março | abril | maio 2015
MARIANA XIMENES | LUCAS FONSECA | CLÓVIS DE BARROS FILHO | MADELINE PUCKETTE
REVISTA DO ITAÚ PERSONNALITÉ N O 30 | ANO 8
MARIANA XIMENES
“Ser ator é querer dizer alguma
coisa... Provocar, instigar”
LUCAS FONSECA
CLÓVIS DE BARROS FILHO
MADELINE PUCKETTE
EXEMPLAR DISTRIBUÍDO NAS
AGÊNCIAS PERSONNALITÉ
EDITORIAL
E m 1969, seis dias depois da chegada do homem à Lua, o jornalista
norte-americano E. B. White, um mestre do estilo nas páginas da
revista The New Yorker, escreveu uma pequena celebração. Anotou:
“A lua, no fim das contas, é um bom lugar para o homem. Um sexto da
gravidade deve ser bastante divertido, e quando Armstrong e Aldrin
se dedicaram a uma animada dancinha, feito duas criancinhas felizes,
não foi apenas um momento de triunfo, mas também de alegria. A lua,
em compensação, é um lugar ruim para as bandeiras. A nossa parecia
dura e estranha ali, em sua tentativa de flutuar numa brisa que não
sopra. [...] À maneira de todos os grandes rios e mares, a Lua pertence
a todos e a ninguém. Ainda traz o segredo da loucura, ainda controla
as marés que banham as praias, ainda vigia os beijos daqueles que se
amam em toda parte, debaixo de bandeira nenhuma, somente do céu”.
Esta edição que você tem em mãos, à sua maneira, reverbera o
pequeno encômio escrito por White. Para festejar nossa trigésima
edição decidimos levar o leitor para uma viagem pelas grandes e universais experiências humanas.
Assim, para começar, no intuito de estampar nossa capa, visitamos
o Rio de Janeiro e a estrela Mariana Ximenes, em um perfil que captura sua surpreendente adoração pelas artes plásticas. Em São Paulo,
nossa jornada mergulhou nas questões internas que afetam todos
nós. Para isso, conversamos com o filósofo Clóvis de Barros Filho,
um pensador que, ao versar sobre a vida que vale a pena ser vivida,
nos ensina que a felicidade está em perseguir aquilo que nos faz feliz. Uma caminhada que dura por toda a vida, um dia de cada vez.
Simples assim. Fizemos também uma parada em Seattle, nos Estados
Unidos. Lá, aprendemos com a sommelière Madeline Puckette como
é possível rodar o mundo a partir de uma taça de vinho, em busca de
uma recordação inesquecível.
A viagem desta trigésima e especial edição se encerra fora do planeta. Percorremos 500 milhões de quilômetros e desembarcamos na
trajetória do cientista Lucas Fonseca, único brasileiro a participar da
operação europeia que levou o módulo Philae a pousar, de forma pioneira, em um cometa para investigar a origem do universo.
Em oito anos de vida, a Revista Personnalité vem cumprindo sua
missão de garimpar experiências que merecem ser contadas. Investigar biografias inspiradoras, visitar lugares especiais, resgatar personagens adoráveis: nossa fórmula tem como meta levar aos seus olhos
os sonhos que são construídos na realidade. Eis a receita que um dia
levou o homem à Lua. Eis a receita que levou o paulista Lucas Fonseca rumo à origem de tudo. Pequenas e grandes viagens. Esteja convidado a embarcar conosco.
VAPOR 324
VAPOR 324
Um abraço e boa leitura,
ILUSTRAÇÃO DO MÓDULO PHILAE SAINDO DA SONDA ROSETTA
PARA POUSAR NO COMETA 67P/CHURYUMOV-GERASIMENKO. O
ENGENHEIRO LUCAS FONSECA, UM DOS PERFILADOS DA EDIÇÃO,
FOI O ÚNICO SUL-AMERICANO A PARTICIPAR DA MISSÃO
André Sapoznik
Itaú Personnalité
COLABORADORES
EXPEDIENTE
Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor
Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor
de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Agenor S. Santos
Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de
Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba
O jornalista RUY CASTRO, 67 anos, é autor de
biografias de personalidades como Carmen
Miranda e Garrincha. Em sua quarta colaboração
consecutiva para a Revista Personnalité, ele assina
o perfil de Zé Carioca. “Somos velhos camaradas.
Quando o li pela primeira vez no gibi, o presidente
da República ainda era o Getúlio Vargas, imagine!
Depois, lhe assisti no filme Você já foi à Bahia?, e
me empolguei vendo-o tapear o Pato Donald.”
Diretor de Redação Décio Galina Editor Carlos Messias
Produtora Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente
de Produção Flávia Ribeiro Projeto Gráfico Beth Slamek
Departamento Comercial Assistente Comercial da Diretoria
Gabriela Trentin Assistente de Arte Marketing Publicitário
Fabiana Cordeiro Gerentes de Contas Flavia Marangoni, Roberta
Rodrigues e Juliana Ruiz Assistente de Tráfego Comercial Aline
Trida Assistente de Opec Cristiane Moraes
Para anunciar [email protected] Representantes AL/SE
Pedro Amarante BA Caio Silveira CE Ananias Gomes DF Alaor
Machado ES Dídimo Effgen GO Antonio Cordeiro MG Rodrigo Freitas
PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ X² Representação
RS/SC Ado Henrichs SP Antonio Carlos Bonfá Junior SP interior/
litoral Daniel Paladino SP Permutas Denis Oliveira USA Multimedia
[email protected] Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz
(coordenação) Bibliotecário Daniel de Andrade Estagiários Mayã
Maia e Arthur Fernandes Produção Gráfica Walmir S. Graciano
Produtor Gráfico Cleber Trida Tratamento de Imagens Roberto
Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação),
Janaína Mello, Daniela Uemura e Marcos Visnadi Projetos Especiais
e Eventos Coordenação Regina Trama Editor de Arte Rafael Kendi
Analista Mariana Beulke Trade e Circulação Analista de Trade
Renata Vilar Coordenadora de Assinaturas Andrea Fernandes
Gerente de Circulação Adriano Birello Analista de Circulação
Vanessa Marchetti Projetos Digitais Editor Digital Thiago Araújo
Editores de Arte Débora Andreucci e Diego Maldonado Site Carla
Braga Gerente de Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo
Coordenação Joana Cooper Produção Lorena Almeida Assistente
de Produção Juliana Carletti Assistente de Finalização Viviane
Gualhanone Montador Pitzan Oliveira Diretor de Fotografia Pedro
Marques Relações Públicas Analista de RP Monalisa Oliveira
Assistentes de RP Julio Hercowitz Estagiária Luiza Nascimento
Colaboram nesta edição: Colaboram nesta edição: Vanina
Batista (direção de arte), Giovanni Tinti (edição de arte),
Edmundo Clairefont (edição de texto), Bruna Bopp, Carol
Nogueira, Carol Sganzerla, Daniel Benevides, Filipe Luna, Ines
Garçoni, Joselia Aguiar, Luciana Lancellotti, Luis Patriani, Mariana
Filgueiras, Ricky Hiraoka, Ruy Castro, Salvador Nogueira (texto),
Amanda Koster, Camila Fontana, Daryan Dornelles, Gabriel
Rinaldi, Leonardo Finotti, Paula Giollito, Pedro Loes (foto),
Mauricio Pierro, Vapor 324 (ilustração), Ana Hora (produção) Su
Tonani (figurino) Ricardo Tavares (Make)
O fotógrafo mineiro LEONARDO FINOTTI,
38 anos, é referência em publicações de arquitetura
no Brasil e fora dele: tem contato com 400 títulos
ao redor do mundo. Já trabalhou com grandes
nomes como Herzog & de Meuron e Isay Weinfeld.
Atualmente, está revisitando o modernismo da
América Latina, em um projeto com um grupo de
estudos da Universidade do Texas, que será exposto
em março no MoMA, em Nova York. São dele as
imagens da reportagem “Verde concreto”.
Especializado em ciência, o jornalista paulistano
SALVADOR NOGUEIRA, 36 anos, tem oito
livros publicados. É autor do blog Mensageiro
sideral, da Folha de S. Paulo, jornal onde
começou sua carreira, e colunista do Jornal das
dez, da GloboNews. Nesta edição da Revista
Personnalité, Salvador assina o perfil de Lucas
Fonseca, engenheiro brasileiro que participou
da missão da sonda espacial Rosetta.
A paulistana radicada no Rio de Janeiro
INES GARÇONI é autora do perfil da atriz
Mariana Ximenes. A jornalista de 37 anos
começou sua carreira em 1999 na editoria de
política da revista IstoÉ. Desde então, escreveu
para o Jornal do Brasil, para a revista Poder,
revista da GOL, Marie Claire e Elle. É autora
de dois volumes do Guia carioca da comida
de rua. “A conversa com Mariana fluiu
naturalmente. Ela não só responde às perguntas,
mas interage de fato com o repórter.”
Reconhecido por suas fotos de grandes estrelas
da música brasileira, o carioca DARYAN
DORNELLES começou na profissão por acaso:
era nadador do Vasco e, em uma competição
no Chile, seu técnico precisou de um fotógrafo
– Daryan ficou com a vaga. Para a capa desta
edição, ele enquadrou Mariana Ximenes na
Cidade das Artes, no Rio. “O ensaio foi tranquilo.
Ela fez tudo o que pedimos com carinho.”
Formado em fotografia pelo Rochester Institute
of Technology, no estado de Nova York, o
catarinense GABRIEL RINALDI, 31 anos, já
teve suas imagens veiculadas em publicações
nacionais, como Trip, Playboy, Bravo!, Época e
Audi Magazine, e estrangeiras, como Bloomberg,
Surface e Fast Company. São dele os retratos que
ilustram o perfil do filósofo Clóvis de Barros Filho.
Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon,
André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Camila
Carneiro e Elisangela Bonamigo Colaboradores DPZ Propaganda
Marcello Barcelos e Elvio Tieppo
ARQUIVO PESSOAL / HELOISA SEIXAS (RUY CASTRO)
O coletivo VAPOR324 é formado pelos
arquitetos paulistanos Fabio Riff,
Fabrizio Lenci, Rodrigo Oliveira e Thomas
Frenk. O quarteto se conheceu em 2009,
quando ainda estava na faculdade, abriu o
escritório em 2012, em São Paulo, e já teve
seu trabalho publicado em veículos como Trip,
Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Eles
ilustram a reportagem “O céu não é o limite”.
COLABORADORES
Capa e quarta capa Daryan Dornelles
Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora
e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité.
Endereço para correspondência: Rua Cônego Eugênio Leite, 767,
05414-012, São Paulo, SP.
E-mail: [email protected]
www.tripeditora.com.br
A Trip Editora, consciente das questões
ambientais e sociais, utiliza papéis Suzano
com certificado FSC
(Forest Stewardship Council) para
impressão deste material.
A Certificação FSC garante que uma
matéria-prima florestal provenha de um
manejo considerado social,
ambiental e economicamente adequado.
Impresso na Stilgraf – Certificada na
Cadeia de Custódia – FSC
Depois de ter passado por Veja e Folha de S.
Paulo, a jornalista paulistana CAROL NOGUEIRA,
25 anos, se mudou para Los Angeles em 2014,
de onde escreve sobre cinema e cultura pop
para diversos veículos. Para esta edição, ela foi
a Seattle entrevistar a sommelière Madeline
Puckette, do site Wine Folly. “Madeline é uma
mente brilhante. É interessante como seu
background em artes e música faz o seu trabalho
com vinhos ser tão diferente.”
SUMÁRIO
10 Cá entre Nós
Música, gastronomia, esporte, viagem –
dicas de quem sabe viver bem
15 Prestígio
O BALÉ MAIS DANÇADO
16
54
76
Para celebrar os 40 anos do Grupo Corpo, os irmãos Pederneiras
escolheram uma foto da peça Parabelo, apresentada 426 vezes
16 NAS TELAS
e cinema e o prazer que ela tem em colecionar obras de arte.
Dois caminhos costuram a personalidade da atriz
26 REUNIÃO DE FAMÍLIA
Neta de Dorival, filha de Danilo e sobrinha de Nana, Alice Caymmi
abre seu baú de lembranças para buscar no legado familiar
os ingredientes da música que produz
34 O CÉU NÃO É O LIMITE
O cientista Lucas Fonseca foi o único sul-americano a participar
da missão europeia que pousou uma sonda em um cometa
a 500 milhões de quilômetros da Terra em 2014
44 ATRÁS DA CORTINA
Tão essenciais quanto os artistas, escolhemos sete profissionais
que trabalham nos bastidores para que os espetáculos apresentados
pela Osesp na Sala São Paulo sejam impecáveis
34
DARYAN DORNELLES / GABRIEL RINALDI / AMANDA KOSTER / EDSON SILVA/FOLHAPRESS
Como Mariana Ximenes elabora seus personagens para TV
54 “A FELICIDADE DISPENSA TEORIZAÇÃO...”
76 VINHO: QUER QUE EU DESENHE?
Autor de 15 livros, o professor de filosofia Clóvis de Barro Filho faz
A designer Madeline Puckette, criadora do portal Wine Folly, tornou-se
sucesso misturando Platão e Nietzsche a um jogo de futebol. Assim,
uma referência ao simplificar o universo do vinho. “Ninguém sabe tudo
criou um jeito leve de investigar a existência
sobre a bebida. Você poderia passar a vida toda aprendendo”
62 REAL E IMAGINÁRIO
84 VERDE CONCRETO
O melhor museu da Europa fica em uma pequena casa de Istambul.
Para dar outra cor às paredes dos edifícios paulistanos e melhorar
Seu acervo, criado pelo escritor Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de
a vida de quem mora ali, jardins suspensos brotam em São Paulo
Literatura, conta a história de um casal que nunca existiu
68 ZÉ CARIOCA EM PESSOA
90 Primeira Pessoa
Quem inspirou Walt Disney a criar o papagaio era paulista e teve
ESPÍRITO POÉTICO
uma vida que pode ser resumida à palavra que ele adorava:
Vera Holtz costuma comprar objetos sem saber exatamente o motivo.
“Demais!”. Com vocês, José do Patrocínio de Oliveira, o Zezinho
“Um tempo depois, sempre acontece algo que ‘explica’ o porquê”
de espírito poético, um momento desconhecido da
minha experiência, como é a imensidão do mar.”
CÁ ENTRE NÓS
CÁ ENTRE NÓS
VIAGEM, GASTRONOMIA E CULTURA – CONVIDADOS ESPECIAIS ABREM SUAS PREFERÊNCIAS
_TRILHA SONORA
CARMINHO, cantora e compositora
_SONHOS
MAURÍCIO ARRUDA, arquiteto e designer
A fadista portuguesa, que emocionou Caetano e tem parcerias com Chico
Buarque e Milton Nascimento, fala das canções marcantes de sua vida
POR CARLOS MESSIAS
Laos, Camboja e Vietnã impressionaram bastante o viajante,
que agora planeja comemorar seu aniversário no México
POR CAROL SGANZERLA
2
1
4
5
6
8
1. “PRAIA NUA”, TERESA
SIQUEIRA
“É difícil escolher uma canção da
minha mãe. Esta me traz muitas
lembranças. A partir dela, passei a
me relacionar com o fado. Foi uma
grande revelação quando vi que
esta canção era ouvida por gente
do mundo todo.”
2. “MAN ON THE MOON”, R.E.M.
“Como sou a caçula, copiava tudo
que meu irmão fazia. Comecei a
ouvir este disco [Automatic for the
people, de 1992] por causa dele.
Eu tinha 8 anos, e músicas
como ‘Man on the moon’ ou
‘Everybody hurts’ me tocaram
profundamente.”
3. “A KIND OF MAGIC”, QUEEN
“O Queen é a minha banda
anglo-saxã favorita. Eles elevaram
o pop e o rock a outro patamar
com elementos de ópera e música
clássica, sem perder a verve
dançante. E ‘A kind of magic’
representa muito bem isso.”
4. “MEU CORPO”, BEATRIZ
DA CONCEIÇÃO
“Uma grande inspiração no fado,
tanto para mim quanto para a
minha mãe. Ela é tradicional e foi
importante na minha formação.
Cresci vendo-a tocar. Suas
interpretações são sempre muito
verdadeiras.”
5. “COM QUE VOZ”,
AMÁLIA RODRIGUES
“Outra fadista portuguesa
inspiradora. Em certo momento,
10
IVAN SHUPIKOV / IAN TROWER / WOJTEK BUSS
7
ela começou uma parceria com
o compositor franco-português
Alain Oulman e sofreu preconceito
dos puristas. Mas ela sempre fez
o que o coração mandou – e isso
é uma grande lição.”
6. “O GRANDE CIRCO MÍSTICO”,
CHICO BUARQUE E EDU LOBO
“Não é fácil escolher uma música
do Chico. Vou ficar com uma das
primeiras que conheci, aos 15 anos.
E, graças às voltas que o mundo
dá, acabei gravando com ele uma
canção [“Carolina”] no meu disco.”
7. “A BARCA DOS AMANTES”,
MILTON NASCIMENTO
“Entrei no altar [em 2013] ouvindo
esta canção. O Milton é um
padrinho musical e um padrinho
de vida. Ninguém canta como ele.
Sua música não é MPB, não
é nada mais. É Milton.”
8. “PART I”, KEITH JARRETT
“Abertura do concerto que ele
gravou na Casa de Ópera de
Colônia [Alemanha]. Em breve,
vou ter a oportunidade de pisar
no palco dessa sala tão
emblemática. Nem tudo me
toca em jazz, mas o Keith Jarrett
é fenomenal!”
Ouça no tablet músicas
da fadista Carminho
MÉXICO
PRÓXIMA PARADA
“Em maio deste ano, no meu aniversário, viajo para o
México. Nunca planejei com tanta antecedência uma
viagem, mas conhecer melhor a América Latina sempre
foi um sonho. Dividi a viagem em dois destinos: Cidade
do México e Tulum. Na primeira, quero visitar museus, ver
os trabalhos de Frida Kahlo, Diego Rivera e algumas obras
do arquiteto Ricardo Legorreta, meu ídolo na época da
faculdade. Além de pesquisar a arte e o artesanato local.
Em Tulum, vou conhecer alguns cenotes [grutas repletas de
água]– quem sabe finalmente aprendo a usar um snorkel –
e as ruínas maias, as únicas construídas à beira-mar.”
LEO AVERSA / DIVULGAÇÃO
3
SUDESTE ASIÁTICO, 2012
JORNADA INESQUECÍVEL
“Em minha primeira viagem ao Oriente, escolhi Vietnã, Camboja
e Laos. As cidades vietnamitas Hue e Hoi An são imperdíveis. A
primeira foi capital imperial e ainda é possível ver a Cidade Proibida
– o que restou depois da Guerra do Vietnã. Hoi An é famosa pelos
mais de 600 alfaiates que reproduzem qualquer roupa que você
queira. No Camboja, Angkor Wat é de uma beleza inesquecível. Em
Siem Reap, cidade que serve de base para visitar os mais de 50
templos de Angkor, sugiro um jantar no hotel Amansara. Construído
na década de 50 para ser uma guest house, o lugar hospedou John
F. Kennedy e Jacqueline Onassis. Terminei a viagem no Laos, em
Luang Prabang, uma cidade pequena, mas grandiosa pela filosofia
de vida presente no rosto de cada cidadão. Voltaria amanhã.”
NO ALTO, MULHER VESTINDO ÁO DÀI (TRAJE TÍPICO VIETNAMITA) CAMINHA NO
PALÁCIO IMPERIAL, NA CIDADE DE HUE. ACIMA, TULUM, UM DOS DESTINOS NO
MÉXICO ONDE MAURÍCIO CELEBRARÁ SEU ANIVERSÁRIO ESTE ANO
11
CÁ ENTRE NÓS
CÁ ENTRE NÓS
_A MENSAGEM DA GARRAFA
JUNINHO PERNAMBUCANO, comentarista
_PASSE A PASSE
GLENDA KOZLOWSKI, jornalista
Ex-jogador de futebol do Lyon, ele não bebia até ir para França e provar
os vinhos locais. Agora, no Rio, construiu adega própria para 80 garrafas
Na Praia de Copacabana lotada, a ex-atleta não conteve a emoção
e comemorou junto com a torcida o gol decisivo de Branco, em 1994
POR LUCIANA LANCELLOTTI
POR BRUNA BOPP
“Em 2001, quando fui jogar no Lyon, já
sabia que a França era o país do vinho,
mas eu não bebia. Os jogadores abriam
champanhe no vestiário para comemorar
a vitória e eu nem provava. Com o passar
do tempo, me apresentaram as regiões do
Côte-Rôtie e Châteauneuf-du-Pape. Foi aí
que comecei a beber com mais frequência.
