu prosseguir. Ingressou em um curso da mais prestigiada instituição do ramo, a Court of Master Sommeliers. Em pouco tempo, se tornaria uma referência no assunto. Mas de um jeito diferente. Falar sobre vinhos pode ser um tema complicado para iniciantes. Eleger o rótulo ideal para harmonizar com a refeição, entender as sutis diferenças entre as castas de uvas ou mesmo explicar o que, afinal de contas, as pessoas que cheiram uma taça recém-servida pelo garçom querem sentir. Em seu rápido e intenso mergulho na enologia, Madeline percebeu que havia muita informação dispersa – e que o apreciador da bebida era, no fundo, alguém com sede de entendimento. Foi o estopim para criar em 2011 o Wine Folly: portal que uniria a experiência de designer com o que aprendeu servindo, bebendo e analisando tintos, rosés, brancos... A cada mês, pelo menos 150 mil pessoas param por aí, superando a audiência de sites referenciais, como o do aclamado crítico Robert Parker, fundador do The Wine Advocate, o guia de classificação de vinhos mais prestigiado do mundo. Aos 31 anos, Madeline escreve artigos e publica trabalhos em jornais como Washington Post, revistas como a Reader’s Digest e portais como o Huffington Post e o Business Insider. Ganhou por dois anos consecutivos (2013 e 2014) o prêmio de blog do ano da International Wine and Spirit Competition. Foi sommelière e tornou-se consultora de restaurantes em Seattle, onde vive. Recebe convites para visitar terroirs espalhados pelo mundo. Este ano, deve conhecer vinícolas chilenas e italianas. A grande sacada que rendeu ao Wine Folly um lugar de destaque no mundo dos vinhos são os infográficos produzidos por Madeline. Elegantes e didáticos, surgem como manuais ilustrados a respeito de tudo aquilo que o enoconsumidor MADELINE _ O mapa do vinho Madeline Puckette percorreu quatro continentes e experimentou mais de 7 mil rótulos. Aqui, mostramos com taças as cidades onde ela foi beber e algumas experiências mundo afora A sommelière desembarcou em dois Em Navarra e na Catalunha, a dos pedaços mais célebres do país. sommelière provou Cavas (espumante) Às margens do rio Loire, onde visitou produzidas com a Viura (uva também o famoso vale que dá nome à região, conhecida como Macabeu), de aroma Madeline provou os vinhos tintos de bastante floral. Na região de La Rioja, Chinon, famosos por sua leveza. Na provou tintos da casta Tempranillo, como quase vizinha Bourgueil, encontrou o Marqués de Murrieta, produzido desde versões mais aromáticas da bebida. o século 19 por uma bodega familiar. O país é o terceiro maior produtor de vinhos do mundo (superado por França e Itália). No Vêneto, a região de Valpolicella produz o fantástico Amarone della Valpolicella, um dos vinhos mais premiados do país, tinto seco e de sabor cheio de nuances cujas uvas passam por processo de secagem de até cinco meses. Boa parte dos produtores reservam as A proximidade de casa fez com que as vinícolas californianas fossem bem exploradas por Madeline. Vale de Napa, Clear Lake, El Dorado, Monterey e Santa Lucia Highlands, San Luis Obispo e Paso Robles, Santa Barbara, Santa Rita Hills e Malibu constam como alguns dos locais em que a especialista provou vinhos marcantes. Para os amantes do enoturismo, ela indica conhecer de carro as vinícolas de Mendocino e do norte de Sonoma. Horse Heaven Hills. Ele nos levou por vinhedos gigantes, com mais de 400 hectares. Foi ao ver uma fazenda tão grande que entendi como essa bebida pode ser um negócio. Bebemos muito Shiraz assistindo a tempestades de raios em Oregon, do outro lado do rio Columbia. Jamais esquecerei disso.” na região sul e destaca o Vale com Pinot Noir e Chardonnay. de