Volume
2
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
D E C ATA G U A S E S
Apoio:
Execução:
Patrocínio:
Incentivo:
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
D E C ATA G U A S E S
Vo l u m e 2
2ª EDIÇÃO – 2012
Organização e Coordenação: Paulo Henrique Alonso
Equipe Organizadora (1ª edição):
José Luiz Batista (coordenação), Antônio Fernando Batista dos Santos,
Flavio Campos Grillo, Lídia Avelar Estanislau, Marco Antônio de Campos
Guimarães, Maria das Dores Freire, Gláucia Siqueira, Mariana Garcia
Cardoso de Almeida, Vera Lúcia Barbosa Brito, Rosário François Petiijean
Fusco de Souza Guerra, Maria Aparecida Schuchter, Guilherme L. Gonçalves
Estagiários (1ª edição):
Hélvia Peres Cordeiro, Maria do Carmo de Castro, Mônica Machado da Silva,
Paulo Henrique Lage Brum
Coleta material iconográfico: Marcela Andrade da Silva
Design: Birte Paetrow, Gustavo Baldez, Holger Melzow
Infraestrutura e tecnologia: Américo Vicente Sobrinho
Plataforma de rede e internet: David Azevedo, Danilo Marinho
Comunicação: Beth Sanna
Produção: Bárbara Piva
Gestão administrativo-financeira:
Djalma Dutra Jr, Geisiane Marinho de Lima
M533
Memória e patrimônio cultural de Cataguases / Paulo Henrique Alonso
(Coord.). – 2 ed. – Cataguases / MG: ICC, 2012.
200 p.: il. pb. – (Memória e patrimônio cultural de Cataguases; II)
ISBN: 978-85-65550-01-7
1. Memória Oral. 2. Patrimônio Cultural. 3. História. 4. Cataguases / MG. I.
Alonso, Paulo Henrique. II. Instituto Cidade de Cataguases – ICC. III. Título.
CDD: 981.5
Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias:
Carla Viviane da Silva Angelo – CRB-6/2590.
Edna da Silva Angelo – CRB-6/2560.
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
D E C ATA G U A S E S
Vo l u m e 2
A P R E S E N TA Ç Ã O
Este é o segundo volume, em 2ª edição, da série que
registra a memória oral de vários personagens da cidade de Cataguases, Minas Gerais. Ele é parte de um
projeto iniciado em 1988 pela Prefeitura Municipal
de Cataguases e pela antiga Secretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional/Fundação Nacional
pró-Memória.
Aqui, damos continuidade e retomamos o trabalho original, com a produção periódica de novos
exemplares e a reedição dos volumes publicados anteriormente. O propósito é que tenhamos, de forma
sistematizada, registrada e divulgada a memória daqueles que fizeram e fazem a história da cidade e que
possamos, assim, contribuir para a preservação da
memória local.
Neste volume estão 10 relatos, colhidos entre
1988 e 1989 e publicados em 1990. Como na edição
anterior, o texto privilegia a fala própria dos entrevistados, regendo-se mais pelas regras da comunicação
oral do que pelas normas da escrita. Na reprodução
das fotos, as autorias e datas que não foram identificadas estão citadas nas suas respectivas legendas
como s/a e s/d.
Esta publicação está também disponível, em
formato PDF, para download gratuito no sítio eletrônico www.fabricadofuturo.org.br.
ÍNDICE
11
ALBERICO DUTRA DE SIQUEIRA
Delegado Fiscal, 75 anos
31
ASTOLFO DUTRA NICÁCIO NETO
Advogado, 68 anos
49
E VA R I S T O G A R C I A
Representante Sindical do Ministério do Trabalho, 73 anos
75
HOMERO DE SOUZA
Operário, 66 anos
91
J O Ã O FA B R I N O B A I Ã O
Escrivão Federal, 80 anos
113
J O S É L U I Z S A L E S VA L E
Juiz de Paz, 76 anos
129
LAURENTINA CARUSO
Comerciante, 81 anos
141
MANOEL DAS NEVES PEIXOTO
Advogado e Professor, 74 anos
159
M Á R I O D A PA I X Ã O
Funcionário Público Federal, 74 anos
183
R I TA L O P E S M A C H A D O ( D O N A F I L H I N H A )
Esteticista, 79 anos
ALBERICO DUTRA DE
SIQUEIRA
DELEGADO FISCAL
75 anos
A gente guarda assim uma lembrança muito vaga, porque nunca liguei, nunca falei dessas coisas, não é? Mas eu me lembro de muita coisa...
Eu nasci aqui, fui criado na Fazenda Ponte
Alta. Hoje é cidade. Hoje (Cataguases) atravessa a
Fazenda Ponte Alta... a avenida com o nome de nosso pai: Avenida Sizenando Dutra de Siqueira. Ali
era roça. Ali plantava muita cana, de um lado e do
outro cana era o principal, né. Engenho, leite - pra
fazer queijo - tudo só pra manutenção da Fazenda...
A Fazenda Ponte Alta era tradicional, pertencia ao
meu avô, Manoel Inácio Borges de Andrade, e ele
Foto: Antiga Farmácia Americana do Sr. Pergentino Dutra de Siqueira,
s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico
de Cataguases
11
fez doação. Papai ficou com parte dessa fazenda e
nós fomos criados ali: quatorze filhos. E vivi ali trabalhando assim, plantando cana nas madrugadas...
Levantávamos cedo... Fazia rapadura pra vender e
tinha outras lavouras como café, arroz, plantação de
frutas, né.
O meu avô teve. Dona Bárbara foi escrava
do meu avô. Com a libertação dos escravos, Dona
Bárbara foi morar com mamãe. Engraçado que havia
amizade entre os escravos e os meus avós. Amizade
mesmo! A minha vó botava eles pra colher café, arroz... Então eles saíam, enchiam os sacos... “pode levar prá vocês!” Meu avô era Manoel Inácio Borges
de Andrade e eles ficaram só com Borges. Até hoje
tem aí Borges. Esses, os Borges... Maria Borges, Rita
Borges, o Maroca é descendente deles, essa gente toda. Todos eram escravos. Veio a libertação, eles não
quiseram sair de lá. Saíram não. Não saíram da fazenda, porque eles tinham tudo lá! Ficaram lá, uai!
Quando houve a libertação eles ficaram morando nos
Borges. Ficaram lá morando e tinha tudo! Produzia
muito, criava porco, né. E interessante é que eles tinha orgulho de dizer que era da família dos Borges.
Preto mas era Borges né.
O papai era católico... Tocava sanfona, era marcador de quadrilha, né. Eu puxei mais ele, porque eu
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gostava muito de dançar! Violão, então, eu gostava!
Mamãe também era católica... A família do meu avô
Manoel Inácio era família nobre, né. Então eles não
aceitaram o casamento de papai e de mamãe. A família de papai era mais simples. Era proprietária dessa
Vila toda, mas era gente muito simples. E os Borges
não. Os Borges eram mais fortes mesmo, né. Então
eles combinaram, pra casar, um encontro na casa de
um crente, o Rezende. Ali onde é aquela cooperativa,
ali tinha uma chácara, ali morava os tais Rezende...
Esse crente foi lá pegar mamãe, não é. Trouxe, fizeram o casamento lá. Acho que foi por isso que houve assim... da parte dele, interesse de ser metodista, mais tarde. Eles foram relacionando, houve com
certeza um bom entendimento o (papai) era muito
alegre, muito brincalhão... Então, uma noite, eles estavam lá numa festa muito grande! Num baile lá na
fazenda. E papai lá, marcando muito bem uma quadrilha. Ele era elegante mesmo! Então, dias depois, a
Igreja Metodista - ele já estava frequentando a Igreja
Metodista - ele tinha relação com a Igreja Metodista,
mas gostava também de um bailezinho. Então aparecera lá... foram lá em casa o Bibiano, o Sucasas e
um outro... E exigiram dele que ele se definisse. Ou
o papai ficaria na Igreja Metodista ou então... Com a
Igreja ou com os bailes. E então ele renunciou a tudo
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isso e ficou com a Igreja Metodista. Então foi assim
que ele ficou com a Igreja e nós fomos criados lá na
Igreja... Diz que a Igreja Metodista acabou com a alegria de papai.
O papai sabia comandar. Ele sabia mandar direitinho... Tinha muitos empregados, ele não era de
muita conversa não. Era assim austero, espécie de
um líder na região. Ele comandava tudo! Se morria
uma pessoa, ele ia lá, mandava fazer o caixão - naquele tempo não tinha, assim como tem hoje, casa
funerária, né. (Eu) Era bem pequeno e me lembro.
Ele mandava o carpinteiro da fazenda fazer o caixão,
mandava botar o corpo dentro do caixão e mandava
o pessoal sair. Mas ele não vinha não. Mandava! Ele
não vinha nas casas... Então ele era muito bom para os empregados, e empregado lá era independente! O sujeito podia fazer uma casa, ele deixava. Uma
ocasião, teve na fazenda dele umas dez casas assim
de pessoas que pediam para construir e ficavam morando independente. Plantavam, colhiam e não era
empregado dele não. A senbora do Pedro Laroca
fez uma casa boa, enorme, ali onde hoje é aquele
Costinha. não é... Evaristinho, ali... tinha uma espécie
de rego. Ela construiu uma casa boa ali. Ele sempre
foi muito bom, então respeitavam ele muito. Papai
foi um homem de respeito!
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Eu me lembro, certa vez, num baile na Fazenda
do Bonfante... Fomos daqui uma rapaziada, tudo a
pé. Chegamos lá, dançamos, e eu sei que, logo quando eu cheguei, o filho mais velho foi lá dentro e buscou a irmã dele - uma italiana bonita - e me apresentou para dançar. Quer dizer assim... eu achei aquilo
uma homenagem ao papai, porque o papai era muito
respeitado, muito conhecido né.
Eu, Joel seu pai, Dalila, Elvindo, por exemplo,
era claro. E Maria e os outros, todos morenos. Neca,
bem moreno! Nós temos pessoas claras e bem morenas na família. O papai bem moreno e (mamãe) muito clara, os olhos azuis, né. Eles vieram aqui para Rio
Novo... Rio Pomba... nas imediações, porque nós descendemos de uma família que veio da... Eu não sei se
veio da Alemanha... O chefão que veio, que era nosso
tataravô, bisavô... ele era um homem assim sistemático, e ele não admitia que chamasse ele de... tinha
que pronunciar o nome Duckter. É, Duckter. Então,
daí veio a palavra Dutra. O papai descendeu desse
alemão, quer dizer, é filho de índio é, mas com alemão. Duckter, naturalmente ele casou com uma índia... papai era moreno, com cabelo liso, né. Mas nós
herdamos o nome Duckter. Então conversando certa
vez com o Pedro Dutra, que também é da mesma região, já estudou mais, aprofundou mais, porque ele
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era advogado, gostava disso... Então ele me contou.
O Pedro era nosso parente. Eu conversava muito com
ele sobre isso...
Estudei em Belo Horizonte o científico. Eu
terminei o meu curso na Escola de Comércio, ali
na Rua da Babia. Quando foi em 1933, eu fui para
Belo Horizonte. Depois trabalhei uns tempos na
Secretaria da Fazenda, naquele tempo era Finanças,
né. Depois voltei para Cataguases... trabalhar na
Coletoria, e aí fiquei. Eu estudei em... Eu entrei
pro Grupo “Coronel Vieira”... completei 7 anos no
Grupo. Naquele tempo era (a única escola). Deve ser
em 1920, eu sou de 1913. Eu me lembro que eu já
entrei na Coletoria em 1936. Entrei no Grupo aqui e
fui para o segundo ano. Eu aprendi tudo, porque lá
na roça, naquele tempo, ensinava mesmo, uai! Mas
ensinava tudo! Tudo, tudo! Eu tinha assim uns 6
anos e, lá na roça, onde é hoje o meu sítio, ali, naquela casa do mesmo formato, era do tio Leopoldino.
E ele era um homem assim muito aberto sabe. Ele
levou pra lá a professora: Dona Cota. Então, minhas
irmãs foram matriculadas lá. E eu ia com elas de
companhia... Porque passava no sítio do Tio Gabriel,
tinham medo... Então eu ia, como um homenzinho,
atrás. E lá eu ficava ouvindo as aulas, ficava assistindo... Eu fui assimilando, eu fui aprendendo... Lá
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onde eu frequentava com minhas irmãs ensinava
tudo. Fiquei lá uns dois anos assistindo aquilo... fui
gravando...
A gente tinha que chegar aqui às sete horas:
das sete às onze horas, aula. A gente saía daqui às
onze horas, chegava meio-dia... meio-dia e pouco e
ia almoçar. Era assim, vinha da roça... Tinha poucas
casas ali... Não havia aquela ponte lá embaixo, então
a gente dava volta por cima, pegava a estrada de ferro e vinha. Era uma hora, mais de uma hora pra vir
aqui. Na Vila Domingos Lopes tinha ali uma igrejinha. poucas casas, pra baixo era um matagal. Tinha
aquela estrada de ferro, a antiga ali... que liga a sede da segunda seção e a de cá. Lá era nosso caminho, que era mais perto. Ali não tinha casa... é, deserto, não tinha nada. Lá na frente, tinha uma casa comercial. Mais adiante, onde tem a Manufatora, tinha
uma chácara... gado, tinha muito, gado ali. E mais na
frente tinha “Pampulha”, uma chácara. Era um chalé muito bonito. Na Vila, por exemplo, tinha pouca
gente... Eu me lembro de uma padaria, eu comprava
sempre pão, quando vinha pra casa:
“Picolli”, é italiano. Tinha nada ali não. Eu me
lembro do Agostinho Resende, do Tatão, as meninas
andando a cavalo... A gente gostava de vir na Vila...
Tudo ali não tinha calçamento, não tinha nada, nem
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passeio. Ali perto, que tinha ali nossa farmácia, ali
tinha chácara. Lá era a farmácia do Zé Esteves. Ali,
onde é hoje a Caixa Econômica, não tinha nada. O
Carvalho é que tinha uma casa comercialzinha, onde é até hoje. Só até ali que vinha a casa dele. Pra cá.
A Carcacena que era nova... Casa Felipe... não tinha
mais nada não.
A Escola Comercial, o Langoni começou lá
na Avenida MeIo Viana, na casa dele. Ele tinha uma
Escola de Comércio, ele preparava para o concurso
do Banco do Brasil e outras coisas mais. Aí ele fez
uma espécie de contrato com o doutor Enrique, aquele escritor, Resende né? E então montaram uma escola muito boa, porque o doutor Enrique era professor
de português; o Langoni de matemática, contabilidade e tinha outro que era de história, não me lembro
o nome... era do Colégio Cataguases. Era no cinema,
era aqui no teatro, aqui em cima, ali no antigo prédio.
Então tinha um salão muito grande, em cima. Salão
de baile, festa... lá que a gente se encontrava. O sujeito ser aluno de um doutor Enrique era a coisa mais
importante na vida do rapaz! Não dava (diploma)
mas preparava o indivíduo.
Aos 17 anos eu aprendi tocar violão. Eu aprendi aqui com o Langoni, eu acompanhava serenata em Cataguases... Havia assim... um período até
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romântico. Tinha muita serenata naquele tempo.
Muito romântico! Eu frequentava ali, ele e o irmão
- Antônio e Carlinhos Langoni - gostava muito de
mim... O Antônio era casado, tocava violão, e a gente saía... serenata... Logo depois eu aprendi a tocar
violão, por causa disso, influência deles. Aí eu já tinha a turma lá da Vila. O Murilo cantava muito bem.
Eu era entrosado com essa turma. A gente ia ali pra
Vila Reis. Lá a gente consertava, afinava os instrumentos, cantava... Nós tínhamos vários rapazes que
cantavam muito bem, mas o que eu achava melhor
era o Murilo. Ele trabalhava comigo na farmácia do
Pergentino... o dia todo lavando vidro e cantando...
Ele tem uma voz! Daqui a pouco da gente vai escutar, que ele vai cantar... A gente ia andando pelas ruas,
escolhia né. Eu me lembro que estava cantando uma
vez, defronte do Hotel Pires, hoje é... Ali morava o
Pires... tinha uma filha muito bonita! Então o Murilo
cantou muito bem lá. Ela abriu a janela e pediu pra
bisar, e nós acompanhando... Até que era bom! Tem
um rapaz, que morreu há pouco tempo - aposentado
da Estrada de Ferro - ele tocava saxofone muito bem
mesmo! Esqueci o nome dele, não me lembro mais...
O Carlinhos, nós perdemos muito assim o entusiasmo, porque o Carlinhos morreu. Aqui não havia recurso, ele teve apendicite aguda, não havia recurso,
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morreu. Aí nós ficamos assim meio desarvorados né.
O Carlinhos era irmão do Langoni, era muito preparado, tocava violino muito bem, cantava muito bem!
Era uma seresta só pra mexer com as moças. Era muito bonito! Assim madrugada, iluminada pelo luar...
Muita casa a gente parava e era na sombra da casa
que a gente escondia, pra ninguém conhecer a gente.
Mas a lua era muito clara, bonita, era muito bonita!
Era um período romântico. Acabou! Eu fui pra Belo
Horizonte e quando eu voltei já estava acabando...
Eu fui muito dançador, eu gostava muito! Mas
aqui havia uma rivalidade assim interessante... Os
que podiam, frequentavam o Comercial Clube: gente da elite, só gente rica, gente bem... médicos, professoras, essas coisas né. E tinha a nossa turma: tinha aqui o Não Vens Assim, é o nome do Clube. De
maneira que nos carnavais a turma lá do Comercial
vinha nos visitar. Aquele cordão né, cantando, dançando, desfilando... rodava no clube e saía. Depois a,
gente ia lá também. Mas lá, eles não recebiam a gente
muito bem não. O Não Vens Assim era muito interessante mesmo! Era aqui nessa esquina aqui (Praça
Rui Barbosa). Era um salão enorme! E, nessa esquina,
perto do outro. Era muito mais quente, porque aquele pessoal das fábricas e do comércio... a rapaziada,
não é... caixeiros-viajantes... Eu sei que ia lá dançar
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né. Eu sei que era muito animado. Muito, muito, muito animado mesmo! As meninas da fábrica, as filhas
dos comerciantes, gente que não podia frequentar
lá (Comercial), eles era só elite, né? Lá no Comercial
Clube, eu fui dançar lá várias vezes. Mas não era ambiente que a gente gostava. Lá havia muita austeridade, as mães tudo assentadas lá, de leque, olhando as
danças... Tinha outros clubes aí, tinha o Emílio... Mas
o Emílio já foi depois, começou a aparecer depois.
Havia muito baile na roça. Naquele tempo não
era assim como hoje. Eram bonitas as festas juninas,
não isso que a gente vê (hoje), não. A meia-noite é
que parava tudo, a quadrilha... Depois que terminava a quadrilha que ia passar na fogueira. Aí já era
de madrugada! As fogueiras, o foguetório, foguete...
Soltava foguete a noite toda! E sanfona a noite toda!
São João, Santo Antônio, São Pedro... Havia muito
isso nessa região toda. Toda parte tinha foguete, fogueira... Era nas fazendas, salões enormes! Basta dizer que, por exemplo, eu me lembro que a quadrilha
que o pessoal aprendia era três partes... O bom sanfoneiro é que sabia comandar uma bonita quadrilha!
Era tudo marcado em francês: balancê, allons en quatre... Eu me lembro direitinho!
A cidade era assim pacata, mas era muito interessante porque havia, ainda me lembro da gente
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aqui na praça... A gente ficava rodando de um lado e
as moças do outro... pra encontrar com as namoradas,
né? Antes era mais...
Inclusive ali, eu ficava na porta da farmácia, que era lá embaixo. Naquele tempo, a Indústria
Irmãos Peixoto fechava para o almoço e então, quando apitava dez horas, a gente vinha pra porta da farmácia pra ver as moças da fábrica. Tinha umas morenas bonitinhas né. Aí a rapaziada... alfaiate, naquele
tempo tinha muita alfaiataria, descia e ficava passeando, namorando. A gente ficava ali. Era um costume muito diferente... Não havia dinheiro, mas havia
muita alegria! E a gente notava isso. A moçada, que
trabalhava na fábrica, era uma moçada alegre, ficava
passeando ali de tamanco - pra lá, pra cá - com uma
porção de namorado. Umas moças bonitas! Dava dez
horas, a gente logo sabia que ia apitar, porque antes
de apitar dez horas o Manoel Peixoto, o Zé Peixoto ia
passando de linho branco, na porta da farmácia. Ele
ia almoçar, ele ia a pé. Ele saía entre o povo, não tinha carro, não tinha nada. Andava muito bem, firme,
o Manoel Peixoto, muito alto! O Zé Peixoto e o pai do
Eli, que foi professor aí, ele era guarda-livros da fábrica e contador. Ele vinha com eles. Passavam muito sério, não é, do cemitério até a porta da farmácia.
E a porta da farmácia era interessante pelo seguinte:
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era ponto de reunião. Naquele tempo, 1928, começou aquele movimento que acabou-se logo... entrou a
Revolução de 30 né.
A política começou muito quente mesmo.
Muita coisa com o nosso governador - naquele
tempo era presidente - Antônio Carlos. Ele queria
ser candidato a presidente da República, mas como o Washington Luiz, que era o presidente desta
República, quis indicar um novo paulista... Café com
leite: era um ano paulista e outro período mineiro né.
E o Antônio Carlos, a pretensão dele, que era um homem muito culto, descendente dos Andradas... ele
queria ser presidente da República! Aí o Washington
Luiz indicou Julio Prestes né. Com isso o povo ali na
farmácia. Não havia, assim, televisão nem rádio, (a
farmácia) era um ponto de encontro. Então ali toda
tarde, chegava (trem) expresso do Rio trazendo correspondência. Chegava às cinco e cinco, então antes
das cinco horas já estava descendo gente para ir esperar o trem, pra pegar os jornais. Todo mundo acompanhava né, aquele entusiasmo político... 1928/29.
Então, me lembro, doutor Abílio às vezes passava
na farmácia. Tinha dois senhores - o Carlos Louro e
o Agenor Ladeira - eles faziam esse trabalho de comissário, ia no Rio e trazia. Todo mundo ficava em
volta pra saber notícia do Rio de Janeiro. Eles iam lá
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e trazia ela quentinha né. Quando foi em 30, aí começou a revolução mesmo, foi feita a revolução... Houve
a eleição em 29... foi quando Minas, Rio Grande do
Sul e Paraíba, eles fizeram a revolução... Então tinha
aqueles trens descendo cheio de soldados... A gente
era menino, eu achava aquilo... eu era rapazinho...
Eles estavam descendo pra combater, eles iam atacar o Rio de Janeiro. Então esse trem que vinha por
Ponte Nova, vinha transportando esses soldados todos, dessa região aqui, pra ir pro... Ali no setor da linha de Além Paraíba que é a divisa com o Estado do
Rio... Eu me lembro direitinho!
Aí o Pedro Dutra, já em 32, que eu me lembro
mais... Pedro Dutra organizou milícia pra combater também, e já era a favor do Getúlio, porque São
Paulo quis tirar o Getúlio né? Aí nessa parte... 1932,
que Cataguases participou. Eles prepararam aqui,
as milícias eram preparadas aqui... soldados recrutados... Até seu pai tomou parte. Ele era integralista... antes foi miliciano lá no Itamuri... ele organizou
com Chico Campos a milícia, que era pra derrubar o
Getúlio né. E com isso consta que o Getlílio contratou gente... eles mataram nosso governador Olegário
Maciel na banheira. Ele morreu na banheira! Eu vi o
corpo dele lá no Palácio da Liberdade. O Joel pertencia a essa milícia, eles estavam preparando pra to-
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mar o governo. O Joel apareceu lá todo de cáqui - o
uniforme deles era cáqui - e o boné era bonito! Aqui
nós tínhamos... Aqui toda noite ficava marchando,
batendo caixa na rua, preparando aquela gente pra
milícia... Eles foram encontrar em Belo Horizonte, já
com o plano de fazer revolução. Mas depois chegou
lá, não sei o que houve, não deu em nada... Seu pai
fazia parte, isso eu posso afirmar. Nesse tempo eu me
lembro: Cataguases participou.
Porque o Getúlio, ele... o compromisso da revolução era dentro de seis meses ou um ano marcar
eleição. Ele combateu a eleição porque houve fraude,
então era pra ter outra em seguida, né. Ele assumiu
o governo e modificou, mudou a coisa toda lá no interesse dele Getúlio! Então São Paulo se levantou! A
tal Revolução Constitucionalista porque eles queria
a constituição. Porque com o golpe de 30 acabou, encerrou a constituição até hoje. E Minas aí participou,
em 32.
Então em Minas, a Aliança Libertadora cresceu muito. Eu fazia parte da Aliança Libertadora e,
do outro lado, começou a aparecer um tal de Plínio
Salgado, que era integralista né. Então havia o choque entre nós e o integralismo, que era da direita
né. Lá no ltamuri, Muriaé, o seu tio, o pessoal todo era integralista. Era, o deles era pesado, era for-
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te. Aqui não... Quando foi em 35, houve a Intentona
Comunista e o Prestes aproveitou disso, desse
movimento... Na Aliança Libertadora, lá em Belo
Horizonte - eu era estudante - eu tinha um amigo,
não sei porque ele cismou comigo! Achava que eu
devia fazer muita coisa pelo Partido né. O Rubens...
eu acho que ele foi morto em 35. Mas lá numa reunião, um dia lá, eu fiquei meio chocado com aquilo,
porque eu, filho de metodista... aquele entusiasmo
de liberdade, de igualdade para todos... todos participassem... Estudante tem essa bobagem né: idealismo de criança mesmo, né. E a coisa não pode ser
assim... Mas enfim, nós entramos numa reunião
lá, eles levantaram a questão pra pagar a dívida do
Brasil - naquele tempo já se falava em dívida né - eu
fiquei sabendo que, no Sul de Minas tinha um sino
de igreja que pesava três toneladas! Então eles levantaram essa tese que que nós íamos pagar a dívida do
país acabando com a Igreja Católica e vendendo os
sinos, o bronze das igrejas. É pegar esse bronze todo!
Eu fiquei assim... chocado! Falei: gente mas a Igreja
Católica! Eu não sou católico mas a tradição do sino
bater, achava aquilo bonito! O sino batendo... desperta a gente pra uma coisa mais elevada... Sempre
acompanhei aquilo. Vai derrubar igreja pra pagar
dívida?!? Paga dívida com trabalho pra realizar as
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coisas. Aí eu fui afastando... Depois eu vim embora
(para Cataguases). O Rubens me escrevia e escrevia
pedindo que eu trabalhasse aqui... Mas aí houve a
revolução, a Intentona Comunista e logo depois o
Getúlio com o negócio da guerra, prestigiou o imperalismo, né. Aquela coisa toda, né... E a Alemanha
cresceu lá... Mussolini... Mas eu nunca tolerei nada
disso não! Não, eu tinha outra formação. Eu pertenci
a Aliança Libertadora. Eles (os integralistas) pregavam a honestidade... o sujeito entrava lá honesto...
Essa questão de direita, esquerda, é tudo confusão
boba. Falamos tanto nessa Nova República e entraram esses bandidos lá, que já há vinte anos vinham
falando... criticando os militares! Hoje que eles estão
fazendo aí, né isso? Então, eu não entendo esse negócio de direita, de esquerda... tudo conversa! O que
nós precisamos é de um governo - que possa ser de
direita, esquerda - honesto! Ou que tenha autoridade,
que esse não tem nenhuma! Pra se impor pra comandar, porque país nenhum, com essa bangunça aí, não
cresce não!
A primeira Igreja (Metodista) era aqui nessa
ponte, perto da Delegacia de Polícia. Depois, eu não
sei bem o ano eu me lembro que o Pergentino - era
o superintendente, ele comandava a escola dominical - atravessou com o estandarte ali na frente, e inau-
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gurou aquele templo lá da Avenida Astolfo Dutra.
Eu me lembro disso direitinho! Subiu ali a Rua do
Pomba, desceu ali no... e pegou a Avenida. Eu me
lembro direitinho porque o Pergentino ia na frente...
a Jandira... de branquinho... Ele era caprichoso, era
elegante, ele não tinha receio de nada. Naquele tempo a Igreja Católica perseguia muito os protestantes.
Naquele tempo havia restrição mesmo. Havia porque os padres não batiam muito com os crentes né?
No Grupo (Coronel Vieira) eu sentia isso. A gente
sentia, sentia sim. Não havia perseguição, mas havia
preconceito, restrição né.
(Em Cataguases) sempre houve dinheiro
né. Tinha os chamados ricos e vinha descendo...
(Mas) não pensava em dinheiro não. Pensava não.
Ninguém pensava em dinheiro. Não tinha essa preocupação não... E por isso nós éramos muito mais felizes!
Entrevistado em 24/08/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de
Oliveira Valadares.
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ASTOLFO DUTRA
NICÁCIO NETO
ADVOGADO
68 anos
Eu tenho tido uma vida muito movimentada, morei em diversos lugares. Meu serviço
militar foi feito em 1940. Exerci diversas atividades,
mas, sobretudo fui advogado. Fui deputado estadual,
fui deputado na Assembleia Constituinte Mineira de
47. Do Antônio Carlos até o Aureliano Chaves, eu conheci todos os governadores de Minas. E depois do
Aureliano conheci muito bem o Ozanan e o Tancredo,
que foram meus colegas na Assembleia Legislativa.