Me arrependo de não ter curtido naquela
época, mas, hoje, celebro, abro uma
garrafa, quero estar com as pessoas que
amo. Quando a minha filha Giovana fez
18 anos, abrimos um vinho bom da adega
para comemorar, não lembro qual, mas era
especial [ao todo, Juninho tem três filhas].
Tenho aqui em casa um Château Palmer
de 2001, ano em que a Maria Clara nasceu.
Quem sabe a gente não guarda para o
aniversário de 18 dela também?”
Conheça outros vinhos franceses.
Acesse: itau.com.br/personnalite/experiencia
12
Ç
/
ALEX CARVALHO/CGCOM / IMAGO SPORTFOTODIENST
O NOME
Um dos mais respeitados vinhos de Bordeaux
recebeu este nome graças ao general britânico
Charles Palmer, que se aposentou e mudou
para Bordeaux em 1814, onde adquiriu a
propriedade, o então Château de Gascq.
O lugar já era intimamente ligado ao vinho –
um dos preferidos da corte de Luís XV.
/
A SAFRA
As variedades são sempre as mesmas,
mas as proporções do corte variam a
cada ano. Em 2001, foram utilizados 51%
de Cabernet Sauvignon, 44% de Merlot
e 5% de Petit Verdot. Com potencial de
guarda estimado em até 2025, é uma
safra que recebeu 93 pontos do crítico
norte-americano Robert Parker.
/
A EMPRESA
A Sociedade Civil Château Palmer se formou
em 1938 por um consórcio de quatro famílias
produtoras, que revitalizaram a propriedade.
As três bandeiras que hoje tremulam no
château correspondem à origem dessas
famílias: inglesa, francesa e holandesa.
Desde 2004, a empresa tem como CEO o
jovem produtor bordalês Thomas Duroux.
MARCELO FONSECA / BRAZIL PHOTO PRESS/FOLHAPRESS / DIVULGAÇÃO
A PROPRIEDADE
É considerada uma das mais bonitas e
acolhedoras da Apelação de Origem
Controlada de Margaux. Com 55
hectares de vinhedos, está localizada
em um platô no Cantenac. Dos jardins,
se avista o rio Gironde por meio das
vinhas velhas de Merlot. O solo é de
cascalho grosso, com 4 metros de
profundidade.
“A Copa do Mundo de 1994 foi a primeira que cobri como repórter.
No jogo das quartas de final do Brasil contra a Holanda, fui para
a rua com a missão de gravar a reação dos torcedores. Me vi em
Copacabana com a pista tomada, telões espalhados, sem conseguir
andar. A partida estava difícil, o placar marcava 2 a 2 e Branco,
que era perseguido pela torcida, se preparou para bater uma
falta. Ele deu um chutaço. A bola saiu incandescente. Romário, na
malandragem típica dos campinhos de terra espalhados pelo Brasil,
tirou o corpo na hora exata e a bola entrou no cantinho da trave.
Comemorei junto, gritando com todos os torcedores. Tinha deixado
de competir havia um ano no bodyboarding, então, naquele
momento, ainda tinha o coração de competidora. Era uma atleta
brincando de ser jornalista.”
FICHA TÉCNICA
BRASIL 3 X 2 HOLANDA
9/7/1994, Cotton Bowl Stadium, Dallas, Estados Unidos. Quartas
de final da Copa do Mundo. 63.500 pagantes.
BRASIL Taffarel, Jorginho, Aldair, Márcio Santos, Branco (Cafu),
Dunga, Mauro Silva, Mazinho (Raí), Zinho, Bebeto, Romário.
Técnico: Carlos Alberto Parreira.
HOLANDA De Goey, Koeman, Valck, Witschge, Winter, Jonk,
Rijkaard (De Boer), Wouters, Overmars, Bergkamp, Van Vossen
(Roy). Técnico: Dick Advocaat.
GOLS Romário aos 7, Bebeto aos 17, Bergkamp aos 18, Winter
aos 30 e Branco aos 35 minutos do segundo tempo.
13
PRESTÍGIO | GRUPO CORPO
CÁ ENTRE NÓS
POR Luis Patriani
_
CARLOS VALENTÍ, chef
ÁGUA NA BOCA
2. PRATO BRASILEIRO
Moqueca. Gosto muito de azeite de dendê. Quando
fui a Salvador, assistir ao jogo da Espanha na Copa,
fiz questão de experimentar a moqueca nordestina.
3. TEMPERO PREFERIDO
Azeite de oliva. Ele tem, além de muitas notas
diferentes, a capacidade de transformar o prato.
4. VOCAÇÃO
Na minha casa sempre comemos muito bem.
Minha mãe adorava cozinhar e isso despertou em
mim a paixão pela culinária. Desde muito cedo já
sabia que seguiria pelo caminho da gastronomia.
5. HÁBITO NO TRABALHO
Trabalhar em silêncio.
Emulsão
1 colher de sobremesa bem
cheia de mostarda Dijon
4 colheres de gema de
ovo pasteurizada
½ colher de sobremesa
de molho inglês Perrins
½ colher de sobremesa de
molho de pimenta Tabasco
1 colher de sobremesa
de conhaque
400 ml de azeite
extravirgem
Pimenta-do-reino
Sal
Modo de preparo
Misture tudo e sirva gelado
(a carne deve estar bem gelada;
faça a mistura sobre um bowl
com gelo). Com um aro, monte
em um prato fundo o steak
tartar. Ao lado, coloque salada
de folhas verdes temperadas
com molho vinagrete de azeite
balsâmico e, por cima, três
batatas souffleés.
Rendimento: 1 porção.
Tempo de preparo: de 20
a 30 minutos.
6. DESTINO GASTRONÔMICO
Quando tiro férias, gosto de passar 15 dias em Cádiz,
no sul da Espanha, lugar com as melhores ortiguillas
(anêmonas) fritas que já comi.
Experimente
Baby Beef Rubaiyat
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2954,
Itaim Bibi, São Paulo (SP).
Tel.: (11) 3165-8888
7. INFLUÊNCIA NA COZINHA
O tempo que tenho passado no Brasil deixou minha
mão mais pesada na hora de temperar. Tenho
caprichado, principalmente, quando uso limão.
O Baby Beef Rubaiyat faz parte
do Menu Personnalité. Conheça os
pratos em: itau.com.br/personnalite/
experiencia
14
Ã
A rotina de Carlos Valentí é assim: ele mal volta de Brasília e já
tem que voar para o Chile, onde vai preparar o cardápio de mais
uma unidade do Baby Beef Rubaiyat. Chef executivo do grupo
há dois anos, o madrileno se divide entre os sete restaurantes da
marca – além de Brasília, são três em São Paulo, um no Rio, um
em Madri e um na Cidade do México. “É a chance de descobrir
o que cada lugar tem a oferecer de melhor”, diz. Aos 38 anos,
Carlos passa de dois a três meses em cada lugar, criando pratos
e investindo na formação das equipes. Ao lado, ele ensina a
receita de um dos pratos mais pedidos na unidade da avenida
Faria Lima: o steak tartar.
Para celebrar os 40 anos do Grupo Corpo, os irmãos Pederneiras
escolheram uma foto da peça Parabelo, que já foi apresentada 426 vezes
È
POR BRUNA BOPP FOTO PEDRO LÓES
Ingredientes
150 g solomillo
1 colher de sobremesa da
emulsão (veja abaixo)
2 colheres de café de alcaparras
picadas
1 colher de café de pepino
em conserva picado
1 colher de café de cebola picada
1 colher de café de salsinha picada
1 colher de café de mostarda Dijon
JOSÈ LUIZ PEDERNEIRAS/DIVULGAÇÃO
No comando dos sete restaurantes do Grupo Rubaiyat, o espanhol
ensina o passo a passo de um de seus pratos prediletos, o steak tartar
1. UMA SAUDADE
Levar meus filhos, Hector e Carlota, que moram em
Madri, para a escola. E depois ir a um restaurante com
eles, de preferência japonês, culinária que adoram.
_
O BALÉ MAIS DANÇADO
STEAK TARTAR
O ano de 2015 é especial para o Grupo
Corpo: a companhia de dança contemporânea mais importante do país
completa 40 anos. Não foi fácil chegar
a um consenso da foto mais emblemática da história do grupo mineiro, que
tem os irmãos Pederneiras como miolo
criativo. Enfim, Paulo, diretor artístico, e Rodrigo, coreógrafo, fecharam a
escolha em uma imagem da peça Parabelo, criada em 1997. Explica-se: “O
Parabelo é o nosso balé mais dançado.
Até hoje foram 426 apresentações, das
quais 137 só no Brasil. Ela é um marco de sucesso do Grupo Corpo”, diz
O BALÉ PARABELO FOI O MAIS APRESENTADO PELO GRUPO
CORPO NOS 40 ANOS DE HISTÓRIA DA COMPANHIA MINEIRA
Paulo. Rodrigo, por sua vez, destaca a
longevidade da montagem e o fato de
ela ainda fazer parte do repertório da
companhia, além de ser muito pedida
no exterior. “A coreografia de Parabelo
é a mais brasileira e regional de todas
as minhas criações. Ela é pujante e tem
um brilho especial.”
O consenso, porém, não foi simples.
Ao longo de quatro décadas, o grupo
produziu peças muito marcantes, sendo
que algumas com significados subjetivos para cada um deles. “É muito pessoal, mas a Missa do orfanato, de 1989,
tem um significado especial para mim.
15
Criei a coreografia de uma vez só. Não
parei para arrumá-la. Foi direto. Até
hoje, quando assisto, sinto força e emoção”, revela Rodrigo. A pioneira Maria
Maria, de 1976, que estreou com trilha
musical de Milton Nascimento, um ano
após a fundação da companhia, em Belo
Horizonte, e o balé 21, cuja linguagem
particular desenvolvida em 1992 rendeu ao grupo sua assinatura até hoje,
foram carinhosamente lembradas por
Paulo. “O começo de tudo foi com Maria Maria, que trouxe reconhecimento
no Brasil. Com a peça 21, passamos a
ser respeitados no exterior.”
POR Ines Garçoni, do Rio de Janeiro FOTOS Daryan Dornelles
NAS
TELAS
Como Mariana Ximenes elabora seus
personagens para TV e cinema e o prazer que
ela tem em colecionar o trabalho de artistas
plásticos, de quem acaba se tornando amiga.
Dois registros (um em dourado; outro em preto)
desvendam a personalidade da atriz em
sua relação profunda com a arte
PERSONNALITÉ
MARIANA XIMENES
A ATRIZ
A APRECIADORA DE ARTE
hoje uma das mais importantes atrizes de sua geração. No
currículo extenso – sem contar os tempos de garota-propaganda na infância e na adolescência – não faltam elogios
da crítica e prêmios. Da protagonista Aninha, de Chocolate
com pimenta (2003), passando pela vilã Clara, de Passione (2010), até a vedete sexy Aurora Lincoln, de Joia rara
(2013), se tornou popular graças às novelas de televisão,
mas transita por outras searas — teatro, cinema e até artes
plásticas, como personagem de algumas obras: “Ser ator é
querer dizer alguma coisa, se expressar. Podemos provocar,
estimular, instigar, e sermos provocados também. A cada
processo eu me transformo”, diz. “Busco sempre aprender
e evoluir. Para me tornar um ser humano melhor.”
O carro vai chegando à Cidade das Artes, pavilhão
que abriga um complexo cultural na Barra da Tijuca,
zona oeste carioca, e em 40 minutos de viagem Mariana
já falou com entusiasmo sobre a descoberta de uma
“cultura superdiferente” na Índia, onde passou o réveillon,
sobre como foi “incrível” escalar o Morro da Babilônia
e ver o Pão de Açúcar por um ângulo diferente.
ariana Ximenes entra no carro, põe delicadamente
a mão no ombro do motorista, “como é seu nome?”,
pede mil desculpas pelo atraso de meia hora, “perdão,
Roberto, eu tinha muitas coisas para fazer nesta manhã”,
e bate o olho na televisão do painel. Vê uma imagem sem
som do lutador Anderson Silva. O interesse é imediato: “Ah,
olha ele! Vai lutar de novo. O que será que estão dizendo?”,
pergunta. “Não, não é que eu goste de MMA. Eu curto
histórias de superação. Adoro conhecer a trajetória das
pessoas, saber quais caminhos escolhem na vida.” Às 9
da manhã, 29 graus do lado de fora, de cabelo preso e sem
maquiagem, carregando “uma pasta, uma bolsinha e um
bolsão” cheios de papéis e objetos de trabalho, Mariana
já está absolutamente atenta a tudo ao redor. “Sou curiosa”,
solta, quase sem querer.
Sempre foi assim, ela conta. A curiosidade impulsiona
sua carreira há quase 20 anos: “Por que essa personagem
age de tal maneira? Ah, então ela é feliz desse jeito? Eu
aprendo com elas e amplio horizontes, me questiono”. Aos
34 anos, a paulistana Mariana Ximenes do Prado Nuzzi é
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NO ALTO, MARIANA COMO A VEDETE AURORA
LINCOLN, NA NOVELA JOIA RARA (2013)
M
ARQUIVO PESSOAL / DIVULGAÇÃO /VICENTE DE MELLO
M
amizades entre pintores, fotógrafos, escultores, grafiteiros. E
as lembranças de museus, galerias e obras são tantas que ela
quase se perde, entusiasmada, ao contar algumas das experiências. “Ai, espera! Esqueci de falar do Hermitage, em São Petersburgo! Fiquei três dias chorando de emoção com aqueles
Rembrandts maravilhosos.” Descontado o exagero, Mariana é,
de fato, bastante sensível às artes.
Quem diz isso são os amigos. O artista carioca Ernesto
Neto vê na atriz “uma forte sensibilidade para a coisa artística,
muito aberta e curiosa. Como a arte é um mundo que beira o
sobrenatural e transcende essa realidade brutal que a gente
recebe hoje em dia, o interesse da Mariana faz com que ela
tenha uma conexão, uma ponte de ordem espiritual, com esse
universo oculto e simbólico”. Gustavo, um d’OSGÊMEOS, outro amigo da atriz, acha “muito importante alguém como ela,
com tanta sensibilidade, dividir o que tem dentro de si, filtrar
o que enxerga, escuta e vivencia, e passar para outras pessoas.
E ela faz isso de forma tão simples e direta”. Mariana tenta
definir do que se trata a sua própria sensibilidade: “Não sei…
Apenas adoro tudo o que mexe com os sentidos”.
ariana Ximenes caminhava pelo vão da Cidade das Artes
durante o ensaio fotográfico quando deparou com uma
grande escultura de ferro. “Que lindo, de quem é?”, perguntou
ao léu, caso alguém pudesse responder. Diante do silêncio,
abordou uma funcionária da casa que perambulava por ali.
Nada feito. Horas depois, ensaio quase terminado, a atriz
cruza com um sujeito de crachá: “Por favor, o senhor sabe de
quem é aquela obra de ferro?”. A dúvida se desfaz na hora; “a
obra, sem título, é de José Bechara”. Ao que Mariana, feliz,
emenda: “Ah, é do Bechara, claro! Ele também é meu amigo”.
A paixão pelas artes plásticas começou ainda adolescente,
estimulada pelos pais, o advogado Pedro e a fonoaudióloga
Fátima, eles próprios frequentadores assíduos de exposições.
“Lembro até hoje da primeira vez que fui a uma edição do
[projeto de intervenções urbanas em São Paulo] Arte Cidade,
tinha uns 15 anos e estava com uma amiga”, conta a atriz. “A
viagem começava já no vagão, na Estação da Luz, quando o
trem entrava em movimento. Na janela, uma obra de arte ia
se formando instantaneamente.” Hoje, 20 anos depois, além
de algumas obras de arte em casa, Mariana também coleciona
“O MEU RETRATO MAIS BONITO”, DIZ MARIANA SOBRE A FOTO
DA SÉRIE CONTRE JOUR, DO ARTISTA VICENTE DE MELLO
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PERSONNALITÉ
MARIANA XIMENES
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1
“SER ATOR É
QUERER DIZER
ALGUMA COISA...
PROVOCAR,
INSTIGAR”
“PERDI A CONTA
DE QUANTAS
VEZES FUI PARA
INHOTIM. É UM
LUGAR MÁGICO”
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Falou também sobre os aniversários que já comemorou em
lugares inusitados – uma vez num barco nas Ilhas Cagarras
e outra numa cachoeira no Horto, às 7 da manhã, levando um
brunch e uma toalha na mochila. “Eu desfruto da cidade”,
explica, “sou uma paulista apaixonada pelo Rio. Subo a Pedra
da Gávea, vou à Floresta da Tijuca. Amo praia. Tenho até
minha própria prancha de stand-up paddle”. Seu carro só sai
da garagem para ir ao Projac; no resto do tempo, anda a pé e
de bicicleta pela Gávea, bairro onde mora há dois anos. Antes,
em Ipanema, “uma delícia de lugar”, viveu com o produtor
de cinema Pedro Buarque de Hollanda, com quem foi casada
dos 20 aos 28 anos, e com a mãe, depois da separação. Às vésperas do Carnaval deste ano, Mariana foi à quadra da Portela
e sambou ao lado do novo namorado, um empresário paulista, como “pinto no lixo”, diziam os jornais no dia seguinte.
Flâneur, sim. No entanto, mais do que da rua, Mariana
parece gostar de gente. Promove jantares com amigos em
casa para debater ideias, arte, política etc. Quando pode, vai à
casa do vizinho jornalista Jorge Bastos Moreno, comentarista
político de O Globo, onde são famosos os encontros do mesmo
gênero. Lá, num desses convescotes, conheceu o escritor e
imortal da Academia Brasileira de Letras Zuenir Ventura, 83
anos, autor de “1968 — O ano que não terminou”, obra que havia lido recentemente. “Mariana é interessadíssima, antenada,
um papo superagradável”, diz Zuenir. “Está ligada em todos os
movimentos. Conversamos horas sobre cinema, literatura… E é
muito natural, sem arrogância ou preocupações com a própria
imagem, algo que se esperaria de uma atriz tão famosa.”
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ARQUIVO PESSOAL
PESSOAL
ARQUIVO
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1. MARIANA COM ZUENIR VENTURA 2. DANÇANDO NA QUADRA DA
PORTELA 3. INTERPRETANDO A VILÃ CLARA DA NOVELA PASSIONE
4. A PEQUENA MARIANA XIMENES NOS ANOS 80 5. OUTRA OBRA DE
VICENTE DE MELLO, DA SÉRIE O CINEMATÓGRAFO 6. SE PREPARANDO
PARA VIVER A TRAPEZISTA MARGARETE NO FILME O GRANDE
CIRCO MÍSTICO, DE CACÁ DIEGUES 7. COM O ÍDOLO DE INFÂNCIA
JASON PRIESTLEY, COM QUEM ESTRELARÁ O FILME ZOOM
8. DESBRAVANDO A ÍNDIA NO RÉVEILLON DE 2015
De alguns artistas, é ao mesmo tempo admiradora e musa. O fotógrafo carioca Vicente de Mello fez um dos seus retratos mais
bonitos, na opinião da atriz, com uma Rolleiflex. Os dois viajavam
pelo Recôncavo Baiano, ao lado da artista Adriana Varejão, e um
dia, caminhando, passaram por uma construção abandonada. “Tinha um patamar e umas árvores, e eu pedi para ela subir ali. Ela
foi, fez um movimento que dá a sensação de que está se jogando
ou caindo, e indicando uma rosa dos ventos. Foi tudo muito rápido, e ela desceu toda feliz. É alguém que se dispõe naturalmente,
sem frivolidades, generosa. Tem uma liberdade própria”, explica
Vicente. “Fala de arte com uma esperteza sensacional, pergunta
o que você acha da questão, tem curiosidade pela opinião do outro.” Com Varejão – hoje casada com o ex-da atriz, Pedro Buarque
de Hollanda –, Mariana visitou Inhotim, em Brumadinho (MG),
instituto que abriga uma das mais importantes coleções de arte
contemporânea nacional, antes mesmo da inauguração. “Perdi a
conta de quantas vezes já fui”, diz. “É um lugar mágico.”