Barossa, a 60 quilômetros de “Portugal é um dos tesouros perdidos altos da jornada. Na mesma da Europa”, diz Madeline. Ela visitou região, cujo forte calor estimula o Vale do Douro, as regiões de Minho, a maturação das uvas da casta Dão, Beiras e o Alentejo. “Mas dois dos Shiraz, também estão os vales de meus lugares favoritos de Portugal Ela recomenda o Cabernet Sauvignon são Alenquer, onde está a vinícola Quinto como destaque da produção local. do Pinto, e Colares, perto de Lisboa. “Há uma complexidade de sabores no Colares virou um retiro para ricos, mas Cabernet sul-africano que faz com que ele seja uma alternativa mais agradável do que dois vinicultores lutam para preservá-los. os cabernets frutados de Paso Robles ou Sabe por quê? Não há vinhedo igual no Sonoma, na Califórnia. Imagine pimenta- planeta. O solo fica 1 metro abaixo da negra e pimentão recheados com groselha, areia. As raízes, algumas com 100 anos, pegam os nutrientes bem no fundo. Os vinhos de lá são dourados e têm gosto de mel com uma pitada de sal. Incríveis.” ILUSTRAÇÃO: MAURICIO PIERRO nos convidou a visitar sua produção em No país, Madeline visitou terroirs Trento se destacam espumantes feitos Adelaide, como um dos pontos sobraram quatro hectares de vinícolas – e “Conheci o vinicultor Rob Mercer que garrafas por cinco anos. Na região do amora e ameixa. O cabernet da África do Sul é saboroso, mas sem os sedimentos de um bordeaux francês superior.” Clare, McLaren e Adelaide Hills. PERSONNALITÉ 82 _ Vinho para celebrações: brancos “O período em que estávamos preparando o Wine Folly foi marcado pelos tintos. Quanto mais você entende de vinhos, tende a beber mais brancos e champanhes. Amamos os tintos, mas os brancos viram a nossa cerveja: gelados, refrescantes, deliciosos, e especialmente efetivos depois de um dia longo.” mapa. Em cada bairro, rabiscava à caneta marquinhas e ícones, listava nomes dos locais de interesse e suas peculiaridades. Em um guardanapo e em poucos minutos, a designer é capaz de esboçar um guia divertido e surpreendente. Esse didatismo, mesmo diante das mais banais tarefas, é sua marca maior. O entusiasmo com vinho também é pungente. Após o jantar, depois de passar horas falando sobre tintos e brancos, taninos e terroirs, Madeline me convidou a ir à casa de um amigo, chefe de uma grande vinícola da região, a quem ela queria mostrar um vinho que ganhou. Era um Cesanese del Piglio, rótulo que é fabricado desde a Idade Média e cujo gosto é diferente de tudo que já provei, com notas defumadas e especiarias. Há mais um aspecto que explica muito do que Madeline é: sua infância. Quando criança, vivia cercada de música e arte na casa da família, na Califórnia, onde cresceu. O pai tocava violão e bandolim, enquanto a mãe, piano e cravo. Era natural que a garota se interessasse por algum instrumento. A irmã mais velha se interessou pela harpa, Madeline, aos 5 anos, ficou alucinada após ver um músico tocando saxofone. A mãe achou que ela era pequena demais para o sax, e sugeriu uma flauta. Mais tarde, estudou piano. No ensino médio, formou uma banda com as amigas. A música logo se tornaria uma grande parte de sua juventude. Tocou em bandas punk até que ingressou, em Los Angeles, na universidade CalArts, na qual se formou em tecnologia musical e arte em 2005. Ela, porém, odiou a experiência. “Eu queria ser artista, não fazer coisas comerciais”, diz. “Logo vi que não daria certo.” Desiludida, girou seu foco para a musica eletrônica, gênero bem mais popular na Europa do que em seu país. “Eu sabia que queria fazer aquilo e que seria completamente inovador. Ninguém estava fazendo isso naquela época aqui.” À ESQUERDA, DESENHO