Eu tenho quase 68 anos, sou de 7 de agosto de
1921. Então, o que eu pude fazer, eu fiz! Agora, nunFoto: Pedro Dutra e Flávia Dutra, s/a, 1920, Departamento Municipal do
Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases
31
ca tive, realmente, uma capacidade, uma habilidade
política, como meu pai tinha para o trato com o eleitorado. Eu não tinha aquela simpatia, aquele poder
de comunicação! Eu, realmente, nunca aprendi a ser
um político militante. Eu sabia minhas limitações
nesse campo. Como deputado, eu tinha um escritório,
lá em Belo Horizonte, com a “gang” do Pedro Braga
e José Ribeiro Pena. O Braga é hoje desembargador
aposentado. O Pena chegou a vice-governador do
Estado, Presidente da Assembleia Legislativa.
Depois eu vim para o Rio, fui ser advogado
do Banco do Brasil, depois fui advogado do Crédito
Real e fui advogado de grandes empresas do Brasil. E
ainda sou consultor jurídico de um grande estaleiro.
Eu me aposentei há três anos. Agora sou e continuo
sendo - e acho que todo mundo deve ser - um cidadão participante, que se interessa pelos problemas
do meus país, a partir do meu município, do meu
estado... do país inteiro. Eu sou, modestamente, um
estudioso de ciência política, de história do Brasil e
de história de Cataguases. Não sou um historiador,
não tenho formação específica nisso, porque eu tive
que ganhar a vida como advogado. E gosto da minha
profissão, gosto muito!
A respeito da situação do nosso país tenho uma
visão otimista. Apesar de toda a dificuldade que en-
32
frentamos, esse país vai sair da crise! A afirmação das
classes trabalhadoras é cada dia maior. Por outro lado, as classes empresariais brasileiras estão tomando
consciência do próprio papel. Há vários empresários
brasileiros, hoje, de alto nível, de alto espírito patriótico e que estão realmente empenhados na solução
dos problemas principais do Brasil. Estão vendo que
não podem construir um edifício sem fundações. E
que o edifício econômico tem que ter como alicerce o
trabalho. E trabalho, portanto, tem que ser valorizado! É do Astolfo Dutra pra cá (esse pensamento). Os
meus antepassados... não sei, porque o Major Vieira
era latifundiário!
Os nossos laços afetivos com Cataguases decorrem de diversos fatores, a começar pelo enraizamento porque nossos ancestrais estão lá desde 1842.
E pela vivência ali: estudei no Grupo Escolar de
Cataguases. Joguei futebol ali, na avenida, na rua, e
a rua ainda era de poeira, não era calçada. Eu tenho
amigos em Cataguases que eu conheço há mais de
sessenta anos. Eu conheço o José Inácio Peixoto Filho,
o Zezito, presidente da Industrial, desde que ele nasceu. Wellington de Souza... o Alberto Bittencourt, que
é um dos meus melhores amigos... Então vou dizer:
os nossos laços afetivos em Cataguases decorrem do
enraizamento e do entrosamento com o pessoal de
33
Cataguases. Os meus laços afetivos, guardadas as
proporções que em idade variam muito, são os mesmos que você deve ter.
Eu devo declarar que vou concluir, dentro de
alguns meses, umas reminiscências, que eu estou,
escrevendo, e que abrange o período de 1929 a 1964,
aproximadamente. E para escrevê-las, como nada
vem do nada, eu vou remontar a tempos anteriores.
O meu avô Astolfo Dutra, que nasceu em dezembro de 1864, era filho de um fazendeiro - o coronel Pedro Dutra Nicácio - e neto, pelo lado materno,
de Joaquim Vieira da Silva Pinto - Major Vieira - que
chegou a Cataguases por volta de 1842.
O Major Vieira tinha recebido, não sei se por
doação ou porque ele havia adquirido uma sesmaria de terras de mais ou menos quinze mil hectares.
O Major Vieira chegou a Cataguases, que era um
pequeno aldeamento. A sesmaria dele começava
a poucos quilômetros, ali nos limites da cidade no
sentido de Miraí. Ele “plantou” a Fazenda da GIória
derrubando a mata para plantar cafezais. “Plantou”
a Fazenda da Glória a qual, pela morte dele, foi
desmembrada em dez ou doze: uma com nome de
Glória; desmembrou-se o Rochedo onde o filho do
Major Vieira - José Vieira de Resende Silva, que é o
Coronel Vieira - era chefe político ali e conseguiu a
34
elevação do Arraial do Meia Pataca a Vila. E que deu
o nome de Cataguases, porque era o nome de um riacho em Lagoa Dourada, que banhava a fazenda do
pai do major Viera, lugar onde ele tinha nascido. Mas
esse aspecto da origem e da genealogia familiar me
interessa muito pouco. Ele só me interessa quando,
do estudo dessa genealogia, você possa vislumbrar a
organização socioeconômica e política da região.
Sem perder o fio, o Major Vieira chegou a
Cataguases, “plantou” a Fazenda da Glória. Pela
morte dele ela foi desmembrada em diversas. Além
do Rochedo, principalmente, saiu a Fazenda da
Aldeia, que era do Pedro Dutra Nicácio, genro do
Major Vieira, casado com uma irmã do Coronel
Vieira. O Pedro Dutra Nicácio era filho de um homem chamado José Dutra Nicácio, e o José Dutra
Nicácio tinha uma filha que se casou com o Coronel
Vieira, filho do Major Vieira; e um filho - José Dutra que se casou com uma filha do Coronel Vieira. Então,
esses Resende do Rochedo. O avô deles, os atuais,
portanto o pai da Ofélia, era primo-irmão do Astolfo
Dutra duas vezes, pelos dois lados. Daí o nome de
Astolfo surgiu na família, porque tanto o Coronel
Vieira quanto o Pedro Dutra cunhado dele, cunhado duas vezes - vendiam café para um sujeito chamado Astolfo da Silva Pinto. Então, o Coronel Vieira,
35
em homenagem a esse comprador de café, põe nome no filho de Astolfo. O Astolfo Vieira de Resende,
que deixou vários trabalhos com temas jurídicos e
até um livro clássico sobre a posse. O Artur Vieira de
Resende Silva escreveu essa genealogia dos fundadores de Cataguases. E o Afonso Henrique Vieira de
Resende, pai da dona Ofélia - que está tomando conta
do Rochedo até hoje, com 94 anos - foi um advogado
muito combativo na região! Então, o Astolfo Dutra
descende da oligarquia cafeeira dali. Houve uma espécie de reforma agrária, que ele fez para os seus sucessores: em três tempos todos ficaram proprietários
rurais. O Major Vieira morreu e deixou onze ou doze filhos. Então uma fazenda razoavelmente grande
para cada um. Mas cada um de seus doze teve uma
descendência enorme também! O Pedro Dutra, meu
bisavô, deixou onze filhos: o Astolfo Dutra, meu avô,
era um deles. Então a fazenda do Pedro Dutra, que
era uma fazenda (de) trezentos alqueires, uma fazenda média pra época, foi dividida em onze. Aí deu um
sítio para cada um. Mas a partir do Major Vieira, os
fazendeiros se preocuparam muito, pelo menos os
dali de Cataguases, em adquirir para a família um
outro status cultural.
O Major Vieira mandou um filho dele estudar
Direito em São Paulo, depois foi para o Recife onde
36
se formou - o Luis Vieira da Silva Pinto... Esse Luis
de Resende da Silva Pinto foi um dos primeiros advogados de Cataguases, tio do Astolfo Dutra. Depois,
numa outra geração, o Coronel Vieira - José Vieira
de Resende Silva - que era o fundador do Rochedo,
mandou vários filhos estudarem. Por sua vez meu
bisavô, Pedro Dutra, também mandou dois filhos
estudarem: o filho mais velho, que morreu de febre
amarela no Rio, estudando Medicina. E o meu avô,
Astolfo Dutra, que ele mandou estudar Direito no
Colégio do Caraça. O que aconteceu com esses homens? Já as fazendas diminuídas em suas extensões...
Eles por sua vez com grau universitário... Eles não
adquiriram o gosto pelo trato da terra, isso é que é a
verdade, e foram se urbanizando...
Essa urbanização ia mais ou menos par-e-passo, também, com a diminuição da produtividade dos
cafezais daqui. Dos cafezais começou a prosperar a
burguesia urbana - burguesia só pode ser urbana mas estou dando ênfase a isso! A burguesia urbana
na qual existiam vários compradores de café, geralmente portugueses, e esse pessoal começou a enriquecer - num enriquecimento interligado com o empobrecimento dos fazendeiros, que começaram a dever a essa burguesia urbana. Foi, e eu afirmo que foi
inconsciente, uma partilha de poder. Essa burguesia
37
emergente ia assumindo o poderio econômico, mas
concordou em manter - e talvez não tivesse outro jeito - em manter nas mãos dos descendentes dos latifundiários em processo de empobrecimento, o poder
político.
O poder político em Cataguases foi exercido
no século passado, por volta de 1850, pelo Major
Vieira (hoje nome da antiga) Rua do Sobe e Desce
em Cataguases. Depois, em seguida, pelo filho dele,
o Coronel Vieira. Do Coronel Vieira, com pequenos
hiatos, o poder político passou para o Astolfo Dutra,
que é meu avô.
O Astolfo Dutra chegou formado em Cataguases em fins de 1888. Pouco depois foi juiz municipal. E de 1892 a 1894 foi agente executivo, isto é,
prefeito da cidade. Foi eleito deputado estadual em
1898, era governador de Minas o Silviano Brandão,
que sucedeu ao Bias Fortes, ao primeiro Bias Fortes,
que tinha feito a mudança da capital. E o Astolfo
Dutra foi líder da maioria na antiga Câmara dos
Deputados Estaduais mineiros. Em 1902, o Astolfo
Dutra foi eleito deputado federal e reeleito sucessivamente até a morte, em 1920. Eleito e reeleito, ocupou diversas vezes a presidência da Câmara Federal.
E nela morreu. Era um deputado de pouca frequência à tribuna. E uma coisa curiosa, eu tenho cartas aí
38
do Artur Bernardes pra ele... Várias... pedindo apoio
nas eleições.
Ali onde é hoje a Avenida (Astolfo Dutra) era
um charco. Ele conseguiu verbas estaduais e federais pra drenagem do córrego Lava-pés, pra combater as epidemias que assolavam o município. Então,
pra combater inclusive o mosquito da febre amarela,
para saneamento ali, canalizado o Lava-pés, surgiu
a Avenida. Ele conseguiu verbas estaduais e federais
para a construção da ponte metálica de Cataguases,
inaugurada em 1915. Ele também conseguiu verba
para a construção do Grupo da Avenida: instalou o
primeiro grupo escolar de Cataguases. Além do mais
conseguiu a ida do Banco do Brasil pra lá. É uma das
mais antigas agências do Brasil. Depois conseguiu a
do Crédito Real.
Com a morte prematura do Astolfo Dutra, aos
55 anos, em 1920... O Astolfo Dutra era um homem
liberal, um homem culto, com uma cultura humanística muito sólida, porque tinha estudado no Colégio
do Caraça, e depois de dois anos, em Ouro Preto. E
fez o curso superior em São Paulo. Então, com a morte
do Astolfo Dutra em 1920, o poder político ficou nas
mãos do Sandoval Soares de Azevedo, que era um jovem advogado que trabalhava no escritório do Astolfo
Dutra, e um primo do Astolfo Dutra, que era o doutor
39
Antônio Lobo de Resende Filho. Porque a oligarquia
permaneceu, embora empobrecida. A galeria dos exprefeitos de Cataguases tem oito ou nove da minha família. Então o poder ficou nas mãos desses dois...
Meu pai, Pedro Dutra, saiu da aldeia em que
ele nasceu - Cataguases - para o Ginásio São José, em
Ubá, onde fez o princípio do curso ginasial. Depois
para o Colégio Abílio, em Niterói, onde concluiu o
curso ginasial. A estada dele na Faculdade de Direito
do Rio - por falta de recursos financeiros ele tinha
abandonado o curso de Direito - por instâncias de
minha mãe ele retomou a esse curso de Direito. O
meu pai só voltou a Cataguases em 1922, porque ele
tinha se formado em Direito em 21. E aí, concluído,
voltou a Cataguases para advogar. Aí teve um êxito
enorme na advocacia. Ele era um advogado de “clínica geral”, mas defendia gratuitamente qualquer pessoa necessitada. Ele teve uma advocacia de grandes
êxitos! Inclusive prosperou financeiramente através
da advocacia! Ele teve tantos clientes, que os honorários que ele pode receber, na época deram pra ele
começar e quase acabar a casa que ele fez.
O meu pai era um homem de ideias. Ele era
um democrata por excelência! Era um homem que
tinha o mais profundo respeito a dois elementos básicos na formação de um político que mereça este no-
40
me: a liberdade de expressão do pensamento e o direito à ascensão social e à ascensão econômica. Lutou
sempre! Ascensão social, reconhecimento do trabalho
como fundamento da dignidade humana! Porque a
dignidade humana só pode ter um pressuposto e
se desdobra, mas o pressuposto básico é o trabalho.
Uma das formas de solapar e anular a liberdade individual é o não reconhecimento do direito como
resultante do trabalho. E o desprezo pela força de
trabalho! Uma luta ingente em favor dos humildes,
quando não havia nenhuma legislação trabalhista!
Ele tentando defender o próprio pobre do trabalhador rural, do parceiro rural, da ganância de alguns
patrões, com o Código Civil na mão! Com os parcos
recursos que a Legislação Civil dava a ele! Ele conseguiu muita coisa. E claro que ele não era mágico!
Não podia mudar a estrutura social, mas conseguiu
muita coisa! Não só em termos individuais, (mas) em
termos de uma afirmação da dignidade, e do direito
da vida digna pelos menos favorecidos!
Tudo o que meu pai conseguiu ganhar na vida
foi quando não havia política... Antes de 30, quando
ele não era chefe político. E no recesso imposto pela ditadura do Getúlio, 37 a 45, o meu pai fez várias
coisas... Comprou a casa do escritório dele, aplicou a
casa da avenida e comprou uma fazenda. Foi a pri-
41
meira fazenda da região quase posso afirmar isso em que a casa dos empregados não era choupana...
Era assoalhada, coberta de telha, com venezianas e
banheiro dentro de casa!
O início da vida política do Pedro Dutra se
deu com a eleição dele para deputado estadual, em
1924. Ele foi deputado estadual de 24 a 30. Quando
veio a revolução de 30, no ano seguinte ele foi nomeado prefeito. Exerceu o cargo por dezoito meses, e
nesses dezoito meses ele fez uma revolução na cidade! Com a receita miserável da prefeitura sem uma
máquina de terraplanagem, ele construiu a estrada
de rodagem de Cataguases a Laranjal: toda na picareta e na carreta! Fez a estrada Cataguases-Laranjal
toda ela com serviço braçal. Fundou a primeira Liga
Operária de Cataguases, em 1931. Lançou as bases
das construções das casas populares em Cataguases,
fora várias outras coisas que nesse período ele fez. E
despertando contra si uma oposição ferrenha!
A UDN não existia, a UDN é de 45. Em primeiro lugar, os nossos adversários locais em Cataguases
não foram originariamente da UDN. Eles entraram
pelo PR - Partido Republicano - e, então eles passaram para a UDN. Eles não eram sócios fundadores da
UDN. O candidato, em oposição ao meu pai, a deputado federal em Cataguases, da facção contrária, era
42
candidato do PR - Serafim Lourenço - que foi indicado pelo grupo oposicionista. O fundador da UDN
em Cataguases inclusive era o Galba. Era secretário
do diretório da UDN. Não, sei quem era da UDN em
Cataguases, quando fundou. O PR era os Peixoto, sobretudo os Peixoto e o Serafim Lourenço, que era do
PR inicialmente. Depois passaram para a UDN.
A revolução de 30 vinha com uma mensagem
renovadora: voto secreto, maior atenção aos direitos
trabalhistas, enfim significava uma mudança no status socioeconômico. Era evidente que os mais ricos,
os detentores do poder econômico iriam ficar contra
a revolução de 30. A milícia... sei que ele organizou a
revolução de 32... O Artur Bernardes tinha sido um
dos coautores da revolução de 30, tinha se posicionado a favor de São Paulo, que era o Estado de onde partiu a revolução de 32, e estava o Bernardes...
parece que estava organizando uma resistência, lá
perto de Viçosa, num lugar chamado Arapongas. E o
meu pai então, organizou uma companhia para ir a
Arapongas, de acordo com o governo do Estado, com
armamento, tudo fornecido pelo governo do Estado.
E o pedido vinha da região para ir a Arapongas, pra
deter uma eventual... E houve apenas uma escaramuça! Essa companhia foi organizada lá em casa, eu
me lembro, na garagem tinha vários fuzis assim...
43
expostos na parede. Ele deu o comando dessa companhia ao irmão mais novo dele, o Herberto, que
deveria ter uns 21 ou 22 anos. Porque o Herberto tinha sido aluno do Colégio Militar. E havia um outro
primo dele, Mauro Dutra Ladeira, e o Mauro também exercia uma função de comando... O Hernani
Magalhães desapareceu num avião... Estava fazendo
um voo num teco-teco e desapareceu... E ninguém
nunca mais achou. O Hernani também tinha um
posto lá... O Zinho Margarido, Augusto Magalhães
Pires também tinha um posto. Eram, sobretudo, todos voluntários! Eram cento e poucos, mais ou menos uma companhia.
O meu pai fundou a Rádio Cataguases em
1947. Com o capital inicial de duzentos mil cruzeiros
subscritos por ele e vários amigos. E ele era o presidente da Sociedade Anônima da Rádio Cataguases.
Muitos anos depois vendeu o controle acionário da
Rádio Cataguases para o Múcio Ataíde, um incorporador imobiliário aqui no Rio, homem de vários negócios. O Múcio fez uma oferta de compra e o meu
pai vendeu. O episódio da Rádio, ele é muito elucidativo da violência policial. E tem também toques de
humor negro!
O delegado municipal, José Catapreta Machado
- isso eu vi, meu pai não tinha chegado - descendo a
44
Rua Coronel Vieira, vindo lá da Praça Rui Barbosa,
à frente de doze soldados com fuzis e baionetas caladas. E alguns investigadores de chapéu. O negócio
foi muito ridículo quando ele gritou: abra a porta em
nome da lei! Isso é de um ridículo atroz, não é? Claro
que eu não abri, nem meu pai abriu! Ele puxou o revólver para atirar quando o Bajara Freitas Lima abaixou a mão dele... o tiro saiu pro chão. Ele correndo,
no meio da rua e gritou para a polícia: passa fogo!
E aí foi uma saraivada de balas, não é. E a polícia se
tinha aberto em leque... Até que um deles matou um
soldado lá. O soldado morreu com um tiro pela esquerda, ele de frente da Rádio, do lado esquerdo dele.
O tiro foi dado da esquina. Havia vários investigadores ali atirando de revólver... O tiro deve ter vindo lá
da esquina do prédio do Paço. Isso é que fez parar o
tiroteio. Quando veio o golpe de estado de 37, como
ele era contra a ditadura, ele ficou de fora. E com a
redemocratização do Brasil, em 45, com a primeira
tentativa de democratização do Brasil, porque você
não pode falar em democracia com eleição de ata falsa, e sem voto secreto! Mas então, em 2 de dezembro
de 45, ele foi eleito pra Câmara Federal. Tem emendas dele ao Projeto de Constituição. Eu vou dizer só
uma, que é a principal, e que nunca foi regulamentado: é a que permitia a participação do trabalhador no
45
lucro da empresa. Claro que a emenda foi derrotada
pelas forças poderosas!
A minha mãe era originária de uma família do
Estado do Rio, e o pai dela - Paulino Fernandes - chegou a Cataguases em 1904. Ele chegou a Cataguases,
em 1904, já com vários filhos, inclusive minha mãe
com 8 anos. Porque ele é de 10 de junho de 1896. Ele
era um homem tão empreendedor, o pai dela, que em
pouco tempo fundou uma sociedade mútua de seguros, depois fundou o Cinema Cataguases, o primeiro cinema... ele não se chamava cineteatro... Fundou,
pôs em funcionamento e manteve em funcionamento
algum tempo, até pouco tempo antes de morrer. Ele
morreu em 15 de novembro de 1917... Vendeu, pouco
antes de morrer ele já havia vendido pra Companhia
Telefônica Brasileira.
A minha mãe estudou lá no antigo Ginásio de
Cataguases. Foi professora primária até casar. Era
uma mulher muito culta. Lia com muita fluência inglês e francês, o que para a época não era tão comum.
Muito ativa e, além disso, uma colaboradora muito
grande do marido! E sempre uma criatura voltada
para os interesses dos mais pobres. Então, depois, ela
foi eleita vereadora, isso foi muito tempo depois, o
ano eu não me lembro de cabeça... Mas foi uma... em
termos de mulher brasileira, e mulher brasileira do
46
interior, ela foi pioneira em Cataguases! Porque foi
a primeira a ter real participação! Uma participação
efetiva na vida pública e não apenas afetiva.
Sou de Cataguases e é um dever colaborar pra
fixação da história do município. E eu tenho certas
condições personalíssimas pra isso, porque além da
minha memória, que remonta há sessenta anos, eu
tenho uma memória familiar de pelo menos duas gerações atrás de mim. Coisas que meu avô relatava ao
meu pai. E fora uma documentação razoável que eu
também tenho. Eu vou fazer uma exposição minuciosa, mas não será prolixa. Eu vou relatar por escrito. Isso não deve ser uma coisa de improviso. Como
nada! Isso aqui eu tô conversando, eu tô dando um
depoimento numa conversa. Agora, escreverei com
rigor a história dessas reminiscências. As minhas declarações para o Museu de Cataguases, eu vou entregá-las por escrito, através dessas reminiscências...
Entrevistado em 5/5/1989 por José Luiz Batista.
47
E VA R I S T O G A R C I A
R E P R E S E N TA N T E S I N D I C A L D O
MINISTÉRIO DO TRABALHO
73 anos
Acho muito importante esse trabalho
de vocês, porque conhecer sua história é importante
pra cultura. Porque um povo sem cultura é fácil de
ser vencido. Foi o avanço da história e da democracia que deteve as fogueiras ardentes da inquisição
onde se queimaram homens. Homens da estirpe
de Giordano Bruno e prenderam outros do tipo de
Galileu! Mesmo assim a terra continua girando em
torno do sol! Foi o avanço da história e da democracia
que deteve a escravidão. Foi o avanço da história e da
democracia que liquidou a jornada de dezesseis horas. Hoje, temos mais produção com menos trabalho.
A história, de 1922 pra cá, que eu gostaria que
a gente começasse a conversar a respeito. Eu gostaFoto: Indústria Irmãos Peixoto, s/a, 1932, CDH do Instituto Francisca de
Souza Peixoto
49
ria assim de saltar pra era de Berta Lutz - que foi deputada, a primeira deputada - pra hoje. Há um congresso de vinte e sete mulheres, e falar da luta dessas
mulheres, da mulher brasileira, da mulher mineira e
cataguasense, que colaboraram na resistência, na luta
pelo desenvolvimento do nosso Estado, do Brasil, de
Cataguases, né.
A minha mãe... ela era filha de camponeses,
né, trabalhavam na agricultura. Meu avô, meu bisavô... eles vieram aqui de Andradas, acompanhando a nascente do Rio Pomba, e quando chegaram
aqui encontraram o Meia Pataca e por aqui eles
ficaram. Antigamente saía acompanhando as nascentes. Minha família foi uma família assim muito
rebelde. Não conformava com a dominação do rei.
Fomos criando um núcleo ali pela Ponte Alta. Tem
um irmão do meu avô que foi o primeiro Intendente
aqui. Meu avô chamava Pedro Borges de Andrada.
Meu pai, meus pais, meu pai e minhas tias e meu
avô, por parte de pai, eles trabalhavam numa fábrica de tecido é... Cascatinha, era em Petrópolis isso.
E sabiam trabalhar em tecido. O doutor Murgel, ele
quis criar uma fábrica de tecido aqui, quis montar
uns teares. Ali onde é a fábrica velha, eles montaram lá um galpão. Minhas tias vieram aí pra ensinar
a trabalhar com... fazer pano. Ensinar operários de
50
Cataguases a ser tecelões. Eles eram aqui de perto
de Juiz de Fora. Aí já tinha o Coronel João Duarte e
o doutor Norberto, e criaram aqui uma Companhia
Cataguases-Leopoldina de Força e Luz. Eu tenho esses dados lá em Belo Horizonte. Até a quantidade de
lâmpadas que eles colocaram primeiro! Porque o café e o arroz eram pilados no pilão... Aí eles acharam
que devia, quer dizer, a instalação da energia elétrica. Aí que começou a história do desenvolvimento de
Cataguases. Faziam muita propaganda contra a instalação da energia elétrica em Cataguases! Como em
Juiz de Fora! Em Juiz de Fora, aqueles Mascarenhas
foram até apedrejados, né. Aquilo ia dar eletricidade,
matar as crianças na parede... as crianças não podiam
encostar... uma série de bobagens pra impedir que
montassem a eletrificação em Cataguases.
Meu pai não quis trabalhar mais em fábrica de
tecidos porque tava dando muita doença de peito. É,
tuberculose, né. O pessoal trabalhava dez, doze horas ali no tear comendo algodão, com uma alimentação muito difícil. Então meu pai resolveu aprender o
oficio de remendão - sapateiro remendão - esses que
botava meia-sola, consertava sapato. E adorava em
frente a casa do meu avô materno, e de lá namorava a minha mãe. Eu vou contar uma história: minha
mãe tinha um namorado... eles traíram ele! Fugiram
51
pra Miraí, pra ali afora... A polícia foi lá e pegou eles:
meu pai foi pra cadeia e depois casaram. Tiveram
que casar! Naquele tempo era uma coisa horrorosa!
Mas eu acho que essa honra eu tenho: minha mãe foi
a primeira que fugiu! Minha mãe não tinha esse negócio não! Criou uma família com dez filhos! (Hoje)
todos nós estamos mais ou menos situados na vida.
Meu avô, o Pedro Borges, ele tinha várias terras. Ele chegou aqui e ocupou muitas terras né, porque não tinha dono! Ele ocupava, ia lá em Barbacena
e legitimava a tal sesmaria, sabe. Como o avô dela
pegou (a terra) da (fazenda) Ponte Alta, por ali afora.
Só que ele não era tão ambicioso igual ao meu (avô).
O meu pegou muita terra! Pegou aqui no Thomé até
lá em Sereno... E deu vinte e oito alqueires de terra
para o meu pai, lá pertinho de Sereno. E lá eu nasci,
né. Deu essa propriedade lá para meu pai - chamada
Bela Vista - e deu uma casa ali perto da igreja para
nós. Ele era muito rico, tinha várias propriedades. Ali
onde mora Bitoca, aquilo era dele. Aquela chácara
dos Menezes, ali tudo era dele. Foi demandas, você
tá entendendo, demandas. A nossa fortuna foi... Nós
fomos pedir esmola, minha filha. Nós fomos pedir esmola! Todo mundo na miséria! Nós perdemos aquilo
tudo. Uma questão de demanda. O atraso, não é? O
atraso das pessoas deu nisso!
52
Fui batizado na Areia Branca, lá tinha um cruzeiro. Areia Branca é um povoadozinho bom. Cê já
foi pra Cataguarino? Cê passou ali... tem um areião,
eles tão tirando saibro, né. Areia Branca é aquele
lugarejo ali. Ali tinha muita gente, muito povoado,
colhia muito café na região. Tinha uma agricultura
muito boa! Muita cana que tinha... Tinha uma usina
de açúcar do coronel Antônio Augusto de Souza...
Eu fui batizado na Areia Branca (mas) registrei em
Sereno porque lá tinha cartório, né. O Pedro Borges plantava muito milho, muito
feijão ali onde é hoje a Fazenda do Ministro (Fazenda
da Vitória). Plantava cana né. Fazia rapadura e cachaça. Cachaça vinha naqueles tonéis, aquele maior,
e quintos... O quinto é aquele menor, né. Aquilo era
do Pedro Borges... Lá não tinha escola... Eles resolveram então me dar estudo. Isso eu tinha 10 anos! Dar
estudo é botar na escola, né. Ali perto, pra cá onde é
hoje o Pouso Alegre, tinha uma professora particular.
E meu avô, porque eu fui criado com ele, pagava o
colégio pra mim, pagava essa senhora para me ensinar. Depois eu entrei aqui no Grupo Escolar, com 12
(anos)... No Grupo Coronel Astolfo Dutra1. Meu pai
arrendou as terras lá pra um cidadão e veio morar
1
) Grupo Escolar Coronel Vieira, na Avenida Astolfo Dutra.
53
aqui na cidade. Botou um açougue na Vila. Aí eu comecei a frequentar o Grupo. Eu Já estava na quarta
série (quando) inaugurou o (Grupo Escolar) “Guido
Marlière”. Sou o primeiro aluno da quarta série, mas
infelizmente o quadro não tem! Eles sumiram com
o quadro! Cês podiam ver se recuperava aquilo...
Antigamente usava um quadro né: fazia formatura,
tirava retrato dos meninos e colocava ali.
Era uma situação muito difícil naquela época
né. Eu nasci em 1917... A gente começou a trabalhar
numa tipografia. Cataguases, naquele tempo, tinha
três jornais... Foi uma Cidade... sempre foi democracia. Houve sempre um debate político aqui! O
Dionísio Cerqueira era o Presidente, era o diretor do
jornal que chamava Reação, mais ligado ao Partido
Republicano Mineiro. Tinha o Cataguases, que era
ligado aos poderes públicos (municipais). E tinha
A Tribuna, que era um jornal que esse Sebastião
Ventura era diretor. Era mais da intelectualidade...