Além de arte, Inhotim tem também de sobra outra coisa que
a atriz adora: árvores. Como na casa da arquiteta Lina Bo Bardi,
em São Paulo, “onde há árvores plantadas por ela mesma há 50,
60 anos”. Lá Mariana visitou uma exposição, em 2013, com uma
série de instalações. Uma delas, de Cildo Meirelles, ela considera
inesquecível: “Ele deixou uma máquina de café ligada direto e o
cheiro invadia o ambiente, enquanto uma gravação com a voz do
marido dela, Pietro, dizia ‘Lina, va fare un caffè’. Muito legal, você
se transportava para aquele tempo. E a casa, suspensa por pilotis,
fica na altura das copas das árvores. Como ela é toda de vidro,
você vê a paisagem. Quer mais arte que as copas das árvores?”.
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“SOU UMA
PAULISTA
APAIXONADA PELO
RIO DE JANEIRO.
EU DESFRUTO
A CIDADE”
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GIULIANA ROMANNO / MANUFACT / GIOELLI PANTALENA PARA VILLA EFFETTI / VIRZI DELUCA / ARON & HIRSCHEL / LULI MARTINS
AGRADECIMENTOS: FUNDAÇÃO CIDADE DAS ARTES - WWW.CIDADEDASARTES.ORG / WYMANN / REINISCH & GAVA / AREZZO / FRANCESCA DIANA ROMANA
PERSONNALITÉ
MARIANA XIMENES
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PERSONNALITÉ
O amigo artista plástico Delson Uchôa define Mariana em
poucas palavras: “Uma diva contemporânea sem fricote”,
brinca o pintor, que vive na Praia de Ipioca, a 20 quilômetros de Maceió. “Ela passou um réveillon aqui em casa, há
uns dois anos, e fiquei impressionado com sua capacidade
de fazer amizades.”
A atriz lembra dessa e de outras viagens com saudades.
Quase sempre atraída pela natureza, já fez um safári na
Tanzânia — e viu uma leoa e seis filhotes devorarem um
búfalo — “sim, gosto de lugares exóticos” . No ano passado, foi a Alter do Chão, no Pará, e passou seis dias num
barco, dormindo em rede. Fica “muito emocionada” a cada
visita a Fernando de Noronha. Recomenda a qualquer um
ir a Nova York no fim de abril para ver o espetáculo das
cerejeiras floridas no Jardim Botânico do Brooklyn. Na Índia, dormiu em tendas, navegou rios, andou em elefantes e
camelos. Mas também comeu e dançou com novos amigos
indianos, “um casal que, se eu não tivesse conhecido, não
teria me levado num dos castelos mais lindos que já vi”.
Quinze dias não foram suficientes e a deixaram ainda mais
curiosa sobre o país. “Recomendo mais tempo. Se eu pudesse, ficava por lá. Mas precisava voltar para trabalhar.”
Há cerca de um ano longe da TV, Mariana está se dedicando ao cinema. Em 2015, estreia três filmes, entre eles
Zoom, primeiro do diretor Pedro Morelli, ao lado de Gael
García Bernal e Jason Priestley, o astro da série Barrados
no baile, “meu ídolo de adolescência!”, se diverte.
A artista se diz disciplinada e dedicada: “Sem gostar de
estudar, o ator não vai longe”. Desde 2004, a psiquiatra e
coach de atores Katia Aschcar é sua parceira fundamental.
“Nosso trabalho mais marcante foi a psicopata Clara, de
Passione, uma difícil composição. Ela tinha três personalidades diferentes. Foram horas e horas de dedicação. Estudamos cena a cena, da interpretação e compreensão do
texto, intenções e subjetividade”, lembra Katia, para quem
Mariana, “com seu talento e confiança, executa de maneira brilhante o trabalho diante das câmeras ou no palco”.
Agora, a dupla está engajada na composição de Margarete,
a trapezista de O grande circo místico, filme de Cacá Diegues. A preparação inclui aulas de trapézio diárias: “Para
compreender essa personagem, eu preciso fazer, entender
a força, o cansaço, a disciplina dela”, comenta Mariana.
“Tudo isso também é parte do meu próprio caminho, da
minha trajetória.”
MARIANA XIMENES
_
“No meu caos,
eu me entendo”
Uma pasta de elásticos verde, simples,
guarda um caderno, canetinhas coloridas,
a imagem de uma escultura sacra impressa
e o roteiro do filme O grande circo místico,
onde se lê, com a letra de Mariana Ximenes,
“Margarete”. A personagem do filme de
Cacá Diegues é uma trapezista devota de
Santa Teresa D’Ávila, católica fervorosa, que
No caderninho, marcadores de página
indicam o lugar de temas como “Filmes” e
“Livros”, e há anotações esparsas, aparentemente sem ordem, de ideias que Mariana
tem para a construção da personagem. “No
meu caos, eu me entendo”, ela brinca. O
que a atriz faz é documentar, desde os primeiros papéis que interpretou na vida, o seu
processo criativo. Para cada personagem,
uma pasta. Em outro caderninho, quando se
preparava para o filme Mãos de cavalo, com
estreia prevista para este ano, e precisou
aprender a escalar, deve ter anotado um
pensamento do instrutor que a marcou bastante: “Ele perguntou: ‘você sabe qual é o
principal objetivo do escalador?’. A resposta
simples é ‘chegar no topo’. Mas ele disse:
‘Errado. É percorrer o caminho. Isso é o mais
importante’. Achei tão lindo isso”.
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NO ALTO, A PASTA E O CADERNO COM O MATERIAL DE PREPARAÇÃO DE MARIANA PARA O FILME O GRANDE CIRCO MÍSTICO
E ISABELA SODRÉ / STYLING: SU TONANI / PRODUÇÃO DE MODA: IGOR MIGON / BELEZA: RICARDO TAVARES
por um estupro.
PRODUÇÃO EXECUTIVA: KIKA PEREIRA DE SOUSA / PRODUÇÃO: FLÁVIA RIBEIRO / PRODUÇÃO RIO: ANA HORA
vê o sonho de casar virgem interrompido
errados. O que importa é a trajetória em si. “Cada um faz a sua.
Cada indivíduo tem uma identidade no seu dedão, cada um é
único. Nem eu estou certa, nem o outro está errado. Aprendi,
com o meu trabalho, a não julgar ninguém.”
Em casa, a atriz tem algumas peças, “muito menos do
que gostaria, claro”, de estrelas como Vik Muniz, Ernesto
Neto, Adriana Varejão, Ângelo Venosa, Delson Uchôa, Nelson Leirner, Cildo Meirelles, Marcos Chaves, entre outros.
São quase todos seus amigos. Inclusive Leirner, 82 anos, de
quem ficou próxima quando participou de um trabalho assinado por ele. “Convidei Mariana para ser figura principal na
capa de um caderno feminino que fiz a convite do jornal O
Globo. Imediatamente houve uma empatia muito grande e
nos tornamos amigos”, conta Nelson. “Conversamos bastante sobre arte, cinema, teatro, televisão… Ela é muito culta.
Tem alguns trabalhos meus, pequenos, e em datas significativas sempre mando algo feito por mim.” Mas Mariana recusa o rótulo de colecionadora. Rejeita ainda mais o carimbo
de “entendida”. “Tenho medo de dizer que entendo de arte
porque eles, os artistas, estudaram muito e eu não. Prefiro
dizer que sou apreciadora. Mas uma grande apreciadora”,
diz, sorrindo.
A conjugação arte e natureza também já levou Mariana algumas
vezes ao Storm King Art Center, parque de esculturas a 1 hora
e meia de Manhattan, “onde tem um Richard Serra, gigantesco,
Joseph Beuys… você anda pela natureza e de repente vê uma
escultura enorme. É um passeio maravilhoso”.
Em Nova York, Mariana seguiu os passos da poeta e cantora
americana Patti Smith, descritos por ela no livro Só garotos, no
qual narra sua juventude nova-iorquina ao lado do fotógrafo
Robert Mapplethorpe. “Anotei as referências que ela dá no livro,
fui aos lugares que ela foi naquela época, e por fim consegui ir a
um show”, conta, orgulhosa. “É uma brincadeira de estímulos,
de curiosidade, de inquietude. Se for algo que me mobiliza e me
emociona, vou a fundo na pesquisa.” Foi assim também com a
obra do artista irlandês Francis Bacon, de quem é admiradora:
“Já gostava do Bacon e comecei a pesquisar toda a obra, fui atrás
das fontes de inspiração dele”.
Uma das principais atrações para Mariana nas obras de arte
são exatamente as fontes de inspiração dos artistas – e que acabam se tornando um pouco as suas também. “Me interesso pelo
processo criativo. Como ele chegou nesse raciocínio, o que ele
está lendo, quais são as referências, o que o motivou?” Em matéria de caminhos percorridos, tanto faz, para ela, se são certos ou
A ATRIZ PAULISTANA POSA AO LADO DE UMA
ESCULTURA DE FERRO FEITA POR SEU AMIGO JOSÉ
BECHARA NA CIDADE DAS ARTES, NO RIO DE JANEIRO
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Baixe a Revista Personnalité no tablet
e assista ao vídeo com Mariana Ximenes
POR Joselia Aguiar
REUNIÃO
Neta de Dorival, filha de Danilo e sobrinha de Nana, Alice Caymmi
esmiúça seu baú de lembranças para buscar no legado familiar
os ingredientes da música que produz
DE FAMÍLIA
RICARDO TOSCANI/DIVULGAÇÃO
A voz grave, parte do repertório e o sobrenome
identificam Alice: é uma Caymmi. A cantora
nasceu envolta em música e teve lugar para levar
adiante a vocação. Mas não é porque segue o cânone
que a neta de Dorival (1914-2008), filha de Danilo e
sobrinha de Nana tem sido apontada como um dos
nomes mais interessantes da MPB. Ao contrário.
O jeito particular da artista de 25 anos se alicerça
justamente na transgressão, uma combinação ousada
de arranjos, interpretação, figurino e maquiagem.
Logo nota quem escuta seu segundo disco, Rainha
dos raios. Ela reúne de Gil e Caetano a Arto Lindsay,
MC Marcinho e Michael Sullivan. A marca da personalidade também nota quem a assiste em shows ou
no DVD homônimo. Com cabelo descolorido e piercing, sua apresentação é dirigida por Paulo Borges,
idealizador da São Paulo Fashion Week.
À música, Alice vem acrescentando o que aprendeu no teatro (é formada pela PUC-Rio), nas exposições que sua mãe, Simone, que foi cantora e atriz e
ALICE CAYMMI INTERPRETA CÁSSIA ELLER EM
EPISÓDIO DA SÉRIE CANTORAS DO BRASIL, EXIBIDO
PELO CANAL BRASIL, EM NOVEMBRO DE 2014
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hoje exerce a psicologia, a ensinou a frequentar. Desde
menina canta, compõe e toca violão. Hoje também
desenha e pinta. Diz que tem quadros prontos, mas
“experimentações”, nada que pensa em expor.
“Minha família foi muito importante na minha
formação musical, sobretudo na artista que sou
hoje”, explica. “Ela me deu liberdade para que pudesse ser não só mais uma Caymmi, e sim Alice.”
A cantora vive uma fase de agenda cheia e busca
por experiências. “Estou sempre procurando outras
referências, não somente brasileiras. É uma administração estética do trabalho, penso na plasticidade
junto ao som, na desconstrução tanto da imagem
quanto da música.” Tudo tem acontecido rápido. A
estreia foi em 2012. Desde então amadureceu, como
diz a crítica. A última, ela soube pela TV, quase por
acaso: sua música “Como vês” virou tema da minissérie Felizes para sempre?, da Rede Globo. Pelas fotos
retiradas do baú de Alice Caymmi, dá para dizer que
nem foi tão rápido assim. Tem já 25 anos.
“NO MEU ANIVERSÁRIO DE 1 ANO, NO COLO DO MEU AVÔ”
“Lembro-me, entre as cenas que guardo desses primeiros anos, de ver o meu avô pegar no violão e cantar.
Ouvir sua voz era de um impacto grande, aquela voz forte, grave como seria a de todo mundo da família.
A foto é do meu aniversário de 1 ano. Com 1 ano você nem sabe exatamente quem é, não consegue
interagir direito, então eu não devia estar muito feliz com a festa. Mas certamente ele estava. Meu
avô adorava criança. A cantar a gente não sabe quando começa, mas a tocar violão foi com 10 anos. Já
adolescente, mostrei o que fazia para ele, que dizia gostar, achava bonitinho. Por um tempo me distanciei
de sua música para me aproximar de novo, anos mais tarde. Foi quando parei para ouvir um box com
toda sua obra. Fiquei muito impressionada e emocionada, um momento importante para mim. No show
Dorivália, ano passado, fiz uma releitura do meu avô, do meu jeito.”
“NA INFÂNCIA, O QUE ME DEIXAVA MAIS FELIZ ERA FICAR NO ESTÚDIO DO PAPAI”
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“TOM JOBIM ME COLOCAVA NO COLO E ME DEIXAVA BRINCAR NO PIANO”
ARQUIVO PESSOAL
“Das coisas que mais me deixavam feliz na infância, ficar no estúdio que o papai tinha em casa era especial.
Dá para ver como estou feliz nesta foto, era o auge da minha vida. O neném fica louco com o teclado.
Ele me segurava e me botava para tocar dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó. Fazemos apresentações juntos desde os
meus 15 ou 16 anos. Temos uma química muito boa, e ele diz que minha presença o deixa mais calmo no palco.”
“A minha mãe quando estava grávida de mim fazia parte da Banda Nova, do Tom Jobim. E meu pai
também. Então, meu contato com a sua música é anterior a tudo! Foi a primeira coisa que ouvi, até antes
do meu avô Caymmi. E havia outro motivo de proximidade também. Meu avô materno, pai da minha
mãe, casou com a Helena Jobim, irmã do Tom, nesse que foi o segundo casamento dele. Tenho memória
olfativa forte: do charuto, do chão de madeira da sala de ensaio. Lembro que me colocava no colo e me
deixava mexer no piano, coisa que raramente deixava alguém fazer, porque era um piano valioso, caro.”
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“QUANDO A FAMÍLIA SE REÚNE, A GENTE BOTA A TIA-AVÓ DINAIR PARA CANTAR”
“Meu tio Dori é um grande maestro e arranjador. Lembro-me de vê-lo regendo, controlando tudo. A sua
musicalidade se desenvolveu com um tipo de estudo diferente do que a família seguiu. Foi uma grande influência
para mim quando comecei a tocar violão e a compor. Quis entender a obra dele, conhecer as semelhanças e
diferenças. Na foto, ele toca violão para minha tia-avó Dinair, que já passou dos 90, cantar. Muito lúcida, ela tem
a voz da família. Quando a gente consegue reunir a família, a gente bota a tia-avó para cantar.”
“TINHA 12 ANOS EM MINHA PRIMEIRA GRAVAÇÃO COM A TIA NANA”
“Vovó [Stella Maris] tinha uma voz maravilhosa, foi uma grande cantora de rádio, época em que
conheceu meu avô. Cantava muito em casa fazendo as coisas. De gravação dela, a única que conheço é
‘Canção da noiva’, no disco Caymmi visita Tom. Não sei se existem outras. Tinha um gênio forte e um
humor muito interessante. Uma verdadeira matriarca: estava sempre muito próxima de todo mundo,
cuidava da família com muita força. Gostava que eu cantasse. Mas ninguém ficou do lado de ninguém
dizendo ‘aprenda’, muito menos fizeram isso comigo. Se via inclinação, deixava fluir.”
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ARQUIVO PESSOAL
“VOVÓ TINHA UM GÊNIO FORTE E UM HUMOR MUITO INTERESSANTE”
MOACYR LOPES JUNIOR/FOLHAPRESS
“Minha tia Nana tem uma voz rara, assim como era a do meu avô. A foto registra a minha primeira
gravação. Uma música chamada ‘Seus olhos’, da minha irmã Juliana Caymmi, que é compositora.
Eu tinha 12 anos, saí direto do colégio. Gravei o disco e depois cantei no Canecão com ela.
A minha mãe me acompanhou nesse dia e está na outra foto. Começou como cantora e atriz,
mas largou a trajetória artística para ser psicóloga. A minha relação com as artes plásticas se
deu muito por causa do seu estímulo – desde que eu era pequena, me levava para
visitar exposições, cresci com essa curiosidade, essa inclinação.”
“ESTOU COM O MEU PAI, NO ENCERRAMENTO DO PAN-AMERICANO DE 2007”
“Estamos [com o pai Danilo] no Rio de Janeiro, durante o encerramento dos Jogos Pan-Americanos de
2007, pouco antes de eu fazer vestibular para Direito. Passei e um ano foi o suficiente para me desiludir
e entender que não nasci para aquela carreira. Então, passei para o teatro.”
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MARIANA XIMENES PERGUNTA:
O QUE
MAIS
MOTIVA
VOCÊ NO
TRABALHO?
32
LUCAS FONSECA RESPONDE:
A ideia de trabalhar com espaço já é convidativa o suficiente para
gerar uma motivação diária. A minha real motivação deriva de
um sonho de criança e assim segui até conseguir realizá-lo. Mas
minha maior motivação sempre foi o fato de poder acordar e saber
que estava criando o incrível a cada dia. Tento aplicar a mesma
motivação do incrível para cada atividade que faço na vida. Não
precisa ser necessariamente relacionada com o espaço.
33
POR Salvador Nogueira ILUSTRAÇÕES Vapor 324
O CÉU
NÃO É
O LIMITE
O cientista Lucas Fonseca foi o
único sul-americano a participar
da missão europeia que pousou
uma sonda em um cometa a 500
milhões de quilômetros da Terra
em 2014. Agora, pensa na próxima:
“Quero mandar um satélite
brasileiro para a Lua”
PERSONNALITÉ
LUCAS FONSECA
N as primeiras horas da tarde do dia 12 de novembro de 2014, uma quarta-feira, o
engenheiro Lucas de Mendonça Fonseca, 30 anos, perdeu alguns de seus poucos fios de cabelo. Ele acompanhava, do Brasil, pela internet, o tenso desenrolar de
acontecimentos durante a primeira tentativa de pouso de um artefato humano na
superfície de um cometa. Junto ao pequeno módulo Philae, levado até o cometa 67P/
Churyumov-Gerasimenko pela sonda europeia Rosetta, a uma distância de 500 milhões de quilômetros da Terra, voavam os frutos de três anos de trabalho do brasileiro
na Europa. Isso sem falar numa vida inteira de sonhos espaciais. “É difícil dizer quando começou. Sempre tive interesse por espaço”, conta Lucas. “Minha mãe e meu pai
lembram que eu dizia, desde pequenininho, que não queria ser astronauta, que o que
queria era construir uma nave.” Nascido em 1984, com fala mansa e expressão jovial,
Lucas define sua infância como a de um geek. “Com a diferença de que naquela época
não se usava esse termo, era ‘nerd’ mesmo”, diz. Fã de ficção científica, se apaixonou
por Star wars, saga criada em 1977 pelo cineasta George Lucas que reúne duas das
paixões de seu xará brasileiro: robôs e exploração espacial. “Gostava muito dos filmes,
mas hoje não estou ansioso pela estreia do próximo [prevista para dezembro]. Aliás,
não estou ansioso por filme algum.” O desinteresse pela ficção talvez tenha uma explicação: a maioria de seus sonhos infantis, ele tornou realidade.