DE MADELINE RETRATA COMO PRODUTORES TENTAM MINIMIZAR OS EFEITOS DE GRANIZO SOBRE A COLHEITA; NA PÁGINA AO LADO, A DESIGNER EM SEATTLE, DURANTE A GRAVAÇÃO DE UM DOS SEUS PRIMEIROS VÍDEOS PARA O SITE WINE FOLLY, EM 2012 Logo começou a frequentar a cena noturna de Los Angeles e ganhou alguma fama, lançando discos por gravadoras pequenas regionais. Além disso, colaborou com artistas de mais peso, como o DJ francês Joachim Garraud. Mesmo assim, não engrenou. “Quando eu tocava, não estava feliz.” de 7 mil rótulos diferentes. “Mas não é tanto assim”, explica. “Considerando que um crítico profissional toma essa mesma quantidade por ano...” Mas é o suficiente para abastecer o endereço com notícias. Além disso, o Wine Folly começou a apostar em outros tipos de serviços e produtos mais sofisticados. Recentemente, passou a vender pôsteres com os infográficos publicados. “Ainda é difícil ganhar dinheiro só com o site, mas estamos tentando”, diz. Entre livros, pôsteres, viagens, infográficos e posts, Madeline Puckette estabeleceu seu nome como uma referência mundial. E com o saboroso diferencial de tornar uma carta de vinhos um documento acessível para todos os gostos e bolsos. É uma caminhada cheia de idealismo e dificuldades. Ela conta, com expressão frustrada, ter recusado ofertas comerciais e de anúncios porque julgou não combinarem com a proposta da empresa. “Não quero estragar o que construí”, explica, entre um sorriso e um gole de tinto. Ao mesmo tempo, expressa uma intensa empolgação ao passar horas e horas falando de suas viagens, recomendando rótulos especiais e lugares pouco conhecidos que merecem uma visita no verão. “Quanto mais você estuda e pesquisa o assunto, mais fica claro que ninguém pode saber de tudo”, diz. “Se quiser, você pode passar a vida toda aprendendo.” SAFRA CASEIRA ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO afirma Ryan O’Connell, da Naked Wines, empresa que financia vinícolas independentes. “Ela não apenas entretém, mas educa – e faz isso da forma mais eficiente”, explica Paul Mabray, criador do VinTank, empresa que monitora a popularidade de artigos relacionados a vinhos em redes sociais. “Madeline faz entender de vinho parecer fácil. Temas como moléculas, taninos e tipos de solo de repente surgem descomplicados e divertidos”, diz Nicholas Miller, vice-presidente de vendas da vinícola Bien Nacido Vineyards, da Califórnia. A simplicidade de Madeline Puckette também se aplica em relação aos valores cobrados por uma garrafa. Ela acredita que não há necessidade de pagar uma fortuna por uma taça de um Pinot Noir sofisticado para ter uma experiência significativa. Diz que já gastou alguns milhares de dólares por uma garrafa (sem revelar a quantia), mas defende que rótulos mais em conta também são capazes de oferecer sabores marcantes. “Quando você experimenta vinhos caros e antigos, entende: é verdade, eles têm gosto melhor do que os baratos”, explica. “Mas, quando você sabe o que procurar, encontra algo tão bom quanto, ou tão adequado ao seu gosto, por bem menos. Tomei um, recentemente, da região do Lazio, na Itália, que custava uns US$ 40 a garrafa. Esse vinho poderia facilmente passar por um Bordeaux de US$ 900.” As raízes do sucesso de Madeline – e da mistura de leveza e arte em sua profissão – estão nas experiências de juventude – incluídas aí uma faculdade de arte e uma carreira promissora na música. Ela é uma daquelas pessoas cujo cérebro funciona de uma maneira diferente, simples, brilhante e irrequieto. Em dezembro do ano passado, quando a encontrei para jantar em Seattle, a especialista me explicou a cidade desenhando um MADELINE Ainda na faculdade, Madeline conheceu o