Doutor Francisco... (A Tribuna) era mesmo perto da
Phebo. Da Phebo Filmes, né. A Tribuna tinha muita
influência daquele movimento... como é que chamava... modernista de São Paulo. Havia muito debate
e tinha o pessoal dos Mauro, né. Humberto Mauro,
João Mauro, Francisco Mauro... eram assim mais ou
menos gente avançada. O Comello velho, pai dessa
54
Dona Eva... Pedro Comello, né. Aí era um pessoal,
uma intelectualidade que tinha sonhos assim de fazer cinema mesmo em Cataguases. E nós conseguimos realizar uns dois filmes, né. Brasa Dormida, se
eu não me engano e o... Aí eu fiquei naquele meio
ali. Fui ser engraxate. Meu tio Nenê Garcia era barbeiro, eu fui ser engraxate dele e tal. E trabalhava! Na
hora vaga eu ficava ajudando o pessoal na tipografia
desmanchar os tipos. Porque antigamente tinha... pegava um por um, letra por letra para compor o jornal.
Então a gente ajudava... lavava aquilo e dava uma
mãozinha pra eles. Depois saía vendendo jornal aí
pra rua, pra ver se...
O doutor Sandoval de Azevedo, que era chefe de um grupo... Sandoval de Azevedo, Navantino
Santos, era uma raiz, uma coisa... Depois é que surgiu o Pedro Dutra e fechou o grupo. Mas antes disso teve o doutor Sandoval de Azevedo, teve esse
Dionísio Cerqueira do PRM (Partido Republicano
Mineiro). Mas aí começou a... veio a Revolução de
1930. O Centro Acadêmico 11 de Agosto, naquele
tempo, tinha as decisões políticas. A Faculdade de
Direito lá de São Paulo... aquele Centro Acadêmico 11
de agosto... Esse pessoal vinha fazer muita conversa.
Chegavam aí, conversavam e coisa e tal. Mas inicialmente tinha esse grupo - PRM e esse grupo do dou-
55
tor Sandoval, doutor Lobo, não é. Dionísio Cerqueira
era do PRM. A tendência deles era ligada ao conservadorismo. Júlio Prestes, cê viu falar? Minha memória não tá muito boa, mas era o Júlio Prestes, (de) São
Paulo... Havia no país rebeldia contra a dominação
inglesa aqui. Cê comprava uma agulha, era importada! Cê comprava um tecido... O tio dela mesmo usava linho S 120 né, importado da Inglaterra. Mas tudo
era importado, naquela época! Então, surgiu o movimento do Forte de Copacabana, surgiu a Coluna
Prestes, o Centro (Acadêmico 11 de agosto), o momento dos intelectuais de São Paulo - os modernistas
- que o Chico Peixoto participava, e influía muito no
Rosário Fusco... E tinha outros que eu não tô me lembrando. Cês vão me ajudando... GuiIhermino César
de Oliveira, Ascânio Lopes, Tuniquinho Mendes,
Enrique de Resende, o doutor Afonso, irmão dele já
era mais conservador, quer dizer, não misturava muito... Até tinha uma casa... morava aqui onde é o João
Peixoto, a casa onde é a TELEMIG, o doutor Afonso
Resende. Aí, então, o Getúlio conseguiu coordenar
esse sentimento de libertação da dominação inglesa. O que acontece? Foi feita a revolução de 1930, né.
Mas imediatamente ele - essa revolução foi patrocinada pelo americano - tirou um dominador (e) passou
por outro. Aí foi entregue de braços abertos pra do-
56
minação americana! Aí, então, com a revolução de 30
o Pedro Dutra foi combater os perremistas em Viçosa,
por aí afora... Estevão Pinto... porque lá era o centro mesmo dele. O Artur Bernardes - presidente do
PRM - foi governador do Estado (de Minas Gerais)...
aí começou uma resistência a esse grupo (pelo) grupo
do Pedro Dutra. A família Peixoto entrou de roldão.
Então ficou Peixoto (contra) Pedro Dutra... Depois
passou a ser UDN e PSD, quer dizer, o Pedro Dutra
era PSD e a família Peixoto era da UDN.
Eu nasci em 2 de fevereiro de 1917, em 1930
eu tinha 13... 14 anos por aí. Nós fomos distribuir
boletim aqui: fui eu, mais meu irmão e outro menino. Fomos presos aqui por um cidadão que chamava Major Livramento, um que veio aqui pra sufocar
nós, a mando lá do governo de Minas... Olegário
Maciel... Veio aqui sufocar a rebeldia cataguasense,
né. Aí nos fomos presos! Aí foi o batismo da prisão!
O Zé Esteves, então, foi lá e tirou a gente. Zé Esteves
era um farmacêutico que tinha aqui... Em 30 nós éramos favoráveis ao Getúlio, favorável a Getúlio até
1935! Mas quando ele fez a chamada polaca - uma
carta que devia institucionalizar o governo dele - o
que acontece é que veio esse movimento não, contente né, começou a articular contra o Getúlio Vargas...
Antigamente era a política do café com leite, cê tá en-
57
tendendo? Quer dizer, automaticamente o Antônio
Carlos seria o vice-presidente do... não era assim?
O Getúlio Vargas em vez de buscar apoio aqui (em
Minas Gerais) foi buscar apoio lá na Paraíba, com
João Pessoa. Não foi assim? Acho que foi. A história é
essa. Me ajuda que minha memória... Mas o Getúlio
tinha prometido fazer um... aproveitar aquele descontentamento nacionalista, de libertação - eu não falo nacionalismo, né - mas de libertação do nosso povo. Ele aproveita daquilo e entregou pro americano
dominar as coisas aqui, né. Aí criaram no Rio, por aí
afora, a chamada Aliança Nacional Libertadora, pra
derrubar o Getúlio...
Nesse período de 1930 a 1935, aqui não tinha
condições... A situação ficou muito difícil, muita perseguição aqui. Tinha Zé do Grupo, Arnaud Sapateiro,
de triste memória... Eles jogararam até bomba na
nossa casa, o pessoal do Pedro Dutra. Porque meu
pai não concordava com aquela... foi sempre radical
contra o Pedro Dutra! E aí nós não tivemos condições
fomos obrigados... Eu fui embora pro Rio, né. Fiquei
lá até 1947. Em 47 eu voltei pra cá... Quando deu a
revolução de 1935 eu já estava no Rio. Em novembro de 35 eu já estava no Rio... Intentona Comunista...
Eu participei assim como massa. Não como participação ativa, né. As revoluções antigamente era sem-
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pre feita de cúpula. O povo nunca participou disso,
de revolução, né. Porque eles articulava por cima! O
comandante fulano de tal ou o general fulano de tal
deslocava a tropa, e por aí. O 64, o próprio 64, foi a
mesma coisa! O Mourão Filho deslocou a tropa de
Juiz de Fora...
Em 1950 nós já começamos a fazer política
aqui em Cataguases. Então já mudou muito a situação! Porque nós, com aquela política que a gente
importava tudo, tá compreendendo, nós então começamos no Brasil inteiro... Isso teve muito reflexo em
Cataguases, um desenvolvimento para impedir essa
importação! Nós é o povo cataguasense, Cataguases
inteiro! Eu não sou desvinculado de nada disso né.
Aí começamos a fazer uma política - antes do governo Juscelino, (e) Juscelino foi obrigado a fazer uma
proposta eleitoral da seguinte maneira: uma política
de desenvolvimento que chamava binômio energia e
transporte.
O Oscar Niemeyer teve ainda influência
aqui em Minas, principalmente com Juscelino. E
teve influência no Chico Peixoto. Oscar Niemeyer,
Portinari, esse pessoal vinha pra aqui, fazia milhões
aí, né, na época de 47. Traziam uma porção de gente, né. Operários, que eles estavam construindo o
ginásio aí... Depois construíram o Hotel Cataguases,
59
e tudo aí. E aí tô dentro do caso nadando nesse rio,
nesse mar.
No Hotel Villas, na casa do doutor Abílio
- o doutor Abílio tinha muita coisa comigo, gostava muito de mim - Domingos Tostes, Pergentino
Siqueira eram homens esclarecidos, homens que faziam a opinião pública aqui A pessoa ia e escutava
o que eles diziam... A vinda do Portinari... é matar
a gente do coração! Você sabe como é que é? Você
tá entendendo? Ali, onde é a casa do doutor José
Pacheco, por ali, aquilo era uma casa velha do Pedro
Dutra. Até morava a família do Astolfo Dutra, morava ali numa casa velha... O Hotel Cataguases... a
Igreja, né. Começou a surgir as casas que o doutor
Francisco mandou fazer ali do Largo do Rosário,
para os operários morar. Não tinha... Aquele Bairro
Jardim naquele tempo era um avanço, quer dizer,
cuidar da moradia do trabalhador!
Tinha a Rádio Cataguases, que era do Pedro
Dutra, e nós fazia parte desse grupo mais progressista, que é Peixoto, né. Hoje se falar isso cê tava apoiando o capitalismo. Não, nós tava apoiando um grupo
progressista, tá entendendo? Então nós tínhamos um
serviço de alto-falante aqui. O José Rossi, que tinha
um serviço de alto-falante, irradiava aqui na praça (Rui Barbosa). O Pedro Dutra conseguiu liminar
60
- uma ordem do Ministro da Justiça - pra fechar o serviço de alto-falante. Aí nós falamos: não fecha o serviço de alto-falante! Tem que fechar também a Rádio,
porque aí fica desigual! E fecha, não fecha... Então
o Edgar Mata Machado - chefe da Casa Civil do governador Milton Campos (e) genro do doutor Abílio
- ele estava aí. Então nós reunimos uma comissão e
fomos lá pra conversar com ele sobre essa interferência do governo federal aqui dentro. Ele mandou chamar o Catapreta, que era o delegado de polícia aqui.
Catapreta levou a polícia e nós juntamos um povo,
né, trabalhadores e pessoal. E fomos lá pra fechar a
Rádio. Houve um tiroteio, morreu um soldado. Tava
lá o Galba, o Amaury turco, tava o Pedro Dutra, tava
doutor Edson, tinha mais gente. Tinha o Arnaud, o
Zé do Grupo, tinha uma porção de gente lá.
O Milton Campos, ele era da UDN, foi eleito governador de Minas pela UDN. Agora o Pedro
Dutra, do PSD não tinha espaço no Palácio da
Liberdade (sede do governo de Minas), ele buscava
lá no Catete (sede do governo federal). Peixoto (contra) Dutra! Mas depois chegou uma hora que só dava
Peixoto! Uma hora que só dava Peixoto e por aí afora.
O Zé Esteves foi o último que o Pedro Dutra elegeu...
Depois ele (Zé Esteves) aderiu aos Peixoto. Ele fez
até a adesão aqui na Praça Santa Rita. Não desliguei
61
(dos Peixoto) não, eles é que (me) desligaram! Isso foi
em 1948 e alguma coisa... Mas não foi desligação porque eu fui preso. Eu era preso igual prende ladrão
no meio da rua. Era preso em qualquer lugar! As vezes não podia vir na praça, porque eu vinha na praça,
um soldado vinha me acompanhando! Fiquei reduzido aqui a um par de tamanco, uma camisa e uma
calça, e tive que ir embora por causa disso. Muita
perseguição! Nós ia fazer uma manifestação em 1948,
no dia 1º de maio. Achava que podia, e tal, essa coisa toda. Então o Luiz Peixoto e Austen - Austen, um
delegado de polícia que eles trouxeram aqui, um cidadão até meio arbitrário - resolveram impedir a realização do 1º de Maio, a festa do 1º de Maio. Porque
antigamente fazia muita festa no 1º de Maio! A
Minalda, o Serafim Lourenço, o pessoal, todo mundo
que ia levar os operários pro Horto, comemorava lá.
Tudo bem. Mas nós resolvemos fazer um 1º de Maio
mais assim no sentido de classe dos trabalhadores.
Aí o Luiz Peixoto foi pra Rádio e fez uma denúncia
de que os comunistas queriam tomar o poder em
Cataguases! Só tinha quatro ou cinco comunistas. Aí
o Austen prendeu o Mário Bagno, o Djalma Werneck,
o Antônio Barroso, Peterson Resende. Prendeu uns
cinco ou seis comunistas. Eu trabalhava pro Castro
Lima, ali onde é a Imperial, tinha o serviço de comis-
62
sário né. Aqui em Cataguases o comércio era muito
fraco, não tinha as coisas. Então a pessoa precisava:
traz isso pra mim do Rio, eu trazia. Ia toda quarta
ou quinta-feira trabalhar, fazia as compras e voltava.
Aí esses comunistas pedia assim: Cê traz um... esse
livro tal, traz A Mãe, de Gorki, traz isso, e eu trazia.
Aí o doutor Austen descobriu os livros, né. Mandou
me chamar e falou assim: “olha, eu mandei chamar o
senhor porque os comunistas estão comprando livros
aqui por intermédio do senhor. E eu não quero que o
senhor traga mais esses livros!” Eu falei assim: “Não
senhor, isso o senhor não pode fazer, porque eu trabalho, é uma profissão, eu trabalho lá no Castro Lima.
Esse serviço de comissário tá entregue a mim, não
é? E eu, se ele me encomendar, eu trago”. “O senhor
não traz!” ‘’Trago sim, porque eu não vou trazer? Aí
ele falou: “então o senhor está preso! Falei: “tá”. Aí
ele me fichou como comunista. Quer dizer, eu entrei
pro Partido Comunista na cadeia! Mas o interessante é que depois eles começaram a (me) prender quase todo dia. E eu abusava e coisa, até que o doutor
Francisco, um dia, foi me visitar lá na cadeia. Chegou
lá, bem mudou a situação lá. Mudou a situação!
Houve notícias que eles ia me liquidar fisicamente, né. Eles é capaz de fazer com você igual fizeram
com o Mário Tobias! Porque fiquei desempregado?
63
Trazia alguma coisa do Rio, atendia algumas pessoas? Consegui arranjar um emprego numa fábrica de
cadernos no Rio, pra ser vendedor dessa fábrica de
cadernos ali atrás da farmácia do José Esteves, hoje
Santa Maria... Tinha um bequinho ali. Eu comecei a
colocar os cadernos lá. Etelberto Valverde até me ajudou muito! Ajudava assim no financeiro, não é isso?
Eu comprava caderno e revendia... uns cadernos baratos. Dicionário vendia barato. Eu fazia minha política pros estudantes...
O doutor Francisco... ele estudou em São
2
Paulo . Parece que ele tinha muita convivência lá
com esse pessoal... Marques Rebelo... A Amelinha,
mulher dele, acho que ela é irmã de Marques Rebelo,
alguma coisa assim... Era um homem assim... um homem igual ao Chico Peixoto num morre né! Um tipo
assim para a nossa memória, né. José Rosa Filho, que
era presidente do Sindicato, fazia propaganda do sindicato lá dentro da empresa: Ele garantia o Zé Rosa!
Doutor Francisco garantia do Zé Rosa! Por exemplo,
o Zé Peixoto - que eu considero também um dos
homens mais evoluídos deles - montou a Industrial
aqui. Ele (dizia): “tem tanto de lucro?” Tem. Então
vamos dar um dividendo aqui. “Quinze dias”, né,
2
) De fato, Francisco Inácio Peixoto estudou no Rio de Janeiro.
64
um mês, porque antigamente o patrão dava um par
de meia, um lenço, uma garrafa de vinho, quando o
operário era bom! (Depois) não, todo ano o operário tinha um dividendo que o Zé Peixoto mandava
dar, né.
Então o Francisco foi isso: trouxe aí o visual, os
quadros, fez o ginásio aqui. Foi um homem que mais
se deu, à nossa opinião, para entregar o ginásio, sabe. Aproveitando aquela lei do Jânio Quadros para
que eles passasse o ginásio. Porque antigamente era
só filho de rico que podia estudar, não é? Filho de
pobre não podia. Aí quando passou o ginásio para o
Estado, aí todo mundo começou a... filho de pobre, rico, começou a ir pra lá. Foi um movimento até muito
bonito né. O Chico foi um cara tão liberal, vou dizer
uma coisa, mas tão liberal que eles roubavam lá dentro os retalhos. Pegava os retalhos e vendia pra fora.
O Chico era um homem assim... filósofo. O Zé Rosa
chegava até a agredir o doutor Francisco, chamava
ele de uma porção de coisa, e ele aturava aquilo. Não
mandava o Zé Rosa embora, não mandava ninguém...
Eu acho que o capitalismo pra sobreviver, ele
tem que fazer alguma coisa... Agora, tinha mesmo os
chamado “puxa-saco’” Comigo: perseguição, se chama isso de perseguição! Comigo foi mais, que minha
esposa trabalhava na fábrica. Ela casou comigo e eles
65
mandaram ela embora. Tinha onze anos de casa! Não
teve direito a nada! Entrei na justiça. Ganhei? Não sei,
porque aí tive que ir embora. Foi nesse período que
eu fui obrigado a ir embora para Belo Horizonte, porque havia o anticomunismo. A polícia perseguia, não
queria saber de comunismo, né. Porque nosso partido tinha uma orientação de promover o desenvolvimento do país, não é? Se a gente quer enfrentar uma
dominação externa, se a gente... a gente tem que criar
estrutura, não é mesmo? Mário Bagno era membro
do nosso partido (e) era da fábrica, era chefe de seção.
Eu vim pra aqui, voltei, né. Eu fiquei aqui até
1963: novembro de 1963. Então, com a maior dificuldade, arranjei umas representações aqui, não é. E comecei a trabalhar, vender, viajar pra fora... essas cidades aí na periferia, vendendo. Mas não estava dando
porque tinha uma família muito grande. E tinha que
e pagar colégio. E tinha uma porção de coisa! Eu trabalhava na SUPRA - Superintendência de Reforma
Agrária - então o Elmo, esse que hoje é candidato a
prefeito, ele arranjou pra mim trabalhar nesse serviço,
lá em Belo Horizonte. Nós queríamos fazer uma agricultura moderna no país, no estado, você tá entendendo? Mas pra
fazer uma agricultura moderna nós teríamos que ter
pessoas, recursos humanos né. Localizar, selecionar
66
as pessoas... porque antigamente era uma agricultura atrasada. Então o povo estava aceitando muito
bem essa questão da chamada reforma agrária. Mas
o que, acontece? Surgiu um cidadão, chamava Julião
e Leonel Brizola. E começou a dizer: tem que fazer
a reforma agrária na marra! Tomar a terra, não sei o
que, e tal... O Brizola chegava: “Tem que enforcar um
general na tripa de um banqueiro!” Então eles articularam forças. Misturou reforma agrária com reforma bancária, com estas coisas todas. Aí, o Magalhães
Pinto, que não queria reforma bancária, articulou com
o Mourão e acabou com esse trabalho que nós estávamos fazendo, que eu mostrei pra vocês no início.
E que se a gente faz uma reforma agrária, cria
mercado interno. Nós não ficaria dependendo muito de exportar, cê tá entendendo. O que acontece?
O americano também não estava interessado nisso!
Então nós fomos pegos lá em Belo Horizonte, nesse movimento. Eu fui pego dois meses depois, né.
Aí acabou com a coisa. Hoje, o que aconteceu? Nós,
que em 1964 já estávamos exportando alguma coisa, em, 1970 eles resolveram fazer esse desenvolvimento que tá aí, mas baseado no endividamento externo. Aqueles picaretas que, faziam projetos ia no
BIRD, pegava aval do governo, ia no BIRD tirava o
empréstimo pra fazer um tal... pra trabalhar no pro-
67
jeto... e não fazia! Assim foi feito o endividamento!
Veio agora o senhor Delfim Neto, o Mário Henrique
Simonsen assumiu essa dívida e hoje nós estamos pagando! Com o Delfim Neto era uma dívida de vinte
e um milhões de dólares. Quando o Mário Henrique
Simonsen assumiu (já estava) na base de cento e quarenta milhões, né. Virou urna bola de neve. Em 70 a
nossa dívida externa era de 1,3 milhões de dólares...
Tô vendo todo dia. Porque eu sinto um processo revolucionário (em Cataguases). Revolucionário
não é dar tiro, não é matar ninguém. E o desenvolvimento do povo. Você sabe que no Brasil, a única
cidade onde as operárias andavam de bicicleta e usavam calça comprida, você tá entendendo, foi aqui? A
primeira! Lá pelos anos de 1960 por aí, né. Ainda não
era comum mulher usar calça comprida, né.
Nós tivemos o melhor tecido do Brasil!
Disputado em São Paulo! Os atacadistas de São
Paulo ficavam em fila pra comprar tecido na Irmãos
Peixoto, você tá entendendo? Faziam os modelos pra
gente fabricar pra eles. Isso eu presenciei como quis!
O nosso partido resolveu fazer um esclarecimento: o que é sindicato. Porque não tinha sindicato em Cataguases. Já tinha sindicato da construção
civil - que nós organizamos lá embaixo - onde é a
casa do Bebeto, ali. Ele estava em construção. Nós
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fizemos uma reunião e organizamos o sindicato da
construção civil. Mas precisava organizar o sindicato da fiação e tecelagem. Então, tinha algumas lideranças, e esse Zé Rosa era um moço assim muito
inteligente (mas) ficava no botequim, bebendo cachaça. O Zé Rosa era um rapaz, um operário cheio
de sarna... Dava na pele aquela coisa. Aí nós começamos a conversar muito com ele; tirar ele daquele
negócio de beber em botequim, cuidar mais da vida
dele, do corpo, nê. Aí ele começou a estudar e tal.
Ele era muito revoltado, ele era assim muito rebelde,
mas era um rapaz excelente! Conseguimos fundar o
Sindicato da Fiação e Tecelagem e ele conseguiu ser
eleito. Não sei se ele foi o segundo ou se foi o primeiro... acho que ele foi o segundo presidente. Ele fez a
chapa: ele e o Geraldo Costa Lima. Em 1964 houve
um movimento, um golpe, né. O Zé Rosa foi preso.
Itamar Barbosa e muitos outros, muita gente: quatorze pessoas. Então o Zé Rosa foi o homem que eles
mais castigaram! Nós fomos presos, fomos a julgamento. Todos os jurados lá, que são oficiais, na hora o
Coronel Caldeira disse assim: “Cataguases... o Brasil
não precisa de quatorze homens iguais aos senhores,
precisa de milhões de homens iguais aos senhores!”
E nos absolveu, né. Mas aí não parou, porque o Galba
Rodrigues Ferraz, um moço que tem por aí... o Galba
69
aproveitou do movimento de 64. Nós tínhamos uma
série de projetos sociais pra Cataguases. Aquela sede
que tem ali foi ideia do Nanto quem executou foi o
Hidenburgo. Mas o GaIba aproveitou disso. Então, a
título de perseguir o Nanto, me perseguir, perseguir
o Elmo, perseguiu outros por aí afora começou a fazer... O GaIba fez até boletim anônimo contra o doutor Anibal Pacheco, Juiz de Direito... Não tive condição porque o Galba enquanto tava mandando... eles
queriam me liquidar! Tive preso sessenta e um dias
lá em Belo Horizonte, lá em Juiz de Fora. O Nanto
teve cinquenta e um dias. Eu fui preso dois meses
depois, que eu era desconhecido da polícia em Belo
Horizonte, dos “faixinhas”, né. Porque eles contratavam gente, colocavam uma faixa amarela e saía pegando o pessoal! Apanhei muito, apanhei muito. Mas
isso eu não gosto de falar muito da... Por exemplo,
apanhava onze dias seguidos! Demais da conta! E o
efeito moral, por exemplo: batia, batia, eu não tinha
nada que falar, porque não linha nada pra esconder,
tá compreendendo? Tinha nada pra falar! O que eu
sabia, eles já estavam sabendo. Mas eles ameaçavam
pegar minha filha, pegar minha prima, que morava
lá em Belo Horizonte, era assistente social. Uma coisa·
horrível! Eu dessa coisa fui parar numa clínica... me
levaram - já o movimento de anistia vinha vigoran-
70
do - me levaram para uma clínica “Nossa Senhora
de Lourdes”. Eu tive lá internado uns dois meses
para fazer um processo de recuperação. Mas um revolucionário não dá para recuperação... Eu fiquei em
muitas prisões... Porque eu não era propriamente um
revolucionário. Era um homem mais assim revoltado, como um elemento da classe média ou da classe
feudal, porque meu avô era praticamente o meu bisavô era feudal. Eu, como não tinha nada, os outros
eram ricos, eu achava que com revolta ia corrigir essa
injustiça. Não é assim?
Tá cansado? Eu cansei vocês?
Eu sou emigrante de Cataguases. Igual a eu,
igual a eu tem 72% da população de Cataguases, que
não pode viver em Cataguases. Termina o ginásio
aqui, vai embora pro Rio, para São Paulo. Tem mães
aqui que não sabem o paradeiro de um filho, ou de
uma filha! São jovens assim que abandonam sua casa,
sua roça, não é? E saem aí, sem, destino, em busca da
esperança. Eu, embora que já fui preso muitas vezes,
não tive condições de viver (em Cataguases). Hoje, eu
tenho condições de mudar pra aqui, morar então, mas
tô enraizado em Belo Horizonte. Estou com minha família, trabalhando. Mas eu chego aí, transito livremente. Eu sou um que lutou! Tenho 72 anos de idade: acordo as seis, vou dormir às onze da noite lutando. Eu
71
luto! Porque você vê o povo, meu povo, muito infeliz!
Infeliz, sem perspectivas! Se o nosso povo resolver...
tomar cultura... ver como Nação... É o trabalho mais
sagrado esse que vocês estão fazendo: dar cidadania
ao nosso povo.
Entrevistado em 9/9/1988 por Gláucia Siqueira e João Carlos Borges Justi.
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73
74
HOMERO DE SOUZA
OPERÁRIO
66 anos
Meu nome é Homero de Souza, minha idade é 66 anos. Nasci na Vila Peixoto, atrás
da Indústria Irmãos Peixoto. Num tem o Pronto
Cordis ali naquele beco? Nasci e me criei... Ali nasci, ali me criei, ali trabalhei quase quarenta e dois
anos. A primeira casa que foi feita atrás da Indústria
Irmãos Peixoto foi pra minha família: família Manoel
Geraldo de Souza. Lá na Irmãos Peixoto trabalhou meu pai Manoel Geraldo. Trabalhou Geraldo
de Souza, trabalhou Aristides de Souza, trabalhou Homero de Souza, trabalhou Maria de Souza,
Foto: Saída dos operários da Fábrica de Tecidos, Gilson Costa, s/d, acervo iconográfico do IBGE
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Euclides de Souza e OrIando de Souza... Só trabalhou na Industrial meu irmão que faleceu, Wilson de
Souza... 22 anos. Wilson de Souza e Joana de Souza
trabalhou aqui (Industrial). Mas o resto, oito filhos,
trabalhou na Irmãos Peixoto. Meu pai... já tem uns quarenta e tantos anos
que morreu... trabalhou lá uns vinte anos, pra morrer
com 42 anos. Meu pai morreu e deixou a família toda
pequena.
Primeiro trabalhei na família Menezes. Trabalhei três anos na família, Menezes... de lá saí em
1937. Eu comecei a trabalhar na fazenda do Mané
(Menezes) com oito anos, mais ou menos. Depois dali
fui trabalhando, trabalhando, fui pra Irmãos Peixoto...
e trabalhei vinte e tantos anos de colchoeiro em minha casa, pra não deixar meus filhos passarem fome.
Eu entrei... acho que com 13 anos, 12 anos pra
13 anos, acho que foi uma coisa assim. Lá trabalhei
quase quarenta e dois anos. Minha função foi todas:
fui tirador, fui varredor primeiro, depois catador de
espula... catador de espula vazia, fui passadorista, fui
maçaroqueiro, fui carquista, depois passei a trabalhar,
vinte anos mais ou menos, na parte mecânica. Fui
mecânico especializado em manutenção de fiação e
tecelagem. Aprendendo por experiência e por prática! Trabalhei em quase todas as máquinas!
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Antigamente quando a pessoa ia trabalhar lá
não precisava ter 14 anos. A pessoa entrava com 8
anos... 9 anos... 10 anos... 13 anos. Meus irmãos começaram assim. Porque não existia esse negócio da
pessoa estudar, não precisava de diploma. Eu fui até
terceiro ano de Grupo só. Antigamente não tinha hora pra trabalhar. Trabalhava-se até dezesseis horas
por dia: começava às seis da manhã ia até dez horas
da noite! Trabalhava direto! Depois, com o tempo ela
(a Indústria Irmãos Peixoto) passou a trabalhar assim
à noite. É, de turno... a noite toda. O jovem trabalhava assim de dia. Mas aqui não tinha horário, porque
antigamente não tinha lei trabalhista. Eu, quando comecei a trabalhar não existia lei trabalhista.
Então não existia lei. (Era) a lei seca, o modo
de dizer, a lei do chubaco, a lei do chicote! Você trabalhava direto! Não tinha esse negócio de hora extra,
pagar hora extra, não tinha nada! Você ganhava aquilo que... Eu, pelo menos, devo ter entrado naquela
época ganhando oitenta réis. É, antigamente era por
hora... Entrei ganhando uma base de oitenta réis por
hora. Não era eu só não, era todo operário. E naquela
época o maquinário era muito ruim... o maquinário
quase não produzia. Aquelas máquinas de 910, 911,
912... era assim. Hoje, uma moça... uma fiandeira hoje toca dez máquinas... E antigamente era uma moça
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pra tocar um lado só, quer dizer que duas moças tocavam uma máquina filatória.