PRIMEIRO PASSO
Ao contrário do que está incrustrado na imaginação popular, nem só de Nasa vive
a ciência que estuda o que está acima de nós. Existem projetos de sucesso bancados pela China e muitos países europeus. A própria missão Rosetta, ao custo de R$
4,5 bilhões, conta com uma equipe multinacional, estabelecida em uma base em
Darmstadt, na Alemanha.
No entanto, anos atrás, ainda moleque, os sonhos de Lucas Fonseca coincidiam
com o clichê da maioria das pessoas: qualquer interesse mais ousado pelo espaço
era sinônimo de um trabalho na agência espacial americana. Com esse ideal em
mente, o jovem iniciou sua jornada acadêmica. “Quando era estudante, não havia
no Brasil cursos de engenharia espacial”, explica. “Então, o que fazia mais sentido
era cursar mecatrônica.” Assim, em 2003, Fonseca deixou a cidade praiana de Santos, onde nasceu, e se mudou para São Carlos, no interior paulista, onde se formaria
em engenharia mecatrônica pela Universidade de São Paulo. No segundo ano de
faculdade, já estava enviando currículos para a Nasa. A resposta vinha, polidamente, com uma negativa: as portas estavam fechadas.
No Brasil, o setor aeroespacial é ingrato – as oportunidades são poucas e, no geral, resultam em mais frustração que resultados. “Eu já sabia um pouco sobre como
as coisas funcionavam por aqui. Em 2006, sem chance nos Estados Unidos, acabei
indo trabalhar na indústria farmacêutica.” Empregado na Johnson & Johnson, a
vida melhorou. O salário era excelente, a carga horária, leve. O engenheiro encontrava tempo para exercitar hobbies. Entre eles, tocar guitarra. “Mas aí olhava para
a baia na minha frente e via um funcionário mais velho, um engenheiro de 40 anos,
fazendo a mesma coisa que eu. E pensava: não quero passar o resto da vida aqui.”
O sonho da Nasa, claro, não estava morto.
_
Nas horas vagas,
montanhismo
Lucas Fonseca não é só um explorador
do espaço. Quando nos encontramos
para conversar, ele estava em meio aos
últimos preparativos para uma viagem à
Argentina. O objetivo: subir o Cerro Plata, a
cerca de 6 mil metros de altitude. É a mais
recente de uma longa série de aventuras de
montanhismo das quais ele já participou.
“Comecei muito cedo com história de
acampamentos e contato com a natureza”,
conta. “Passei por todas as fases do
movimento escoteiro. Fiz parte dos 6 aos
18 anos.” Ao subir montanhas, ele encontra
tranquilidade e paz. “Tem gente que se
ARQUIVO PESSOAL
incomoda com o isolamento. Eu gosto”, diz
36
O JOVEM LUCAS NO CABO CANAVERAL, NA FLÓRIDA (EUA), EM 1994
ENCRUZILHADAS
o fã do explorador Amyr Klink.
A guinada transatlântica veio de súbito. No fim de 2008, ao conversar com amigos e colegas, chegou à conclusão de que precisava investir numa complementação à sua formação, feita no exterior e voltada para a engenharia espacial. Recebeu o apoio da então namorada, Lia, que conheceu nos tempos de faculdade e
com quem está até hoje. “Ela disse: ‘Você tem esse sonho. Você tem que ir’.”
De início, a solução foi procurar uma bolsa europeia para estudantes de
outros continentes – a Erasmus Mundus. Duas boas faculdades vinculadas ao
programa de incentivo, na Alemanha e na Inglaterra, ofereciam mestrado em
engenharia espacial naquele ano. Lucas foi aprovado nas duas. Mas não era
exatamente lá que queria estudar. Seu desejo apontava para a tradicional Supaero (Institut Supérieur de l’Aéronautique et de l’Espace), a melhor escola de
engenharia aeronáutica francesa, localizada em Toulouse. “Em janeiro de 2009,
escrevi um e-mail para eles, que responderam: ‘Temos o curso de mestrado, mas
não estamos dando bolsa este ano. Você pode disputar uma vaga normalmente,
mas terá de pagar’.” O brasileiro não levou muito tempo para decidir. “O preço do
curso ia dar mais ou menos o valor do meu carro. Ele ia ficar pegando poeira na
garagem enquanto eu estivesse por lá, então vendi o carro e paguei os estudos.”
Não se arrependeu. “Tudo que me aconteceu depois, devo a esse curso. O método
de ensino deles lá é fantástico. Nunca vivenciei nada parecido aqui no Brasil.”
A conquista do Cerro Plata, no fim de
37
janeiro, foi o recorde de altitude de Lucas.
Mas ele vai além. Até o fim de 2015,
quer fazer a Trilha Nacional de Israel (mil
quilômetros entre desertos e cidades
históricas) e o ponto mais alto no hemisfério
Sul, o Aconcágua (6.962 metros).
“Vamos ver se consigo.”
Em casa, Lucas não desgruda dos livros.
“Acostumado a ler muito e de tudo, sempre
carrega um livro e vive em busca de
atividades que lhe permitam criar. Sejam
a letra e a melodia de uma música, um
painel de controle eletrônico para nosso
sistema caseiro de irrigação ou um delicioso
jantar”, entrega a esposa, Lia. O engenheiro
também se arrisca como mestre-cuca. “Sua
especialidade é salmão ao forno com queijo
de cabra e vagem francesa.”
Baixe a Revista Personnalité no tablet
e veja a receita favorita do Lucas
_
A missão
PERSONNALITÉ
A sonda Rosetta foi lançada no dia 2 de março de 2004 da base de Kourou, na Guiana Francesa, a um custo de R$ 4,5 bilhões. Depois de dez
O MESTRADO NA FRANÇA
Durante a estadia na França, de 2009 a 2010, Lucas decidiu buscar auxílio do astronauta brasileiro Marcos Pontes. “Não o conhecia pessoalmente, mas era alguém que estava
na Nasa e podia me ajudar.” Depois de três meses do primeiro contato, Pontes escreveu
a Lucas: “Acho uma ótima iniciativa essa sua de querer vir para a Nasa, mas quero te
levar para o programa espacial brasileiro. Precisamos de jovens como você”. Pontes
se recorda das tentativas do cientista. “O Lucas é um rapaz brilhante”, diz. “Seria uma
excelente adição ao programa brasileiro e por isso apresentei o nome dele à Agência
Espacial Brasileira [AEB], mas ainda é difícil desenvolver a carreira de engenheiro espacial no país. Muitas vezes, aos jovens resta buscar experiência e oportunidades fora.”
Algum tempo depois da conversa com o astronauta, Lucas recebeu uma ligação.
Era Carlos Ganem, então presidente da AEB. Ele queria costurar os arranjos para
repatriar Lucas. Ofereceu um estágio prévio de um ano na empresa aeroespacial
europeia Astrium. Ficou também acertado que um órgão do governo brasileiro, o
CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico),
iria reembolsar os gastos que o cientista havia tido com os estudos na França. Só que
nada disso aconteceu. “Em defesa do Ganem, ele falou que ia ligar para o presidente
da Astrium, e ele de fato fez isso. Mas, de resto, nada andou”, lembra.
Em 2011, o momento de apresentar a dissertação do mestrado se avizinhava, e Lucas precisava encontrar um lugar que o abrigasse. Na Supaero, o trabalho final dos alunos é realizado dentro de alguma agência ou empresa espacial. Eis que surgiram duas
opções. Em contato com a astrofísica brasileira Duília de Mello, radicada nos Estados
Unidos, foi oferecida a Lucas a chance de realizar um pequeno projeto que emparceirava a Universidade Católica da América e... a Nasa. Depois de tanto orbitar seu destino
dos sonhos, parecia hora de um pouso de sucesso dos Estados Unidos. Mas uma outra
opção despontou: Lucas poderia ir à DLR, a agência espacial alemã, e trabalhar com um
projeto então não muito conhecido, mas ousado e promissor, a missão Rosetta.
anos de viagem, a Agência Espacial Europeia conseguiu, pela primeira
vez na história, enviar um aparelho à superfície de um cometa. O pouso
do módulo Philae no astro aconteceu dia 11 de dezembro de 2014, às
13h35, 7 horas após descolar-se da nave-mãe, a Rosetta.
A TRAJETÓRIA
O pouso aconteceu a 500 milhões
de quilômetros da Terra. Desde
2004, a Rosetta percorreu mais
de 6 bilhões de quilômetros.
A SONDA ROSETTA
Com 2,8 metros de altura por
2,1 de largura, a sonda pesa 3
toneladas e está acoplada a
painéis solares de 14 metros de
extensão. Foi aparelhada com
11 instrumentos de medição
que buscarão indícios de água
e carbono, fundamentais para
a origem da vida.
O COMETA NO MEIO DO CAMINHO
Diante do dilema, Lucas refletiu: “Por um lado, era a chance de finalmente realizar
o sonho e trabalhar na agência espacial americana. Mas era apenas uma ideia, uma
vontade, algo que podia nem se materializar”, explica. “Por outro lado, a Rosetta era
uma espaçonave que já estava no espaço, era uma missão concreta. Acabei optando
pela DLR.” E assim o sonho americano começou a dar lugar à realidade alemã.
Quando Lucas chegou à Europa, os engenheiros estavam diante de um grande desafio. Como pousar num cometa uma espaçonave originalmente pensada para descer
em outro, muito menor? A Rosetta fora projetada na década de 1990. Seu alvo era o
cometa 46P/Wirtanen. Todos os componentes tinham sido desenvolvidos para esse
objeto. Mas, quando houve um problema com o foguete que ia levá-la ao espaço, foi
preciso adiar o lançamento. O sistema solar não costuma perdoar atrasos. Objetos celestes mudam de lugar com o tempo e, uma vez perdida a janela de lançamento, torna-se impossível repetir a tentativa – pelo menos por um longo período.
A alternativa encontrada foi buscar outro cometa. O 67P/Churyumov-Gerasimenko – astro dez vezes maior. Os desafios gerados pela mudança seriam enfrentados
durante a longa jornada de dez anos até a Rosetta chegar lá – entre 2004, momento
do lançamento, e 2014, a esperada inserção orbital. Caberia aos engenheiros da DLR,
38
O COMETA
O MÓDULO PHILAE
67P/Churyumov-Gerasimenko
Equipado com painéis solares,
foi descoberto em 1969.
pesa 100 quilos e se assemelha a
Por ser objeto ativo e com
uma máquina de lavar roupa, com
pouca gravidade, dificultou
1 metro de altura. Ele recolheu
os cálculos da trajetória de
nas primeiras 64 horas desde o
ataque. A sonda passou
pouso dados gerados a partir de
seis anos em órbita elíptica
amostras de solo e fotografias,
ao redor do Sol e usou a
enviados mais tarde para a sonda
gravidade da Terra e de Marte
em órbita e depois reenviados
para tomar impulso para o 67P.
para a Terra, a uma velocidade
de 28 kbps (a taxa é metade da
atingida por uma conexão de
internet discada).
PERSONNALITÉ
LUCAS FONSECA
40
41
_
Philae quicou
antes do pouso
O ataque histórico do módulo ao solo
do cometa foi bem-sucedido, embora
acidentado. O processo levou 30 minutos,
entre o primeiro contato e o repouso, a
1 quilômetro de distância do local
planejado. Nesse intervalo, o Philae quicou
e acabou se estabelecendo em posição
desconhecida, na face escura do 67P.
A bateria solar do módulo se esgotou após
64 horas de operação, como esperado
pelos cientistas. Nesse intervalo, enviou
dados para a Rosetta, retransmitidos ao
comando em Terra, o que configurou o
sucesso da operação. Em modo de hibernação, o Philae deve ser reativado entre
maio e junho, quando receberá luz solar
novamente, por conta da posição
do cometa em relação ao Sol.
CÂMERA ACOPLADA À SONDA ROSETTA REGISTRA
O POUSO DO MÓDULO PHILAE NA SUPERFÍCIE DO
COMETA 67/CHURYUMOV-GERASIMENKO
PERSONNALITÉ
LUCAS FONSECA
responsáveis pelo módulo Philae, analisar as variáveis e preparar um protocolo
automatizado de pouso de acordo com as análises e simulações realizadas na Terra.
“O foco do Lucas era modelar a dinâmica do módulo de pouso durante a separação,
a descida e a chegada ao solo”, explica Koen Geurts, coordenador da missão Rosetta
na DLR. “Como foi visto no pouso real, esses aspectos foram fundamentais para o
Philae.” Lucas era o único não europeu na equipe. “Uma coisa interessante é que,
nas simulações, a gente não tinha a mínima ideia do formato do cometa. Tudo que
a gente desenvolveu era com base em como imaginávamos que ele fosse.” O chute
inicial apostava num astro com o formato de uma batata. Descobriram, mais tarde,
que o cometa se assemelhava a um pato de borracha. “Foi um trabalho de três anos
resumido em 7 horas. Vem muito forte a sensação de que participei de algo grande.”
Ao fim de 2012, Lucas tinha oferta da DLR para continuar por lá. Mas sentiu
que já havia cumprido sua parte. Precisava dar mais atenção a duas outras paixões
da sua vida que ficaram relegadas a um segundo plano durante sua jornada espacial
europeia – a esposa, Lia, e a vontade de empreender.
CERVEJA ARTESANAL
Apesar de jovem, Lucas já tem vivência no mundo dos negócios. Encorajado pelo
espírito de uma geração que transformou o mundo (e ficou rica no processo) sem
sair da garagem de casa, ele não tem medo de arriscar. “Já montei uma porção de
negócios. Quebrei umas quatro, cinco vezes. E, em umas duas vezes, podemos
dizer que deu certo.”
Os ramos são os mais variados. Ele já se meteu com cervejas artesanais: “Ainda
produzo as que bebo, mas estou longe de ser um mestre cervejeiro. Sou apenas um
aprendiz que copia a receita dos outros”. Hoje tem negócios de estética: “Minha
mulher mencionou uma pessoa que trabalhava com micropigmentação e precisava
construir uma máquina, e eu fui lá ver o que era”. Segue, é claro, envolvido com a
engenharia aeroespacial. Ao voltar da Europa com a Rosetta no currículo, criou em
2013 a Airvantis em São Paulo. “Em tese, é uma empresa de pesquisa e desenvolvimento na área espacial”, conta Lucas. “Mas acaba que, pelo menos no momento,
a gente só consegue participar de alguns editais do IAE [Instituto de Aeronáutica
e Espaço] ou do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Coisa técnica só.
Difícil fazer pesquisa e desenvolvimento no Brasil.”
O diagnóstico de Lucas é que o mercado brasileiro tem a tendência de absorver
bem apenas serviços, o que trava o progresso da indústria espacial. “Se você quer
desenvolver satélites com aplicações em agricultura, ninguém quer saber. Mas se
você oferecer o serviço de monitoramento agrícola, aí consegue vender. O comprador não está nem aí se você vai fazer com balão, com avião, com satélite. Ele quer o
serviço, mas não se interessa pelos meios.”
É um problema maior do que parece, porque os spin-offs (produtos derivados)
da pesquisa espacial costumam aparecer somente num segundo momento, depois
que você já desenvolveu a tecnologia. Infelizmente, segundo Lucas, o Brasil ainda
não entendeu isso. Mas ele não desanima. Ao perguntar ao engenheiro qual é sua
grande ambição, ele não titubeia. “Mandar um satélite brasileiro para a Lua.” Os
sonhos espaciais de Lucas Fonseca renasceram no Brasil.
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POR Ricky Hiraoka FOTOS Camila Fontana
ATRÁS
DA
CORTINA
Tão essenciais quanto os artistas, escolhemos sete
profissionais que trabalham nos bastidores para
que os espetáculos apresentados pela Osesp na
Sala São Paulo sejam sempre impecáveis
EM SENTIDO HORÁRIO, A PARTIR DA ESQUERDA: NIL CAMPOS,
ANTONIO CARLOS NEVES, IVONE PONTES, XISTO OSVALDO ALVES,
ERIK KLAUS, DANIELA MARCONDES, ANALÍA BELLI
IVONE PONTES, camareira
“Comecei aqui junto com a Sala São
Paulo em 1999, me lembro muito do
dia da inauguração. Foi muito glamoroso. Teve até maquiador para os
funcionários. Gosto daqui por não
ter rotina. Cuido da alimentação,
do vestuário, da montagem dos camarins e ainda socorro os músicos
nas emergências. Se uma calça rasga
minutos antes do concerto, vou lá
e costuro. Se o músico esquece a
casaca em casa, dou um jeito de
providenciar uma. Teve uma vez
que emprestei meu uniforme para
uma solista. Tinham avisado a moça
que a roupa deveria ser branca, mas,
na verdade, era preta. Aí, ela usou
minha roupa de trabalho. Já até
dei um jeito no vestido de dona Lu
Alckmin, que descosturou durante
um evento cheio de autoridades.
Comigo não tem trabalho que não
seja feito. No começo de tudo, o
maestro Neschling obrigava a gente
a ver os ensaios da orquestra. Isso
me fez tomar gosto por esse tipo de
música. Hoje, já não consigo ouvir
mais samba. E olha que eu adorava!
Por conta do contato que tenho com
músicos, inscrevi minha filha para
participar do Coral da Gente, de
Heliópolis. Lá, ela aprendeu a tocar
viola e canta no coro. Ela até já se
apresentou aqui na Sala São Paulo.
Um orgulho para mim!”
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ANALÍA BELLI, gerente de divisão operacional
ERIK KLAUS, supervisor de acústica
“Sou pianista de formação, mas nunca fui boa musicista. Aí, deixei os palcos e fui trabalhar com produção de música erudita.
Em 2009, estava pensando em voltar a morar na Argentina, país
onde nasci, mas antes mandei um currículo para a Osesp. Deu
certo. Fui chamada e comecei aqui em março daquele ano. Desde então, acompanho a rotina dos músicos, alugo instrumentos,
analiso a programação e vejo de que materiais eles vão precisar,
planejo as viagens, contrato transporte, enfim, dou todo o suporte para a orquestra. Além disso, lido com os músicos estrangeiros
que se apresentam aqui. Graças ao trabalho conheci ídolos como
a Mitsuko Uchida, pianista japonesa que trouxe o próprio piano
para a Sala São Paulo. Ela é para mim o que Justin Bieber é para
uma adolescente! Mas há o outro lado também. Teve uma vez
que um cantor não apareceu na hora combinada. Faltavam 2 horas para o espetáculo e nada. Fomos até o hotel, ele não atendia,
então, arrombamos a porta e o encontramos dormindo [risos].
Ele ficou bravíssimo, mas fazer o quê?”
“Quando entrei aqui, em 2003, eu torcia o nariz para a
música clássica. Sempre fui do rock’n’ roll, sabe? Com o
tempo, comecei a apreciar os concertos. Hoje, acompanho
todos. Entrei para ser montador de orquestra e agora meu
trabalho é operar as placas que ficam em nosso teto acústico. São 15 placas, cada uma pesa 7 toneladas, e eu as movimento para equalizar o som de acordo com o espetáculo.
Nossa acústica é perfeita e as equipes técnicas das orquestras estrangeiras que se apresentam na Sala São Paulo
sempre ficam impressionadas. Aqui, o menor dos barulhos
reverbera. Na época do maestro John Neschling, ele pediu
para a orquestra parar de ensaiar porque tinha ouvido um
grilo e mandou a equipe técnica procurar o ruído. Depois
de muito procurar, acharam um grilo no fosso. O que é
interessante é que havia uma orquestra tocando, e ele percebeu que o grilo dava a entrada na hora errada. Qualquer
barulho mínimo reverbera por toda a Sala São Paulo.”
47
NIL CAMPOS, supervisor de iluminação
DANIELA MARCONDES, gerente de obras
“Durante 12 anos fui bancário, mas larguei a carreira para trabalhar em produções de teatro. Fiz de tudo: fui contrarregra,
montei palco, trabalhei com iluminação. Antes de trabalhar aqui,
nem sabia da existência da Sala São Paulo. E vim por acaso. Me
falaram de uma vaga, fiz o processo seletivo e passei. Hoje, não
me imagino longe dessa loucura que são os bastidores da Sala.
Tem músico que nem sei o nome, mas sei como ele gosta da iluminação na hora do ensaio, da altura do banco e da posição da
estante para ler a partitura. Quando saio de férias, sinto saudades da adrenalina e do desafio de montar um palco em 2, 3 horas.