namorado e cofundador do Wine Folly, Justin Hammack, com quem está há mais de dez anos. “Ele é como o CEO do site, apesar de as pessoas conhecerem mais a mim”, diz. “Sou a cara do negócio, ele, o cérebro.” Justin, um web designer de formação, ajudou a moldar o formato do portal. É quem cuida do planejamento e analisa o retorno do público e do mercado para direcionar o futuro da empresa. Madeline conta que durante os primeiros meses do projeto, cansativos e incertos, a presença do parceiro serviu como um alicerce. À época, ela havia voltado a trabalhar como designer gráfica durante o dia, reservando as madrugadas para se dedicar aos textos e ilustrações do Wine Folly. Hoje, com o site em expansão, Madeline tem recebido cada vez mais convites para conhecer vinícolas ao redor do mundo. Já percorreu quatro continentes e diz ter experimentado cerca Baixe a Revista Personnalité no tablet e veja mais trabalhos de Madeline 83 POR Filipe Luna FOTOS Leonardo Finotti VERDE CONCRETO Para dar uma outra cor às paredes cinzas dos edifícios paulistanos e melhorar a vida de quem mora ali, jardins suspensos brotam em São Paulo AO FUNDO, JARDIM VERTICAL DO HOTEL REGENT PARK, NA PÁGINA AO LADO, O DO EDIFÍCIO TACOA; AMBOS ESTÃO EM SÃO PAULO E FORAM INSTALADOS PELO MOVIMENTO 90° E m qualquer lugar no centro de São Paulo, um indivíduo se encontra cercado por prédios. Não importa a direção em que a mira do observador aponta, imensas torres de concreto compõem a paisagem da cidade. Mas, aos olhos de Guil Blanche, criador do Movimento 90º, cada enorme parede vazia, numa cidade que não permite mais que a publicidade ocupe esse espaço, é um jardim. O objetivo do jovem paisagista é cobrir de natureza áreas que dão à capital paulista seu aspecto cinza pálido. “Morando no centro, próximo ao elevado Costa e Silva, o Minhocão, tive uma visão dessas empenas cegas [termo técnico para denominar as paredes sem janelas dos prédios], superfícies sem função alguma, cobertas de verde”, diz o goiano de 25 anos. “E, mais do que isso, entendi que era uma urgência da cidade.” Além do evidente benefício visual, um jardim vertical provoca impacto ambiental significativo. Guil aprendeu a técnica enquanto cursava a faculdade de arquitetura na Escola da Cidade, em São Paulo, através de um amigo que estudou com o criador dos jardins verticais, o botânico francês Patrick Blanc. “Fiquei encantado. Pensei: ‘Esse é o futuro da cidade. Você não tem espaço pra fazer jardim, então vai pra parede’.” Blanche voltou a Goiânia e praticou durante seis meses numa fachada da fábrica de fundição de alumínio do pai. Chegou a um resultado similar ao de Blanc, mas com um custo mais barato. Decidiu espalhar a novidade pela capital de Goiás. “Virou uma febre”, conta. “Hoje, qualquer casa de alto padrão lá tem um jardim vertical.” De volta a São Paulo, Guil decidiu largar a arquitetura e completou o curso técnico em paisagismo. No final de 2011, “OS JARDINS VERTICAIS SÃO O FUTURO DA CIDADE”, DIZ GUIL BLANCHE passou a mapear as paredes em que os jardins poderiam ser implantados. A tarefa durou mais de 1 ano e apresentou um resultado impressionante: cerca de 258 mil metros quadrados (área equivalente a 30 campos de futebol) de empenas cegas nas principais avenidas do centro expandido. O Movimento 90º começou com um objetivo definido: transformar o Minhocão num corredor verde. Era hora de formar uma equipe. A portuguesa Inês Fernandes conheceu o projeto de Blanche por meio de um amigo em comum e se juntou ao grupo em 2013. Aos 25 anos, a arquiteta, que fizera parte de sua graduação na Universidade de São Paulo, havia decidido deixar Lisboa para estabelecer carreira no Brasil. “Eu