Folgava nos domingos, mas quando precisava... ficava apertado... precisando de muita produção
trabalhava (domingo).
Essas crises que estão existindo agora, de mandar operário embora. Isso a vida toda existiu. Porque
antigamente, quando meus pais trabalhavam na fábrica... tinha meu avô que trabalhou lá... um italiano... muitos anos também... trabalhou lá de foguista.
Antigamente, quando dava crise, o que eles faziam?
Eles plantava, muito milho no morro. Ali naquele
morro pra cima do SENAI, no fundo das casas da
Irmãos Peixoto. Então eles punham aquele operário pra capinar quintal, o pasto, capinar o morro ali.
Punha o operário pra debulhar milho... descascar milho. Ficava fazendo hora porque a fábrica estava parada, porque não podia dar mais produção, porque
tinha estoque de pano. Toda vida existiu crise!
Acidentes haviam e não havia recurso nenhum! Porque antigamente não existia assistência. O
que havia aqui em Cataguases era um hospital pequeno e existia o Posto de Saúde, onde é a Cima, que
tinha um médico ali que era o Dr. Raton... era tratado
por Dr. Raton.
O patrão passava dentro da fábrica, dentro da
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indústria, (mas) o chefe geral que comandava... aquela equipe de chefe geral. Muito chefe que, antigamente, não tinha assim... foi criado uma certa consideração com o trabalhador. Não tinha assim... foi criado
naquela época, modo de dizer, sem nenhum preparo.
Porque lá não existia um técnico! Não existia uma
técnica! Eles não iam pra fora estudar! Eles mesmos
se formavam com a fábrica e a experiência. Então
eles abusavam do poder!
Existia lá um chefe geral que era o Serafim
Spínola... tinha o Mário Bagno... um chefe de tecelagem que o senhor Werneck... e naquela época, quando
eles mandavam o trabalhador embora, o trabalhador
não recebia um tostão de indenização! Se quisesse, sabe o que ele recebia? Era um puxão de orelha e um
pontapé na bunda, no modo de dizer. Um pontapé...
porque eu vi muitos companheiros tomar pescoção.
Eles chamavam um tal de João Nego, Fedeno, João
Caolho... Eu vi esses companheiros tomarem muito
pescoção dentro da fábrica! E pontapé! Isso eu falei até
com o próprio Zezito Peixoto, uma vez... Isso era do
encarregado, não era do patrão... O patrão não mandava ele agir daquela maneira. Ele agia por espontânea vontade, porque ele não tinha uma certa cultura.
Para poder então ganhar o nome com o patrão... Batia!
Isso eu vi com os meus olhos muitas vezes! (O ope-
79
rário) continuava porque precisava trabalhar, vivia na
miséria... passando fome... não tinha outro recurso.
Era pior (com os coronéis) o trabalhador... eles
passavam fome, passavam a maior miséria. Também
porque não existia dinheiro. O povo não passava
mais fome sabe por quê? Porque naquela época qualquer córrego desse aqui... o Rio Pomba... a pessoa pegava era muita raça de peixe! Piau pulava mais de
uns cem... duzentos... tudo assim... O sujeito ia com
uma varinha, pegava um peixe e matava a fome! E
naquele “corguinho” que desce na Vila Domingos
Lopes, em frente daquele Grupo “Guido Marlière...
aquele córrego a gente ia ali e pegava bolão de peixe... Mas pegava o peixe e não tinha gordura pra fritar o peixe! Fazia um ensopado e comia aquilo pra
matar a fome!
A gente ia na Chácara do “Seu” João Carroceiro
(que) tinha uns 100 anos, mais ou menos. A gente ia
ali, enchia o saco de laranja, matava a fome! Por ali
no Bairro Haidée não tinha uma casa que existe ali
(hoje). Só tinha uma casinha lá em cima... morava
um crioulo que chamava Tio Mané... tinha uns 120
anos... A gente ia ali, apanhava aquelas canas, amarrava aqueles feixes, batia né... amassava com pau,
torcia eles, fazia aquela garapa e coava o café pra poder tomar... nem açúcar podia às vezes comprar! E ali
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arrancavam saco de inhame, saco de batata... então
matava a fome da gente! O salário não dava nem pra
vida do trabalhador. O trabalhador toda vida levou
uma vida ruim, no modo de dizer. Nunca levou uma
vida assim... um padrão de vida bom. E continua
passando miséria até a data de hoje!
Nenhuma (diversão)! O que tinha era futebol.
Sempre existiu Operário e existiu Flamengo. Onde
que é a Industrial que era o Campo do Flamengo,
antigamente, uns cinquenta anos atrás. E o campo
do Operário naquele lugar mesmo, ali... Na vila onde morei tinha um campinho... tinha um basquete...
futebol...ali. Existia um salão: chamava Ninguém
Reseste Salão Clube. E tinha o Violeta. Existia o Social
naquela época, mas o Social eu não podia ir lá. Só
podia ir branco, preto não podia ir. Aquilo era dos
poderosos, dos ricos, o pobre, não podia entrar ali. O
escuro, só com branco, mas que tivesse dinheiro também! E antigamente filho de pobre não podia estudar
também. Só estudava rico. Não formava um filho de
pobre pra professor! Não formava um filho de pobre
pra Direito!
Aquela fábrica ali é a mãe de todas as fábricas
de Cataguases. Quando eu comecei a trabalhar a fábrica não era a metade do que ela é hoje. E dali que
nasceu a riqueza deles, é dali que veio a fortuna de-
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les. O pai dos Peixoto, o Peixoto Velho, foi um trabalhador também. Porque trabalhava na Leopoldina,
trabalhava na Estrada de Ferro. Ele montou essa pequena fábrica com aqueles teares antigos que davam
pouca produção. E dali ele foi modernizando, modernizando até chegar ao ponto que chegou. Eles são
os maiores empresários daqui. Daqui dessa zona é
Peixoto e Dr. Ivan Botelho... São os maiores empresários.
Naquela época o que tinha aqui era a fábrica
do Nogueira: a fábrica de bala, de macarrão... Existia
só a Irmãos Peixoto. Da Irmãos Peixoto nasceu a
Industrial. Da Industrial veio a Manufatora, depois
da “Manu” veio a Multifabril. Foi aí que veio agora a Goitacáz. Depois veio a Estopam, lá embaixo.
Aqui não existia fábricas não! Existia os coronéis. O
Coronel Antônio Augusto tinha a Usina que empregava muita gente. Eles tinham canavial pra toda parte, aqui pro lado da Saudade... Tudo aquilo era dos
coronéis! Então tinha muito empregado, mas mão de
obra tinha pouco. O pessoal trabalhava mais era nas
roça. E nas fábrica, toda vida existiu crise.
Pressão (política) houve demais, porque antigamente existia duas arenas aqui: Peixoto, naquela
época era UDN e Pedro Dutra, PSD. Então existia
aquela política! Qualquer trabalhador que falasse no
82
Pedro Dutra era mandado embora! Se passassem até
no portão da casa do Pedro Dutra... se eles vissem
bater o pé no portão, era mandado embora! Eles perseguiam mesmo! Claro, eram obrigados a votar com
eles! Não tinham aquela liberdade pra poder falar
no nome do Pedro Dutra! Mas eu não ligava pra isso. Toda vida, eu sempre pensei: “eu sou um homem
livre”! Tinha a minha liberdade! Eu conversava com
o Pedro Dutra, ia lá dentro da Rádio, saía com Pedro
Dutra, não queria nem saber o que ia dar!
O trabalhador não entendia que ele tinha aquela liberdade... eles não entendiam que tinham o direito de expressar aquilo que... Eu, naquela época, eu
nunca tive medo. Toda vida eu acho que tenho minha
liberdade! Eu tenho direito de pensar! Eu trabalhava
na fábrica, mas eu sempre conversava com o Pedro
Dutra. Eu sempre conversei com o pessoal “pedrista”,
porque naquela época o trabalhador não podia... eles
pediam (votos). Até faziam uns piqueniques, naquela época... Iam lá pro Horto, ia lá pra Astolfo Dutra,
ia pra Miracema... Fazia aqueles piqueniques. Então
eles conquistavam o trabalhador, porque o trabalhador precisava mesmo. Naquela época eles faziam o
seguinte: cada família que tivesse um trabalhador,
eles davam um quilo de carne. A que tinha dez operários levava dez quilos de carne... tinha cinco, levava
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cinco. Fora de eleição eles faziam isso também. Não
tinha diversão, naquela época o trabalhador... De madrugada, cinco horas da manhã... quatro e meia, o relógio do trabalhador era o tamanco, era o treco... Eles,
iam andando, fazia muito barulho, fazia muito barulho aquele batido. Tanto que o relógio do trabalhador era o tamanco: aqueles que levantavam primeiro
acordavam aqueles que estavam dormindo. De roupa
simples e de tamanco. O calçado que o trabalhador
tinha era tamanco e treco, porque não tinha jeito de
comprar, não tinha condição. Passava a maior miséria, maior fome! Naquela época existia muita fartura, mas não existia dinheiro. Não dava pra comer. Eu
estou dizendo a você que o negócio é esse. Eu falo e
provo: uma broa de melado, estou recordando... João
Bonifácio fazia uma broa de melado deste tamanho
assim! Era um tostão. Mas o sujeito não tinha um
tostão pra comprar aquela broa! Antigamente, eram
vinte quiabos, daqueles quiabos desse tamanho assim por um tostão! Meio litro de leite eles vendiam
por duzentos réis, naquela época. Um mamão-melão
desse tamanho era duzentos réis... uma rapadura era
um tostão... E nós, lá em casa, não tinha um tostão
às vezes pra comprar! Naquela época era assim: o sujeito comprava fiado e pagava por quinzena. Então o
meu pai saía da fábrica às cinco horas e ia fazer com-
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pra... Levava aquele dinheirinho recebido pelos meus
irmãos todos... Reunia, ia lá fazer compra, pagava o
que estava devendo... O negociante falava: não vou
vender porque você não pagou tudo o que você estava devendo! Nós ficávamos até às oito horas da noite... nove horas, dez horas... esperando mantimento
pra fazer janta. Meu pai chegava com aquele saco na
mão, sem nada! Aí nós dormíamos com a barriga vazia, estômago vazio! No outro dia meus irmãos iam
trabalhar com o estômago vazio!
A fome nunca que acaba, isso é difícil. Só o dia
que o trabalhador entender que o Brasil é nosso! Que
cada um de nós mandarmos num pedacinho desse
território! Aí o trabalhador se liberta da fome! Do
contrário, não. Porque desde que existe o mundo,
existe a miséria. De maneira então, que sempre foi isso que estou dizendo... O trabalhador não pode, não
tem aquela liberdade pra dispor o que ele quer.
Sou um dos fundadores desse Sindicato. Eu
fiz parte da chapa do sindicato umas cinco vezes.
Graças a Deus sempre liderei perante os trabalhadores e sempre quem aponta o presidente do sindicato
sou eu. Eu que aponto! E toda chapa que eu apresento ela é eleita! Têm uns trinta anos que eu venho liderando e nunca fui derrotado. Posso ser derrotado
agora, daqui pra frente, mas, nunca fui derrotado!
85
Nós fizemos uma greve. Essa greve que nós fizemos embora... foi jogada fora pra mais de setecentos operários. Essa greve deve ter mais ou menos uns
dois anos... eu não fiz greve porque sou aposentado.
(A greve) ela foi e não foi (vitoriosa), mas o trabalhador numa parte foi, porque ele deu, como se diz,
deu uma demonstração de força, de união! O trabalhador não teve medo de se manifestar nesse recinto!
Eu disse aqui, numa Assembleia: “vocês vão fazer a
greve, mas vocês podem esperar que vem chumbo
grosso depois. Eles vão mandar muito operário embora... eles vão enquadrar vocês num decreto... ou
vocês vão ser mandados por justa causa ou então
pena máxima de trinta dias...” Eu, mais meus companheiros - Zé Rosa, que foi presidente aqui mais
doze companheiros... nós levantamos pra pedir um
aumento de salário. Eles ficaram de dar e não deram.
Depois nós cismamos de parar as máquinas... paramos a mando do chefe geral, que chamava Mário
Bagno. Paramos as máquinas! Resultado: a resposta
que eles deram a nós foi um aviso de trinta dias de
suspensão! Entramos na Justiça, eu e mais quatro
companheiros, mas perdemos. A justiça foi ao contrário! Voltamos a trabalhar, mas passamos a maior
miséria! Eu não passei tanta miséria porque minha
mulher é uma senhora que, no modo de dizer, era
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um “pé-de-boi” que eu tinha! Então ela lutou comigo
lado a lado! No dia que minha mulher ganhou uma
garotinha - dia 4 de fevereiro nasceu minha filha - no
dia 5 recebi uma suspensão de trinta dias. Nesses
trinta dias minha mulher quebrou o resguardo, secou
o leite, foi um desarranjo! Mas, como eu não tinha
uma profissão, só trabalhava na minha casa como
colchoeiro, até duas horas da madrugada... fazendo
colchão pra não passar miséria, pra poder tratar dos
meus cinco filhos! Então ela me ajudou a trabalhar e
eu não fui ao desespero... ela me ajudou a trabalhar e
eu não passei miséria! Comi lá arroz com feijão, angu,
uma abóbora lá, mas comia. Mas muitos companheiros passaram aperto.
No golpe de 64 foi preso o Zé Rosa, presidente
do sindicato, o Joaquim Ladeira, o Primo, presidente
do Sindicato da Construção Civil... foi preso o Wilson
Valverde, o Nanto que trabalhava no INPS, o Wilson,
o Rubens Policarpo, o Pescoço... esse pessoal todo
foi preso!
Prenderam aqui e levaram para Juiz de Fora,
de Juiz de Fora levaram para Belo Horizonte e lá ficaram um mês. Essa prisão foi um ato de perseguição!
Uma perseguição porque não havia motivo nenhum
pra... Teve “dedo duro” aí que entregou... Você sabe
que pobre não tem liberdade pra falar, mas o Galba
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não era dono da cidade. O Galba não era autoridade
nenhuma aqui pra poder mandar prender todo mundo. Houve uma perseguição! Você sabe, trabalhador
não pode evoluir.
Trabalhador tem que ficar na ignorância! Se levantar a cabeça toma bordoada e tem que abaixar a
cabeça. Ele tem que passar fome calado! Se ele falar
que tá passando fome, ele é agitador... ele é tudo na
vida! Ele tem que ficar debaixo de chicote! Ele não
pode se libertar! Ficar independente, como? Porque
se o trabalhador ficar independente, amanhã eles não
tem mão de obra barata. Então o trabalhador tem de
viver na miséria sempre, pra poder ser escravo do
poder econômico! Enquanto existir o poder econômico, essa luta do trabalhador contra o capital não
acaba: Ele não tem pena do pobre! O negócio deles
é sugar, porque quanto mais eles têm, mais eles querem. Então não adianta, porque nós é que somos a
alavanca do país! Nós é que damos produção, mas
eles não dão valor a nossa mão de obra!
Eu não pude responder você assim... na altura,
porque tem muita coisa pra recordar... Porque eu recordo muita coisa... Conheci aquela rua ali...
Entrevistado em 2/8/1988 por João Carlos Borges Justi e Rosangela
Schettini Rodrigues.
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J O Ã O FA B R I N O B A I Ã O
ESCRIVÃO FEDERAL
80 anos
Atendendo a um especial convite
da Secretaria de Cultura de Cataguases - eu me
sinto honrado com esse convite - posso dizer que
Cataguases sempre soube honrar o nome de Princesa
da Mata! Não só pela parte cultural, pela parte política, pela parte religiosa e pela esportiva.
Eu preciso dizer, de antemão, que Cataguases
não decepcionou aos seus filhos de outrora, pois aqui
militaram grandes políticos. Como o doutor Astolfo
Dutra Nicácio Neto que, por seis vezes consecutivas
foi o grande presidente da Câmara dos Deputados.
E também o seu filho, o doutor Pedro Dutra Nicácio
Foto: Bonde puxado a burro no dia da inauguração, s/a, s/d,
Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de
Cataguases
91
Neto, que seguindo as plagas de Cataguases, também demonstrou ser um grande político: amigo dos
pobres, muito contribuiu para o progresso da nossa
cidade. A esses dois Políticos nós devemos muito,
muito mesmo. Porque deles surgiu o progresso daqui
de Cataguases. Filhos e netos dos fundadores dessa cidade - Major Joaquim Vieira e do José Resende
Vieira - eles trouxeram grandes melhoramentos.
O doutor Astolfo, por exemplo, na ocasião da
grande cultura de café em Cataguases. Porque nessa ocasião, pelo esforço que o doutor Astolfo fez, na
presidência da Câmara, trazendo para Cataguases
uma colônia de imigrantes italianos... E ele então,
juntamente com o governador de nosso Estado, ele
conseguiu uma grande área na parte da agricultura.
Ali ele distribuiu quarenta e dois lotes para esses imigrantes italianos. Cataguases, nessa ocasião abrangia Laranjal, Miraí, Astolfo Dutra, Dona Euzébia,
Santana e ltamarati, que souberam honrar nosso
nome na cultura do café, se tomando Cataguases o
maior município produtor de café no Brasil!
Eu quero também ressaltar que o Banco do
Brasil veio pra Cataguases, sob os auspícios do
doutor Astolfo Dutra Nicácio. Foi a vigésima quinta agência instalada em todo território nacional e
a quarta em nossa Minas Gerais, depois de Três
92
Corações, Uberaba e Juiz de Fora, nos primórdios
de 1º de maio de 1918. Além disso, o doutor Astolfo
Dutra também construiu, ajudou a construir o
Hospital de Cataguases. A Ponte Metálica, que é nosso símbolo de Cataguases, também foi construída sob
auspício do grande benemérito Astolfo Dutra!
O material todo dessa ponte - eu tinha cinco anos de idade e via, o material foi importado da
Alemanha. Muitos eram daqui, sabe, mas veio gente
especializada que eu não sei o nome. Os operários
daqui, tudo isso, mas eu, no momento não sei te dizer, a não ser fazendo uma pesquisa. Vi também a
ponte velha, sabe, a ponte velha era toda de madeira
e por ocasião dessa, eu tinha mais ou menos quatro
anos de idade, via passar muitos transportes pesados.
E todo mundo, às vezes, quando tava pra construir
a Usina Maurício - essa eu não presenciei - mas todo mundo às vezes falava assim: a ponte vai cair, a
ponte vai cair! Porque, ali passava todo material pra
construção da Usina, que foi inaugurada no dia 14 de
julho de 1808.
No dia da inauguração da Força e Luz foi
cantado o Hino de Cataguases. A cidade toda escura, de repente, acende a luz. Então, sob a direção do
maestro Pascoal Ciodaro e Dona Honorina Ventania
- esposa do senhor Olímpio Rabelo, diretora do
93
“Coronel Vieira”, primeiro Grupo Escolar - ela então
ensaiava o coral. Então, naquela ocasião, acende a
luz, entra o Hino de Cataguases! Aquilo foi um espetáculo!
Eu vejo contar, porque naquela ocasião eu
num tinha nascido, mas deve ter sido mesmo um espetáculo! O Hino de Cataguases foi composto pelo
maestro, foi um dos maestros daqui de Cataguases,
Francisco Raimundo Corrêa. A primeira banda de
música que teve em Cataguases... E o Seu Rebeldino
Batista, um poeta que era de Piacatuba, que mais
tarde veio para Cataguases, foi jornalista... compôs
o hino.
Eu só conheci da Força e Luz um grande automóvel. Foi o primeiro automóvel de Cataguases,
que era um Benz, sabe. Então era um carro enorme
que cabia umas quatorze pessoas. Aquilo pra nós era
um... era um sucesso um carro daquele! Foi o primeiro carro, automóvel, que eu vi na minha vida! Depois,
mais tarde, foram surgindo os outros, né. Isso por
volta, mais ou menos, de 1915,16, sabe. Mais também, então, veio a febre do automóvel, sabe, com o
carro Ford. O Ford ”Três Colheres”, que foi um sucesso, e o primeiro carro que entrou aqui! Por incrível que pareça, foi de um cunhado meu, sabe, que é
pai de dona Ione das Neves Peixoto... ele chamava
94
Teófilo Carvalho Fonseca... O pai dele era um grande fazendeiro do município de Recreio, Conceição
da Boa Vista... Então vinha por aqui e... exatamente
quando ele se enamorou da minha irmã Zuzinha... E
posteriormente vieram outros carros bonitos. Lindos
como o Buick né, e o Packard. Um dos grandes automobilistas era o senhor Barãozinho é, o pai do Carlos
Olinto Teixeira e Castro. Esse dava-se ao luxo de andar até num rolls-royce. Por aí se pode ver o poder
econômico de Cataguases, desde aquela época!
Já com certa idade (fui) escrivão federal de
Cataguases, substituindo meu pai que faleceu. Aqui
só teve dois escrivães federais: meu pai e eu. Meu pai
trabalhou durante vinte e sete anos, desde 1902 até
1929, e eu quarenta anos como escrivão. Nesse ínterim eu tive uma oportunidade de conhecer um grande homem de Cataguases, doutor Norberto Custódio
Ferreira, a quem atendia prontamente na minha
repartição, fazendo sua declaração de imposto de
renda. Ele então comentava que Cataguases já tinha
sido um grande núcleo agrícola no nosso Estado. E
como as terras das nossas lavouras estavam ficando
cansadas, ele e mais dois companheiros ilustres de
Cataguases - o coronel João Duarte, que foi várias vezes presidente executivo do município de Cataguases,
homem de administração possuindo grande fortu-
95
na e muito talento sobre trabalho juntamente com o
senador José Ribeiro Junqueira, de Leopoldina, fundaram a Companhia Força e Luz prevendo já que
Cataguases, na parte agrícola, com as terras cansadas,
precisava que viesse pra cá... seriam instaladas aqui
indústrias, a fim de que o município prosseguisse na
sua atualização econômica.
Cataguases ainda teve a grande sorte! Em
outras eras aqui aportaram pessoas que estavam
exiladas pela revolução, sabe, da insurreição do navio Saldanha da Gama. Aqui, então, grande e ilustres pessoas da família Saldanha da Gama também
vieram enriquecer o patrimônio cultural da nossa
cidade.
Sob o ponto de vista da cultura, Cataguases
sempre primou nessa parte, sabe, na parte teatral.
Nós sempre tivemos essa oportunidade de presenciar
grandes companhias teatrais do Rio de Janeiro, que
aqui permaneciam durante uma semana e alguns
dias, apresentavam vários números. Nunca repetindo os temas teatrais! De maneira que nós tivemos
essa grande oportunidade. Porque o teatro daqui era
de propriedade do senhor Augusto Gonçalves da
Cunha, sabe. Homem que sempre incentivou a cultura de nossa cidade. Sempre promovia esses grandes
espetáculos trazendo artistas de maior renome nacio-
96
nal. O que nos brindou muito. E Cataguases muito
lucrou com isso!
O prédio (do cineteatro) era do Coronel (João
Duarte), mas ele (Augusto Cunha) era proprietário
do cinema. Na mesma época que foi fundado o teatro,
foi o clube - Comercial Clube - no qual meu pai foi
presidente no período de 1915 a 1917, sabe. Era em
cima do teatro... Eu mesmo representei e fui muito
aplaudido. Inclusive o Humberto Mauro, quando eu
acabei a minha apresentação numa cançoneta portuguesa - eram dez rapazes de um lado e dez moças de
outro - e eu sei que a nossa turma foi aplaudida cinco
vezes voltando ao palco, sabe... E assim que eu nunca recebi tanto beijo de moça depois de completar a
minha atuação no palco! Inclusive o grande cineasta
Humberto me fez um convite: deixa estar que eu ainda vou te fazer um grande artista cinematográfico. E
já estava começando sua atuação aqui, sabe, com a
Phebo Filmes.
E, de maneira que Cataguases nessa parte também desenvolveu muita cultura, sobre a parte teatral.
Inclusive minha irmã Ecila, que era um verdadeiro
espetáculo! Quando ela caía no palco, antes mesmo
da apresentação, era palmas e mais palmas! Ela participava e, além disso, dirigia também, sabe. Ela era
uma graça mesmo. Teve uma ocasião que ela veio ao
97
palco também várias vezes... ela só cantarolava porque a música não tinha letra, mas com toda graciosidade dela, tudo isso, sabe. Johnny Walker... E de vez
em quando eu escuto essa música e me traz muita
recordação.
Cataguases destacou-se não só na parte teatral, mas também na poética. Ah! O Antoniquinho
Mendes era um grande declamador! Era apreciadíssimo sim! E além de ser um grande declamador
era um grande orador. Cataguases foi terra de grandes oradores! Um deles foi ele... e outro foi o doutor Herberto Dutra Nicácio, também irmão do doutor Pedro. Pra mim foi um dos maiores oradores! E
o doutor Sandoval Soares de Azevedo, que foi nosso
promotor, professor na Escola Normal e mais tarde
deputado estadual. E mais tarde ele foi até Secretário
de Educação do nosso Estado.
E de maneira que Cataguases sempre foi assim
alegre ativa, tudo isso! O Humberto Mauro foi na época mais ou menos de 1925... 26, e artistas todos daqui!
Posteriormente vieram outros artistas como
Luiz Soroa, Carmem Santos, do Rio de Janeiro. Mas a
minha irmã mesmo, a Zizete, sabe, no Brasa Dormida
participou tocando piano... quem tocava eram as
mãos da minha irmã Ester, sem (o público) saber.
Houve um blefe aí, sabe, e ela aprecia porque... mais
98
viçozinha... Ela era de uma graciosidade e muito fotogênica! De maneira que ela participou e consta nos
anais do Brasa Dormida, o nome dela. Ela é aquela
que está ali naquele retrato... aquela, naquele canto...
Eva Nil foi a grande aqui de Cataguases! O primeiro
filme dela foi Senhorita Agora Mesmo, mais ou menos na época de 1925, sabe. Exatamente quando começou o Grupo Verde.
Em 1917 o Flamengo foi fundado por várias pessoas e o meu irmão. Aristóteles Fabrino foi
um dos fundadores. Dirijo o Flamengo ininterruptamente... às vezes eu quero sair, mas eles não deixam. Nós temos muita semelhança do Flamengo de
Cataguases com o Flamengo do Rio. O Flamengo
teve vários campos, sabe. O primeiro foi ali embaixo, na Vila Domingos Lopes, na época da fundação.
O segundo foi na Avenida Astolfo Dutra, o terceiro
foi na Vila Tereza, um terreno cedido pelo coronel
Antônio Augusto de Souza. O quarto foi ali na Rua
Gama Cerqueira, perto da Casa Felipe, nos terrenos
de Antônio Henriques Felipe Fonseca, que também
nos cedeu. Mais tarde, o Flamengo já não podia mais
ficar vivendo de campos emprestados, nós então conseguimos de definitivo um campo, com um contrato de comodato durante noventa anos. Juntamente
com outros companheiros e com o prestígio do
99
Pedro Dutra Nicácio Neto, por sete vezes fui a Belo
Horizonte, empenhar-me com pessoas de influência
junto ao governador Bias Fortes. E dessa época em
diante, então, sou sempre Flamengo, na direção do
Flamengo: ora como diretor esportivo, ora como diretor social, ora como secretário... tesoureiro... presidente... Eu ocupei todos os postos, inclusive até
de massagista, sabe. Já joguei também! Jogava no
Flamengo também! Jogava no segundo quadro, mas
de vez em quando eu participava das partidas do
primeiro quadro também. Eu tenho até fotografias no
arquivo.
Já fui também diretor do Clube do Remo,
quando o Flamengo ocupou o Clube do Remo. Nessa
ocasião o Flamengo existia... a parte terrestre e a parte náutica. E por essa ocasião então, o presidente da
seção do remo do Flamengo, teve a grata satisfação
de doar ao Clube do Remo dois barcos. (As competições a remos eram realizadas) no próprio Rio Pomba.
Esse Clube do Remo foi fundado em 1927 pelo doutor Vanor Ribeiro Junqueira e outras pessoas proeminentes da Cidade: setenta e cinco sócios proprietários.
E teve também, por essa ocasião, a visita honrosa do
nosso ex-presidente do nosso Estado, doutor Antônio
Carlos Ribeiro de Andrada, que transferiu o governo
do Estado para Cataguases, durante sete dias.
100
Eu nunca vi festa mais linda! As árvores iluminadas na Praça Santa Rita, na Rui Barbosa todas
as árvores feericamente iluminadas! Cada árvore iluminada com uma cor de lâmpada, desde o topo até o
tronco! E o Antônio Carlos, ao sair do banquete que
lhe foi oferecido no cineteatro Recreio - naquele tempo era o Teatro Recreio, mais tarde veio a ser cineteatro Edgard - ele dispensou seu motorista e preferiu
ir a pé até a residência do doutor Pedro Dutra, onde
ele estava hospedado, para apreciar a beleza incomparável, nunca vista nessa região toda! E isto a gente
fica mesmo comovido porque durante sete dias várias solenidades foram feitas. Entre elas um almoço
que lhe foi oferecido no Horto Florestal. E por essa
ocasião, Cataguases foi foco de grandes comentários da imprensa nacional. Vieram aqui repórteres
de Belo Horizonte, de São Paulo, do Rio, sabe. No
clube do Remo, o presidente presenciou a primeira
prova esportiva oficial. E num momento da disputa
de uma das competições, ele tirou de sua corrente
uma medalha e presenteou a um grande esportista.