O dia mais alucinante foi o réveillon de 2008 quando transmitimos ao vivo um concerto para a Europa. Foi um sufoco, pois
tivemos cinco dias para preparar tudo. Na hora, houve um efeito
especial que simulava queima de fogos de artifício e o ambiente
ficou cheio de fumaça. Foi um desespero, pois a fumaça não saía.
Corremos para abrir as portas dos camarotes, cortinas, movimentamos as placas do teto. No fim, deu tudo certo.”
“Brinco que meu trabalho é ingrato, pois minha função é cuidar da manutenção e dos reparos no prédio. Quanto menos os
frequentadores notarem nossas ações, melhor. Cabe a minha
equipe verificar iluminação, ar-condicionado, arrumar cadeiras etc. Promovo visitas guiadas com quem trabalha comigo
para eles entenderem a importância do lugar e criarem uma
identidade com a Sala. Assim, eles entendem que uma cadeira
rangendo atrapalha o concerto. Nossa jornada de trabalho é de
7 por 24. Tem sempre alguém da equipe no prédio, o que gera
casos curiosos. Não é raro quando um funcionário da madrugada me procura para contar que viu fantasmas. Eles juram
que já presenciaram uma menina andando com uma boneca
e um velhinho que passa e dá boa-noite. Por conta disso, eles
sempre andam em dupla. De manhã, também já aconteceram
fatos engraçados. Uma vez, estávamos fazendo o restauro de
um vitral e um urubu invadiu a Sala e fez um ninho. Só conseguimos tirá-lo três dias depois com a ajuda de bombeiros.”
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ANTONIO CARLOS NEVES, coordenador do centro de documentação da Osesp
“Sou maestro e músico. Estudei piano, composição e regência. Há 44 anos vejo uma partitura na
minha frente. Por cinco anos, fui coordenador dos programas educacionais da Osesp. Desde o fim de
2012, gerencio o Centro de Documentação da orquestra, que é formado por 12 músicos. Basicamente,
cuidamos da compra e do aluguel de partituras, direitos de execução das obras, direitos de gravação
(CD ou DVD e transmissão pela TV, rádio ou live streaming). Tudo que toca na sala é da minha responsabilidade. Cuido também da editora Criadores do Brasil, que disponibiliza no mercado aluguel
e aquisição de obras brasileiras e revisa, edita e grava as sinfonias de Villa-Lobos. Esse trabalho me
deu o prazer de conhecer e trabalhar diretamente com o maestro Isaac Karabtchevsky, uma grande
referência para mim. Juntos, revisamos a obra de Villa-Lobos e consertamos os erros que encontramos nas partituras. Às vezes, ficamos 3, 4 horas no telefone discutindo trechos imprecisos da sinfonia. A gente criou uma grande amizade.”
49
_
Série Osesp Personnalité 2015
Dentre os destaques da temporada, a pianista canadense Angela Hewitt, em abril, e o Quarteto Osesp sob regência de John Adams, em agosto
XISTO OSVALDO ALVES,
inspetor de orquestra
“Vamos deixar uma coisa clara: não
sou bedel dos músicos. Eu apenas
fiscalizo para que tudo esteja dentro
dos conformes: horário, uniforme,
ordem de entrada no palco. Sou militar reformado, então, disciplina é
comigo! Cada integrante da orquestra sabe de suas obrigações e não
preciso fazê-los lembrar de nada.
Vez ou outra, dou umas broncas,
mas ninguém fica bravo comigo. Se
eles passam por algum imprevisto
que possa atrapalhar o andamento
dos ensaios ou do próprio concerto,
me acionam na hora. Uma vez, um
músico me ligou da delegacia. Ele
estava a caminho da Sala São Paulo
para uma apresentação e, sem querer, atropelou um motoqueiro. Não
tive dúvidas! Corri até lá, expliquei
a situação para o delegado e me
comprometi que levaria o músico
de volta ao DP tão logo o concerto
se encerrasse para que o boletim de
ocorrência fosse concluído.”
28 MAI QUI 21H Cedro
Op. 22: O Retorno
David Müller-Schott violoncello
Mark Wigglesworth regente
JOHN ADAMS
ROBERT SCHUMANN
Measha Brueggergosman
Absolute Jest
Manfred, Op. 115: Abertura
soprano
LUDWIG VAN BEETHOVEN
Concerto para violoncelo em lá
Susa Bickler mezzo soprano
Sinfonia nº 7 em lá maior, Op. 92
menor, Op. 129
Stuart Skelton tenor
RICHARD STRAUSS
Peter Coleman Wright barítono
Uma vida de herói, Op. 40
Marcos Thadeu regente
[Strauss Essencial]
CORO ACADÊMICO DA OSESP
CORO DA OSESP
26 NOV QUI 21H Carnaúba
09 ABR QUI 21H Pau-Brasil
Seleção de Negro Spirituals
Isaac Karabtchevsky regente
Sir Richard Armstrong regente
Michael Tippett
Arnaldo Cohen piano
Angela Hewitt piano
A Child of Out Time
NIKOLAI TCHEREPNIN
HECTOR BERLIOZ
28 AGO SEX 21H Painera
O Reino encantado, Op. 39
Beatriz e Benedito: Abertura
26 JUN SEX 21H Pequiá
Alondra De La Parra regente
FELIX MENDELSSOHN-
WOLFGANG A. MOZART
Thomas Dausgaard regente
Tambuco percussão
BARTHOLDY
Concerto nº 25 para piano
Stig Andersen tenor
SILVESTRE REVUELTAS
Concerto nº 1 para piano em sol
em dó maior, KV 503
Gun-Brit Barkmin soprano
Ventanas
Menor, Op. 25
CESAR FRANCK
Denise de Freitas mezzo
EGBERTO GISMONTI
HEITOR VILLA-LOBOS
Sinfonia em ré menor,
soprano
Adágio
Sinfonia nº 9
Op. 48
CARL NIELSEN
JAN JÄRVLEPP
IGOR STRAVINSKY
Abertura Hélios, Op. 17
Garbage concerto
O pássaro de fogo: suíte —
*23 ABR QUI 21H00 Cedro
MAURICE RAVEL
SILVESTRE REVUELTAS
Versão 1919
Marin Alsop regente
Valsas nobres e sentimentais
La Noche de Los Mayas
WOLFGANG A. MOZART
RICHARD STRAUSS
As bodas de fígaro, KV 492:
Salomé, Op. 54: Parte 2
05 DEZ SAB 16H30 Mogno
Abertura
*24 SET QUI 21H00 Jacarandá
Celso Antunes regente
Marin Alsop regente
Bertrand Chamayou piano
Serenata nº 11 para orquestra
09 JUL QUI 21H Pau-Brasil
JOHANNES BRAHMS
CLAUDE DEBUSSY
de sopros em mi bemol maior,
Marin Alsop regente
Sinfonia nº 1 em dó menor,
Dois Prelúdios
KV 375
Matthias Goerne barítono
Op. 68
[Orquestração de
SERGEI RACHMANINOV
JOHANNES BRAHMS
Sinfonia nº 2 em ré maior,
Colin Matthews]
Sinfonia nº 1 em ré menor, Op. 13
Abertura trágica, Op. 81
Op. 73
ALEXANDER SCRIABIN
MARC-ANDRÉ DALBAVIE
“VEZ OU
OUTRA,
DOU UMAS
BRONCAS,
MAS NINGUÉM
FICA BRAVO”
Baixe a Revista Personnalité no
tablet e assista ao vídeo da Osesp
Concerto para Piano em Fá
14 MAI QUI 21H Carnaúba
Stimme — Para barítono
17 OUT SÁB 16H30 Jequitibá
Sustenido Menor, Op. 20
Stéphane Denève regente
e orquestra
Ragnar Bohlin regente
TORU TAKEMITSU
JOHN WILLIAMS
GABRIEL FAURÉ
Marília Vargas soprano
A Flock Descends Into the
Contatos imediatos: suíte
Pelléas et Mélisande,
Luisa Francesconi mezzo soprano
Pentagonal Garden
BERNARD HERRMANN
Op. 80: Suíte
CORO DA OSESP
CLAUDE DEBUSSY
Um corpo que cai: suíte
RICHARD STRAUSS
TOMASO ALBINONI
La Mer
JOHN WILLIAMS
O Cavaleiro da rosa,
Adágio em sol menor
A menina que roubava
Op.59: suíte
GIOVANNI BATISTA PERGOLESI
12 DEZ SÁB 16H30 Imbuia
DIVULGAÇÃO
livros: suíte
50
Para acompanhar a programação da Osesp
Acesse: itau.com.br/personnalite/experiencia
Stabat Mater
Marin Alsop regente
BERNARD HERRMANN
14 AGO SEX 21H Sapucaia
FRANCIS POULENC
Tamara Wilson soprano
Psicose: suíte intriga
John Adams regente
Gloria
MAURICE RAVEL
internacional: tema
QUARTETO OSESP
HECTOR BERLIOZ
JEAN SIBELIUS
20 NOV SEX 21H Pequiá
GUSTAV MAHLER
Sinfonia fantástica, Op. 14
Lendas Lemminkäinen,
Fabio Mechetti regente
Sinfonia nº 4 em sol maior
Le Tombeau de Couperin
51
*CONCERTO COM TRANSMISSÃO AO VIVO PELA INTERNET
LUCAS FONSECA PERGUNTA:
SE HOUVER VIDA FORA
DA TERRA, ISSO
IMPACTA A PERCEPÇÃO
QUE TEMOS
SOBRE NÓS?
CLÓVIS DE BARROS FILHO RESPONDE:
Impactaria sobremaneira, porque toda construção da compreensão
de si mesmo implica o tipo de entendimento que temos do outro. É a
partir do outro que nos definimos a nós mesmos, pelas semelhanças,
pelas diferenças, enfim, reflexivamente. Se houver vida inteligente
fora do planeta, haverá uma redefinição da alteridade, o que obrigará
necessariamente a uma redefinição da ideia de si mesmo, e isso
modificará completamente a nossa maneira de pensar, de entender o
mundo, o homem, a relação entre os homens, a ética, a estética.
Tudo terá de se readequar a essa nova realidade.
52
53
Por Daniel Benevides Fotos Gabriel Rinaldi
“a felicidade dispensa
teorização. Acredito
que momentos de
especial intensidade
são aqueles em que
você não busca
explicações racionais.
É a tristeza que vai
patrocinar a reflexão”
O filósofo Clóvis Barros Filho e as questões
fundamentais da sua vida, como a felicidade
PERSONNALITÉ
com energia e graça. Diante dos 35 minutos pela frente e do
olhar animado dos colegas, seguiu. Enrolou as informações
que tinha e não tinha. Fez a coisa com uma paixão tamanha
que a atenção dos alunos e do professor tornou-se total,
cativa (“Um professor, aliás, que não devia saber muito
de petróleo, uma vez que falei ali, sem contestação, até da
produção fóssil da região da Sildávia, lugar que tirei das
Aventuras de Tintim”). Exultante com o sucesso, atinou: sua
grande paixão era pensar livremente e traduzir isso a quem
quisesse escutar. Filosofar, pois.
Graduou-se em direito, jornalismo e filosofia (fez
mestrado na França, onde morou no final dos anos 80,
e doutorado na USP). Hoje, Clóvis não inventa fatos
sobre o petróleo, mas cria minhocas, por assim dizer.
Faz refletir, problematiza. E fala de modo simples para
exaltar a complexidade da vida. Assim, surrupia risadas do
espectador enquanto o estimula a mergulhar em questões
duras e essenciais. Do amor à morte, é capaz de misturar
teorias de Kant e de Platão à imagem de um bumbum
“apetecível”, tudo para tratar dos desejos que estão diante
de nós. Cita Nietzsche e Sartre como quem relembra um
jogo do São Paulo (o time para o qual torce). Destrincha
a complexidade da ética espinosana enquanto relata uma
ida ao Rancho da Pamonha como forma de teorizar sobre
a felicidade (“O sujeito, com fome, diante da primeira
pamonha é feliz. O sujeito diante da segunda pamonha,
transformado pela primeira pamonha, é um pouco menos
feliz. O sujeito depois de 20 pamonhas, ou depois de comer
pamonha todo o dia, é triste”).
O teor de suas palestras, como faz questão de ressaltar,
não é motivacional, ou seja, não ajuda a melhorar o desempenho dos funcionários das empresas que o contratam; às
vezes chega a acontecer o contrário: alguns (poucos) que o
ouvem resolvem se demitir e mudar de vida. Isso porque ele
defende “a vida que vale a pena ser vivida”, título de um de
seus muitos livros (vários escritos em parceria), e esta não
necessariamente passa pelo dia a dia de um escritório. Mas
nunca recebeu queixas.
Os contratantes, que vão de universidades, grandes
empresas públicas e privadas, a tribunais, ONGs e escolas,
apostam em suas verdades e na forma como entretém o público. São cerca de 500 pedidos para cada 100 palestras que
dá. Seu trabalho, como diz, é também sua fonte de diversão
e felicidade. E talvez essa seja, subliminarmente, a maior
contribuição que dá para seus ouvintes.
Ele é um dos palestrantes
mais requisitados do
país. Autor de 15 livros, o
professor de filosofia faz
sucesso misturando Platão
e Nietzsche a um jogo de
futebol. Assim, criou um
jeito leve de investigar como
lidamos com a existência
P
rofessor de ética da comunicação na USP e sócio no
Espaço Ética com a ex-mulher, de quem se separou há
cerca de um ano, Clóvis dá palestras que misturam improviso, humor, informalidade e carregam ideias que, de outra
forma, talvez não fossem compreendidas. A expressão “atleta da comunicação” lhe cabe perfeitamente: só no ano passado ele deu 349 palestras. Já é “íntimo” dos funcionários
dos aeroportos de Congonhas e Viracopos.
Aos 49 anos, tem três filhos, dois deles adultos. Descobriu sua vocação aos 13, quando precisou dar um seminário
no Colégio São Luiz, em São Paulo. O menino que tinha
o apelido de Delfim Neto (por conta dos óculos de lentes
garrafais e armação grossa) era “um CDF triste e que se
arrastava pelo colégio”. Encontrou o “desabrochar da potência” ao ser convocado pelo professor de geografia a falar
por 50 minutos sobre petróleo. Em 15, desovou o que sabia
56
clóvis de barros
O que as pessoas que te contratam querem saber?
Eu não sei se elas querem saber, esse é o problema. Tenho a
impressão de que hoje atendo a uma demanda complexa. Em
primeiro lugar a minha palestra distrai, atende a uma demanda
de entretenimento. Mas é claro que aí eu estaria numa vala comum com mágicos, contorcionistas, ilusionistas, cuspidores de
fogo, humoristas etc. Então ela entretém e supostamente também tem algum conteúdo interessante, faz pensar em coisas que
normalmente não se pensa. Definitivamente não é uma palestra
motivacional, o que dificilmente poderia ser feito com a filosofia,
seja ela qual for. Ou seja, não se volta para a obtenção de resultados, pro cara sair dali motivado a bater metas, e portanto, de
certa maneira, atender aos interesses do dono do capital. Definitivamente a minha palestra faz um apelo à reflexão sobre a vida
do colaborador e essa reflexão relativiza, digamos, o resultado
profissional, como critério único de avaliação de uma vida boa.
_
A visão de Clóvis
sobre seis temas
Amor é alegria sentida por quem ama.
Ganho de potência. De tesão pela vida. O
amado é a causa consciente desta alegria.
Quando o amante tem certeza daquilo
que lhe faz bem.
Felicidade é um estado afetivo muito
particular cujo principal sintoma é o desejo
– por parte daquele que a sente – de que o
instante feliz torne-se eternidade, ou pelo
menos dure um pouco mais.
Morte não se define por si. Apenas
negativamente. É o fim da existência.
O deixar de viver. Para muitos linha
imaginária ou passagem entre
uma e outra vida. O que raramente
consideramos é que a cada instante de
vida vamos deixando de ser e, portanto,
de certa forma, morrendo em vida.
Verdade é discurso. Algo que se diz. Que
se afirma. Um juízo sobre o mundo. Uma
ficção. Ilusão da correspondência entre o
discurso e o mundo. Entre a palavra e a
realidade que codifica. Entre significante
e significado.
Trabalho é atividade socialmente
significada. Indispensável para o
desenvolvimento econômico dos povos.
Confere ao trabalhador uma identidade,
uma definição de si mesmo, dando-lhe
a oportunidade de consagrar parte da
sua vida ao outro, ao mesmo tempo que
oferece condições materiais de sobrevida.
Dinheiro é sempre meio. Instrumento.
Nunca fim em si mesmo. A não ser para
tristes avarentos. Cujo valor depende dos
fins. Do que nos ocorre fazer com ele.
57
Personnalité
ularmente feliz. Acredito mesmo que esses momentos de especial intensidade são momentos em que você não teoriza,
não tem noção do tempo, não tem grandes dimensões espaciais, não estabelece nexos de causalidade, não busca explicações racionais, portanto são momentos que esgotam neles
mesmos a sua magia. É normal que, quando você vá teorizar
sobre o que aconteceu, aquele momento já não é tão bom. É
a tristeza que vai patrocinar a reflexão sobre o momento de
intensidade vivido.
Então, se bobear, o que eu tô fazendo é um pouco o contrário do
que meus colegas de palestras motivacionais fazem. Em vez de
dizer “você tem que ganhar de qualquer jeito”, eu digo “será que
esse troféu que você tá disputando é o bom troféu?”. Será
que esse troféu vai ficar na sua mão, será que ele é o seu troféu?
Como surgiu sua persona de palestrante?
Surgiu aos 13 anos, no seminário sobre o petróleo. O jeito
de falar ali permaneceu o mesmo, a gesticulação, a energia,
não teve nenhum trabalho em cima disso, tudo veio ao sabor
do acaso, nunca fiz um curso sequer de apresentação oral,
nem de didática, zero. Sei que tem curso de palestrante, para
palestrante. Vieram me contar que há uma série de técnicas.
Mas o que faço contraria rigorosamente todas... Não tem
Powerpoint, não tem porra nenhuma, eu ponho a mão na
frente, eu grito, eu esmurro, eu falo alto. Se tem dez mandamentos eu desrespeito os dez. No Powerpoint só cabem verdades e o meu discurso é um discurso de desconstrução, que
por definição não entra numa transparência.
Como você vê a internet nas relações humanas?
Creio eu que não cabe a mim nem apologias nem saudosismos, cabe a mim deixar claro que, nos dias de hoje, se a vida
tiver que ser boa, ela terá de ser boa também com a internet,
porque a internet faz parte da vida. Em outras palavras, nessa
ideia de reconciliação com o real que pressupõe uma vida
intensa, o real com o qual temos que nos reconciliar é o real
no qual a internet está absolutamente inscrita, inserida e consolidada. E portanto, de certa maneira, qualquer reflexão que
busque alguma felicidade longe da internet terá de amputar
com a internet 1 milhão de outras experiências que lhe são
correlatas, como a vida nas cidades, a vida em grandes espaços de socialização e assim por diante.
Como você se diverte?
Dando aula.
clóvis de barros
E o amor nos tempos de hoje? A impressão que se tem
é que as separações acontecem com mais facilidade...
O amor é vivido em condições sociais específicas e numa
sociedade que alguns chamam de líquida e que patrocinam
um amor líquido. De certa maneira, há uma volatilidade
mesmo, as relações entre pessoas se desinstitucionalizaram
a tal ponto que, diante da menor tristeza, você tem a dissolução do vínculo. Antes as pessoas tendiam, por cultura,
ameaças ou outros fatores, a suportar muito mais tristezas
em série em nome da preservação do status quo de uma
relação. Submetidas a essa revolução do baixo ventre, tendemos a de certa forma substituir relações em função das
pequenas oscilações de afeto que elas nos proporcionam.
“não pretendo
ser modelo
para ninguém.
não faço
escola.
não quero
que me sigam”
E isso é bom?
Ah, isso é o que é, quer dizer, não tolerar tristezas ad
eternum é positivo, por outro lado a descontinuidade das
relações ante a menor queda de potência pode ser impeditiva de experiências vindouras, de maturidade na relação.