estava procurando emprego, mas não estava satisfeita com o tipo de abordagem tradicional dos arquitetos, sem um impacto social ou na vida das pessoas”, afirma. “Há muita coisa para ser feita em São Paulo, e é aqui onde me sinto mais útil.” O outro arquiteto da equipe, o também goiano Rodrigo Amaral Rocha, 28 anos, é amigo de infância de Guil. “Me interessei pela ideia de que esse projeto é acessível e de que pode transformar a cidade”, explica. “Tinha possibilidades de emprego mais rentáveis, mas não é essa a função do trabalho para mim. Não adiantaria fazer algo que não transformasse a sociedade.” O trio pinçou alguns dos problemas mais evidentes e essenciais da maior cidade da América do Sul e os atacou com um método simples e inspirador. Um jar- 86 ACIMA, A EQUIPE DO MOVIMENTO 90º: RODRIGO AMARAL ROCHA (SENTAD0), GUIL BLANCHE E INÊS FERNANDES. NA PÁGINA AO LADO, O JARDIM VERTICAL DO HOTEL REGENT PARK, NO BAIRRO CERQUEIRA CÉSAR (SP) dim vertical é também um jardim versátil em benefícios. Segundo os integrantes do Movimento, a temperatura de uma parede cai cerca de 8 graus externamente e 4 graus na parte interna com um tapete verde aplicado sobre ela. As plantas absorvem o ruído da rua e ainda diminuem em 60% a concentração de micropartículas poluentes no ar, num raio de 30 a 40 metros do jardim. “Eles estão dando uma alternativa muito legal para você criar áreas verdes numa cidade que tem pouco espaço”, explica Gilberto Dimenstein. “É daquelas grandes invenções urbanas em que você mostra como pode embelezar e despoluir com baixo custo.” O jornalista e editor do site Catraca livre é um dos principais incentivadores e convidou o grupo a criar um projeto para o galpão em que vai implantar o Armazém da Cidade – local onde o Movimento vai instalar seu novo escritório e dividir o espaço com outras empresas de impacto social. 87 ARTE DE RUA O primeiro grande jardim no Minhocão foi realizado no final de 2013 no edifício Honduras, em parceria com a marca de bebidas Absolut. Guil desenhou o projeto como costuma iniciar seus jardins: pintando em aquarela. As espécies de plantas que dão as cores e compõem o desenho são escolhidas de acordo com a época do ano e a orientação da parede em relação ao sol. “É difícil chamar meu próprio trabalho de obra de arte”, diz. “Agora, é possível comparar, sim, com uma arte de rua, uma intervenção artística como o grafite.” O artista plástico Felipe Morozini, que mora na região e cujo trabalho está diretamente ligado ao Minhocão, exalta os aspectos positivos: “O impacto é gigantesco, seja visual ou ambiental. O jardim trouxe de volta pássaros que tinham ido para a Serra da Cantareira, ou outra floresta, e transformou um pequeno trecho da cidade numa outra paisagem, mais honesta e verdadeira”. Rodrigo Rocha coordenou a equipe que instalou a parede verde no Honduras. Uma estrutura com 5 centímetros de espessura separa as placas de material reciclado, feitas com embalagens Tetra Pak, da superfície do prédio. Uma camada de feltro cobre as placas com bolsos individuais para cada planta. O tecido ajuda a reter a água, que é distribuída por um sistema de canos. Em média, o custo do jardim é de R$ 890 por metro quadrado, mais cerca de R$ 200 de manutenção por mês – que corresponde ao consumo de energia elétrica e água (o jardim aumenta apenas em 1,5% o consumo de água do condomínio). DOMÍNIO DO VERDE A instalação, no entanto, foi a parte simples. O maior desafio acabou sendo convencer alguns moradores. “A grande maioria acha positivo e tem senhorinhas que amam e se orgulham de ter aquele jardim no prédio delas”, afirma Rodrigo. “Mas tem outros que reclamam, que dá bicho. Tem épocas em São