E nessa ocasião o presidente quis ressaltar que (em)
Cataguases era o primeiro clube de remo do Estado
de Minas Gerais.
Naquela ocasião eu estava com dezoito anos.
A única participação direta que eu tive, naquela oca-
101
sião, foi o recebimento de suas mãos do título de reservista do colégio aqui de Cataguases, da Escola 123.
Cataguases tinha dois Tiros de Guerra: o 241 e o 123.
Ali (no 123) só quem era aluno do senhor Antônio
Amaro.
O Ginásio Cataguases era internato, desde o
tempo do senhor Amaro, era internato. Antes do Seu
Amaro dirigia aqui o colégio - esse já não era do meu
tempo - doutor Arnaldo Carneiro. Foi o primeiro, depois veio o senhor Antônio Amaro, um grande educador! Ele primava por tudo. Dava muito apoio aos
alunos... Tinha as festas sociais, esportivas... E eu tive
também esse Antônio Amaro como um grande professor, não só de matemática, física, como também de
moral e cívica. Aprendi coisa em moral e cívica!
Mais tarde então foi transformado nesse outro
colégio. Ali era chamado a Chácara da Granjaria...
não conheci mas é de origem da família Santos, de
Cataguases: tradicional família de Cataguases. Tudo
isso aqui na Avenida Astolfo Dutra, na Avenida
Coronel Artur Cruz, na Avenida Melo Viana...
Humberto Mauro, tudo isso aqui era a Granjaria.
Não tinha casa nenhuma aqui, sabe. Quando eu estava estudando, não tinha casa aqui, tudo era brejo.
Nessa área não também nada, só a sede do ginásio.
E nessa ocasião também funcionava o bondinho, né.
102
O bondinho funcionava puxado a burro, eu andei
também no bondinho, tenho até fotografia do bondinho. E o bondinho ia até lá no Ginásio. Ia na Escola
Normal. Chegou até ir na ponte metálica também, só
até ali. E circundava a cidade... Ia na Vila, passava
pelas praças, ia na Sandoval Azevedo também. E a
gente distraía muito com isso.
Ah! Praça da Estação? Era muito interessante,
né. Antigamente não se tinha pra... o Rio de Janeiro
não tinha estrada de rodagem, né, era só estrada de
ferro. Cataguases, o seguinte: o primeiro trecho de
estrada de ferro não foi daqui pro Rio nem nada. Foi
daqui pra Miraí, por causa da... pra puxar café, sabe.
Depois, mais tarde, passou a estrada de ferro aqui ligando ao Rio de Janeiro. E nessa ocasião passaram
daqui até Ubá... O ponto passeio predileto era esse:
nove horas da manhã, pessoas que vinham de Ubá
que iam pro Rio de Janeiro... cinco horas da tarde
pessoas que vinham do Rio e iam pra Ubá. E então (a
Praça da Estação) era o passeio... o passeio comum e
um atrativo!
Mas na Praça Rui Barbosa era a concentração
maior. Porque ali até moças brincavam de roda. As
crianças... havia jogos esportivos e jabolô. Você conhece jabolô? Jabolô é com dois paus com um fio
amarrado em cada ponta e dois cones ligados um ao
103
outro, de lata. Jogava para cima e aparava no barbante. Aquilo era muito interessante, sabe. E tinha jogo
de “cricket”, um jogo inglês também. Eu era criança e
via aquelas marretada lá e a gente apreciava!
E, além disso, as bandas de música que tinham
aqui eram espetaculares! De Rogério Teixeira, um
componente e maestro da Lira Cataguasense, e Pierre
Teotônio da Silva ao presidente, diretor e também
maestro da Sete de Setembro. Então havia rivalidade entre essas duas bandas. Uma não tocava - não
podia tocar - no mesmo lugar. Uma tocava na Praça
Santa Rifa, que era a Sete de Setembro. E a Lira...
Tinha dois coretos... Pra você ver como Cataguases,
na parte da cultura, se esmerava! O Rogério Teixeira,
ele fez o Hino do Flamengo, composição do Rogério
Teixeira. A primeira parte foi composta pelo Madeira
Passeado, mais tarde, o meu sobrinho Edson Fabrino,
vendo que só tinha as estrofes da primeira parte,
completou a segunda parte. Eu vou cantar aqui pra
vocês verem:
Flamengo Clube mostra o teu valor
É sempre querido, quer vencido ou vencedor
Flamengo Clube alegria dos rapazes
És valoroso, vitorioso de Cataguases
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Quando há vitória vem sorrindo nos braços
Se jogamos com fervor, conquistamos com amor
Mais um troféu para nossa glória
Vitorioso, és tu Flamengo
Flamengo Clube legenda de uma saudade
A tua glória orgulho de uma cidade
Oh meu Flamengo, voz estuante de muitas gerações
Teu pavilhão quando oscila descontrola tantos corações!
Além disso, meu sobrinho Edson Fabrino
Ramos compôs várias músicas populares. E uma delas dedicou a Cataguases, sabe. “Meu Oásis”, a qual
nós vamos escutar agora, nesse momento.
Também tinha dois clubes rivais. Eu frequentava o Comercial, mas também tinha outro, sabe. Esse
era um palácio ali perto da prefeitura, um palácio,
um palacete! Zeferino, exatamente: Palácio Zeferino.
Era na Rua Major Vieira, logo assim... o primeiro
prédio depois da prefeitura. O nosso era mais popular, porque os viajantes faziam peão em Cataguases,
e muitos desses viajantes eram diretores do Clube.
Gastavam fabulosas quantias! Seu Alberto Landóes
foi um dos primeiros diretores do Comercial Clube.
Alberto Landóes era um fotógrafo de nome. Eu nunca vi um fotógrafo tão bom assim! Ele era suíço e as
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filhas dele muito animadas: Albertina e outras mais.
Fazia parte aqui. O Clube tinha até a parte feminina,
na qual elas faziam parte. A minha mãe foi presidente. E Lúcia Moreira de Resende; Joana Cardoso, da
família Saldanha da Gama; Augusta Landóes; Alzira
Tâmega; Ecila Fabrino Baião, minha irmã; Luiza Villas
Bouçada. E tinha Guiomar Mares Guia, Adalgisa
Landóes, Rosa Amélia Baião, minha tia; Leonor
Ventania, Vânia Salomi Barreto... Uma diretoria masculina e outra feminina... Os bailes lá eram uma coisa
extraordinária! Bonito e muito farto! Porque a gente
tomava café com leite, chá preto, chá mate, café com
biscoito... Naquele tempo os biscoitos finos Aymoré bebida alcoólica existia nos bares, mas isso quem quisesse tinha que pagar - tudo era de graça! Chocolate,
doces... distribuídos pra todas as pessoas dos bailes.
Era assim, sabe. Pastéis, empadas... tudo isso era oferecido gratuitamente pela comissão feminina.
Era bonito um baile em Cataguases! Você imagina que os rapazes se trajavam - porque às vezes o
baile era a rigor tudo de preto. E as moças tudo de
rosa! Às vezes invertia, as moças de rosa e os rapazes de branco. E aquilo era uma coisa fora de série!
E o Rogério Teixeira, um dos maestros... A gente presenciava ali a verdadeiros dançarinos! E tinha uma
vantagem, sabe. Naquela ocasião, pra dançar não era
106
muito fácil. A gente precisava esperar uma piscada
de olho, uma coisa qualquer, tudo isso pra... E, porque as moças davam muito valor a si, não é como
hoje, sabe, as moças são mais entregues. A gente pra
conquistar uma moça era muito difícil! E então, existia uma plaqueta dizendo qual era a próxima música: fox-trot, valsa, maxixe, tudo isso. Tinha então
um livreto em que os rapazes às vezes combinavam:
oh, essa é minha! Aquilo já estava tudo programado.
Então a gente já sabia... Não podia dançar par constante, né. Mas aqueles que já tinham mais... já estavam comprometidos, eles respeitavam... Até quadrilha! Eu quando criança dançava quadrilha também,
sabe. Eu nasci naquele Clube!
Naquela ocasião havia essa rivalidade até no
carnaval Nessa primeira etapa só gente mais granfina,
sabe. Depois é que veio o carnaval de rua, das pessoas mais simples. O senhor Emílio nem existia aqui
nessa cidade. Eram os Felinianos, os Tenentes do
Diabo. Depois é que veio o carnaval... o Lord Clube,
o senhor Emílio com as Mimosas Camélias. Havia
competição, já era de rua. Então havia uma comissão
julgadora, que no Comercial Clube sempre existiu.
Eu fui visitar uma escola de samba em Juiz
de Fora, a Feliz Lembrança. Ajudei muito lá a escola
de samba. Eles então quiseram que eu fosse o pre-
107
sidente: presidente de honra! E com isso eu trouxe
a primeira escola de samba pra cá. Eu criei a escola de samba em Cataguases. E dessas coisas eu me
envaideço, porque eu nasci assim... Nasci alegre desde pequeno! Na parte social, na parte recreativa do
carnaval, eu nunca vi uma derrota. De maneira que
seguidamente o Flamengo foi campeão! Agora, no
futebol... de vez em quando um vence... outro vence...
Por vários anos eu fui presidente do Clube
Social, o antigo Comercial Clube, sendo que num
prédio mais novo. Foi mais ou menos no período
de 1871 a 1976. Fui reeleito quatro vezes! Durante
o meu período eu tive ocasião de hospedar pessoas ilustres e embaixadores ilustres. Aqui esteve em
certa ocasião a embaixada - vários diretores - do
Fluminense. E então eu abri as portas do Clube e,
principalmente, do bar, oferecendo tudo, tudo para
eles de graça! Inclusive champanhe! Mais tarde também Cataguases foi palco da Semana de Inverno e
eu me descobri, como presidente do Clube, atendendo, fazendo o mesmo que eu fiz com os diretores do
Fluminense: abrindo as portas. Em vez de champanhe eu dava licores, porque tava frio.
Cataguases, em todos os sentidos, sempre
brilhou com sua participação, sabe. Inclusive até na
Grande Guerra, na Segunda Grande Guerra. Numa
108
radiosa manhã de 30 de setembro de 1944, aqui
aportaram redatores do Estado de Minas Gerais, à
procura de dona Leonídia Belarmina da Conceição,
uma humilde lavadeira, mãe do herói da Segunda
Guerra Mundial: o soldado FEB número 258, José
Marques Neto, apelidado de Zezé do Beco do Rio
Pomba, para o recebimento das homenagens que foram prestadas àquele valente e heroico soldado. O
soldado José Marques Neto entrou na primeira vila
capturada pelos brasileiros! Os “pracinhas” foram
vinte e um. Todos eles voltaram com vida O único
ferido foi esse rapaz que tinha o nome de Edmundo
Vargas Fonseca, dono de um antigo bar aqui em
Cataguases. A Associação dos Escoteiros foi a única
entidade civil presente a uma solenidade, na qual
nós ressaltamos o valor do soldado cataguasense! Eu
fui o fundador do escotismo aqui; da segunda turma
de escotismo, que houve uma primeira e fracassou...
Os pracinhas foram esses aqui: Euzébio de Souza
Paiva, Geraldo Silva, Hélio Padilha, Jairo Vieira, João
Batista de Castro, João Venâncio Brito Filho, Joaquim
Alves Moreira, Jorge Cortes de Barros, José Alves
Moreira, José Bento dos Santos, José Bento de Souza,
José Marques Neto, José Pascoal Vita, Moacir Lopes,
Murilo Ribeiro Guimarães, Nelson Fialho Garcia,
Edmundo Vargas Fonseca, Orozimbo Resende,
109
Oslon Ribeiro, Oswaldo Fialho, Pedro de Medeiros,
Sebastião Coimbra, Venceslau Antunes Werneck,
Virgílio Dias Morais e Waldir Vieira Viana.
Cataguases tem essa praxe: desmanchar antigo pra fazer o moderno. Eu mesmo, por exemplo, fui
favorável à construção da nova matriz. O padre me
perguntou, o bispo Dom Delfim veio me perguntar
se era favorável desmanchar aquela igreja. Bom, falei
assim, se é para aumentar o espaço para os crentes,
se é para embelezar... Parece que Cataguases desmancha o passado para vir o presente! Então eu sou
favorável. Eu dei a minha opinião favorável Muita
gente condena, mas é isso mesmo, aqui é como o
poeta Ascânio Lopes falou sobre Cataguases né, no
passado. Disse aquele verso tão bonito dele, que fala
sobre Cataguases. Tão lindo!
Eu estou, então, por isso, pelo modernismo.
Sou modernista, gosto da... agora também respeito
o antigo. Como também acolhi bem as poesias do
Movimento Verde, porque poetas do Movimento como Ascânio Lopes, Rosário Fusco, a gente tem que
tirar o chapéu! E principalmente o Rosário Fusco!
Mas como foi de praxe, já tava fazendo o colégio, depois o clube, e outras residências aí, do Oscar
Niemeyer né. Falei assim: não, nós vamos ter que
mudar o que tá sobrando agora!
110
No momento são tantas as coisas que a gente... são certas passagens que a gente relembra com
satisfação, tudo isso, e com saudade, né? Porque agora eu vou encerrar minha carreira social. E quero ver
se encerro também a carreira esportiva. Quero ver
se alguém... precisa me substituir, porque a gente...
Senão não tem continuidade a ação. Faço votos que
outras pessoas façam o que eu fiz e, desprendidamente, somente por amor à terra! Eu fui condecorado
como personagem do ano na parte cultural! Isso me
envaideceu muito, porque a gente faz isso por amor
à terra... Cataguases é assim, sempre aberta para o
mundo exterior!
Entrevistado em 26/7/1988 por João Carlos Borges Justi e Rosângela
Schettini Rodrigues.
111
112
J O S É L U I Z S A L E S VA L E
J U I Z D E PA Z
76 anos
Eu tenho alguma coisa que eu vi, que
eu posso contar. Tem coisas que eu escutei de outras
pessoas sabe. Pode ser que sirva para o trabalho que
vocês estão fazendo...
Eu nasci em Carangola, no dia 15 de junho de
1913, mas eu vivo em Cataguases desde o dia 22 de
setembro de 1920, consequentemente, há sessenta e
oito anos. Vim para cá com 7 anos. Eu vim com minha mãe e meus irmãos, porque meu pai faleceu em
Além Paraíba, e nós viemos pra casa da minha vó paterna. Ela era uma pessoa que foi muito conhecida,
Foto: Plantação de mudas na Festa das Árvores na Avenida Astolfo
Dutra, Alberto Landóes, 1917, Departamento Municipal do Patrimônio
Histórico e Artístico de Cataguases
113
no seu tempo, na cidade, porque ela foi servente do
Grupo Escolar “Coronel Vieira”. Chamava Luiza do
Vale, uma pessoa assim... muito dedicada ao trabalho.
E tinha muito cuidado em ajudar as professoras na
educação das crianças.
Estudei no “Coronel Vieira” e recebi meu diploma lá. Eu tinha muita vontade de continuar estudando. Quando eu recebi o diploma do quarto ano,
eu tive de parar. Não tive condição financeira. Minha
mãe ficou viúva com três filhos, mais uma velha cega
que a minha mãe trouxe consigo lá de Porto Novo...
E nós não tínhamos meios financeiros pra gente estudar, não é? Agora, eu sempre gostei muito de ler. E tinha contato também com pessoas esclarecidas: literários, poetas... Mas fundaram aqui em Cataguases um
curso chamado Rural, que funcionava lá no Grupo
Coronel Vieira. Eu frequentei ele algum tempo. Mas
aconteceu uma coisa desagradável lá no Grupo, que
me afetou e eu não tolerei. Eu falei: “Mas a senhora
sabe que eu não participei da algazarra! A senhora
quis dar exemplo comigo? Eu não tenho nada que
ver com isso! Não fico não!” Fui embora. E comecei
a trabalhar.
Mais tarde fundaram lá no Colégio Cataguases
o curso de comércio, um tal de professor Langoni
que tinha aqui, funcionário do Banco de Crédito
114
Real. Funcionava de noite. Fazia um sacrifício medonho: eu trabalhava até as cinco e trinta, seis horas...
largava o serviço depressa e ia lá perto da Praça de
Esportes, eu morava lá, pegava os livros, tomava um
banho e subia o morro do Colégio de carreira, porque
eu tinha que chegar lá às sete horas. Então enfrentei
aquele curso. Eles usavam um sistema interessante.
Por exemplo: aula hoje é de português, era uma hora
só de aula de português. No dia seguinte era aula de
matemática, era outro professor. E contabilidade era
o tal de professor Langoni. Mas havia níveis diferentes de conhecimento. Era uma turma de gente atrasada danada! Eu fiquei decepcionado. Eu estou pagando o colégio pra perder meu tempo! Eu não podia
brincar porque o negócio comigo era sério! Tive que
desistir de estudar. Mas a vida ensina a gente!
Uma coisa que me ajudou muito foi a tipografia de jornal. Eu ia compor um artigo... um artigo sobre um assunto qualquer, então eu ficava conhecendo o assunto. Você sabe o que é compor um artigo?
É juntar as letras aqui. Isso aqui chamava original.
Ia para a banca de tipo, ia usando uma ferramenta
chamada componidor, ia tirando as letras daquela caixinha e colocando aqui até formar numa linha
dessa... Eu gosto da feição atual do Cataguases: está
com uma paginação bem feita, assuntos variados...
115
Se eu fosse redator ou dono de uma tipografia eu
não publicaria artigos grandes. Eu gosto muito daquela seção do Cataguases que tem aqueles pedacinhos... Tipógrafo de jornal eu trabalhei muitos anos.
Eu trabalhei na tipografia da A Tribuna, um jornal
fundado pelo senhor Luiz Soares dos Santos... Foi tabelião aqui durante muitos anos e fundou esse jornal
na campanha para a eleição do senhor Julio Prestes.
O adversário dele era o senhor Getúlio Vargas, não
é? Depois da eleição começou a notícia de que tinha
sido ganha pelo senhor Getúlio Vargas. E o senhor
Getúlio Vargas tinha sido esbulhado. Então ele, que
era governador do Estado do Rio Grande do Sul, se
aliou ao governador do Estado de Minas, que chamava Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e ao governador do Estado da Paraíba, João Pessoa, e fundaram a
Aliança Liberal. Essa Aliança Liberal, que sustentou
a candidatura do senhor Getúlio foi evoluindo para
a Revolução de 1930, que acabou levando o senhor
Getúlio ao poder, pela primeira vez.
Um pouco pra cá da farmácia Santa Maria era
a tipografia da A Tribuna, mais ou menos perto da
farmácia Santa Maria, ali perto da Estação da Estrada
de Ferro Leopoldina... O senhor Luiz Soares dos
Santos foi um intelectual, um poeta. Ele me entregou
um soneto, que esse eu guardei... Eu acho esse sone-
116
to dele muito interessante por causa do fundo moral
que existe, pela pregação do perdão:
“Eu tenho às vezes ímpetos terríveis
de esmagar com as minhas mãos possantes arauto das perfídias mais incríveis
aos meus ideais edificantes.
E quando eu chego a arremessar meu braço
na sombra da mais justa indignação
Tu me acodes a mente, oh Terezinha
Quando no jardim do céu, meiga santinha
E o meu furor transmite o seu perdão.”
Depois disso eu trabalhei, também, durante
muitos anos na tipografia do Cataguases. E lá, na
tipografia do Cataguases, o Rosário Fusco, o doutor
Enrique de Resende, Antônio Mendes e outros iam
lá na redação, rever os artigos deles, as trovas... E
conversavam muito com a gente. Quando surgia um
assunto desconhecido da gente, a gente perguntava
a ele: doutor Enrique, o que é isso? O que significa
isso? O doutor Enrique tinha uma boa vontade... ele
perdia um tempão dando uma verdadeira aula pra
gente! E aconteceu uma noite lá, uma coisa interessante também: um certo cidadão que tinha aqui (em
Cataguases), arranjou uma briga com um cliente de-
117
le. Esse cidadão era tintureiro, ele tinha o apelido de
Coco... Ele foi lá no Cataguases para fazer uma publicação insultando mesmo o cliente dele, por causa do problema com uma calça. Então a redação do
Cataguases rejeitou, não ia publicar uma coisa daquela, não tinha condição. Então houve aquela conversa e tal. Então o doutor Enrique fez - ele era repentista - uma quadrinha assim:
“Por causa de um par de calças
um homem se fez louco
cuidando das ditas cujas
por um triz lhe parte o Coco.”
Eu já vi, vi essas coisas e, normalmente eu guardo. Sempre li muito. E depois dos meus dezoito anos,
eu me dediquei muito a estudar religião: religião católica, religião protestante e, sobretudo, o espiritismo.
A gente não tinha assim recursos para comprar livros. Então a gente lia livros emprestados.
Uma pessoa que me emprestou várias vezes foi um
rapaz chamado Peterson. Ele me emprestou inclusive Os Miseráveis do Victor Hugo, O Corcunda de
Notre Dame e outras obras. De modo que eu lia essas
coisas. O livro do Alexandre Dumas, os brasileiros
O Guarani, de José de Alencar, aquelas poesias do
Castro Alves...
118
As pessoas que eu conheci aqui e que se envolviam com literatura... Na ocasião em que eles publicaram a Verde, a revista Verde... Eu convivi com o
Rosário Fusco, Antônio Mendes... Francisco Peixoto,
ele era o braço forte, o financiador, porque os outros
eram todos pobretões! O editor chamava-se Daniel
da Silva Lopes, o homem em cuja tipografia foi feita
a Verde. A tipografia dele era mais ou menos ali onde
agora é aquele prédio do Valverde, perto da Estação...
Conheci o Ascânio Lopes. Não conheci muito assim
não, porque quando eu conheci o Ascânio ele já estava doente. Segundo me disseram foi tuberculose. Ele, inclusive, publicou nas poesias dele alguma
coisa com referência à doença. Esses estudantes, que
lutavam com dificuldade, geralmente eles estudavam em Ouro Preto, outras cidades... Alimentavam
mal... Viviam a vida também. E longe da família, sem
aqueles cuidados de alimentação, cometiam excessos de toda espécie: Eles usavam o costume de colocar as pernas dentro de uma bacia com água fria,
para não dormir, e ficavam estudando... Conheci
dona Onorina Ventania mal-mal... Ela era cantora da
Igreja. Foi ela quem gravou, pela primeira vez, o hino
de Cataguases. Aquele: “Flor esplendente da Mata,
Cataguases bem fadada...” Tipógrafo geralmente tem
muito contato com os intelectuais, não é?
119
Eu faço parte do movimento espírita em
Cataguases, principalmente da diretoria do Centro
Espírita Paz e Amor, desde criança. Eu tinha mais
ou menos 18 anos quando fui pela primeira vez presidente do Centro. Ele é originário de um grupo de
pessoas que viveram aqui e que aceitaram a doutrina espírita e se reuniram, se cotizaram e construíram
aquele prédio da Avenida. Antes ele funcionou na casa de um senhor chamado José Justiniano de Godoi,
que foi dono também da Padaria Godoi, que é hoje
aquela padaria ali daquela esquina, perto do Banco
do Brasil. Um farmacêutico chamado Armando
Drumond e outros se reuniram, se cotizaram e conseguiram uma quantia insignificante, mas para aquela
época já era uma quantia importante: seis mil réis! E
conseguiram terreno na prefeitura e câmara municipal. Nós temos ainda, lá, no nosso arquivo, o documento de doação do terreno. (O Centro) está funcionando há mais de sessenta anos. Nós temos um
trabalho assistencial bastante desenvolvido, mas deficiente por causa da exiguidade de recursos. A gente
não pode fazer mais do que tem sido feito, principalmente por falta de meios. Aquilo é uma sociedade
composta de sócios, sócios quase todos eles com poucos recursos, que se cotizam e obtêm recursos para
esse trabalho de assistência social. No momento nós
120
temos uma sopa para os pobres, aos sábados, que está atendendo a mais de trezentas pessoas de cada vez.
Temos um trabalho de assistência à parturiente pobre e ao recém-nascido, com distribuição de roupas,
e outras coisas mais que no momento eu não estou
lembrando... Nós fazemos duas campanhas por ano:
a campanha do agasalho e a campanha do Natal dos
pobres. Essas duas campanhas são muito bem aceitas
pela população e ela sempre nos ajuda, sem problemas. O número de espíritas não é muito grande não.
Somos poucos, somos a minoria mesmo.
Do meu tempo para cá a compreensão, a educação das pessoas, o desenvolvimento, o esclarecimento das criaturas, tornou o Centro Espírita, e seus
adeptos, respeitados. Em outros tempos nós chegamos a ter hostilidade. Hostilidade física não, mas havia uma prevenção, um preconceito... Agora nós não
temos nada que queixar da população da cidade.
Eu tinha de recordar alguma coisa da vida de
Cataguases... Em Cataguases houve uma empresa
que criou e explorou uma estrada de ferro. É... estrada de ferro que ia daqui pra Miraí. Foi construída por
uma empresa cataguasense, com capital de pessoas
daqui. A Estrada de Ferro Leopoldina encampou a estradinha que Cataguases criou para Miraí. Quem era
o chefe da empresa era um francês chamado Boujois.
121
Nós tivemos uma linha de bonde aqui na cidade. Ia lá da Vila Domingos Lopes, atravessava a
ponte velha. Até bem pouco tempo os trilhos ainda
existiam lá. E essa empresa também foi construída,
foi montada com o capital de pessoas que viviam
aqui. Parece que o senhor Joaquim Carvalho, o senhor Manoel Peixoto... o velho, o que começou tudo...
Eu cheguei a ver um dos bondes colocado. Foi recostado num barracão em frente à fábrica velha... bonde
puxado a burro!
O Coronel João Duarte foi dono de quase tudo aqui em Cataguases. Foi chefe do executivo municipal... na administração dele construiu aquele canal da Avenida. Ele era um homem assim... dotado
de espírito empreendedor. Começou muito pobre:
ele veio para Cataguases como imigrante português,
para trabalhar na Estrada de Ferro Leopoldina, e
ele chegou a ser um grande capitalista industrial! O
Coronel João Duarte era um homem assim... que pensava muito nas coisas, também, que não eram propriamente negócios. O Cinema Recreio, um prédio
interessante... aquelas colunas... Não era só negócios,
fortuna. Tinha preocupação com a cidade, a cultura... Ele e outras pessoas, inclusive o senhor Manoel
Peixoto, pai dessa família toda, fundaram o ginásio
de Cataguases. Eles eram muito idealistas. E pessoas
122
muito procuradas. Tudo que tivesse que fazer aqui
na cidade iam buscar recursos com eles!
Nós tínhamos um Banco de Cataguases aqui.
O Banco de Cataguases ainda tem o resto dele, não
é? Era ali onde está a Cobal. O Coronel João Duarte,
além do Banco, ele tinha um engenho de serra, de serrar madeira, serrar aquelas toras, tão importantes que
a Estrada de Ferro Leopoldina criou um desvio, que
ia diretamente lá dentro da Serraria, naquele beco ali,
entre a leiteria e aquele Supermercado Cataguases. Ele
tinha máquina de beneficiar café. Havia uma quantidade enorme de compradores de café, aqui na cidade
mesmo, ali na Estação, no prédio onde está a leiteria e
a Cobal, por ali afora... Até encostava carro de boi - não
tinha caminhão - então os carros de boi entravam na
cidade chiando, vinham fazendo aquele barulhinho:
trazendo café. Muito café! Café, arroz, milho... O açúcar, que era produzido aqui, era um açúcar chamado
instantâneo, um açúcar preto, açúcar cristal veio depois. Então havia um movimento muito grande na estação da Estrada de Ferro Leopoldina. Até hoje aquele piso da Estação está sulcado ali, dos carrinhos que
vinham para carregar mercadoria. A Cidade era uma
movimentação formidável! A Indústria Irmãos Peixoto,
por exemplo, ele tomava conta das duas balanças do
despacho de mercadorias aos sábados. Aos sábados, os
123
funcionários iam pra lá... Tinha tanto despacho para
fazer que a gente não conseguia fazer despacho.
A cidade... primeiro não tinha calçamento em
rua nenhuma. Era um atoleiro só, pra tudo enquanto
é lado! Ali, onde está o Banco do Brasil, do lado, tinha um açude. Do outro lado tinha uns casebres, que
eram da propriedade do senhor Domingos Tostes,
um farmacêutico. Naquela passagem ali, tem aquela
rua que desce, não é? Ali era um atoleiro! Uma coisa
medonha! Então, aos domingos, as pessoas vinham
à missa e sujavam os calçados ali. Então, os meninos
engraxates eu inclusive - ficavam lá no jardim da
Praça Santa Rita engraxando os sapatos, limpando
os sapatos daquelas pessoas, porque elas não queriam entrar na Igreja com o pé sujo. Ali, na Avenida
Astolfo Dutra, do Centro Espírita pra cá, aquilo tudo
era um deserto. Tinha ali uns casebres, onde morava
inclusive um cidadão chamado Pedro Mendes, que
era lixeiro da cidade e trabalhava com uma carroça
de burro. Ele recolhia todo o lixo da cidade com uma
carroça de burro.
Usava-se plantar árvores... No dia da Árvore
havia aquele agrupamento de alunos, de escolas,
discursos... Ali na Avenida Astolfo Dutra tinha uma
quantidade enorme de frutinha chamada framboesa.