Sua separação teve algo a ver com a teoria da pamonha?
Minha separação tem a ver com a preservação do afeto. A
manutenção do estatuto institucional de casado... Minha
Mas você não tem nenhum hobby?
Tenho. Dar aula. Ou como você quiser chamar. Até os alunos
me perguntam: o senhor também trabalha ou só dá aula? Eu
me divirto tanto dando aula, que, a julgar pelo entendimento
comum do trabalho, eu não posso mesmo estar trabalhando.
Pra mim trabalho, diversão e felicidade são sinônimos. Mas
não pretendo ser modelo pra ninguém, não faço escola, não
quero que me sigam.
Você é pessimista em relação à vida?
Não. Pelo contrário. Acho que a vida intensa, nos instantes
em que você vive uma espécie de excelência do próprio ser,
de particular harmonia entre você e o entorno, são instantes
fantásticos de serem vividos. Nesse sentido vale a pena a busca
de uma vida onde as possibilidades de uma situação assim são
grandes. Acredito que a vida reserva momentos de intensidade
e de excelência vital que são profundamente incríveis.
Isso me faz pensar na expressão “eu era feliz e não sabia”.
É uma ideia muito possível, porque os momentos de felicidade
dispensam uma teorização e uma conjectura racional sobre o
que está acontecendo. É justamente porque você não precisa
parar pra pensar naquela situação concreta que ela é partic-
59
60
CLÓVIS DE BARROS
E como se sentiria nesse mundo?
No final das contas tenho um sonho essencialmente cristão,
no sentido de que a busca incessante da própria satisfação, do
próprio acúmulo de recursos materiais, nos remete a estados
afetivos pobres, porque uma alegria não dura sem convivência – se você preferir, sem gente alegre do lado. Isso é uma
certeza que tenho. Não há como ficar alegre num mar de
tristeza. Em outras palavras, teríamos de ter uma nova escola,
uma nova educação. Uma educação de afetos mesmo, de análise das emoções. Isso enriqueceria demais a vida e permitiria
a compreensão do quanto o sentido da vida está no outro.
esposa, Karina, mora a 60 metros daqui... Morando e trabalhando junto, estava erodindo um patrimônio afetivo que nós
consideramos inalienável. Por isso, tentamos uma nova forma
de relacionamento para proteger o enorme afeto que temos
um pelo outro. Iniciativa bem-sucedida. Temos a Natália, que
é uma criança, pra levar adiante, somos sócios no escritório e
temos um pelo outro uma admiração e um carinho infinito.
Estamos em uma época com a possibilidade de viver mais
tempo. Como vê isso?
É óbvio que os cuidados orgânicos com vistas à prolongação
da vida podem ser positivos, desde que você não reduza a
vida à sua extensão. Imagine você vivendo 110 anos tendo de
comer linhaça, seria insuportável. A longevidade por si só
não é uma variável relevante. Um momento vivido que você
queira que perdure porque ele é bom, você lutará por sua
eternidade, mas um momento de sofrimento, você lutará pela
sua interrupção. Então, perceba, a extensão dos momentos,
seja a adolescência ou a idade adulta, pode ser boa ou ruim,
depende da intensidade de vida daquele instante. Calipso
oferece a eternidade e a juventude a Ulisses e ele não aceita.
E o que está por trás disso? Ele diz que prefere viver pouco
uma vida boa e finita do que viver eternamente no lugar errado uma vida inadequada. É uma lição interessantíssima.
Esse é o sentido da vida: o outro?
A gente passa muito tempo pensando no bem-estar do outro,
por que não admitir isso? Por que a gente tem de continuar
repetindo que a única coisa que importa é a própria glória,
se não somos assim? Então, eu vislumbraria um futuro em
que houvesse uma verdadeira revolução pelos afetos e
em que não só a educação, mas também o trabalho fossem regidos por uma espécie de bem-estar compartilhado e não por
metas e resultados que de certa forma só fazem o enriquecimento do dono do capital sem nem mesmo garantir a ele uma
vida feliz. Até porque, numa sociedade absolutamente desequilibrada como a nossa, a insegurança de ter o patrimônio
dilapidado por conta desse desequilíbrio torna a vida ruim de
ser vivida. Seria muito melhor se compartilhássemos mais.
Tem um posicionamento político?
A sociedade que queremos pra nós resultará das nossas escolhas, das nossas decisões e da nossa firmeza para construí-la.
Não há que terceirizar nem os processos decisórios, nem a
culpa por eventuais mazelas. Somos todos corresponsáveis
pela sociedade em que vivemos, não somos turistas no lugar
onde moramos. O Brasil somos nós, se ele não é o que nos
convém, façamos acontecer o que queremos que aconteça.
E qual é, afinal, a vida que vale a pena ser vivida?
A do outro. O que quero dizer é que temos tendência a achar
que, como não sentimos as tristezas que os outros sentem, a
nossa vida é particularmente pesada e que a felicidade é uma
experiência do outro. Quando, na verdade, deveríamos perceber que é ruim pra todo mundo, né. Tenho a nítida sensação
de que a vida é uma espécie de reunião particular de paixões
tristes, salpicada aqui e acolá de momentos de alegria. Então
a alegria tem um valor especial por conta da sua raridade. O
normal é que você oscile mesmo entre o enfado, a frustração,
a angústia, o tédio, a dor, a melancolia, o medo... Agora, de
vez em quando alguém sorri pra você, e aí já basta.
Como você vê o futuro do homem?
O futuro do homem nada mais é do que uma tentativa de antecipar a existência do homem no mundo em tempos ainda
não vividos. Essa antecipação só poderá ser feita a partir de
variáveis do presente ou já experienciadas. Portanto, quando
falamos do futuro, falamos sempre com um material de conhecimento que não lhe pertence. Suponho que as condições
de vida do homem no planeta sejam cada vez mais inóspitas,
e suponho que isso seja gerador de afetos que nos tempos
de hoje não são presentes. O homem tenderá a ter sensações
cada vez mais diferentes, decorrentes de uma presença num
mundo cada vez mais inóspito e tecnologizado.
Baixe a Revista Personnalité no tablet e
veja o vídeo com Clóvis de Barros Filho
Com “já basta”, você quer dizer “compensa”?
Ah, meu amigo, tenho a impressão de que deve compensar,
porque, no final das contas, todos temos a chave da abreviação da existência, temos todos a possibilidade de interromper
a vida a qualquer momento, e a grande maioria de nós continua insistindo. É sinal de que deve compensar.
61
POR Mariana Filgueiras, de Istambul
REAL E
IMAGINÁRIO
O taxista não sabe dizer onde fica, pessoas que caminham pela rua Çukurcuma tampouco. A numeração não ajuda,
e é preciso errar duas, três vezes, checar
mais uma vez a memória, o guia turístico,
o Google Maps. É ali mesmo, mas não
se acha fácil: o Museu da Inocência fica
num discreto sobrado cor de vinho em
Beyoglu, um nobre distrito do lado europeu de Istambul, numa via conhecida por
abrigar antiquários.
Eleito pelo conselho da União Europeia o melhor museu do continente em
2014, o Museu da Inocência passaria por
uma casa otomana qualquer: o letreiro é
discreto, a bilheteria, quase disfarçada.
O recato é proposital. Depois de pagar
25 liras turcas (o equivalente a R$ 28), a
primeira peça que se vê no museu é um
texto escrito pelo fundador da instituição, o romancista laureado com o Prêmio Nobel Orhan Pamuk. O documento
é um manifesto pela multiplicação dos
“pequenos museus”, como este aqui,
frente aos grandiosos e mais famosos. O
escritor acredita que não faz mais sentido concentrar coleções pomposas em
galerias nacionais, transformando em
patrimônio estatal nacos da história de
outros povos. E defende a existência dos
62
ACIMA, A FACHADA DO MUSEU DA INOCÊNCIA, EM
ISTAMBUL. AO LADO, REPRODUÇÃO DO QUARTO DE KEMAL
(PROTAGONISTA DO LIVRO O MUSEU DA INOCÊNCIA), COM
DETALHES QUE REMETEM À SUA INFÂNCIA
DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
O melhor museu da Europa fica em uma pequena casa
de Istambul. Seu acervo, criado pelo escritor Orhan Pamuk,
Prêmio Nobel de Literatura, conta a história de um
casal que nunca existiu
“Quando Füsun se atrasou dez minutos em
acervos modestos, aqueles que contam a
história do indivíduo, não a de um povo.
Assim, já nos primeiros passos, o
visitante depara com o seguinte trecho,
escrito numa parede: “Os grandes museus
apresentam a história de uma nação como
sendo mais importante do que a história
do indivíduo, mas as histórias dos indivíduos são muito melhores para explicar
as profundidades da nossa humanidade.
O que eu quero com este lugar é recriar o
mundo de homens simples”.
Foi por acreditar veementemente
nessa assertiva que o escritor fundou a
instituição em 2012 com uma coleção permanente de objetos que conta a história
de amor de um casal que nunca existiu,
Kemal e Füsun. A trajetória da dupla é um
recurso para que o autor – nessa lógica
de que o indivíduo é a chave para contar
a história de um país – narre os rumos
da Turquia entre os anos 1970 e 2000.
Assim, o casal, na verdade, é fruto de um
projeto ainda maior de Pamuk.
Ambos são protagonistas de O museu
da inocência, romance lançado em 2008.
o pequeno museu – ao mesmo tempo
real e imaginário – de Pamuk.
Não é preciso ter lido o romance
para entender a exposição, mas quem
leu fica ainda mais tocado. Não à toa, há
exemplares em todas as línguas espalhados pelos quatro andares da instituição.
Há um esforço especial para botar o leitor turista dentro das linhas que Pamuk
escreveu. Exemplo: a primeira instalação que o público vê é um imenso mural
vertical com 4.213 bitucas de cigarro,
como borboletas espetadas em caixas de
vidro. Catadas ao acaso pelo autor nas
ruas de Istambul, representam todos os
cigarros fumados por Kemal enquanto
esperava a amada, entre os anos de 1976
a 1984. É quase possível sentir o cheiro
da fumaça que remete à ansiedade do
personagem.
Divididos em 83 vitrinas, os objetos
obedecem a uma separação por temas
e assuntos. Há o setor dos vestuários, o
dos objetos de cozinha e o de viagens.
Há um mapa com todas as ruas que faziam Kemal lembrar-se de Füsun, com
os pontos de onde estiveram juntos
marcados a tinta vermelha. Numa outra
vitrine, apenas os artigos que usava para
se distrair quando a saudade apertava:
baralhos, horóscopo de jornal, um aparelho de telefone, um copo de ayran,
uma espécie de iogurte local.
Muitas surpresas esperam tanto
quem leu quanto (e principalmente)
quem não leu o romance. A parte
final da exposição se concentra no
próprio livro: está lá, na íntegra, todo o
manuscrito da obra. Pamuk conserva até
hoje o hábito de escrever seus textos à
mão. Estão lá também, expostas, as capas de todas as versões do livro lançadas
até hoje, em mais de 40 idiomas.
Trechos do livro
O museu da inocência
“Era o momento mais
feliz da minha vida,
mas eu não sabia. [...]
Naquele momento, na
tarde de segunda-feira,
26 de maio de 1975, em
torno de quinze para
as três, assim como
nos sentíamos além
do pecado e da culpa,
o mundo todo parecia
ter sido liberado da
gravidade e do tempo.
[...] Quero contar minha
história de um modo
que faça justiça a seus
4.213 BITUCAS
aspectos mais sérios
Ao longo de nove anos, tempo que durou
a escrita, o autor turco colecionou objetos garimpados em antiquários.
A ideia era construir as personalidades
de Kemal e Füsun com mais minúcia.
Se via um pente de osso antigo, imaginava que pudesse fazer parte da penteadeira de Füsun; se encontrava uma
coleção de fotos envelhecidas, logo
elas fariam parte da memória familiar
de Kemal. Dessa forma, saleiros, vestidos, relógios, pequenos instrumentos
musicais, brinquedos, cartas e outras
centenas de itens foram sendo coletados,
construindo o acervo do que se tornaria
relacionados ao sexo
e ao desejo: a boca de
Füsun tinha o sabor de
açúcar de confeiteiro,
devido, acho, aos
chicletes Zambo de que
ela tanto gostava. [...]
Assim, toda vez que nos
beijávamos, primeiro
eu a beijava da maneira
como se encontrava à
DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
minha frente, e depois
da maneira como existia
na minha memória.”
64
VITRINE 28: NOS SURTOS DE SAUDADE QUE KEMAL TINHA DE FÜSUN,
ELE SE DISTRAÍA LEMBRANDO DE RECORDAÇÕES COMO O CROISSANT
DE NOZES, O ESPELHO DE MÃO QUE ELE FINGIA SER UM MICROFONE
NO BANHO OU O TREM DO ANKARA EXPRESS QUE ELA BRINCAVA
AO LADO, ESCRITOR TURCO ORHAN PAMUK
EM FRENTE AO MUSEU
65
nosso encontro seguinte
no edifício Merhamet,
esqueci na mesma hora
minhas resoluções. Não
tirava o olho do relógio,
um presente de Sibel, e
do despertador marca
Nacar que Füsun adorava
sacudir até fazê-lo tilintar, e olhava toda hora
através das cortinas para
a avenida Tesvikiye, andando de um lado para o
outro pelo piso de tacos
que rangiam, incapaz de
desviar os pensamentos
de Turgay Bey. Logo
tranquei o apartamento
e saí para a rua. Olhava
cuidadosamente para os
dois lados, tentando me
certificar de que não deixaria de ver Füsun se ela
viesse na minha direção,
e caminhei até a boutique
Sanzelize. Mas Füsun
tampouco estava na loja.”
_
Um romance para
celebrar o Nobel
O museu da inocência é o primeiro romance que Orhan Pamuk publicou depois de ter ganhado o Prêmio Nobel de
literatura, em 2006. No Brasil, foi editado pela Companhia das Letras em 2011,
com tradução de Sergio Flaksman. Seu
enredo enfoca Kemal, descendente de
uma família rica e tradicional na Istambul dos anos 70. Ele acaba de completar
30 anos e está prestes a se casar com a
bela Sibel. À época, representavam um
casal moderno, e o exemplo mais marcante desse traço dos personagens são
as cenas de sexo descritas antes do casamento. Certo dia, Kemal reencontra-se
DIVULGAÇÃO
com Füsun, uma jovem prima distante
66
Os leitores brasileiros ficarão felizes ao
encontrar a edição em português
em meio a tantos objetos.
Como o romance é contado a partir do presente, mas fala sobretudo da
Turquia nos anos 70, período em que o
país começou a viver de maneira mais
explícita o conflito entre a manutenção
da tradição e o desejo de modernidade,
e a narrativa faz tudo isso a partir de um
recorte familiar, a mostra proporciona
exatamente o que defende Pamuk à entrada do museu: conta a história de uma
nação a partir do indivíduo.
Ao cabo do passeio, o projeto Museu
da Inocência surge, sobretudo, como
um jogo intrincado de verdades. Sabe-se
(pelo livro ou pela visita) que o próprio
Kemal colecionava objetos de antiquários para construir um museu que ele
também batizaria de Museu da Inocência. Ou seja, o visitante passeia por
um museu que é fruto da mente de um
personagem; um personagem criado por
um romancista; um romancista que fundou um museu de verdade; um museu
de verdade que acolhe as lembranças de
um personagem... É um jogo proposital
e metalinguístico que concede à experiência uma atmosfera única de estranhamento e encantamento. O melhor museu
da Europa, quem diria, está lotado de
quinquilharias, instalado numa casinha
cor de vinho em Istambul.
“Tendo me tornado —
com o passar do tempo
— o antropólogo da minha própria experiência,
não sinto o menor impulso de depreciar essas
almas obsessivas que
recolhem cacos de cerâmica, artefatos e utensílios em terras distantes
e os organizam a fim de
expô-los a nós, para podermos entender melhor
as vidas dos outros e a
nossa própria. [...] Que
este conjunto de caneta
e tinteiro de cristal, pertencente à minha mãe,
com que Füsun brincou
naquela tarde depois de
tê-lo visto em cima da
mesa enquanto fumava
um cigarro, sirva como
relíquia do refinamento
e da frágil ternura que
sentimos um pelo outro.
que trabalha como vendedora em uma
Que este cinto, cuja five-
pequena loja de roupas. Os dois passam
la grande demais agarrei
a se encontrar com frequência, embora
e ajustei com uma arro-
Kemal não considere romper o noiva-
gância masculina de que
do com Sibel – e esse conflito é uma
mais tarde me arrepen-
metáfora para a própria ambiguidade
deria tanto, sirva como
vivida pela Turquia no final dos anos 70,
testemunho da melan-
um embate entre a tradição oriental e
colia que senti quando
a modernidade de um país que quer se
cobrimos nossa nudez e
aproximar do ocidente. É para provar
voltamos novamente os
a si mesmo sua estreita ligação com
olhos para a imundície
Füsun que Kemal começa a colecionar
do mundo.”
objetos de época.
NA PÁGINA AO LADO, PERTENCES DO PAI DE KEMAL, COMO FOTOS ANTIGAS
DO EXÉRCITO, REMÉDIOS, JORNAIS E PALAVRAS CRUZADAS. KEMAL VÊ ESSES
OBJETOS APÓS DESPEDIR-SE DO PAI MORTO NA CAMA DO QUARTO. NESTA
PÁGINA, INSTALAÇÃO COM AS 4.213 BITUCAS DE CIGARRO FUMADAS POR KEMAL
67
POR Ruy Castro, do Rio de Janeiro
EM PESSOA
DIVULGAÇÃO
ZÉ CARIOCA
JOSÉ DO PATROCÍNIO DE OLIVEIRA, O ZEZINHO,
EM 1936, FOI A INSPIRAÇÃO DE WALT DISNEY
PARA O PERSONAGEM ZÉ CARIOCA
Quem inspirou Walt Disney a criar o papagaio era paulista, foi um músico
de mão-cheia e teve uma vida que pode ser resumida à palavra que ele
adorava: “Demais!”. Com vocês, José do Patrocínio de Oliveira, o Zezinho
uzaninha, aqui é uma maravilha. É
Hollywood. Vou te apresentar aos
artistas do cinema. Você vai nadar na
piscina da Carmen Miranda. E vai conhecer o Zé Carioca!”
Esse era Vinicius de Moraes, em
1946, escrevendo da Califórnia para sua
filha de 6 anos, Suzana, que ficara no Rio
com a mãe, Tati, e o irmãozinho Pedro –
tentando cooptá-la para que os três fossem se juntar a ele nos Estados Unidos.
Pouco antes de viajar para assumir o cargo de secretário do Consulado brasileiro
em Los Angeles, Vinicius se separara de
Tati por causa de Regina Pederneiras,
uma arquivista do Itamaraty que ele acabara de conhecer. Surdo aos conselhos
dos amigos, levara Regina com ele para
o posto no exterior, mas não demorou
a cair em si. Fora um erro – os dois não
se entenderam. Então, Vinicius mandou
Regina de volta para o Brasil e, agora,
lutava para que Tati o perdoasse e fosse
com as crianças para os States.
O que acabou acontecendo, e eles seriam felizes para sempre nos quase cinco
anos que passaram lá. E Suzana viu realizado tudo que Vinicius lhe prometera.
Era mesmo Hollywood. Ela ganhou um
beijo de Orson Welles e de muitos outros
artistas. Aprendeu a nadar na piscina de
Carmen Miranda. E realmente conheceu
o Zé Carioca. Mas qual Zé Carioca?
Naquele ano, boa parte do mundo já
assistira e se apaixonara pelo novo personagem que Walt Disney apresentara em
dois filmes, Alô, amigos (Saludos, amigos),
de 1944, e Você já foi à Bahia? (The three
caballeros), de 1945. Era o Zé Carioca, um
papagaio brasileiro, safo e simpático, que
contracenava com o Pato Donald e, para
deleite geral, sempre levava vantagem.