Paulo que você tem mais mosquitos. Agora, é natural, não é? Você está numa cidade, no planeta Ter- _ Jardim vertical recordista O maior jardim vertical do mundo, segundo o livro Guinness dos recordes, fica na região de Bukit Timah, em Cingapura. O condomínio Tree House traz na sua fachada um jardim de 2.289 metros quadrados. São quatro torres de 24 andares e um total de 429 apartamentos. O metro quadrado lá vale mais ou menos US$ 10 mil. Além de ser um dos aspectos marcantes do projeto, as plantas proporcionam economia aos condôminos. A construtora estima uma economia de 15% a 30% com gastos com ar-condicionado para os apartamentos que têm quartos nessa fachada, graças à diminuição de temperatura interna causada pelo ra, e aqui temos insetos. Eu acho bom que tenha aranha na minha casa. Você está próximo da natureza, não isolado.” O impacto do trabalho do Movimento 90o é sentido de fato quando o projeto tem mais escala. Por isso, o grupo quer aplacar a poluição gerada pelos cerca de 120 mil automóveis que passam por dia pelo Minhocão implantando mais 20 jardins verticais ao longo do elevado. Eles já conseguiram dez autorizações de condomínios. “Acredito que daqui a 30 anos as cidades estarão cobertas de paredes verdes”, afirma Guil. “Como ainda não existiu essa intervenção de impacto urbano, é isso que a gente quer fazer. Quer ver se realmente o impacto é sério.” O objetivo está definido para 2015. Enquanto isso, seguem trabalhando para transformar São Paulo, e outras cidades do Brasil, em paisagens urbanas dominadas pelo verde. Nos cursos e workshops, o trio ensina toda a técnica que desenvolveu, sem se preocupar em guardar segredos industriais. “A gente torce para que as pessoas aprendam mesmo e que apareçam outros fazendo”, diz Guil. “E nenhum de nós é realmente de São Paulo, né? Todo mundo que vem parar aqui se identifica com a cidade porque ela te recebe de braços muito abertos”, completa Inês. “As coisas que as pessoas encaram como problemas, como mal resolvidas, para mim são possibilidades. Essa cidade está cheia delas. Sempre me identifiquei com a possibilidade de mudar o mundo com a minha atuação no lugar onde estou.” Guil Blanche encerra a conversa com um convite: “Precisamos de concorrência, de gente capaz de fazer. São 258 mil metros quadrados de paredes lisas em São Paulo. Não tem como a gente dar conta sozinho.” DIVULGAÇÃO jardim. Isso significa de US$ 12 mil a US$ 24 mil a menos de custos com energia elétrica por ano. O empreendimento tem ainda outras iniciativas de economia de energia e água que irão diminuir os gastos anuais em até US$ 500 mil. 88 NA PÁGINA AO LADO, O JARDIM VERTICAL MONTADO NO EDIFÍCIO HONDURAS DÁ OUTRAS CORES À PAISAGEM QUE SE VISLUMBRA A PARTIR DO MINHOCÃO 89 PRIMEIRA PESSOA | VERA HOLTZ _ ESPÍRITO POÉTICO POR KIKA PEREIRA DE SOUSA / FOTO PAULA GIOLITO A atriz costuma comprar objetos sem saber exatamente o motivo. “Um tempo depois, sempre acontece algo que ‘explica’ o porquê.” Em 2014, após ter adquirido esta escultura, ela foi convidada para viver Timon de Atenas, que se lança em alto-mar a bordo de um veleiro, em uma peça de Shakespeare. “A escultura leva a um estado de espírito poético, um momento desconhecido da minha experiência, como é a imensidão do mar.” A PEÇA É OBRA DO ARTISTA PARAENSE TONICO LEMOS AUAD E SE CHAMA SERMÃO DOS PEIXES. ELA FEZ PARTE DA COLEÇÃO BORDALLIANOS DO BRASIL E FOI ADQUIRIDA PELA ATRIZ NA ARTRIO, EM SETEMBRO DO ANO PASSADO 90 Baixe essa edição no seu tablet. A Revista Personnalité também está no tablet, com vídeos exclusivos, galeria de fotos, matérias interativas e muito mais. Acesse a loja, baixe o aplicativo gratuitamente e experimente.