Mas uma quantidade! Então uma parte da população,
124
assim, nas tardes e aos domingos, ia pra lá e ficava
catando framboesa, por ali... assim...
Na esquina ali da Avenida Artur Cruz tinha
o Colégio Normal. A primeira turma de professores
da cidade se formou lá. Era uma casa bem... dava
bem pra funcionar o Colégio Normal ali. Do lado
do Colégio Cataguases, aquilo tudo era um alagado
por ali afora. O córrego da Avenida não era controlado dali pra cima não. Aquilo ali era água espalhada.
Havia um açude lá... gente pescava, nadava... e o caminho que levava a gente... Ali tinha uma planta chamada Maripá, era boa para o tratamento da “espanhola”, e ficou com apelido de Dr. Maripá. Então as
pessoas chegavam ali, tiravam folhas, outras passavam a tirar galho. Quando terminou a doença, a epidemia, você só via aquele toco, sem casca, sem nada.
A cidade precisava de um hospital. Então juntaram um grupo de pessoas aqui da cidade - gente de
influência e também de bom sentimento de caridade
- se reuniram para cuidar da construção do hospital.
Então construíram uma chamada comissão construtora. Fazia parte dela: senhor Caetano Mauro, pai do
Humberto Mauro; o padre João Crisóstomo; um juiz
de direito que tinha aqui chamado Kleber Toscano;
o senhor Peixoto, e outros. Então eles fizeram tudo
para conseguir o recurso, inclusive uma coisa cha-
125
mada bando precatório, que não se usa há muitos
anos, que é o seguinte: reunia um grupo de pessoas
senhoras, homens, moças - aquela coisa toda, percorriam as ruas da cidade com a bandeira brasileira segura pela ponta. As moças segurando pela ponta. As
outras moças iam pela calçada pedindo dinheiro às
pessoas e jogando dentro da bandeira. Eles fizeram
leilões, leilões de gado, de prendas... E contribuições
também particulares. Conseguiu o fundo para aquele
primeiro prédio que houve ali. Aí ele ficou deficiente,
porque também a construção não era apropriada, tinha escada... Havia necessidade de uma coisa moderna, uma coisa maior.
Eu tenho o “xerox” do testamento do doutor Norberto Ferreira. Ele foi um dos fundadores da
Companhia Força e Luz Cataguases-Leopoldina. Ele
deixou para o hospital, para o orfanato Dom Silvério
uma certa quantia de ações, e também para o orfanato
a Fazenda da Graminha. E para o hospital a Fazenda
Fumaça, muito grande, muito boa! E deixou o usofruto da fazenda para o administrador dela, o senhor
Fernando Lobo, e na falta do senhor Fernando Lobo,
a fazenda passaria a ser administrada diretamente
pelo hospital. Ela pensou em tudo. Tudo, tudo! Nos
empregados dele... todos eles foram beneficiados
no testamento. Todos os empregados dele! O jornal
126
Cataguases publicou o testamento do doutor Norberto
Custódio Ferreira, no dia 28 de fevereiro de 1935.
Ah! Eu tive uma porção de profissões. Da minha infância até agora eu fui uma porção de coisas. Eu
trabalhei em marmoraria, trabalhei numa fábrica de
colchões, trabalhei numa lenharia - atendendo telefone e ajudando a encher carroça de lenha - fui tipógrafo duas vezes, trabalhei no comércio. Fui empregado
da Casa Carcacena por três vezes - saía, voltava, saía,
voltava. Fui gerente da Cooperativa dos Operários, fui
encarregado do posto de venda do SAPS... E antes trabalhei também numa firma - Bonfim e Cia. - atacadista
de cereais e outros artigos. De maneira, que nós tivemos, assim, que lutar muito, não é? Eu fui funcionário
público e atualmente sou juiz de paz. Pra mim todas
elas tiveram muito valor porque me ajudaram a viver
e criar minha família. Todas foram uma experiência
muito boa!
Eu amo Cataguases! Eu gosto dessa gente e tenho muita gratidão, muito reconhecimento por tudo
quanto aconteceu comigo nessa cidade! Porque eu
fui criado aqui e nunca me faltou trabalho... nunca
faltou amparo. Eu sempre fui tratado com uma certa
consideração.
Entrevistado em 6/7/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Valadares
127
LAURENTINA CARUSO
COMERCIANTE
81 anos
Tem muitas coisas que a gente não
lembra mais, não é? Tem muita coisa que a gente esquece... Sou portuguesa, do Conselho de Albergaria,
distrito de Aveiro. Nasci em 3 de outubro de 1908.
Vim com minha mãe, vim ter com uma irmã... Minha
irmã morava no Rio de Janeiro. Eu perdi o pai com 4
anos. Morei em Barra do Piraí e me casei logo depois
de dez meses que estava em Barra do Piraí. Vim com
15 anos, vim fazer 15 anos aqui (no Brasil)... me casei
com 16 anos incompletos. Casei-me com um italiano, que morava em Barra do Piraí, e dele eu tive dois
filhos que é Hélio Antônio Caruso e Elvira Antônio
Caruso Pugliesi, casados. Tenho seis netos e uma neta, quatro bisnetos...
Foto: Esquina da Rua Cel. João Duarte com Avenida Astolfo Dutra, s/a,
1932, CDH do Instituto Francisca de Souza Peixoto
129
De Barra do Piraí cheguei aqui dia 10 de setembro de 1929. Giolito Antônio Caruso era progressista, adorava Cataguases! Ele não queria morrer fora
de Cataguases! Ele veio a primeira vez com 8 anos.
Ficou uns tempos aqui, uns tempos com o pai dele... O pai dele vinha passar uns tempos... passava
uns tempos na Itália... depois ele foi para a Itália e
ficou lá até 18 anos. E voltou para o Brasil para trabalhar com o pai dele, isso em Barra do Piraí. Ele
comprou uma agência de jornal e revistas, loterias e
veio morar aqui (em Cataguases). Viemos aqui negociar, viver aqui. Paraíso da Sorte... vendia muita sorte
grande. Sempre vendia! Nós tínhamos o privilégio
parece, ter sorte de vender. O Domingos Tostes foi
contemplado com cem contos. Era muito dinheiro!
O Vasco Pelorace também com cem contos, o maior
prêmio! Ele comprou o Paraíso da Sorte do Fenelon
Barbosa. Depois, ele adoeceu e não pôde mais trabalhar. Adoeceu do coração, ficou dezenove anos doente do coração. Mas ele também tinha caminhões de
transporte para o Rio de Janeiro, para São Paulo, Juiz
de Fora... Agora eu não me lembro o nome não... Não
sei se era Transportadora Caruso... Nós também tínhamos um bar onde é hoje a Loja Sahione. Não sei
se era Bar Caruso, não me lembro bem. Meu marido
queria montar um restaurante, mas eu falei: não põe
130
não, porque empregada é muito difícil! Aqui, sempre
foi difícil empregada.
Agora, ele pra aqui mudou, como ele dizia
mesmo. Nós fomos na Itália passear e ele esteve muito mal lá. E ele dizia: “Não quero morrer aqui, eu
quero morrer no Brasil! E eu disse: Deus faça a sua
vontade. Você vai morrer no Brasil, não morre aqui
não. E ele veio morrer aqui. Morreu muito novo,
morreu com 52 anos. Eu não tinha ainda 47 (anos). Já
vai fazer trinta e dois anos, agora no dia 15 de agosto.
Vim pra cá em 1929, eu devia estar com 20...
21 anos. Fui muito bem recebida em Cataguases. A
primeira amiga que eu tive foi dona Eponina Peixoto,
depois a Dona Elisa Ribeiro, senhora Fortunato
Ribeiro. Essas foram as primeiras amizades. Sempre
fui bem recebida na sociedade. (A colônia portuguesa
no início do século) era bem grande. Agora está reduzida. Tinha uns quinze, por aí. Tinha o Antero Ribeiro,
o Licínio Garcia, o João Garcia, Fortunato Ribeiro, o
Joaquim Peixoto que é pai da Minalda Lourenço, tinha diversos portugueses. Tinha alguns italianos...
muitos não. Tinha o João Ciodoro, tinha uns italianos
que moravam numa roça, que eu nem sei o nome da
roça... Eu conhecia eles de vista. Morreu muita gente
antiga, da minha época: o Dr. Lobo e dona Arlete, o
Manoel Peixoto, a dona Ondina, o Antero Ribeiro, a
131
senhora dele, a dona Eponina. Todos os amigos mais
antigos já morreram...
Havia festas portuguesas muito bonitas (no
início do século). Aqui fechavam o comércio dia 5 de
outubro em homenagem aos portugueses. O motivo,
eu não sei não. E havia também bailes muitos bonitos,
a rigor. Muito bonitas as festas aqui, muito selecionadas. Frequentei muitos bailes, dancei... Era lá em
cima do Cinema Recreio. Ali se chamava Comercial,
onde é hoje o Edgar. Ali se dançava a alta sociedade!
Tinha bailes nas casas, eu não frequentava, mas na
casa do senhor Manoel Peixoto havia bailes.
A minha primeira residência foi aqui perto da
Padaria Cabral, aquela descida para a Rua do Pomba.
A segunda foi aqui onde é a Real. A terceira foi aqui
e eu já estou aqui há a uns cinqüenta anos. Graças a
Deus nunca me faltou nada. Sempre me achei muito
bem de saúde e de finanças. Já tinha as casas que tem
hoje. Só foi feito o Banco Nacional novo e a Caixa
Econômica EstaduaI. E tínhamos o Banco do Brasil
que era em frente à Caixa Econômica Federal. Era ali
o Banco do Brasil, onde é o SL (restaurante). A cidade... a gente aqui não encontrava nada. Não havia
uma quitanda! Não tinha uma fruta, uma pêra, uma
maçã, uma verdura, uma cenoura, não tinha nada!
Apenas tinha uns portugueses, que trabalhavam na
132
Granjaria, então eles vendiam lá repolho, uma couve... Mas se você queria qualquer coisa para variar,
não tinha. Não tinha cenoura! Não tinha alface! Não
tinha nada! Estranhei muito aqui, por causa disso, no
começo. Tanto que eu queria ir embora. Chorava para ir embora!
Agora nós temos tudo aqui. Não foi muito rápido não. Pelos anos que eu estou aqui em
Cataguases, né? A Granjaria não era habitável. Ali
no Bairro Haidee Fajardo também não era habitável
tudo só morros, não tinha residências. Na Granjaria,
ali na Rua Melo Viana não tinha casa nenhuma. Só
tinha de um lado, do outro lado era brejo. Hoje é habitável. Nós temos (hoje) aqui boas residênclas, feitas
pelo Oscar Niemeyer. Tínhamos o painel Tiradentes
(Cândido Portinan) no Colégio, que foi vendido para São Paulo... Eu acho que tinha muitas casas. Aqui
nesta rua (Coronel João Duarte) todas as casas são as
mesmas. Umas são reformadas. Foi o Banco Nacional
que veio, o Crédito Real, o BEMGE... Agora nós temos a Caixa Econômica Federal Naquele tempo não,
nem existia a Estadual!
Quando eu vim pra cá não tínhamos hospital. Tinha um hospital velho, de indigentes onde
é hoje a Casa de Saúde. Quem fez o hospital novo
foi o Emanuel Peixoto. A Casa de Saúde foi o tio de-
133
le, o José Inácio Peixoto. No hospital velho só tinha
três quartos particulares muito ruinzinhos, precários... Quem fundou o velho hospital foi o doutor
Norberto... Tive duas cirurgias urgentes. Aqui tinha
bons médicos.
Tínhamos os políticos antigos: Artur Cruz,
Manoel Peixoto e Pedro Dutra. O Joaquim Cruz foi
prefeito e o João Peixoto foi prefeito duas ou tres vezes. O senhor Manoel Peixoto foi deputado federal. A
política era muito quente. Eles brigavam muito, era
feia a briga!
Nós éramos do lado dos Peixotos... simpatia
por eles... Coisas desagradáveis houve, no tempo da
guerra na Europa, que o Brasil também... os brasileiros foram para a Europa... Eles apedrejavam as casas
dos estrangeiros, de italianos. Era molecada encabeçada pelo Paulo Sucasas e outros... As pessoas mesmo de juizo não fizeram nada não! Jogavam pedras,
arrombavam a porta... chamavam de quinta coluna..
Mesmo a casa de alguns brasileiros, porque eles vestiam camisas verdes, os integralistas... Atacaram o
Banco de Crédito Real, porque o José Maria Manso,
que era diretor do Banco, era integralista. O povo
mesmo é que atacava nossas casas. Teve aí algumas
casas bem estragadas... portas de aço estragadas...
Atacaram a casa do José Gallo, que já é morto, amas-
134
saram as portas todas dele, aqui embaixo, onde hoje
é o Plínio Guilherme. Não houve mortos, mas houve prisões. Achavam que eles eram quinta coluna,
considerada o inimigo do Brasil. Não tinha nada de
quinta coluna! Os estrangeiros deviam ser considerados inimigos... Nós saímos de casa. Eu deixei a casa.
Fui para a casa de Antero Ribeiro, ele veio me buscar.
Mas felizmente, depois tudo se apaziguou, acabou a
guerra, acabou tudo. Eles só fizeram uns ataques só
quando arrebentou a guerra, à noite, depois, quando
acabou a guerra também a polícia se preparou, por
causa das manifestações. Só por ser italiano eles atacavam. Era uma inimizade gratuita.
Lembro de certas famíllas antigas. A dona
Nenem Silveira vai fazer 100 anos, dia 25 de janeiro (1989). Conheci a dona Catarina... O coronel João
Duarte não cheguei a conhecer. Dona Catarina era
italiana... A chácara de Dona Catarina parece que
agora vai ser transformada em biblioteca... museu... A
família Peixoto toda é minha amiga. Hoje já morreu
a dona Ondina, o senhor Manuel, o João... Conheci o
Humberto Mauro. Ele foi o pioneiro do cinema, não
é? Mas foi ele o pioneiro e o Homero Cortes. Que eu
me lembre era o Homero Cortes Vieira e parece que
também o Agenor de Barros. Acho que era o Agenor
de Barros. E, Pedro Comello, que a Eva fazia parte,
135
não é? De artista... Ela (Eva Comello/Eva Nil) foi artista de cinema.
Fábricas... tinha a Irmãos Peixoto. Foi o pioneiro Manuel Peixoto, português. Depois morreu,
em 12 de outubro, ficaram os filhos dele. Agora não
tem mais os filhos que morreram e ficaram os netos. Depois da Fábrica Irmãos Peixoto se construiu a
Industrial, onde eu sou acionista de fundação. E depois a Manufatora. Depois a Fábrica de Papel, onde
também sou acionista. A Fábrica de Papel andou pra
trás, foi para os Matarazzo. Aqui em casa nós tínhamos cinco ou seis acionistas e até hoje a gente não
tem nada, não sabe nada daquilo, nada! Se tem rendimento, se não tem... Está tudo parado. Eles não dão
satisfação de nada!
Nunca trabalhei fora. Eu ajudava na loja. Não
passava nem lavava. Sempre tive lavadeira e passadeira, até hoje eu tenho. Não gosto de lavar roupa
em casa não. A minha roupa tem lavadeira. Quando
ele morreu, eu fiquei muito abalada. Aí comecei a
vender uns bordados, até abri uma loja aqui. Depois
achei que não valia a pena trabalhar, parei.
Voltei a Portugal, em 1952. Eu, minha filha e
meu marido ficamos lá seis meses. Estava diferente,
melhor. Dizem que hoje está melhor ainda! Ainda
tenho uma sobrinha, umas primas, primas diretas...
136
Se eu pudesse voltar lá, eu ia, mas eu acho que não
estou em condições de viajar, eu não ando de avião...
Eu já me habituei aqui, melhoraram muito em
estradas! Não tinha estradas para o Rio, hoje temos
a Rio-Babia. A gente levavá o dia inteiro para viajar
para o Rio... (estrada) de chão, tinha muita pedra
na estrada. As pessoas enjoavam... demorava muito.
Era muito longe! Eu tinha um ford naquela época.
Ia passear em Petrópolis, almoçava em Petrópolis e
voltava... A estrada de ferro tinha muita freqüência,
os trens andavam sempre cheios... fui daqui ao Rio...
Lembro (quando surgiu a primeira linha de ônibus).
Foi o senhor Miguel Guercio, de Astolfo Dutra para
Cataguases, e dentro da cidade foi o João Ciodaro...
Carros de praça, por exemplo, só tinha quatro. O
ponto era lá perto da Estação, em frente à farmácia
Santa Maria. Era o João Luiz, era o Ivo, o Geninho... A
farmácia Santa Maria é das mais antigas... Quando eu
cheguei aqui tinha A Brasileira, era de portugueses:
Antero Ribeiro, João Garcia, Licínio Garcia, nesta Rua
Coronel João Duarte mesmo. Vendia tecido, tudo! As
lojas de época eram grandes, como a Casa Felipe, do
Licínio com os sócios antigos: era o Jovelino Santos,
o Raul Pessoa, o Antônio Henrique Felipe. A Casa
Felipe é muito antiga. A Nacional era aqui logo embaixo, na esquina da Asfolfo Dutra, depois passou
137
para cá (Praça Rui Barbosa). A Carcacena era uma
casa muito grande... o senhor Homero Cortes e o
Jarbas, os donos. Fiquei com pena da derrubada da
Carcacena. Fiquei triste... Quando eu passo ali me dá
uma tristeza... A matriz antiga eu conheci. Muito bonita! Foi pena ter sido derrubada. Na minha opinião,
ela devia ficar como estava e só ser consertada. E hoje
fizeram essa igreja! Eu não gosto dela não, acho muito rústica!
Entrevistada em 12/08/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de
Oliveira Valadares.
138
139
MANOEL DAS NEVES
PEIXOTO
ADVOGADO E PROFESSOR
74 anos
Nasci em 31 de julho de 1914.
Estou com 73 anos, já beirando os 74 anos. Nasci
em Cataguases, na Vila Domingos Lopes. Sou filho
de Inácio das Neves Peixoto e Francisca de Souza
Peixoto, na ocasião. Depois minha mãe casou-se novamente e se transformou em Francisca de Souza
Ribeiro. Eu não tenho irmãos do primeiro matrimônio, só tenho irmãos do segundo matrimônio.
Eu tinha três anos quando meu pai morreu e nessas alturas dos acontecimentos já morava na Rua
Monsenhor... acho que é Monsenhor Horta, não sei
bem. Hoje é a Rua Manoel da Silva Rama. Quando
Foto: Antigo Ginásio de Cataguases onde hoje é o Colégio Cataguases,
s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico
de Cataguases
141
meu pai morreu, a irmã mais velha, Dedé, a mulher
do senhor Rama, nos levou, a mim e a minha mãe para a sua casa, um solar, praticamente defronte. E ali
passei uma parte razoável da minha infância ao lado
de Francisco. Daí essa aproximação muito grande, de
irmão, minha com o Francisco.
Alguém já disse que eu tomei parte da Verde.
Não, a Verde foi um pouco anterior à minha pessoa.
Eu era um menino quando a Verde funcionou em
Cataguases. Eu conheci o elemento exponencial da
Verde que foi o Francisco, a quem Cataguases muito
deve pelo que ele realizou. Não só pelo que ele escreveu, mas como principalmente pelo exemplo que ele
deu, pela dedicação sua e por ter construído este monumento em Cataguases que é o Colégio; por ter trazido aqui para Cataguases a tela de Portinari... enfim,
por ter sido o iniciador de um, movimento, uma reforma muito grande em Cataguases! Principalmente
este aspecto de construir, esta procura ansiosa do
bom gosto! Mas quanto ao demais não fiz parte de
movimento algum. Eu fui um assistente desses
movimentos. Foi uma grande aventura ser companheiro de Francisco: uma criatura enorme, a quem
Cataguases muito deve.
Conheci o Enrique de Resende muito! O
Enrique foi uma espécie de mentor desse Grupo
142
Verde. Mais velho do que os outros - Francisco,
Rosário Fusco! O Enrique era uma espécie de mentor. O mínimo que ele fez foi encorajar essa meninada que estava começando. A ponto de um deles, esse Rosário Fusco, dirigir ao memorável Américo de
Almeida - José Américo de Almeida - ”mande essas
publicações, seu burro!” - Queria aparecer de qualquer maneira!
O restante da minha infância e a minha adolescência foram passados em Juiz de Fora e depois
em Belo Horizonte, para onde eu fui com 16 anos
de idade, como estudante de Direito. Pelos 7 ou 8
anos, quando minha mãe se casou outra vez, eu fui
para Juiz de Fora e lá fiz o meu curso de ginásio,
no Instituto Bicalho. Comecei aqui, na Dona Lucila
Taveira, o pré-primário. Curso primário realmente eu
fui fazer em Juiz de Fora.
Em 1931 eu me formei e passei a bacharel
em Ciências Políticas e Sociais em 1935. Logo me
nomearam, pela generosidade do então deputado
Manoel Peixoto - Manoel Inácio Peixoto - promotor
de justiça de Estrela do Sul, Triângulo Mineiro, onde passei uma longa temporada. Depois eu vim para Cataguases... passei alguns meses. Nesse ínterim
eu recebi um convite para ir para Goiás... lá fiquei
dois ou três anos. Advoguei em Inhumas. Depois
143
de Inhumas voltei outra vez para Cataguases, sem
me desprender completamente da cidade. Daqui, de
Cataguases, eu retomei e recebi um convite para permanecer em Goiânia. Eu fiquei muito satisfeito porque o Pedro Ludovico, fundador de Goiânia, me arranjou logo um lugar de professor na Faculdade de
Direito de lá. Gostei imensamente de Goiás! Gostei
também de Inhumas, gostei de Goiânia... quando
eu comecei a receber umas sugestões do Francisco,
uma vaga ideia da criação, aqui, de um colégio...
E aquilo foi me machucando... o ensejo de ser um
lugar tenente dele também, por que não? Ficar em
Cataguases, perto de quem sempre quis bem, perto
de minha mãe, já novamente viúva... viúva pela segunda vez. E as coisas aconteceram realmente assim:
vim para Cataguases me parece que foi em 39... 40.
Já em (19) 41 começando a aventura colegial!
Começamos antes, no velho colégio, no colégio do senhor Amaro, no ginásio do senhor Amaro...
no mesmo local. Era uma casa solarenga. Era uma
casa assim... neste estilão mineiro. Mineiro não é
muito de construir casas altas, não. Mineiro é de
construir casas simples para que haja possibilidade
de aglutinações sempre térreas para os filhos e os
netos! Mineiro é muito disso, de espichar no sentido
da horizontalidade, não é verdade?! (Alturas) minei-
144
ro tem pavor disso! Mineiro vai se esparramando na
horizontal.
O primeiro nome a ser lembrado como diretor
é Gastão de Almeida, Francisco sempre falava nele.
Eu não sei, talvez por um receio de se deslocar de
Rio Branco... Na verdade é que ele não quis vir. E o
Francisco, naquela emergência, começou a conversar
comigo e acabei topando a ideia. E aí começou a doce
aventura do Colégio de Cataguases como diretor. E
lá permaneci uma temporada! Depois fui chegando à
exaustão. Cansei!
Modéstia à parte, eu fui um diretor muito frequente! Eu não saía. Naquele tempo eu não tinha
carro. Aliás, eu sou um animal estranho, eu não sei
dirigir até hoje! De modo que eu ficava lá no alto da
Granjaria de sábado a sábado, de domingo a domingo. Eu não saía. Era raro eu ir à cidade. Aquela agonia
de que algum aluno pudesse não chegar... se houvesse
um problema... o internato sempre com muita gente,
geralmente mais heterogênea, prevalecendo sempre, é
claro, a classe A, a classe A no sentido financeiro. Nós
tivemos alunos da Argentina, de Rosário. Inclusive
gente do Paraguai. Da Argentina ficou por pouco
tempo, uns seis meses ou um ano... não sei se estou
certo. O “Paraguai” ficou os três anos do Científico...
Chico Buarque... Carlos Imperial... de maior evidên-
145
cia são esses dois, mas não posso me esquecer do
Paulo Matoso, vivíssimo em minha lembrança! Ele e
Luizinho, irmão dele, são pessoas que não me saem
nunca da minha lembrança... Geraldo Linhares... que
hoje está aposentado em uma fazenda...
Eu me lembro que entrando dezembro, parece
que de 40 para cá, agora não me recordo bem a data,
estava eu no prédio velho quando chegaram várias
criaturas para um entendimento comigo: eles iam demolir o prédio tão logo eu lhes desse condições.
- Tá certo. Já que a coisa é para começar, podem
vir amanhã.
Tomei todas as providências. Já estava de férias, muitos alunos já tinham ido... esvaziei tudo e
demoliram! Aí falei: e agora José?! Como é que vai
ser depois dessa coisa toda! E se isso não ficar pronto, pelo menos em condições de funcionar, nós estabeleceremos um hiato! Como é que iremos fazer?
Trabalhou-se a todo vapor, com as caldeiras funcionando! Na ocasião da matrícula para o próximo ano,
eu já estava num local, ainda no prédio velho, num
pequeno local que ficou, e com o prédio novo vindo
com toda a força! O prédio começou perto da minha
casa, da casa do diretor. Ali era o salão dos...
Hoje são salas de aula. Tinha uma parede lá.
Quando começou, uma parte era um salão. De modo
146
que nós funcionamos de uma maneira muito precária no primeiro ano. Entre vigas, barrotes, nós dávamos aulas em algumas salas já prontas e em salas...
naquelas salas laterais que transformaram depois em
biblioteca.
O (projeto) é de Oscar Niemeyer, (ideia) do
Francisco, inegavelmente! Foi por isso que eu disse
a você que Cataguases deve a Francisco. Não tanto
por aquilo que ele fez como instrutor, mas principalmente por esta visão, bom gosto! Ele entregou a
um nome nacional! O Oscar Niemeyer esteve (aqui)
uma vez, como também esteve o grande Portinari!
Ele veio de certa feita, logo que ficou pronto, ele
olhou aqui. O painel (Tiradentes, hoje no Memorial
da América Latina, em São Paulo) foi colocado um
pouco mais tarde, evidentemente. Quando o paredão
ficou pronto, eu estava na secretaria quando chegou
uma criatura trazendo dois ou três cilindros. Pediu
licença... O colégio já estava avançando, já tinha quase acabamento... Me pediu licença e partiu pro pau...
e começou: paf, paf... Oh! Meu Deus! Esse cara vai
arrebentar tudo isso! Nada disso, ele já estava acostumado a fazer essas coisas! E explodiu no novo colégio o Mural! A verdade é a seguinte: muitas pessoas
vinham a Cataguases exclusivamente para ver o mural! E o mural virou... ah! Virou uma atração extraor-
147
dinária! Cataguases adquire uma dimensão incrível
com o mural! O Colégio depois teve uma propaganda muito interessante, muito bem feita na revista
“Cruzeiro”. Fizeram uma propaganda muito interessante, vários alunos no primeiro plano...(O Colégio)
era muito revolucionário para a época. De linhas audaciosas. Tinha praça de esportes: a praça de esportes tinha campo de basquete, campo de vôlei, futebol,
tênis, piscina. Era uma coisa singular em termos de
estabelecimento de ensino! Um corpo docente muito
esforçado, muito ativo! Eu não tenho a menor queixa
desse corpo docente. De modo que tudo isso fez com
que nós, daquela época, vivêssemos um grande período, que foi o período do Colégio Cataguases!
Nós devemos bastante ao professor Gradim,
ao professor Gonzaga - o Luiz Gonzaga da Fonseca foi uma pessoa importante também na estrutura
do Colégio. (O Grêmio teve uma atuação de) muito
destaque!
A praça de esportes, evidentemente... com
Lyses Brandão, nas suas matemáticas, onde ele era
tremendamente temido pelas notas muito racionadas
que dava! E havia o português, o latim do Gradim... o
português e o latim do Gonzaga e depois o professor
Avelar, uma criatura assim muito lembrada também
neste Colégio - Avelar Alves Maia - sem esquecer o
148
Amaro, elemento inicial. O Colégio foi adquirido dele... o local, o prédio velho... E ele continuou como
professor. O Cardoso, sempre brincalhão, sempre irreverente, foi nosso professor também. E muito bom
professor! Muito alegre! Muito alegre, sempre com
uma piada!
(E havia) “O Estudante”... e outros jornais que
saíam paralelamente ao Estudante. Inclusive era uma
impressão rudimentar, muito rudimentar, no próprio
Colégio. Era interessante. O Colégio tinha padaria, o
Colégio tinha gabinete dentário, o Colégio tinha barbearia, tinha apiário. Acontece que, ao contrário do
que muita gente pensa, o Colégio, para que ele ficasse em equilíbrio (financeiro) era um esforço muito
grande. Gastava-se muito. Não era de boa rentabilidade. Até hoje colégio não é de grande rentabilidade.
Há coisa melhor que um colégio... a taxa de custeio é
maior do que a rentabilidade do colégio, principalmente se o ponto de referência for tão próximo como
Cataguases. Não vai comparar a rentabilidade de um
colégio com a Industrial. (A família) tinha interesses
nas fábricas, naturalmente. E o Francisco percebendo
essas coisas ele acabou... o Colégio foi dado... dado...
entregue ao Estado. Ele falou: “Faz favor, toma conta
disso”. Tudo foi entregue ao Estado. E nessa oportunidade ficou o filho do Francisco como diretor. Ele já
149
era (diretor), continuou como diretor do Estado, ligado agora ao Estado. E eu como... como professor.