Originalmente, chamava-se José – ou
Joe – Carioca. Para nós, desde o começo,
ele foi Zé Carioca – obviamente verde,
de olhos cor de mel, casaquinho amarelo
estilo peço a palavra, calças também verdes, chapéu de palhinha, gravata borboleta, sempre carregando um guarda-chuva,
e com um suingue jamais sonhado por
qualquer personagem de Disney. Naturalmente, era esse o Zé Carioca que Suzana
esperava conhecer.
Ao chegar à casa de Carmen Miranda
em Beverly Hills e ser apresentada a ele
por Vinicius, viu-se diante de um mulato
simpático e sorridente, de bigodinho,
calça comprida, camisa de malandro, cavaquinho na mão e chinelo. O verdadeiro
Zé Carioca. Na intimidade, Zezinho.
Zezinho se chamava José do Patrocínio de Oliveira e – essa não! – nem era
carioca. Era paulista (de Jundiaí), nascido em 1904 e, em boa parte da década de
30, um dos grandes nomes do rádio de
São Paulo, por sua habilidade nos instrumentos de corda, principalmente violão,
cavaquinho e bandolim. Carmen Miranda
o conhecera numa de suas excursões à
Pauliceia e, como todo mundo, se encantara com ele. Zezinho era não só grande
músico, mas exuberante e engraçado
como pessoa. Falava uma gíria própria, às
vezes enriquecida por uma experiência
que tivera como funcionário do Instituto
Butantã – aprendera o nome das cobras
em latim e sempre dava um jeito de
incluí-las na conversa, chamando-as daquele jeito. Além disso, tinha uma ginga
característica, elástica, malemolente.
Desde o Brasil, ele era amigo dos rapazes do Bando da Lua. Quando Carmen e
o Bando foram para Nova York, em maio
de 1939, já o encontraram lá. Zezinho chegara havia alguns meses, com a orquestra
de Romeu Silva, escalada para abrilhantar
o pavilhão brasileiro na fabulosa Feira
Mundial que estava se realizando na cidade. E foi bom que o encontrassem porque,
ainda no Rio, tinha havido um problema
com o Bando da Lua: Ivo Astolfi, funda-
70
DIVULGAÇÃO
“S ZEZINHO
USAVA
BIGODINHO,
CAMISA DE
MALANDRO
E CHINELO
ZEZINHO SEGURA ZÉ CARIOCA EM FRENTE A WALT
DISNEY COM O PATO DONALD, DURANTE A FESTA DE
ENCERRAMENTO DAS FILMAGENS DE ALÔ, AMIGOS (1944)
dor do grupo, desistira na última hora da
aventura americana. E seu substituto, o
já lendário violonista Garoto, não estava
com os documentos em ordem para embarcar imediatamente para a América.
Com isso, Zezinho, à mão em Nova York,
foi chamado para substituí-lo. Semanas
depois, Garoto chegou e Zezinho voltou
para a orquestra de Romeu Silva. Mas
nunca ficou longe deles. Em agosto de
1941, com o fim dos contratos, Romeu
regressou com a orquestra para o Brasil,
mas dois de seus músicos “perderam” o
navio e ficaram para trás: o pianista Va-
71
dico e... Zezinho. Não por coincidência,
eles se juntaram de vez ao Bando da Lua,
no lugar de Vadeco e Helio, dois outros
membros que também preferiram voltar.
A essa altura, Carmen e o Bando
já estavam radicados em Los Angeles,
contratados pela Fox e fazendo um
filme atrás do outro: Uma noite no Rio,
Aconteceu em Havana, Minha secretária
brasileira. Neste último, há a hilariante
sequência em que Carmen os apresenta
ao galã John Payne como seus irmãos
que chegaram do Brasil, e eles vão
entrando pelo apartamento – todos os
ADMIRAÇÃO PELO PAPAGAIO
Uma das ideias era a de criar um personagem brasileiro que pudesse contracenar
com Donald. Em seu Q.G. no Copacabana
Palace, visitado por brasileiros que iam
levar-lhe sugestões, Disney achou curioso que, ao contrário de seus vizinhos latinos para quem o símbolo nacional deveria ser uma ave nobre – uma águia, um
condor, um falcão –, os brasileiros tinham
grande admiração pelo papagaio. Pelo
menos, era o herói de todas as anedotas
que lhe contavam. E o que era o papagaio? Um bicho pobre, folgado e preguiçoso, como os gringos imaginavam o brasileiro, mas inteligente, esperto e virador
– enfim, feliz. Dois grandes desenhistas
cariocas, J. Carlos e Luiz Sá, levaram a
Disney esboços de como o papagaio deveria se vestir ou parecer. Mas foi só em
Hollywood, meses depois, ao preparar as
sequências em que Joe Carioca ( já com
esse nome) contracenaria também com
atores de carne e osso – Aurora (irmã de
Carmen) Miranda e o Bando da Lua –, é
que Zezinho entrou em cena.
Ele era perfeito para o papel. Sua
ginga serviu de modelo para o andar do
papagaio; suas gírias e expressões foram
72
adaptadas à fala do bicho; e, tanto em inglês (com sotaque) como em português,
só poderia ser Zezinho, claro, a dublar
o personagem. E, assim, em dois filmes
seguidos e de grande sucesso, lançados
com pouco mais de um ano de intervalo,
José do Patrocínio de Oliveira tornou-se
– para sempre – Zé Carioca.
Quer saber como ele era? É fácil.
Na principal sequência de Você já foi à
Bahia?, em que Aurora e Donald cantam
“Os quindins de Iaiá”, de Ary Barroso, e
Zé Carioca (o papagaio) saracoteia alegremente entre eles, o próprio Zezinho
pode ser visto com destaque. É o que
toca lápis nos dentes.
Ele não ficava longe disso na vida
real: era sedutor, imaginativo, agregador,
cheio de borogodó. Com pouco tempo de
Hollywood, sua casa, em Laurel Canyon,
tornou-se, juntamente com a de Carmen,
o ponto mais importante de Los Angeles
para brasileiros fixos ou de visita. Se não
estivesse filmando, Zezinho passava dia
e noite recebendo uma quantidade de
patrícios que, com o sucesso da estrela
NO ALTO, CENA DO FILME VOCÊ JÁ FOI À BAHIA?
(1945) EM QUE ZEZINHO ATUA COM ZÉ CARIOCA, PATO
DONALD E AURORA, IRMÃ DE CARMEN MIRANDA
nos Estados Unidos, resolvera tentar a
sorte por lá: músicos, atores, jornalistas,
vedetes e simples desocupados. Alguns
habitués eram o próprio vice-cônsul
Vinicius e família, os correspondentes
Gilberto Souto e Alex Viany, o Bando da
Lua em peso e suas mulheres, o ex-astro
Raul Roulien, o guitarrista Laurindo de
Almeida, o famoso Russo do Pandeiro,
o escritor Erico Veríssimo (que morava
em Los Angeles e aparecia quase todos
os dias, mas não abria a boca) e até a cantora Rosina Pagã, que não se sabia muito
bem o que fazia por lá, além de namorar metade da Costa Oeste. A própria
Carmen comparecia quando lhe davam
sossego em sua casa. E quem marcou
presença mais de uma vez? Walt Disney.
A grande atração das festas de Zezinho era a presença de brasileiros
recém-chegados trazendo feijão-preto,
carne-seca, pinga, discos com os últimos sucessos da terra e, claro, as piadas
recém-inventadas. Em troca, ele os
levava a visitar os estúdios de cinema e
os impressionava ao passar por alguns
astros e cumprimentá-los com a maior
naturalidade: “Olá, Betty [Grable]!”; “Oi,
Paulette [Goddard]!”; “Tudo bem, Linda
[Darnell]?”. E os outros, de volta: “Hi,
Joe!”. De onde vinha essa intimidade?
Do seu trabalho naqueles estúdios.
FESTA NO APÊ
WALT DISNEY STUDIOS/PHOTOFEST
seis, um a um, para desespero de Payne,
e cantando “Chattanooga choo-choo” em
português.
Foi então que o destino entrou em
cena. Também naquele ano, 1941, Walt
Disney, considerado o pior patrão de
Hollywood, viu-se em apuros com os
sindicatos americanos. Seus funcionários
– desenhistas, animadores, coloristas e
todos os envolvidos na produção dos desenhos animados – o acusavam de reduzir seus salários, negar-lhes crédito como
autores dos personagens (alguém sabia,
por exemplo, que o verdadeiro criador de
Mickey era seu desenhista Ub Iwerks?),
não reconhecer o direito de greve e
ameaçá-los com demissões coletivas.
Para eles, o maior rato do cinema não era
Mickey, mas Walt Disney. Antes que Disney perdesse o estúdio, Nelson Rockefeller, em nome do governo americano,
sugeriu-lhe que saísse de cena por uns
tempos enquanto ele negociava com os
funcionários. E propôs a Walt armar uma
equipe (com quem ainda se sujeitasse a
trabalhar com ele) para uma longa expedição pela América Latina, financiada
pelo governo, a fim de recolher material
para um ou dois filmes que o ajudassem
a consolidar a chamada Política da Boa
Vizinhança – um importante programa
do governo americano para evitar que o
resto do continente simpatizasse demais
com Hitler. Walt topou. E, assim, no segundo semestre de 1941, depois de passar
por México, Chile e Argentina, Disney e
seus rapazes desembarcaram no Rio.
Zezinho não era popular apenas com os
brasucas. Assim que ele se efetivou no
Bando da Lua, Carmen apresentou-o a
Darryl F. Zanuck, chefão da 20th Century
Fox, e este o repassou a Alfred Newman,
diretor de seu departamento musical.
Resultado: sempre que precisavam de
NAS FESTAS
DO ZEZINHO,
AS ATRAÇÕES
ERAM PINGA,
FEIJÃO-PRETO
E PIADAS
um violão, guitarra ou mesmo banjo
“latino”, era a Zezinho que recorriam na
trilha sonora. O que fazia com que não
lhe faltasse trabalho em Hollywood.
Os outros estúdios o descobriram
e também se interessaram. Um deles,
a Warner Bros., não se contentou em
aproveitá-lo na trilha sonora – botou-o
em cena, em carne e osso, junto a outro respeitado violonista brasileiro em
Hollywood, seu amigo Nestor Amaral.
E ali os dois começaram a sua extensa
filmografia. No clássico Uma aventura na
Martinica (To have and have not, 1944),
de Howard Hawks, Zezinho e Nestor
acompanham Hoagy Carmichael na
sequência em que ele toca piano e canta
“Am I blue?”. No mesmo filme, quando
Lauren Bacall, escorrendo sensualidade, tartamudeia “How little we know”,
lá estão eles de novo – sem contar que,
participando de toda a filmagem, assistiram de camarote a Humphrey Bogart
se apaixonar alucinadamente por Bacall
(foi o filme em que eles se conheceram).
Em outra produção da Warner, Romance
em alto-mar (Romance on the High Seas,
1948), de Michael Curtiz, que marcou
a sensacional estreia de Doris Day no
cinema, eles cantam com ela na sequência em que o navio a caminho do Rio faz
escala numa ilha.
E havia aquilo que, para Zezinho,
73
vinha em primeiro lugar: seu trabalho
com Carmen. Apareceu em todos os filmes que ela ainda viria a fazer até 1953;
acompanhou-a em sua excursão a Londres em 1948; e sua mulher, Odila, era a
camareira oficial de Carmen em viagens,
cuidando de seus vestidos, turbantes e
sapatos – tarefa nada desprezível. O filho
de ambos, também Zezinho e nascido lá,
em 1947, era afilhado de Carmen.
E o que dizer de sua carreira como
Joe Carioca? Durante muitos anos, e
usando o nome mágico, Zezinho foi uma
sensação em palcos americanos – em teatros, boates, cassinos, bares, restaurantes
e até estádios. Abrindo shows ou sendo
a atração principal, ele era Joe Carioca,
fazendo, inclusive, a voz do papagaio. E
só então as plateias se davam conta de
que ele era, na verdade, dois artistas: o
humorista, que todos conheciam e reconheciam, e o instrumentista – este, sim,
uma surpresa para quem o ouvia tocar.
Mas, como ocorreu com todos os
músicos brasileiros ao redor de Carmen
Miranda em Los Angeles, a morte dela,
em agosto de 1955, foi um golpe insuportável. Alguns, como Aloysio de Oliveira,
incapazes de se sustentar, voltaram para
o Brasil. Zezinho não precisou fazer isso.
Era querido e disputado, mas também
estava cansado. Pelos anos seguintes,
limitou-se a trabalhar para Walt Disney,
apresentando-se no Clube do Mickey,
uma programação do primeiro parque
criado por Walt, a Disneylândia. Em
1979, aposentou-se. E, em 1987, aos 83
anos, pegou o boné. Deixou instruções
para que, em sua lápide, fosse gravada
uma palavra que ele adorava e que bem
poderia definir sua vida: “Demais!”.
CLÓVIS DE BARROS FILHO PERGUNTA:
UM VINHO NUNCA
PROVADO TEM
GOSTO?
MADELINE PUCKETTE RESPONDE:
Não importa que o vinho tenha ou não tenha sabor. O que
interessa é a questão. É isso que nos torna humanos.
74
75
POR Carol Nogueira, de Seattle FOTO Amanda Koster
VINHO:
QUER QUE EU DESENHE?
A designer Madeline Puckette, criadora do portal Wine Folly, tornou-se
uma referência ao simplificar o universo do vinho. “Ninguém sabe tudo
sobre a bebida. Você poderia passar a vida toda aprendendo”
PERSONNALITÉ
78
_
O primeiro
vinho marcante:
Vale do Rhône
“Já faz muito tempo, mas lembro que tomei
um vinho de lá que tinha gosto de azeitonas e
pimenta-do-reino! Era tão salgado. Foi a primeira
vez que senti gosto de outra coisa em um vinho.
Fiquei fascinada e, para falar a verdade,
um pouco perturbada. Me abriu para
o inesperado.”
gostaria de entender. Os temas vão desde dicas sobre
harmonização até um glossário de sabores, além de testes
para escolher a garrafa perfeita para cada ocasião. Ano
passado, a designer largou o emprego de sommelière para
se dedicar apenas ao Wine Folly. Sua equipe conta hoje com
seis colaboradores. Fechou contrato para lançar um livro
compilando alguns de seus principais trabalhos, intensificou a
quantidade de posts sobre degustações e os textos de viagens.
Começa a mesurar os frutos da investida por conta da atenção
e dos elogios que recebe de autoridades da indústria.
“O que torna Madeline diferente é sua atitude muito
divertida e refrescante”, diz Eric LeVine, criador do Cellar
Tracker, site referência que conta com um público cativo de
mais de 250 mil pessoas. “Adoro o tom dos textos dela. Há
quem leve vinho muito a sério e há gente divertida, mas sem
substância. Madeline balanceia os dois. Ela não leva muito a
sério, mas sabe do que está falando. Não subestima o leitor”,
ACIMA, ILUSTRAÇÃO DE MADELINE PUCKET COM RÓTULOS
DA REGIÃO DE BORDEAUX, NA FRANÇA. AO LADO, UM
EXEMPLO DE PÔSTER CRIADO PELA DESIGN QUE PODE SER
COMPRADO NO PORTAL WINE FOLLY
ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO
C
inco anos atrás, Madeline Puckette, uma aspirante a
cantora e designer gráfica de um jornal de Reno, em
Nevada, entrou num bar com o pior dos humores. Ela tinha
acabado de perder o emprego, resultado da crise econômica
que abatia os Estados Unidos desde 2008. O botequim, na
verdade um wine bar chamado West Street, era o favorito de
Madeline. Por conta da frequência, a jovem tornou-se amiga
do proprietário, Rick Martinez. O rapaz ouviu a cantilena da
cliente. Pensou e soltou uma proposta: “Olha, eu estou mesmo
precisando de uma ajuda, não quer vir trabalhar aqui?”. “E eu
fui, sem nunca ter trabalhado num bar”, conta Madeline.
Havia uma condição. Para assumir o cargo atrás do balcão,
ela teria de se submeter a um teste de conhecimento de vinhos.
“Fui para casa e estudei igual uma louca”, diz. Passou na prova,
ganhou a vaga e apaixonou-se pelo tema. Decidiu prosseguir.
Ingressou em um curso da mais prestigiada instituição do ramo,
a Court of Master Sommeliers. Em pouco tempo, se tornaria
uma referência no assunto. Mas de um jeito diferente.
Falar sobre vinhos pode ser um tema complicado para
iniciantes. Eleger o rótulo ideal para harmonizar com a
refeição, entender as sutis diferenças entre as castas de uvas ou
mesmo explicar o que, afinal de contas, as pessoas que cheiram
uma taça recém-servida pelo garçom querem sentir.
Em seu rápido e intenso mergulho na enologia, Madeline
percebeu que havia muita informação dispersa – e que o
apreciador da bebida era, no fundo, alguém com sede de
entendimento. Foi o estopim para criar em 2011 o Wine Folly:
portal que uniria a experiência de designer com o que aprendeu
servindo, bebendo e analisando tintos, rosés, brancos...
A cada mês, pelo menos 150 mil pessoas param por aí,
superando a audiência de sites referenciais, como o do aclamado
crítico Robert Parker, fundador do The Wine Advocate, o guia
de classificação de vinhos mais prestigiado do mundo. Aos 31
anos, Madeline escreve artigos e publica trabalhos em jornais
como Washington Post, revistas como a Reader’s Digest e portais
como o Huffington Post e o Business Insider. Ganhou por dois
anos consecutivos (2013 e 2014) o prêmio de blog do ano da
International Wine and Spirit Competition. Foi sommelière
e tornou-se consultora de restaurantes em Seattle, onde vive.
Recebe convites para visitar terroirs espalhados pelo mundo.
Este ano, deve conhecer vinícolas chilenas e italianas.
A grande sacada que rendeu ao Wine Folly um lugar de
destaque no mundo dos vinhos são os infográficos produzidos
por Madeline. Elegantes e didáticos, surgem como manuais
ilustrados a respeito de tudo aquilo que o enoconsumidor
MADELINE
_
O mapa do vinho
Madeline Puckette percorreu quatro continentes e experimentou mais
de 7 mil rótulos. Aqui, mostramos com taças as cidades onde ela foi
beber e algumas experiências mundo afora
A sommelière desembarcou em dois
Em Navarra e na Catalunha, a
dos pedaços mais célebres do país.
sommelière provou Cavas (espumante)
Às margens do rio Loire, onde visitou
produzidas com a Viura (uva também
o famoso vale que dá nome à região,
conhecida como Macabeu), de aroma
Madeline provou os vinhos tintos de
bastante floral. Na região de La Rioja,
Chinon, famosos por sua leveza. Na
provou tintos da casta Tempranillo, como
quase vizinha Bourgueil, encontrou
o Marqués de Murrieta, produzido desde
versões mais aromáticas da bebida.
o século 19 por uma bodega familiar. O
país é o terceiro maior produtor de vinhos
do mundo (superado por França e Itália).
No Vêneto, a região de Valpolicella
produz o fantástico Amarone della
Valpolicella, um dos vinhos mais
premiados do país, tinto seco e de sabor
cheio de nuances cujas uvas passam por
processo de secagem de até cinco meses.
Boa parte dos produtores reservam as
A proximidade de casa fez com que
as vinícolas californianas fossem bem
exploradas por Madeline. Vale de Napa,
Clear Lake, El Dorado, Monterey e Santa
Lucia Highlands, San Luis Obispo e Paso
Robles, Santa Barbara, Santa Rita Hills e
Malibu constam como alguns dos locais
em que a especialista provou vinhos marcantes. Para os amantes do enoturismo,
ela indica conhecer de carro as vinícolas
de Mendocino e do norte de Sonoma.
Horse Heaven Hills. Ele nos levou por
vinhedos gigantes, com mais de 400
hectares. Foi ao ver uma fazenda tão
grande que entendi como essa bebida
pode ser um negócio. Bebemos muito
Shiraz assistindo a tempestades de raios
em Oregon, do outro lado do rio
Columbia. Jamais esquecerei disso.” na região sul e destaca o Vale
com Pinot Noir e Chardonnay.
de Barossa, a 60 quilômetros de
“Portugal é um dos tesouros perdidos
altos da jornada. Na mesma
da Europa”, diz Madeline. Ela visitou
região, cujo forte calor estimula
o Vale do Douro, as regiões de Minho,
a maturação das uvas da casta
Dão, Beiras e o Alentejo. “Mas dois dos
Shiraz, também estão os vales de
meus lugares favoritos de Portugal
Ela recomenda o Cabernet Sauvignon
são Alenquer, onde está a vinícola Quinto
como destaque da produção local.
do Pinto, e Colares, perto de Lisboa.