De um modo geral os professores continuaram. Não
houve trauma nesse aspecto. O único trauma foi no
aspecto comercial ligado à cidade. Porque aqueles
alunos internos, uns duzentos rapazolas, filhos de
papai rico, deixavam aqui, mensalmente, nos bares,
nas festas... enfim na rotina de Cataguases, deixavam
muito dinheiro! Então Cataguases perdeu um pouco
dessa explosão provocada pelo aluno de fora: duzentos alunos deixaram de vir para Cataguases e, consequentemente, deixaram de gastar em Cataguases.
Alunos que tinham mesadas assim que assustavam
o “mineirão”: cem mil réis... cem cruzeiros... Eu achava aquilo uma quantia! Eu me lembro muito... o Zé
Juber era aluno interno. (Ele é) de... encostado aqui...
Astolfo Dutra. Zé Juber chegava, era cinco mil réis,
dez mil réis... e se aventurasse a pedir mais...
A cidade adquiriu uma certa notoriedade graças a esse Colégio. E claro que há elementos negativos. Agora, no conjunto, na soma geral, é um fator interessantíssimo para Cataguases! Interessantíssimo!
Cataguases procurou atender a esses alunos de Rio e
São Paulo, do Nordeste, de Manaus... Tinha rapazes
com apelido de “Amazonas”. Veio gente até de Bagé,
gente do Rio Grande do Sul. O Colégio atraía! É cla-
150
ro que decepcionava alguns, mas de um modo geral
era um ponto de atração. Apesar dos aspectos negativos, o internato foi interessante porque de qualquer
maneira era um elemento que permaneceu... De modo que era com mais facilidade... plasmava criaturas assim... Certa habilidade como Luis Gonzaga da
Fonseca, e antes o Gradim e também, por que não, o
Avelar. Começaram a lidar com esses alunos dentro
do Grêmio Literário Machado de Assis. E também,
modéstia a parte, eu. De modo que nós realizávamos
assim... uma operação com mais facilidade do que
se tratasse de um elemento externo, um elemento de
maior mobilidade. No internato nós tínhamos facilidade de opção: ora em sala de aula, ora em salão
de estudo, que tinha o nome curioso, no início quando chegamos aqui de (salão) de repouso. Lá não era
lugar de repouso, era lugar de estudo. Então mudamos o nome de sala de repouso para salão de estudo. Enfim, nós víamos, sentíamos, plasmávamos e,
consequentemente, realizávamos uma operação mais
profunda. Daí um número muito grande de jornaizinhos de sala de aula, de revistas, tudo de maneira
assim... de porte pequeno, mas de qualquer maneira
eram manifestações de criatividade. O aluno escrevia e nisso nós contávamos com o auxílio do Gradim,
como remanescente do prédio antigo, que permane-
151
ce até hoje lá. Aquela sala literária no quintal... são
lembranças do prédio antigo, daquelas acomodações
antigas. Ah! O Gradim... a sala dele era disputada. O
aluno queria opinião sobre este ou aquele adjetivo,
esta ou aquela frase, como ele devia fazer... como devia se portar na tribuna do Grêmio... Tudo isso era
uma festa e de qualquer maneira era uma espécie de
trabalho, um delicioso trabalho de artesanato em relação ao aluno.
Eu era constantemente bombardeado por moças pedindo: “Dr. Manoel deixa os alunos internos
virem aos bailes, às festas”... Se eu deixasse, toda
semana isso aqui virava um “seio de Abraão”... “Eu
lamento, eu não posso, compreende”... Eu dava um
não, mas sem procurar machucar. É o meu velho feitio. “Eu não posso fazer isso, minha filha”. Isso aqui é
um estabelecimento de ensino... Ele tem que vir à aula amanhã cedo... Como é que ele vai assistir aula, se
ele chegar aqui às seis horas... sete horas vai enfrentar
o Gradim, o Lyses!?! Mas eu era constantemente assediado. Essas festinhas, todo mundo sabia! Tanto é
por sugestão das alunas externas os pais pediam que
eu deixasse. Isso significa que eles começaram a exercer uma função interessante em Cataguases. Essas
maiores festas geralmente eram aos sábados, porque
eles ficavam mais tempo, os maiores. Eles podiam
152
ficar até dez e trinta... E quando havia muita insistência até onze horas. No sábado para domingo, porque domingo tinha o horário mais parado. Podiam
permanecer até mais tarde, não é verdade? Podiam
dormir um pouco mais porque não havia problemas
de sala de aula.
As suas normas, as suas maneiras de ser como... Eles acordavam às seis horas e iam dormir às
nove horas da noite. Às oito e trinta terminavam os
estudos: das seis às oito e trinta... às oito e quarenta
e cinco batia o sino. Eles vinham, desciam a rampa e
iam tomar café. Depois subiam outra vez e iam... Eu
me recordo que havia dois horários à noite. O primeiro horário era para tomar café, depois eles iam para
o salão de estudo. O segundo horário é que eles subiam, iam para o último andar. No último andar era
o dormitório. Se você se colocar diante do colégio, do
lado direito, aquele que está perto da casa do diretor, era o dormitório dos menores. E aquela sala, pequena sala, que hoje também transformaram em sala de aula, me parece, assim onde foi a secretaria do
Normal... Aquelas salas ali eram apartamentos: onze
apartamentos, muito engraçadinhos, inicialmente
destinados aos alunos do terceiro científico. Depois
alunos do segundo e terceiro e, finalmente, do primeiro ano também tiveram acesso, desde que hou-
153
vesse vaga. Mas eu dava um jeitinho... todo mundo
queria saber do apartamento. Eram quatro alunos em
cada, quatro alunos... era uma delícia para eles, não
é? Podiam estudar além do horário previsto.
(As saídas eram condicionadas ao) comportamento e notas. Eu não me recordo qual era a nota mínima. Acho que a nota mínima era 5, 4 não me lembro... Sinal vermelho é menos de 4 ou 5. Parece que
era 4. Uma nota 5 com o Lyses era uma festa! Lyses
e Gradim. O comportamento então... se o aluno não
tivesse um bom comportamento... E nós nunca fizemos pressão. Se o aluno tivesse um problemazinho
– não era muito comum – empurrava, para não entrar
em desentendimento com os pais.
Sou cruzeirense, sou vascaíno... em Cataguases
é o “Operal”. Tinha até uma boa: “o Operal, campeão
local”. Gosto imensamente! Outra coisa deve-se muito ao Robertão. Cataguases deve muito ao Robertão,
como deve ao Pérsio. O Pérsio é do Operário, o
Robertão é do Flamenguinho. Eu gostava à distância, eu não ia ao futebol, não assistia não. Eu ia
quando o Colégio jogava: Colégio contra o Operário,
Colégio contra o Flamenguinho. Tínhamos grandes
times! O Colégio teve grandes times de futebol, de
vôlei, de basquete. O vôlei tinha o Poca, filho do
Gastão de Almeida, extraordinário para jogar vôlei
154
e futebol também! (O Colégio) corria essas cidades
todas: time de alunos, que se transformavam em exalunos. Alunos de São João, de São Lourenço, perto
de São Lourenço, de Caxambu. O colégio foi parar lá
no Sul de Minas. O Colégio foi a Juiz de Fora jogar
com o Esporte, competir natação... Ubá, Leopoldina
também... O Colégio andou muito! O aluno interno
gostava, porque havia sempre muita movimentação.
O interno... o externo tinha a cidade como entretenimento. Andavam à vontade pela cidade, mas o interno, que era normalmente preso, ele ia acompanhar o
Colégio como torcedor.
Mais tarde abandonei a direção e me transformei em professor de História, porque eu sempre gostei de História! Gostei muito de História e Geografia...
tive amor a primeira vista. Gostava muito de ler sobre a vida de Napoleão, vida de César... Estava meio
saturado de ser diretor. Diretor durante tanto tempo... agora se eu for reprovado (para ser professor)...
fiquei apavorado! Mas correu tudo bem. Eu fiz uma
ótima... uma boa prova escrita. E não fiquei apavorado com a cadeira no Colégio Cataguasense: eu professor de História; Cardoso, professor de Geografia e
o Lyses, professor de Matemática.
Depois eu advoguei. Advoguei bastante tempo... causas civis... civis e trabalhistas. Jamais causas
155
comerciais! Criminais, por incrível que pareça eu não
gostava muito... Véspera de júri eu me empolgava. O
que fazia sofrer era o processo... na hora do júri eu
gostava!
E andei escrevendo umas crônicas neste tempo todo... publicava no Cataguases. Cheguei a publicar também em outro jornal, a pedido do Tarcísio
(Henriques). Eu não me recordo qual o jornal, mas
publiquei em outro jornal. Aqui em Cataguases tinha
um outro jornal. Jornal de vida curta... mas cheguei a
publicar. Inclusive eu me lembro que... nitidamente
ter publicado uma crônica com o professor Adir. O
título é “Mãos, mãos... as mãos do Adir”. Adir é uma
pessoa mágica! Adir é uma pessoa que fazia exposição sobre contato com os alunos. Trabalho de... palha de milho, ou então de madeira, artesanato. Adir
Pereira de Resende: extraordinário ele! Para ganhar
dinheiro a função de advogado é bem melhor, mas
inegavelmente a função de professor foi bem mais
gratificante. Ela ilumina a gente!
Entrevistado em 13/6/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de
Oliveira Valadares.
156
157
M Á R I O D A PA I X Ã O
FUNCIONÁRIO PÚBLICO FEDERAL
74 anos
Eu agradeço vocês essa distinção...
Eu me sinto honrado... Meus pais eram Vitório
Fernandes da Paixão e Filomena da Paixão, que eram
meus avós que me criaram. Minha mãe mesmo era
Maria Augusta da Paixão, entendeu? Meu pai não foi
registrado como pai... Meu avô foi o primeiro morador ali, no chamado Largo do Rosário, hoje Alfredo
Barroso, que tem aquela chácara lá, quando eu fundei o Rancho Alegre. Eu e minha geração do centenário de Cataguases.
Papai (o avô que me criou) sempre foi assim
uma pessoa pobre, independente. Ele gostava muiFoto: Hotel Cataguases, s/a, reprodução de Archicteture D’Aujourdhui,
1952
159
to... soltava foguete, pescava... Ele tinha uma chácara
e vivia daquilo. Mas nunca foi empregado. A única
coisa que meu pai fez de importante foi, que na época da febre amarela, esse meu avô - ali onde é a fábrica de papel tem uma chácara, uma casa grande que
hoje ainda existe lá, tipo uma fazendinha - ali que
levava o pessoal doente, contaminado. E ia jogando
lá. E ele foi a única pessoa que teve coragem de cuidar daqueles doentes, na época de febre amarela. Foi
em 1918, que eles falam... Eu não me lembro não. Isso
não é do meu tempo, que eu nasci em 1915.
A minha infância foi toda aqui. Eu estudei
a primeira vez foi na Escola Metodista. Era escola mesmo, onde é essa aí na Avenida Astolfo Dutra.
Ela começou primeiro numa casinha encostada na
cadeia. Ali foi a primeira escola da Igreja Metodista.
Depois fez aquela nova e nós fomos transferidos para
lá. Estudei lá dois anos e depois saí. Minha professora foi Lili Sucasas. A minha mãe era lavadeira do
Sucasas, que era diretor da Igreja Metodista e tinha
uma padaria aqui na Praça Rui Barbosa, onde é a
Nacional, o maior prédio que tinha na época. Depois
fui pro Grupo Escolar, quando dona Clélia Dutra era
diretora e Zé do Grupo contínuo. Aliás, fui o pior
aluno que teve no grupo! Fui expulso no terceiro
ano! O Alberto Bittencourt era o mais brigão... O Ciro
160
Pacheco também da minha época; João Magalhães, os
filhos do Onofre Bonfim... Depois não estudei mais.
Aí fui engraxate, aqui onde é o Grande Hotel.
Depois de engraxate tornei rapazinho e tal... e quinze
anos... Eu fiz, então, acompanhado do Zeferino Vilela,
do Balduíno Silva - como eu nadava muito bem, eu
era um menino que nadava muito - fizemos um raio
de Cataguases a Campos. Nós íamos de barco a remo. E quando nós estávamos a dois quilômetros de
Campos, nós paramos pra preparar a nossa chegada.
Aí arrebentou a revolução de 30! Nós estávamos no
Estado do Rio com um barco mineiro! Nós fugimos
e fomos pra outra cidade, pra baixo de São Fidélis. E
incorporamos na revolução, porque vinha as tropas
mineiras, seguindo pra, tomar São Fidélis. Nós ficamos do lado da polícia mineira, do Getúlio Vargas, é.
Como venceu a revolução nós entramos em Campos
e ficamos lá aquartelados. Foi uma emergência, e coisa de doido. Nem pensava... era garoto de 15 anos...
Tanto que não podia carregar um fuzil, tinha uma
carabina! Mas não dei nenhum tiro na revolução.
Nós estávamos em Campos e ficamos aquartelados.
Ficamos na Rua das Flores, na Escola de Artífices, em
Campos, até o dia 20 de novembro.
Depois houve um desemprego terrível! Houve
a revolução de 32. Eu me incorporei outra vez à mi-
161
lícia aqui, pra ir pra São Paulo, na revolução de São
Paulo, do “Túnel”... Mas em vez de me mandar pra
São Paulo, mandaram que nós fosse aquartelado
aqui em Muriaé. Pra procurar o Artur Bernardes
em Arapongas. E nós invadimos Arapongas, distrito aí de Muriaé, a procura do Artur Bernardes. E
não houve nada, não encontramos ele. Encontramos
uns jagunços lá, demos uns tiros lá, prenderam um
fazendeiro... Depois de uma semana voltávamos
para Cataguases. Acabou também a revolução: a
Constitucionalista, que eles chamaram... É isso mesmo, é isso mesmo... Nós íamos pro “Túnel” e acabamos indo aqui pra Muriaé... É, chamava (porque) a
batalha maior era no túnel, em São Paulo.
Aí vem e, em 1932, fui trabalhar pro João
Peixoto: era empregado de quintal. Trabalhei pro
João Peixoto três anos e tanto. Quando foi em 1935, a
namorada do doutor Francisco, dona Amelinha, tava no Rio... ela arrumou pra mim trabalhar na casa
do doutor Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Nessa
época ele era presidente da Câmara dos Deputados.
Tinha até assinado a Constituição de 1934 como
presidente da Constituinte e era vice-presidente de
Getúlio. E como empregado dele - na ida de Getúlio
à Argentina ele assumiu a presidência da República –
então foi o primeiro presidente da República que eu
162
conheci pessoalmente, entendeu? Uma coisa muito
emocionante!
No Rio, eu fiquei na casa dele. Trabalhei lá
um ano. Aí, nesse intervalo que eu estava na casa do
Antônio Carlos, conheci as grandes personalidades,
porque iam na casa dele. E assisti a revolução de 35,
Intentona Comunista. Saí da praia de Botafogo e vi
quando eles saíram prisioneiro. De madrugada nós
fomos avisados da Intentona. Nós estávamos arrumando as coisas pra fugir. E aí eu, como empregado,
fui chamado e entrei em contato com Filinto Müller,
que era chefe de polícia. A revolução tinha sido uma
surpresa! Aí de 35, ele me deu um lugar no Banco do
Brasil, mas eu não pude tomar posse, porque eu não
tinha o certificado de reservista. Voltei a trabalhar
com o João Peixoto.
Voltando pra Cataguases me tornei rapaz e,
depois de um certo tempo, o João Peixoto arrumou
pra mim aprender ofício na fábrica. Aí aprendi de
maçaroqueiro. Maçaroqueira é uma máquina grande,
entendeu? Que a gente faz a maçaroca é com algodão.
Logo que eu aprendi o ofício eu fui, o segundo operário, pra Companhia Industrial (e fiquei) nove anos
e nove meses.
Nós operários, nós calçávamos tamanco, que
eles chamavam de “treco”. Então, quando operário
163
andava na rua, nós fazia: treco, treco, treco, treco. O
operário não podia comprar nem um agasalho, nem
um guarda-chuva. Nós ficávamos em frente da fábrica debaixo de chuva! Então, uma turma entrava as
seis, saía às dez. Depois entrava as duas, a outra saía,
depois voltava as seis, saía às dez. E nós como maçaroqueiro. Como não dava a fiação o sustento para
a tecelagem ficava uma turma trabalhando das dez
até a meia-noite. Eu era daquela turma que pegava
às seis da manhã, saía as onze, voltava as seis e saía
à meia-noite.
As moças, por exemplo, andavam de tamanco.
As moças tinha roupa simples. E se ela ia molhada,
nós aproveitava muito daquilo! Porque elas no molhar, a roupa colava e a gente via as formas do corpo
delas. E gostava daquilo! (Mas) dava até muito caso
de tuberculoso, porque a gente ficava na chuva, e a
alimentação era muito escassa, entendeu? Hoje não
se destaca mais operário de fábrica. Naquela época
você sabia quem era operário de fábrica porque às
dez horas era aquela multidão na rua! Treco, treco,
treco… qualquer um sabia que era operário de fábrica. Hoje você não sabe! Havia uma harmonia entre
operário e patrão. Não havia uma submissão, havia
o medo. Porque se ele perdesse o emprego ele tava
desgraçado! O Peixoto era nossa vida: ele determi-
164
nava a vida que nós deveria viver! Eu era liderança.
Era líder dos operários politicamente. Eu fazia aquela
liderança. Se nós encontrasse um operário sabotando, que quebrasse uma peça qualquer, nós ia dizer
ao seu João (Peixoto). Mas também eu pedia ao Seu
José certas coisas para o operariado, certo? Seu José,
ele avançou mais de trinta anos naquela época, nas
leis trabalhistas. Ele nos deu a participação de lucro,
fez consultório médico, dava assistência no sanatório, fez aquelas casas pro operário, certo? Seu José
Peixoto foi um líder! Ele era alheio a homenagem,
tanto que ele não se enfiou em política. Não quis ser
candidato nem nada! Pois bem, o seu José morre…
naquele local que eu tinha falado fizeram uma praça
e tava escrito: Praça José Peixoto.
Não havia greve porque nós não tinha carteira,
na época. Depois que foi feito. Então, depois que veio
as carteiras. Quando nós fomos fazer o sindicato - foi
eu, Eudaldo Lessa, Mário Bagno, Antônio Quirino fomos os fundadores do sindicato que hoje existe. O
operário não queria o sindicato porque tinha medo.
Até isso! O medo de se sindicalizar e perder o emprego! Então foi uma luta. E nós precisava de uma
reunião que tivesse certo número de operários que
assinasse. Quando nós não conseguimos levar o numero de operário a esta reunião, eu bolei o seguin-
165
te: o pessoal era doido por baile! Ali, onde é o Hotel
Pires, eu consegui aquele salão e fiz o primeiro baile.
Quando o operário tava lá dentro, dançando – o salão tava cheio, porque o baile era de graça - eu parei a música. Aí o grito: não, nós queremos dançar e
tal… Eu falei: só dança depois que assinar aqui! Todo
mundo assinou. Acabou de assinar, vamos ao baile.
Foi o único meio que nós tivemos pra apanhar o número suficiente de assinaturas. E foi talvez, coisa rara
pra nós fazer esse sindicato, nós pedimos consentimento ao patrão. Pode? Na Irmãos Peixoto pediram
ao seu Manoel, e nós (da Industrial) pedimos ao seu
José. Havia cabresto (na eleição). Aí que era duro!
Porque o seguinte: operário não tinha liberdade de
votar. Se eu amanha chegasse e contasse que era do
Pedro Dutra (PSD), você estava na rua! Essa liberdade nós não tinha. Então nós era da UDN, um partido
completamente em desacordo com o operário, quando o partido (do operário) era o PTB. Mas nós era
tudo udenista, você está entendendo? E eles faziam
com que... e aquilo tudo acabava cativando porque
havia liderança. Eu aqui (na Industrial), o Adauto
na Manufatora, Mário Bagno, o Djalma, o Serafim
na Irmãos Peixoto. Então além de nós ter a liderança
entendeu, nós já estava impregnado naquela política, entendeu? É que a própria pressão... Tudo deles!
166
Só gente ligado, pessoas que eles pudessem mandar...
Porque ele mandava embora!
A pressão do Pedro Dutra era de uma tal forma, que ele explorava a miséria do operário em cima
dos Peixoto. Então, a campanha política era contra os
Peixoto entendeu? Então, quando os Peixoto despedia um operário, qualquer coisa ele entrava na justiça.
Pedro Dutra fazia com que os direitos (do operário)
fosse a dia entendeu? Ele era o sujeito que... a panela
de pressão sobre os Peixoto pra não fazer aquilo que
eles queriam! Era uma política sangrenta! Até dinamite jogaram no comício... tiroteio na Rádio e nos fomos
invadir, entendeu? E havia aqueles apaixonados! Eu,
por exemplo, quarenta e tantos anos com João Peixoto,
eu não tinha liberdade de agir. E era um homem casado, pai de filhos... Ele me dominava! Fui praticamente
criado com o João Peixoto! Em 1932 já tava com João
Peixoto! Tanto que diziam: o Mário do João...
Nossos comícios era uma coisa formidável
porque eu fazia do comício carnaval! Eu fazia a banda tocá música de carnaval. Então nós cantava muito
essa música assim: “Ai como dói, ai”... Então levava aquela onda, entendeu. A gente ia prum comício
acompanhando o candidato na rua, na passeata, cantando.... E aquilo tornava um carnaval, porque a gente aproveitava daquilo pra dançar.
167
E nas eleições ninguém quase tinha liberdade.
Os Peixoto davam condução, apanhavam o sujeito
em casa, trazia pro curral onde dava comida. Dali
uma pessoa pegava aquele elemento e levava ele na
boca da urna, até ele entrar na sala. E revistado! A
pessoa tinha tanto medo que se você fosse votar no
Pedro Dutra... Você não diria a ninguém, só a própria família, com medo de se trair. Cê podia dizer a
um amigo qualquer que ia votar nele. E você se traía.
(Hoje) ele até dentro da fábrica pode dizer: vou votar
em fulano. Os dirigentes da fábrica hoje não é político. O Josué não é político, o Zezito não é político...
Eu saí da fábrica sem acordo, e sem criar caso,
certo? Porque eu era grato. Quando eu saí do sanatório a fábrica tinha pago essa despesa. Voltei drenado.
Naquela época nós não tinha INPS, essa coisa não.
Minha família tava passando fome. E eu saí do sanatório com dreno e essas coisas, me apresentei na
fábrica. Então eu drenado andando dentro da fábrica,
na minha máquina: “Seu José eu não posso mais! O
senhor deixa eu ir pra sala de pano. E tudo pra mim
continuar”. Ele disse: “não”. Pois a única coisa que
eu tenho é sair. Depois que saí da fábrica, foi que eu
tinha nove anos e nove meses. (Quase) tinha a minha
estabilidade. Mas acima das leis trabalhistas estava
eles. E além das leis trabalhistas tava a força deles!
168
Que que adianta eu ganhar as leis trabalhistas aqui
se não tem emprego em lugar nenhum? Você fica
marcado igual ficou Antonio do Vale, que eles chamavam de “Espanador”, que eles pagava pra ele ficar
de fora. Pagava o “Espana Lua” pra ele não botar os
pés na fábrica!
Aí saí da fábrica e fui então... O João Peixoto
assumiu a Prefeitura e conseguiu que eu fosse fiscal
do Posto de Higiene, fiscal de saúde. Naquela época
chamava de “mata mosquito”. E ali eu fiquei até um
certo tempo. (Quando) fundaram o Hotel Cataguases,
então eu fui chamado pra fazer limpeza e preparar o
Hotel Cataguases. E quando eu tava lá eles pediram
pra mim ficar. Aquele domínio, eu fiquei e larguei
o emprego público e me botaram como porteiro. O
Hotel antigamente era baseado na frequência de viajantes. Não havia turismo, essas coisas. Quer dizer:
setenta por cento do hotel era viajante e os viajantes
não gostavam do sistema desse francês que eles trouxeram para dirigir o Hotel. Eu na portaria conversando com os viajantes todo dia, conquistei os viajantes.
E eles pressionaram o Hotel... que eu devia ser o gerente. Eu então passei a ser gerente. Ainda me lembro
que naquela época o gerente ganhava seis mil réis, e
eu fui ganhar trezentos mil réis. Então fui gerente do
Hotel Cataguases quatro anos. Quando o Hotel co-
169
meçou a dar renda, que tava bom, eles começaram a
criar aquele caso! Isso, aquilo, e acabou eu saindo. Aí
o Zé Esteves assumiu a prefeitura ele tinha largado o
Pedro Dutra, que tinha eleito ele e virou pros Peixoto
- então eu fui ser fiscal de renda da prefeitura. Aí eu
conheci o Celso Passos, que casou com a Elza Peixoto,
filho do Gabriel Resende Passos, que é cunhado do
Juscelino, e ele (Celso Passos) apanhou uma amizade muito grande por mim. E quando o pai, na queda
do Jango Goulart assumiu o Ministério das Minas e
Energia, dentro de uma semana ele me chamou. E eu
fui então pra Brasília. O doutor Celso me tirou dessa
dependência dos Peixoto3.
Dependente... Ele tava doente, Dona Zélia pega e me leva que era pra eu passar férias com eles
em Guarapari. Então ela fez a minha cabeça: “O João
tá doente, já não pode viver sem você... Num pode
viver sem você”. Ele compra o hotel ali e reforma o
hotel pra mim ser gerente, pra mim ficar perto dele... Nem um tostão! Pelo contrário, ele inventou uma
3
) Uma dependência que só depois da morte do João Peixoto... Inclusive
o senhor em Brasília, o João Peixoto ficou doente, ele veio pra cá pra cuidar do João Peixoto. O paizinho não poderia deixar Brasília, (mas) por
causa dele veio, por insistência da família. Essa gratidão que no meu entendimento como fiIlho, que acompanhei de perto a vida dele, que sou
o filho mais chegado - não existia isso! Foi aquele negócio de sentimento de culpa de ter abandonado ele no fim da vida (observou Ronaldo).
170
história no fim da vida dele e morreu incompatibilizado comigo... Chegou a ponto de me prender dentro de um quarto e, de madrugada, quis me bater de
chicote, acompanhando de outras pessoas. Inclusive,
referindo-se a esse fato, o Francisco Peixoto me pede
desculpas sobre a atitude que o João Peixoto teve comigo. Lê, pode ler!
Cataguases, 1 de dezembro de 1976
Caro Mário,
Recebi duas cartas sua, e não três. Se não respondi há
mais tempo é porque, como adivinhou, tenho certa dificuldade em escrever. Você saberá desculpar-me. Sempre
lamentei a quebra de seu relacionamento com o João. E
agradeço por não ter guardado ressentimento dele. Assim
procedendo, você dá mostras de ter um bom caráter, mas
não sei dizer-lhe mais. Abraço do seu amigo,
Francisco
O doutor Francisco, foi o seguinte: nossa amizade veio naturalmente. Ele morava no Rio, entendeu? Quando conheci dona Amelinha, dona Dora, já
conhecia o doutor Francisco. Quando ele veio para
Cataguases que ele fez aquela residência, ele então
me chamou! Mário, quero que você organize a minha
171
casa para mim. Eu sempre trabalhei nisso: decoração,
que eu gosto, enceração, arrumar... Dali nossa amizade foi bastante... Ultimamente, não recebia ninguém
compreendeu? E nós trocava correspondência... Ele
era difícil de entender, certo? Assim como ele recebia
bem, te recebia mal, entendeu? Mas ele... eu era gerente do Hotel. Ele saía de tarde com a dona Amelinha,
passava lá, eu descia... Nós passeávamos na Avenida,
tomava chá quase toda noite e tal. Era uma amizade
não íntima demais, mas uma coisa que nós dois se
intercalava. Mas eu ficava distante na minha posição
com o doutor Francisco, não é... Eu não podia assim...
dizer que era amizade em igualdade, não é... Ele me
dispensava isso. Me ajudava na leitura... Ganhar gosto pela leitura, que eu tenho hoje. Gosto demais! Eu
leio em média dois romances por mês.
O Emanoel Peixoto era mais chegado, mais ligado. Essas correspondências dele aqui é tudo confidências! Tudo que se passava com ele... Mas na época da política em que todo mundo se amedrontava
e se acovardava, eu tava do lado dele. Eu saía com
ele pros comícios, caminhões e tudo. A Lêda se preocupava com aquilo... Correndo risco de vida... Eles
até apelidaram ele de Sputnik. O Emanoel era um
verdadeiro amigo! Ele nunca me faltou! (O Emanoel
como político era) fantástico! Porque todo mundo se
172
acovardava com o Pedro Dutra. Ele foi o único que
não! Chegou a pegar o Pedro Dutra pelo peito da
camisa e dizer as verdades a ele, pessoalmente. Eu
assisti! A lisura havia porque o Emanoel não queria
nada, o Emanoel queria... ele tinha aquela vaidade
de ser o Sputnik, o valente e o amor à família. Mas
proveito próprio não. Ele não precisava... Mas ele
morreu desiludido porque na época ele era endeusado! Inclusive também (quero) deixar escrito... sobre
o carnaval. Minha mulher era de Porto Novo. Ela foi
a maior porta-bandeira! O primeiro baliza de porta-bandeira foi o meu tio, Pedro Ângelo da Paixão, a
porta-bandeira Alzira de Oliveira. Isso foi uma tradição. O primeiro foi o Ninguém Reseste, em 1927. Eu
era muito garoto nessa época ainda, mas vi o desfile. Parece que era ali, onde mora o Silveira, ali entre
a Rua Rabelo Horta, era ali. Depois veio o Modesta
Violeta e mais tarde... Eu fiquei viúvo. Eu casei de novo. Tira aí essa fotografia pequena... Ah ela aqui, essa
aqui no meio... Sem minha mulher eu não venho de
jeito nenhum! Se ela viesse pra Cataguases... Então,
quando chegava o carnaval, a gente ficava alucinado
de chegar o carnaval! E ali que extravasava. Quando
terminava o baile, batia no peito, dizia: a última
vez! A gente em vez de dançar ia pro canto e chorava. Moças e rapazes, porque ia esperar um ano pra
173
aquilo! Então havia sentimento, havia amor. A gente ia dançar um bolero. Tocava uma música de bolero, Gregório Barrios, o Vargas, aquela coisa entendeu. Você pegava a moça às lágrimas. Muitas vezes
chorando... Tinha que dançar bem! Exigente. A gente
tinha que ir de gravata conforme o Emílio diz bem:
baile de branco. Tanto que tinha muito nego que não
podia comprar um terno bom, fazia de saco de farinha de trigo a roupa. Então, como o Ataulfo Alves
dizia: “Nós era feliz e não sabia”...
A nossa maior festa era o bloco de sujo. Eu e
o Emílio lançamos isso. Nós, por exemplo, domingo
dava uma hora da tarde, nós tava na rua, chovendo
ou fazia sol. Nós no bloco do sujo ia entrando e puxando gente. Os bailes era uma coisa interessante. Eu
comecei com o Emílio varrendo salão, e tal. Depois
eu fui ser baliza e aí ganhei fama de baliza, e a maior
porta-bandeira foi essa, que foi minha esposa que
morreu. E dali saiu até casamento, nós dois dançando! E depois desse negócio com o Emílio e tal, depois formou uma dissidência e nós fundamos o Lord
Clube. Eu, o Rafael Mana, o Eudaldo Lessa. E foi o
maior carnaval!
O Emílio ali perto da fábrica e nós também. O
Lord durou um ano só... aquele carnaval. Mas foi uma
luta renhida e que dividiu a cidade. A cidade se divi-
174
diu igual na política: era o Lord e o Emílio (com as)
Mimosas Camélias. Nós botamos dez carros na rua!
(Quando) o clube do Remo ficou em construção e o pessoal não tinha onde dançar, eu tinha uma
vitrola. Então o pessoal do Clube do Remo ia lá pra
minha casa dançar lá. Então, como a turma do Clube
do Remo ia lá, eu achei que eu tava em condições de
ser sócio do clube do Remo, e pedi a minha inscrição.
Nunca saiu! Uma pessoa ligada a mim contou. Não
Mário, é uma questão de cor. Por isso é que não sai.
Eu revoltado, então resolvi fazer um clube. Então eu
fiz o Rancho Alegre, baseado em que ia acabar com
o racismo. Foi uma das grandes, também, decepções
da minha vida. Eu queria fazer um clube pra preto.
Conforme tinha o Clube Social pra branco, e Clube
do Remo. Mas acontece que o branco do Clube do
Remo e Social terminava o baile deles aqui, de madrugada, e ainda ia dançar no meu, do preto! E as
preta só queria dançar com eles! E briga em cima da
outra! Porque os preto ficava revoltado porque elas
não queriam dançar com eles, mas dançava com os
brancos! Porque a branca não ia dançar com o preto? Só o branco que ai lá aproveitar da moça preta.
Ia branca pobre, a branca operária, mas a branca de
elite não ia lá. Então aquilo me machucou muito, entendeu? Eles não conseguia compreender o que eu
175
queria fazer. Queria revolucionar Cataguases sobre
isso, que lá não entraria branco. Eu sei que era racismo. Mas então eu estava em guerra; racismo de lá,
racismo de cá.
Acabou aquela coisa. Aquela vida, aquela coisa
que tinha as festas, o povo vinha. Em 1927, o Antônio
Carlos Ribeiro de Andrada... A Avenida toda iluminada até o fim. Esses fícus aí todo iluminado!
É engraçado o amor a Cataguases, porque aqui
tem raízes.
Fui pra Brasília em 60, vim, 62 fui definitivo.
O doutor Celso Passos me tirou dessa dependência
dos Peixoto. Então Cataguases agigantou-se materialmente. Eu não conheço mais Cataguases. Quer dizer, nós estamos nessa cidade enorme e que se abriu
desarvorada né, sem planejamento. Uma rua que sai
pra aqui, outra rua que sai pra lá, mas está subindo
os morros, tá entrando aí onde era roça, e tudo. Mas
o principal de Cataguases não existe, entendeu? O
principal é isso que eu vou te dizer.
Na cidade tinha jogos de futebol todos os domingos: Operário e Flamengo, campo lotado! E não
tinha arquibancada, não. Precisava sentar no canavial, ali do Flamengo. Quer dizer, cheio porque havia
paixão pelo Operário, paixão pelo Flamengo! Os bailes, clubes, cheio. Tanto o Social aos domingos, como
176
o nosso! A Praça, essa Praça era vida! Entupida, cheia,
entendeu? O coração vibrava! O cinema chegava dar
três sessões! Cheios, porque havia aqueles filmes em
série. Hoje os cinemas tá tudo uma mosca aí. Tinha
regatas no Clube do Remo, tinha rapazes que fazia
halterofilismo, era tudo musculoso, não é.
Há até uma história muito... Gabriela estou
vendo... era um Clube de Cataguases, ali onde é... em
frente o Fernando Paratela, numa esquina, descendo
a Rua Dr. Sobral. Ali tinha garotas, que era do tipo
o cabaré do “Machadão” da Gabriela. Tinha pensão
chique, zona, entendeu? Tinha duas casas lá: Ernéfia
e a Mafisa. Ali, descendo a Praça Sandoval Azevedo,
do lado de cá da Rua Joaquim Peixoto. E nesse caso
existe uma coisa muito interessante. A Mafisa tinha
um filho chamado Orlando. Foi ele que trouxe a primeira “baratinha” em Cataguases. Baratinha é aquele
automóvel... chamava baratinha, automóvel pequeno,
só de duas pessoas na frente, arriava capota... E era
o rapaz que vestia mais chique! Ele morava no Rio,
estudava. Quando ele chegava ali, ele botava todo
mundo doido pela roupa que ele desfilava, não é? E
pela “baratinha”. Mas na sociedade ninguém aceitava ele: (filho) de prostituta, da dona de pensão. Ele
tinha os amigos da boemia. Mas ele dentro da sociedade, ele num... uma moça não conversava com ele
177
na rua... Essas mulheres vinham de fora e ela era fichada ali, e a mulher só podia vir na rua de madrugada. Aí depois das dez horas elas vinham para os
bares, entendeu? Pela rua não. Uma mulher naquela
época fumando, com o vestido de cetim, loura, era
uma coisa condenável. Tava pro lado da prostituição.
Uma mulher decente não fazia isso: fumar, usar roupa de cetim, decote... Essas mulheres vinham de fora.
A não ser que fosse uma muito bonita dentro da cidade... e que resolvesse a seguir pelo caminho. Era difícil. Quando acontecia era o casamento na polícia. A
moça se entregava hoje de noite, no outro ela contava
aos pais: cadeia nele! E casava mesmo! Agora, o rico
fazia o cambalacho. Firmava o casamento e pronto.
Eles, quando tinha muito dinheiro e a moça era pobre, pagava o pai e ele calava. Muitas operárias da
fábrica foram assim... O bar começava às sete horas,
a moça só podia ir acompanhada da mãe, ou de uma
conhecida da mãe. Era aquele recato! Então o salão tinha que ser iluminado. Se a gente encostava um mucadinho, a mãe tirava, entendeu? Nós tínhamos que
lutar pra dar um beijo numa moça. Era uma dificuldade! Era uma coisa horrível, era um beijo roubado!
Hoje se beija aí, na rua durante o dia.
Destruíram a cidade... Botar uma árvore como
essa no chão! A Praça Santa Rita não se enxergava do
178
outro lado! Era uma mata fechada, bonita, árvores
lindas! O doutor Edson veio e meteu o machado em
tudo. Ninguém gritou, ninguém falou nada! Nossos
rios tão acabando... O Pomba tá, oh! O Rio Meia
Pataca, que era um rio respeitado, taí, oh! Acabou.
Isso aqui chamava Zona da Mata! Eu conheci isso
aqui! Isso aqui era tudo cheio de árvores. Hoje, o que
vocês veem aí? Não tem nada. Sabe por quê? Porque
eles só sabiam vender lenha pra Leopoldina, porque,
os trens andava de lenha, de carvão...
É engraçado o amor a Cataguases, porque
aqui tem raízes. Eu, por exemplo, gasto uma hora da
Prefeitura até aqui porque não consigo andar, entendeu? É como se eu tivesse aqui, é mais ainda que se
eu tivesse aqui. E amigos um atrás do outro! Não me
deixam andar! E um fenômeno que eu encontro aqui,
todos eles de cabelo branco... E paro porque sei que
ele vem me encontrar, porque ele é da minha geração.
(Mas) os filhos dos meus amigos que morrem continuam me admirando, porque o pai falava. Então, não
consigo andar na rua! Chega a ponto de... Uma coisa
que me comove... Encontro uns dez, quinze, cinquenta pessoas... Eu abraço ele e coisa, mas (às vezes) não
sei quem é... Agora, por que o Mário da Paixão é conhecido! No carnaval a gente desfilava na rua feito
um rei! Quer dizer: a cidade toda via! Eu fazia comí-
179
cios: todo mundo via o Mário da Paixão falando no
alto do palanque! Eu fui fiscal de renda, frequentava
casa por casa. Na época da política, eu fazia campanha política percorrendo as casas. Então, tudo isso
marcou! Eles reconhecem o que eu fiz! Então, o que
me traz a Cataguases é... Vamos dizer que seja um
pouco de vaidade! Essa pose que os outros não têm,
de ser querido... Cada um tem história do Mário da
Paixão pra contar, não é?
E quero deixar aqui a maior mágoa que eu tenho de Cataguases. O maior sentimento que eu tenho
na minha vida é não ter fundado um museu indígena.
Não consegui! Eu tinha trezentos e cinquenta
peças já, (e) o apoio do presidente da FUNAI, o apoio
do Ministro do Interior, entendeu. Poderia na cidade hoje ter um museu. E esse material era todo documentado, escrito o nome e tudo o que era. Como é
que eu podia fazer sem o apoio da Prefeitura?
Um amigo meu me disse pra mim o seguinte:
Mário, cê num deve voltar para Cataguases não! O
Fusco me disse o seguinte: “Mário, você nunca volte
para Cataguases. Usufrui dessa auréola, que você tá
lá fora. O dia que você mudar pra aqui acaba isso, vira rotina, você se torna comum. Você tá lá fora, você
é uma preciosidade! Todo mundo lembra o Mário da
Paixão! É melhor fazer falta, do que ser demais...”
180
Quando eu fui candidato a juiz de paz até houve um slogan muito bonito que o Rosário Fusco fez:
o Mário tem paixão por Cataguases. Então é isso que
nós sentimos... Eu pedi aos meus filhos o seguinte: eu
quero ser enterrado aqui, ao lado dos meus amigos.
Depois, defunto, ficar lá em cima vendo o Pomba
correr...
Entrevistado em 4/11/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de
Oliveira Valadares.
181
R I TA L O P E S M A C H A D O
(DONA FILHINHA)
E S T E T I C I S TA
79 anos
Não tenho boa memória não... tem
muita coisa que eu me esqueço... Eu rabisquei aqui,
tá tudo rabiscado aqui, vamos ver se eu pesquiso...
Eu sou das bandas lá de Dona Euzébia, afastado num
canto, mas fui registrada em Astolfo Dutra. Eu vim
para cá com 8 anos. Vim fazer o primário todo aqui...
Minha mãe teve onze filhos; criou oito, perdeu três
pequenos assim, com cinco meses, e eu sou a mais
velha. Já viu falar sobre a madrinha da tropa? A madrinha da tropa vem toda enfeitada anunciando que
a tropa vai chegar!
Foto: Interior do Cineteatro Recreio, s/a, s/d, Departamento Municipal
do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases
183
Eu não me lembro da primeira professora, no
primeiro ano... Não sei se foi a Dona Sidonga... Acho
que foi. Depois foi a Ecila... Estudei aqui no Grupo
Coronel Vieira, só tinha esse, os outros foram construídos muito depois. O segundo (grupo) foi o Guido
Marlière... Foram construindo os outros na medida
da necessidade, porque tinha muita criança. A cidade
foi crescendo e foi muito necessário. Hoje tem vários
grupos na cidade... escolas primárias... Mas então o
meu primário foi feito no “Coronel Vieira”. A diretora era Dona Cecília Coelho. Era uma pessoa gorda... criança tem sempre uma coisa que marca, né?
Quando Dona Cecília passava eu namorava os pés
dela, porque ela tinha pés pequenos e usava salto
muito alto. E o sapato era decotado, bem decotado,
e então o pezinho gordo... caía aquele papinho de
gordura de cima do decote do sapato. Eu namorava
aqueles pezinhos dela! Achava lindo aquilo! Eu achava aquilo um horror, sabe?! Mas Dona Cecília Coelho
era uma senhora muito simpática, não sei se foi casada... isso eu não me lembro.
O corpo docente era tão maravilhoso! As pessoas daquele tempo... não pode haver nem comparação com o professorado de hoje. Porque tudo mudou,
tudo evoluiu... Naquele tempo as pessoas saíam da
Escola Normal quase doutoras! Tanto é que no gru-
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po escolar elas não admitiam que se pronunciasse
errado. Tinha que ser português correto! A gente
pronunciava palavra errada, tomava castigo e, às
vezes, tinha que copiar aquela palavra, aquela concordância várias vezes pra não errar mais. Era um
primário tão bem feito que a gente saía de lá podendo entrar... Havia o curso de admissão depois que se
terminava o quarto ano primário, né? Mas se você
quisesse pular pro primeiro ano ginasial não tinha
tantas dificuldades.
Antigamente, no tempo de minha vó era assim... eram esses castigos bravos, coisas horríveis
mesmo... Minha vó que contava isso. Naquela época
havia mesmo... era até meio desumano. Mas as pessoas do meu tempo eram por demais humanas, muito bondosas. O corpo docente aqui desse Grupo do
meu tempo... depois, até muito tempo depois, porque as pessoas custavam muito a mudar né? Elas
para se aposentar tinha que trabalhar mesmo! E sabe
como elas faziam? Imagina você: elas regiam classe
e ainda davam aulas de trabalhos manuais. Quando
chegava o fim do ano elas apresentavam uma exposição de trabalhos manuais feito pelas alunas, pelos
alunos em geral. Eu me lembro, não sei se foi no
segundo... acho que foi no terceiro ano, que eu fiz...
Ainda me lembro de dois trabalhos muito bonitos
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que eu fiz com a Ecila Fabrino. Só me lembro desses
dois. Ela ia na casa das mães, quando via que a aluna era jeitosa, pedir pra deixar ir pra casa dela após
o almoço. Então a gente chegava em casa, almoçava,
tomava banho e ia pra lá. Lá a gente fazia lanche e só
saía às cinco horas pra vir pra casa. Lá ela ensinava
a bordar. Eu fiz pra ela um caminho de mesa no linho cru, que eu me lembro até hoje! Eu sou capaz de
reproduzir o desenho de tão lindo que era! Um trabalho português que eu fiz pra ela. Era tudo bordado a mão, lógico. Bordado à mão, e o tipo português,
porque o bordado português em geral é cercado de
preto, tem aquela cercadura preta... faz depois uma
aplicadura preta naquele bordado. E tinha também o
abajur. Eu fiz um abajur de organdi rosa todo bordado de ponto de sombra! Agora como é que podia ter
capacidade pra aquilo? Ela me ensinava. Trabalhou
comigo sempre com aquela paciência. Ensinava a todas, não só a mim.
Eu fui considerada uma boa aluna. Era responsável, estudava muito. Tinha que estudar, tinha fazer
força pra ser alguma coisa! As professoras levavam
pra casa os alunos mais carentes... que haviam uns
que não queriam nada como até hoje. Uns mais moleques, mais displicentes, né? Elas levavam aquele
grupo para casa pra trabalhar com eles, estudar com
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eles, pra que eles acompanhassem a classe, pra quando chegasse o fim do ano eles pudessem passar. Era
muita dedicação mesmo! Era muito amor à arte, né?
Um amor à profissão! Elas faziam isso... elas organizavam teatros com os alunos... e que paciência pra
colocar aquela gente pra declamar, ensinar a representar... E os teatrinhos eram um sucesso!
Naquele tempo não havia escola da noite.
Quando foi criado o curso da noite, foi criado mais
para as domésticas, (que) trabalhavam durante o dia
e, não tinham tempo de frequentar a escola. Minha
cunhada, a Dona Totó (Maria) Machado foi diretora
desse Grupo (Coronel Vieira) à noite. Ela criou um
ensino de corte e costura. Ela organizou e conseguiu!
Então as moças iam pra lá e tinham uma pessoa especializada, tenho a impressão que era a Ritinha Cortes
que dava aula... Não eram classes tão cheias assim
como hoje. Porque hoje são mais de trinta em cada
classe, não são não?
Papai era muito amigo do Pedro Dutra, ele
é que mandava na cidade: Dr. Pedro Dutra Nicácio
Neto. Naquele tempo o presidente Antônio Carlos
veio aqui em Cataguases e foi uma festança! Porque
pra receber um presidente o Pedro Dutra tinha um
grande número de adeptos... Ele veio com uma comitiva boa também, mas eles não faziam... Não a comi-
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tiva dele... Eles tinham... Eram banquetes e mais banquetes. O que fui, foi no Horto Florestal. Fizeram um
galpão muito grande e ali fizeram aquela mesa bonita.
Foi o banquete ali, um deles, e nesse eu fui. Até falei
com você que eu ganhei de um garçom uma caixinha
de charuto, caixinha vazia. Eu conservava esta caixinha até pouco tempo: lembrança da festa do presidente Antônio Carlos. Depois me dispuz dela, mas eu
olhava sempre e, como sou muito romântica eu consigo guardar as coisas. Eu tenho a caixinha do perfume que eu usei no dia do meu casamento! E onde eu
guardo meus grampos, meus clipes, essas coisas.
Eu sempre gostei de dançar, mas meu pai não
gostava. Não me deixava ir para as festas, para os bailes, então eu chorava e dizia pra ele assim, lágrimas
escorrendo: “eu vou me vingar, quando eu me casar,
quero um marido bem folião. Não quero perder uma
festa, nenhum baile, nem nada!” Olha o que o destino
me pregou, a peça que o destino me pregou: arranjei
um marido muito bom, muito amigo, mas que não
sabia nem mudar o pé do lugar pra dançar um bolero, que era dois pra lá, dois pra cá. E músico! Mas
não gostava não. Eu tirava ele pra dançar comigo e
ele saía feito duro! E eu falava: você não tem jeito não,
pode sentar lá. Então eu perdi o encanto e pronto.
Mas ele foi muito bom, (dançar) não fez falta não.
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(Papai) foi hoteleiro: Hotel Avenida, onde é
a Caixa Econômica Federal. Foi ali que eu me casei:
eu me casei foi em dezembro de 1939. Improvisaram
um altar... Naquele tempo não se casava na Igreja
não. O padre ia em casa e celebrava. O casamento
era assim...
Em 30 houve a revolução. Tinha aqueles... eles
chamavam milicianos, os soldados. Então foi uma
coisa que a cidade inteira ficava tomada. E aí eles
faziam aquelas passeatas, eles marchavam pelas ruas. Depois a minha mãe teve um trabalho tremendo,
porque eles iam fazer refeição lá no Hotel.
O cineteatro Recreio era bonito! Era lindo
mesmo! Era um prédio grande, alto. Embaixo era
o cinema, na parte dos fundos do cinema tinha os
camarotes, tinha as torrinhas lá em cima. Chamava
torrinha, aquele negócio onde ficavam as pessoas
que podiam pagar menos, iam pra lá. O palco sempre muito bom! Organizavam os teatros ali, com as
moças da nossa sociedade, os rapazes também. Eu
me lembro do Milton Peixoto, do João Guimarães
Peixoto representando lá. O João era muito engraçado! Tinha umas pilhérias boas que eles contavam
ali, fazendo aquelas palhaçadas. E as moças sempre
tomavam parte. Essas moças que representavam,
que faziam parte do elenco, eram as mais jeitosas,
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mais graciosas. Então aquilo era muito bem decorado muitas flores. E a cidade inteira tomava parte,
apoiava, porque aquilo era uma renda pro Hospital
E a casa ficava cheia, quer dizer, o povo prestigiava!
Era muito importante isso, esses teatrinhos. Agora,
quem animava essas... sempre havia uma música.
Então tinha um grupo, e o meu marido era o flautista... mas em solteiro, porque depois que nos casamos
ele não quis mais, abandonou. Ele era o flautista. Eu
não me lembro o instrumento que tocava o Rogério
Teixeira, mas acho que era clarinete. A Dona Marieta,
esposa dele, era pianista; o João Ciodário era violoncelo; o Diocélio era violino e tinha mais umas duas
ou três figuras. A música que se tocava... eles tocavam tudo... O cinema era mudo, naquele tempo, então era acompanhado daquela música, daquele coro,
daquele conjunto. A orquestrazinha estava lá tocando e animando!
E os saraus! Os saraus eram reuniões festivas
em casas de família. Então as famílias ofereciam salgadinhos e doces pra turma toda que vinha ali. Eram
umas festas muito agradáveis! A moçada se reunia
ali alegremente, porque ali se declamava, se cantava,
se dançava! Então quando o Antoniquinho aparecia,
ele que abrilhantava essas festinhas, esses saraus...
Antoniquinho, o doutor Antônio Martins Mendes,
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foi um brilhante advogado que nós tivemos aqui. O
Antoniquinho era muito inteligente, declamava muito bem, tinha poemas muito bonitos. Eu não me lembro se os poemas eram dele, isso eu não me recordo,
mas ele declamava bem mesmo!
Vamos ver agora os bailes, os bailes que nós
tínhamos aqui na cidade. Só havia um clube, que
era o Social, ali mesmo. Mas era no velho cinema
(Recreio), em cima existia o Social. O Clube Social era
muito bonito, aquele salão muito grande, onde havia
aquela parte separada para os músicos, aquele palco
onde os músicos ficavam. O clube era todo espelhado, aqueles espelhos enormes, bizotados, espelhos
importados. Em lindos aqueles espelhos! Uma maravilha! Todo o clube era revestido de espelhos! Era
um encanto! Os bailes eram mesmo de gala. Eu não
me lembro se uma vez por mês... Acho que não podia ser não, ficava muito dispendioso pra época. Mas
sempre tínhamos os bailes de gala. Então o clube se
engalanava para receber os seus convidados e todo
mundo de traje a rigor, traje a rigor mesmo! Os casais levavam os filhos e os rapazes estavam lá esperando as suas candidatas. Então as valsas eram lindas! Vocês já devem ter visto até no cinema aquelas
valsas, porque tem filmes assim. Eram valsas muito
bem dançadas. E dançava-se também muito o bole-
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ro. Outra música não me recordo. Recordo da valsa
e do bolero. Mas o que abrilhantava mesmo a festa
era o tango argentino, porque nem todos os pares
dançavam o tango. Eram pouquíssimos os pares...
Ficava todo mundo ao redor do salão. Todo mundo
assentava e ficava apreciando o tango! Quem dançava muito bem o tango era o Tute com a Lilia, o Raul
com a Carmem, a Iracema com o Fonseca e se tivesse mais dois ou três eram muito! Fazia sucesso porque o salão ficava vazio e todo mundo apreciando...
Porque o tango tem que ser muito bem dançado, pra
ser bonito! Porque tem passos complicados. Mais tarde apareceu o meu filho o Carlos Edmundo, que pôs
todo mundo no chinelo! Ele dançava o tango com
uma maestria... Precisava ver. Dançou muito bem!
O Carlos Edmundo. Hoje ele tá feio, barrigudo. Mas
ele era muito elegante e dançava como ninguém!
Então, quando ele saía pra dançar o tango ninguém
mais saía! Nem os que já estava habituados a dançar!
Dançava com Isis, aquela sobrinha da Dona Elza e do
senhor Dauton. Depois a lsis se casou e foi morar em
São Paulo e ele dançava com a Dayse, que é hoje a
esposa dele.
E as serestas? As serenatas! Tinha sempre nas
ruas: grupos de rapazes, as vezes até moças participavam também. Mas eram os rapazes os seresteiros,
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que dedilhavam suas violas e violões com tanto amor,
com tanto romantismo, cantavam músicas românticas... Cantavam debaixo das janelas das namoradas,
das rosas amadas. Então era uma coisa linda! A gente acordava ao som daquelas músicas românticas, aí
corria pra janela, pra escutar, pra ver! E o carnaval?
O carnaval era muito bonito, a começar pelos grupos de afoxé. Eles não faltavam até hoje não faltam!
Afoxés, vocês sabem, é o som do “bloco do sujo”, não
é? Eles faziam questão, aquelas moças saíam de sujo,
os rapazes também. Faziam uma festa assim... muito
grande. Mas à noite não havia quase esses afoxés. No
carnaval... ali na Praça Rui Barbosa é que acontecia o
carnaval... Então os carros eram conversíveis e assentados nas capotas as moças fantasiadas, muito bem
fantasiadas, e as outras em pé. Um carro após outro,
assim muito devagar, rodava na praça... Era só ali.
Então, ali ficava tão entrelaçado de serpentina, e as
batalhas de confete se davam ali também. Era muito
bonito! Mas isso era um carnaval que era mais da elite. Naturalmente tinha outros clubes onde dançavam
as pessoas mais humildes, como sempre teve isso.
O senhor Emílio (de Souza) sempre teve o dele. Ele promovia festas, era muito entusiasmado! E o
Mário Paixão também. Aliás, onde o Mário possuía a
casa dele, nessa rua onde mora a Hilda Falcão, nes-
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sa rua que começa ali naquela praça Sandoval de
Azevedo, que era o nosso Largo do Rosário, naquela época... Ali o Mário possuía uma casa muito moderninha, ao lado o terreno era grande e ele fez um
clube. O Mário era um entusiasta! Ele era um grande
animador de festa! Quando o Mário passava com a
Escola de Samba, a minha filha ficava louca! Ele sabia que ela gostava muito... ela era menina, garota...
Então, a gente sentava ela na janela, ela ficava louca,
batia palma, se entusiasmava! O carnaval era muito
bonito! Eu me lembro que tinha carros alegóricos.
Esse carro que eu... era o fundo do mar. Acho que foi
a sua vó, Rosângela (a Olinda Schettini) que veio deitada como sereia. O carro era todo revestido de filó
verde-água, quer dizer, representando mesmo a água,
e dentro preparando como se fosse o fundo do mar
aquelas pedras, e aquela sereia deitada.
Eu sou esteticista, eu fiz meu curso em 1974,
já bem madura, porque eu acho que minha aptidão
maior... tenho impressão que nasci para ser cabeleireira porque em menina, menina-moça, eu já cortava
cabelo. Eu preparava as noivas que iam lá pro hotel.
Eu era garota ainda, estudava no Grupo. Vinha aquelas noivas da roça... eu preparava as noivas, penteava,
arrumava pintura... Eu tinha prazer de fazer aquilo!
Tinha loucura, loucura de fazer aquilo! Eu cortava ca-
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belo e era tudo de graça. Então fui convidada pra ir
lá na casa do Sr. Manoel Peixoto, pela Dona Audina.
Telefonou lá pra casa pedindo pra eu ir lá acertar só o
cabelo dela, a nuca que ela queria ir ao banquete. Eu
fui lá e cortei cinco cabelos: dela e das filhas. E mamãe ainda me recomendou: você vai, mas não pode
se demorar. Eu fiquei por lá, demorei muito. Eu gostava muito! Depois meu irmão quebrou a minha tesoura... enfiou na greta do assoalho e quebrou a folha.
Papai disse: “não dou outra a você porque não cobra
e isto não dá certo, você faz tudo isso sem cobrar”.
Mas eu tinha tanto prazer de fazer aquilo! Aí fiquei
triste, mas depois... (hoje) eu tenho uma tesoura porque foi minha filha que me deu. Eu sempre cortei os meus cabelos. Ultimamente não, porque o Edmundo começou a implicar:
“você fica estragando os cabelos, fica cortando... vai
cortar no cabeleireiro”. E então eu comecei a cortar
no cabeleireiro, e aí não tive mais ilusão de cortar,
não. Mas eu nunca fico satisfeita, sempre tem alguma coisa que não me agrada. Mas tá bom assim
mesmo...
Valeu a pena viver aquele tempo. Valeu a pena... era muito gostoso. Valeu a pena aquele tempo,
foi um tempo muito bom... Valeu mesmo a pena...
Bons tempos foram estes! A minha época foi muito
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boa, deixou muita saudade... A mocidade de hoje não
tem nada pra contar, não vai ter nada pra contar.
Eu não me lembro de muita coisa, não tenho
boa memória... Eu não falei na chácara de Dona
Catarina, onde vai ser o museu que a Prefeitura vai
fazer. Ali foi um ponto de encontro também muito
bom pras festas...
Entrevistada em 24/5/1988 por João Carlos Borges Justi e Rosângela
Schettini Rodrigues.
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