“Há uma complexidade de sabores no
Colares virou um retiro para ricos, mas
Cabernet sul-africano que faz com que ele
seja uma alternativa mais agradável do que
dois vinicultores lutam para preservá-los.
os cabernets frutados de Paso Robles ou
Sabe por quê? Não há vinhedo igual no
Sonoma, na Califórnia. Imagine pimenta-
planeta. O solo fica 1 metro abaixo da
negra e pimentão recheados com groselha,
areia. As raízes, algumas com 100 anos,
pegam os nutrientes bem no fundo. Os
vinhos de lá são dourados e têm gosto de
mel com uma pitada de sal. Incríveis.” ILUSTRAÇÃO: MAURICIO PIERRO
nos convidou a visitar sua produção em
No país, Madeline visitou terroirs
Trento se destacam espumantes feitos
Adelaide, como um dos pontos
sobraram quatro hectares de vinícolas – e
“Conheci o vinicultor Rob Mercer que
garrafas por cinco anos. Na região do
amora e ameixa. O cabernet da África do
Sul é saboroso, mas sem os sedimentos
de um bordeaux francês superior.”
Clare, McLaren e Adelaide Hills.
PERSONNALITÉ
82
_
Vinho para
celebrações: brancos
“O período em que estávamos preparando
o Wine Folly foi marcado pelos tintos. Quanto
mais você entende de vinhos, tende a beber
mais brancos e champanhes. Amamos os
tintos, mas os brancos viram a nossa
cerveja: gelados, refrescantes, deliciosos,
e especialmente efetivos depois
de um dia longo.”
mapa. Em cada bairro, rabiscava à caneta marquinhas e ícones,
listava nomes dos locais de interesse e suas peculiaridades. Em
um guardanapo e em poucos minutos, a designer é capaz de
esboçar um guia divertido e surpreendente. Esse didatismo,
mesmo diante das mais banais tarefas, é sua marca maior.
O entusiasmo com vinho também é pungente. Após o jantar,
depois de passar horas falando sobre tintos e brancos, taninos e
terroirs, Madeline me convidou a ir à casa de um amigo, chefe
de uma grande vinícola da região, a quem ela queria mostrar
um vinho que ganhou. Era um Cesanese del Piglio, rótulo que é
fabricado desde a Idade Média e cujo gosto é diferente de tudo
que já provei, com notas defumadas e especiarias.
Há mais um aspecto que explica muito do que Madeline é:
sua infância. Quando criança, vivia cercada de música e arte
na casa da família, na Califórnia, onde cresceu. O pai tocava
violão e bandolim, enquanto a mãe, piano e cravo. Era natural
que a garota se interessasse por algum instrumento. A irmã
mais velha se interessou pela harpa, Madeline, aos 5 anos, ficou
alucinada após ver um músico tocando saxofone. A mãe achou
que ela era pequena demais para o sax, e sugeriu uma flauta.
Mais tarde, estudou piano. No ensino médio, formou uma banda
com as amigas. A música logo se tornaria uma grande parte
de sua juventude. Tocou em bandas punk até que ingressou,
em Los Angeles, na universidade CalArts, na qual se formou
em tecnologia musical e arte em 2005. Ela, porém, odiou a
experiência. “Eu queria ser artista, não fazer coisas comerciais”,
diz. “Logo vi que não daria certo.”
Desiludida, girou seu foco para a musica eletrônica,
gênero bem mais popular na Europa do que em seu país.
“Eu sabia que queria fazer aquilo e que seria completamente
inovador. Ninguém estava fazendo isso naquela época aqui.”
À ESQUERDA, DESENHO DE MADELINE RETRATA COMO PRODUTORES
TENTAM MINIMIZAR OS EFEITOS DE GRANIZO SOBRE A COLHEITA; NA
PÁGINA AO LADO, A DESIGNER EM SEATTLE, DURANTE A GRAVAÇÃO DE
UM DOS SEUS PRIMEIROS VÍDEOS PARA O SITE WINE FOLLY, EM 2012
Logo começou a frequentar a cena noturna de Los Angeles e
ganhou alguma fama, lançando discos por gravadoras pequenas
regionais. Além disso, colaborou com artistas de mais peso,
como o DJ francês Joachim Garraud. Mesmo assim, não
engrenou. “Quando eu tocava, não estava feliz.”
de 7 mil rótulos diferentes. “Mas não é tanto assim”, explica.
“Considerando que um crítico profissional toma essa mesma
quantidade por ano...” Mas é o suficiente para abastecer o
endereço com notícias. Além disso, o Wine Folly começou
a apostar em outros tipos de serviços e produtos mais
sofisticados. Recentemente, passou a vender pôsteres com os
infográficos publicados. “Ainda é difícil ganhar dinheiro só
com o site, mas estamos tentando”, diz.
Entre livros, pôsteres, viagens, infográficos e posts,
Madeline Puckette estabeleceu seu nome como uma
referência mundial. E com o saboroso diferencial de tornar
uma carta de vinhos um documento acessível para todos
os gostos e bolsos. É uma caminhada cheia de idealismo
e dificuldades. Ela conta, com expressão frustrada, ter
recusado ofertas comerciais e de anúncios porque julgou não
combinarem com a proposta da empresa. “Não quero estragar
o que construí”, explica, entre um sorriso e um gole de tinto.
Ao mesmo tempo, expressa uma intensa empolgação ao passar
horas e horas falando de suas viagens, recomendando rótulos
especiais e lugares pouco conhecidos que merecem uma visita
no verão. “Quanto mais você estuda e pesquisa o assunto, mais
fica claro que ninguém pode saber de tudo”, diz. “Se quiser,
você pode passar a vida toda aprendendo.”
SAFRA CASEIRA
ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO
afirma Ryan O’Connell, da Naked Wines, empresa que financia
vinícolas independentes. “Ela não apenas entretém, mas educa
– e faz isso da forma mais eficiente”, explica Paul Mabray,
criador do VinTank, empresa que monitora a popularidade
de artigos relacionados a vinhos em redes sociais. “Madeline
faz entender de vinho parecer fácil. Temas como moléculas,
taninos e tipos de solo de repente surgem descomplicados e
divertidos”, diz Nicholas Miller, vice-presidente de vendas da
vinícola Bien Nacido Vineyards, da Califórnia.
A simplicidade de Madeline Puckette também se aplica em
relação aos valores cobrados por uma garrafa. Ela acredita que
não há necessidade de pagar uma fortuna por uma taça de um
Pinot Noir sofisticado para ter uma experiência significativa.
Diz que já gastou alguns milhares de dólares por uma garrafa
(sem revelar a quantia), mas defende que rótulos mais em
conta também são capazes de oferecer sabores marcantes.
“Quando você experimenta vinhos caros e antigos, entende:
é verdade, eles têm gosto melhor do que os baratos”, explica.
“Mas, quando você sabe o que procurar, encontra algo tão bom
quanto, ou tão adequado ao seu gosto, por bem menos. Tomei
um, recentemente, da região do Lazio, na Itália, que custava uns
US$ 40 a garrafa. Esse vinho poderia facilmente passar por um
Bordeaux de US$ 900.”
As raízes do sucesso de Madeline – e da mistura de leveza
e arte em sua profissão – estão nas experiências de juventude
– incluídas aí uma faculdade de arte e uma carreira promissora
na música. Ela é uma daquelas pessoas cujo cérebro funciona
de uma maneira diferente, simples, brilhante e irrequieto. Em
dezembro do ano passado, quando a encontrei para jantar em
Seattle, a especialista me explicou a cidade desenhando um
MADELINE
Ainda na faculdade, Madeline conheceu o namorado e cofundador do Wine Folly, Justin Hammack, com quem está
há mais de dez anos. “Ele é como o CEO do site, apesar de as
pessoas conhecerem mais a mim”, diz. “Sou a cara do negócio,
ele, o cérebro.” Justin, um web designer de formação, ajudou
a moldar o formato do portal. É quem cuida do planejamento
e analisa o retorno do público e do mercado para direcionar
o futuro da empresa. Madeline conta que durante os primeiros
meses do projeto, cansativos e incertos, a presença do
parceiro serviu como um alicerce. À época, ela havia voltado
a trabalhar como designer gráfica durante o dia, reservando
as madrugadas para se dedicar aos textos e ilustrações do
Wine Folly.
Hoje, com o site em expansão, Madeline tem recebido cada
vez mais convites para conhecer vinícolas ao redor do mundo.
Já percorreu quatro continentes e diz ter experimentado cerca
Baixe a Revista Personnalité no tablet
e veja mais trabalhos de Madeline
83
POR Filipe Luna FOTOS Leonardo Finotti
VERDE
CONCRETO
Para dar uma outra cor às paredes cinzas dos
edifícios paulistanos e melhorar a vida de quem
mora ali, jardins suspensos brotam em São Paulo
AO FUNDO, JARDIM VERTICAL DO HOTEL REGENT PARK, NA
PÁGINA AO LADO, O DO EDIFÍCIO TACOA; AMBOS ESTÃO EM
SÃO PAULO E FORAM INSTALADOS PELO MOVIMENTO 90°
E
m qualquer lugar no centro de São
Paulo, um indivíduo se encontra cercado por prédios. Não importa a direção
em que a mira do observador aponta,
imensas torres de concreto compõem a
paisagem da cidade. Mas, aos olhos de
Guil Blanche, criador do Movimento
90º, cada enorme parede vazia, numa cidade que não permite mais que a publicidade ocupe esse espaço, é um jardim.
O objetivo do jovem paisagista é cobrir
de natureza áreas que dão à capital paulista seu aspecto cinza pálido. “Morando
no centro, próximo ao elevado Costa e
Silva, o Minhocão, tive uma visão dessas
empenas cegas [termo técnico para denominar as paredes sem janelas dos prédios],
superfícies sem função alguma, cobertas
de verde”, diz o goiano de 25 anos. “E,
mais do que isso, entendi que era uma
urgência da cidade.” Além do evidente
benefício visual, um jardim vertical provoca impacto ambiental significativo.
Guil aprendeu a técnica enquanto
cursava a faculdade de arquitetura na
Escola da Cidade, em São Paulo, através
de um amigo que estudou com o criador
dos jardins verticais, o botânico francês
Patrick Blanc. “Fiquei encantado. Pensei:
‘Esse é o futuro da cidade. Você não tem
espaço pra fazer jardim, então vai pra
parede’.” Blanche voltou a Goiânia e praticou durante seis meses numa fachada
da fábrica de fundição de alumínio do
pai. Chegou a um resultado similar ao de
Blanc, mas com um custo mais barato.
Decidiu espalhar a novidade pela capital de Goiás. “Virou uma febre”, conta.
“Hoje, qualquer casa de alto padrão lá
tem um jardim vertical.”
De volta a São Paulo, Guil decidiu
largar a arquitetura e completou o curso
técnico em paisagismo. No final de 2011,
“OS JARDINS
VERTICAIS
SÃO O
FUTURO DA
CIDADE”,
DIZ GUIL
BLANCHE
passou a mapear as paredes em que os
jardins poderiam ser implantados. A
tarefa durou mais de 1 ano e apresentou
um resultado impressionante: cerca
de 258 mil metros quadrados (área
equivalente a 30 campos de futebol) de
empenas cegas nas principais avenidas
do centro expandido. O Movimento 90º
começou com um objetivo definido:
transformar o Minhocão num corredor
verde. Era hora de formar uma equipe.
A portuguesa Inês Fernandes conheceu o projeto de Blanche por meio de um
amigo em comum e se juntou ao grupo
em 2013. Aos 25 anos, a arquiteta, que
fizera parte de sua graduação na Universidade de São Paulo, havia decidido
deixar Lisboa para estabelecer carreira
no Brasil. “Eu estava procurando emprego, mas não estava satisfeita com o tipo
de abordagem tradicional dos arquitetos,
sem um impacto social ou na vida das
pessoas”, afirma. “Há muita coisa para
ser feita em São Paulo, e é aqui onde me
sinto mais útil.” O outro arquiteto da
equipe, o também goiano Rodrigo Amaral Rocha, 28 anos, é amigo de infância
de Guil. “Me interessei pela ideia de que
esse projeto é acessível e de que pode
transformar a cidade”, explica. “Tinha
possibilidades de emprego mais rentáveis, mas não é essa a função do trabalho
para mim. Não adiantaria fazer algo que
não transformasse a sociedade.”
O trio pinçou alguns dos problemas
mais evidentes e essenciais da maior cidade da América do Sul e os atacou com
um método simples e inspirador. Um jar-
86
ACIMA, A EQUIPE DO MOVIMENTO 90º: RODRIGO AMARAL
ROCHA (SENTAD0), GUIL BLANCHE E INÊS FERNANDES.
NA PÁGINA AO LADO, O JARDIM VERTICAL DO HOTEL
REGENT PARK, NO BAIRRO CERQUEIRA CÉSAR (SP)
dim vertical é também um jardim versátil em benefícios. Segundo os integrantes do Movimento, a temperatura de
uma parede cai cerca de 8 graus externamente e 4 graus na parte interna com
um tapete verde aplicado sobre ela. As
plantas absorvem o ruído da rua e ainda
diminuem em 60% a concentração de
micropartículas poluentes no ar, num
raio de 30 a 40 metros do jardim. “Eles
estão dando uma alternativa muito legal
para você criar áreas verdes numa cidade que tem pouco espaço”, explica Gilberto Dimenstein. “É daquelas grandes
invenções urbanas em que você mostra
como pode embelezar e despoluir com
baixo custo.” O jornalista e editor do site
Catraca livre é um dos principais incentivadores e convidou o grupo a criar
um projeto para o galpão em que vai
implantar o Armazém da Cidade – local
onde o Movimento vai instalar seu novo
escritório e dividir o espaço com outras
empresas de impacto social.
87
ARTE DE RUA
O primeiro grande jardim no Minhocão
foi realizado no final de 2013 no edifício
Honduras, em parceria com a marca de
bebidas Absolut. Guil desenhou o projeto
como costuma iniciar seus jardins: pintando em aquarela. As espécies de plantas
que dão as cores e compõem o desenho
são escolhidas de acordo com a época do
ano e a orientação da parede em relação
ao sol. “É difícil chamar meu próprio trabalho de obra de arte”, diz. “Agora, é possível comparar, sim, com uma arte de rua,
uma intervenção artística como o grafite.”
O artista plástico Felipe Morozini,
que mora na região e cujo trabalho está
diretamente ligado ao Minhocão, exalta
os aspectos positivos: “O impacto é gigantesco, seja visual ou ambiental. O jardim trouxe de volta pássaros que tinham
ido para a Serra da Cantareira, ou outra
floresta, e transformou um pequeno
trecho da cidade numa outra paisagem,
mais honesta e verdadeira”.
Rodrigo Rocha coordenou a equipe
que instalou a parede verde no Honduras. Uma estrutura com 5 centímetros de
espessura separa as placas de material
reciclado, feitas com embalagens Tetra
Pak, da superfície do prédio. Uma camada de feltro cobre as placas com bolsos
individuais para cada planta. O tecido
ajuda a reter a água, que é distribuída
por um sistema de canos. Em média, o
custo do jardim é de R$ 890 por metro
quadrado, mais cerca de R$ 200 de manutenção por mês – que corresponde ao
consumo de energia elétrica e água (o
jardim aumenta apenas em 1,5% o consumo de água do condomínio).
DOMÍNIO DO VERDE
A instalação, no entanto, foi a parte
simples. O maior desafio acabou sendo
convencer alguns moradores. “A grande
maioria acha positivo e tem senhorinhas
que amam e se orgulham de ter aquele
jardim no prédio delas”, afirma Rodrigo.
“Mas tem outros que reclamam, que dá
bicho. Tem épocas em São Paulo que você
tem mais mosquitos. Agora, é natural, não
é? Você está numa cidade, no planeta Ter-
_
Jardim vertical recordista
O maior jardim vertical do mundo, segundo o livro Guinness dos recordes,
fica na região de Bukit Timah, em Cingapura. O condomínio Tree House traz
na sua fachada um jardim de 2.289 metros quadrados. São quatro torres de 24
andares e um total de 429 apartamentos. O metro quadrado lá vale mais ou menos US$ 10 mil. Além de ser um dos aspectos marcantes do projeto, as plantas
proporcionam economia aos condôminos. A construtora estima uma economia
de 15% a 30% com gastos com ar-condicionado para os apartamentos que têm
quartos nessa fachada, graças à diminuição de temperatura interna causada pelo
ra, e aqui temos insetos. Eu acho bom que
tenha aranha na minha casa. Você está
próximo da natureza, não isolado.”
O impacto do trabalho do Movimento 90o é sentido de fato quando o projeto
tem mais escala. Por isso, o grupo quer
aplacar a poluição gerada pelos cerca de
120 mil automóveis que passam por dia
pelo Minhocão implantando mais 20 jardins verticais ao longo do elevado. Eles
já conseguiram dez autorizações de condomínios. “Acredito que daqui a 30 anos
as cidades estarão cobertas de paredes
verdes”, afirma Guil. “Como ainda não
existiu essa intervenção de impacto urbano, é isso que a gente quer fazer. Quer
ver se realmente o impacto é sério.”
O objetivo está definido para 2015.
Enquanto isso, seguem trabalhando para
transformar São Paulo, e outras cidades
do Brasil, em paisagens urbanas dominadas pelo verde. Nos cursos e workshops,
o trio ensina toda a técnica que desenvolveu, sem se preocupar em guardar
segredos industriais. “A gente torce para
que as pessoas aprendam mesmo e que
apareçam outros fazendo”, diz Guil.
“E nenhum de nós é realmente de São
Paulo, né? Todo mundo que vem parar
aqui se identifica com a cidade porque
ela te recebe de braços muito abertos”,
completa Inês. “As coisas que as pessoas
encaram como problemas, como mal
resolvidas, para mim são possibilidades.
Essa cidade está cheia delas. Sempre
me identifiquei com a possibilidade de
mudar o mundo com a minha atuação no
lugar onde estou.” Guil Blanche encerra
a conversa com um convite: “Precisamos
de concorrência, de gente capaz de fazer.
São 258 mil metros quadrados de paredes lisas em São Paulo. Não tem como a
gente dar conta sozinho.”
DIVULGAÇÃO
jardim. Isso significa de US$ 12 mil a US$ 24 mil a menos de custos com energia
elétrica por ano. O empreendimento tem ainda outras iniciativas de economia de
energia e água que irão diminuir os gastos anuais em até US$ 500 mil.
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NA PÁGINA AO LADO, O JARDIM VERTICAL MONTADO
NO EDIFÍCIO HONDURAS DÁ OUTRAS CORES À
PAISAGEM QUE SE VISLUMBRA A PARTIR DO MINHOCÃO
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PRIMEIRA PESSOA | VERA HOLTZ
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ESPÍRITO POÉTICO
POR KIKA PEREIRA DE SOUSA / FOTO PAULA GIOLITO
A atriz costuma comprar objetos sem
saber exatamente o motivo. “Um
tempo depois, sempre acontece algo
que ‘explica’ o porquê.” Em 2014,
após ter adquirido esta escultura, ela
foi convidada para viver Timon de
Atenas, que se lança em alto-mar a
bordo de um veleiro, em uma peça de
Shakespeare. “A escultura leva a um
estado de espírito poético, um momento
desconhecido da minha experiência,
como é a imensidão do mar.”
A PEÇA É OBRA DO ARTISTA PARAENSE TONICO LEMOS AUAD
E SE CHAMA SERMÃO DOS PEIXES. ELA FEZ PARTE DA
COLEÇÃO BORDALLIANOS DO BRASIL E FOI ADQUIRIDA
PELA ATRIZ NA ARTRIO, EM SETEMBRO DO ANO PASSADO
90
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