Universidade do Algarve Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Departamento de Arte e Humanidades Monografia: O Contrabando no Baixo Guadiana A Raia, as “Gentes” e as Dimensões da Sobrevivência Orientador: Professor Doutor António Rosa Mendes ( Maio.2013) / Professor Doutor António Paulo Oliveira Discente: João Tomás Horta Rodrigues – nº 24020 Licenciatura em Património Cultural – Ano lectivo 2012/2013 Gambelas- Julho 2013 1 2 “A verdade tem de ser passada de contrabando; é preciso difundi-la por partes, uma gota de cada vez, para as pessoas se habituarem, e não de uma vez só.” Karel Capek (escritor checoslovaco – 1890-1938) in A Fábrica do Absoluto 3 Dedicatória Aos meus pais e minha irmã, companheiros e cúmplices de uma “aventura com 20 anos”. À minha companheira Fernanda, pelo apoio incondicional e paciência (e não só em horário de trabalho). Aos meus antecessores já falecidos, João Marçalo Horta, meu avô materno e antigo agente da Guarda Fiscal, e ao meu avô paterno António Rodrigues pelos ensinamentos de justiça, de respeito ao próximo e de elevação do valor do trabalho como direito primeiro de qualquer ser humano e fulcro de toda a liberdade e dignidade… e por serem ambos bons homens e meus grandes amigos. Aos valentes contrabandistas do Guadiana – aos vivos, aos que já partiram e aos que tombaram com as balas da lei- e pelos exemplos de vida enquanto gente indomável na superação de todas as contrariedades 4 Indice Introdução………………………………………………………………… 7 1. Definição do Objecto de Estudo………………………………… 11 1.1. Âmbito Geográfico associado……………………………….. 14 1.1.1 Âmbito Geográfico associado – Apêndices Fotográficos…... 22 1.2 A Fronteira e o Contrabando – Dinâmica Politica, Administrativa e Económica do Baixo Guadiana…………………………………………. 29 2. O Contrabando no século XX – Os actores e seus retratos de vida………………………......... 76 2.1. O Contabandista “caminheiro”…………………………….. 79 2.2. Os contrabandistas “freteiros” e individuais……………… 87 2.3. Os “comerciantes”…………………………………………… 99 2.4. As forças de segurança – Os “Guardas” e os “Carabineros”……………………………. 103 3. A estrutura de vigilância das forças de ordem – os Postos do Baixo Guadiana………………………………………………………… 109 4. O Contrabando, como expressão artística de Memória e Identidade. Legado de um passado, que se projecta no futuro……………………… 114 a) O Contrabando nos genéros literários em prosa…………… 114 b) O Contrabando na Poesia……………………………………. 122 c) O Contrabando – Outras expressões na cultura……………. 127 d) Abordagem museológica da temática do Contrabando…… 131 e) O Contrabando – a Escultórica e sua inserção em meio urbano. ………………………………………………………………………133 Conclusão…………………………………………………………..134 Bibliografia…………………………………………………………137 Apêndices Fotográficos e Documentais…………………………..143 5 Resumo O trabalho aborda de forma abrangente a temática do contrabando, na fronteira lusoespanhola da região do Baixo Guadiana, delimitada por este importante rio da Península Ibérica que representa o espaço físico que estabelece a fronteira política entre as regiões portuguesas, geograficamente mais a sul – a do Algarve junto à foz e do Baixo Alentejo a montante- e a província de Huelva, parte da comunidade autonómica da Andaluzia, em Espanha. O trabalho incide, num primeiro momento, sobre a análise da geografia e os factores dinâmicos sociais, políticos e económicos que caracterizam uma fronteira com quase novecentos anos de história. Proceder-se-á ainda à contextualização da complexa dinâmica humana do contrabando, e em concreto da primeira metade do século XX, enquanto resposta às duras condições existentes, recorrendo a relatos orais de intervenientes no processo, e enfatizar-se-á as duras vivências que levaram fontes históricas e jornalísticas a classificarem esta área como a fronteira da fome e do medo. Palavras-Chave: Fronteira, Contrabando, Rio Guadiana, História Abstract The monograph now presented, extensively details the smuggling (“contrabando”) phenomena on the Portugal-Spain border, limited by the Guadiana River, one of the most important rivers of the Iberian Peninsula. Specifically the study emphasizes the Lower Guadiana (Baixo Guadiana) region, border´s area of the southern Portuguese regions of Algarve and Baixo Alentejo, with the autonomic community of Spain, Andalucia. The monograph detaches, on a first approach, by the geographic analysis of the region and the dynamics according to social, political and economic history, during almost nine hundred years. As one of the most valuable elements on the study, the second part of it establish the complexity of the human character of the smuggling dynamics, and specifically according to the smugglers activity developed during the first half of 20th. Century. The clash of the visions and action between Smuggling intervenients and the Law Enforcement agencies of both countries, will be revealed on the oral narratives contrasted by some newspapers and historical sources, and culture´s expression elements. Keywords:Borders, Smuggling, Guadiana River, History 6 Introdução Visa a monografia que agora se inicia, ser uma abordagem abrangente sobre um período cronológico de aproximadamente novecentos anos de história dos povos raianos do Algarve Oriental e da Andaluzia Ocidental1 e sobre a importância de um fenómeno que se projecta de forma ampla e comum a ambos, e que é o contrabando. Abordaremos, pois, a dimensão do Rio Guadiana e da fronteira por ele delimitada como teremos oportunidade de registar, extrapola o entendimento maniqueísta de uma barreira física ou geográfica que politicamente divide povos mas que, na prática, do ponto de vista económico ou social vincula desde tempos ancestrais as gentes de cada lado da raia2 e contribui para a aproximação das suas relações comuns, nas mais variadas dimensões. O Guadiana é reflexo deste complexo imbrincado do binómio da sua geografia própria e das relações entre comunidades a ele associadas e é por excelência um espaço de contacto e de trocas, imposto pelo caracter periférico da região em relação ao contexto de ambos países. A monografia procurará, inicialmente, enquadrar o rio do ponto de vista de uma abordagem às valências e limitações de cariz económico e demográfico das regiões e a um estudo humano das comunidades a ele associadas. Não deve contudo ser isolado, de forma mais ampla, das relações entre estados e ser despido do entendimento de como a 1 A monografia incidirá essencialmente sobre o paradigma do contrabando no Baixo Guadiana, que engloba em Portugal, os concelhos de Vila Real de Santo António, Castro Marim, Alcoutim e Mértola (limite no qual se inicia a fronteira seca ou seja onde o Guadiana se adentra em pleno no nosso país) e em Espanha, compreendendo as três divisões administrativas (“comarcas”) da Província de Huelva que se encontram limitadas pela fronteira com o Guadiana – Costa Occidental, Andévalo e Sierra de Huelva e até ao limite entre as comunidades autonómicas da Andaluzia e Extremadura espanhola. 2 Raia (derivado do castelhano raya e que se poderá traduzir de forma simplista como risco)- termo comum usado em ambos países e em concreto pelas comunidades de ambos lados da fronteira, para definir o limite fronteiriço entre países, neste caso a raia do Guadiana. 7 politica económica dos países, cria ou derruba fronteiras, segundo as necessidades económicas definidas pelo poder central e determinadas tanto pela carência ou abundância especificas de cada época. Veremos que o contrabando nas suas várias dimensões, tem como denominador comum o facto de sendo uma actividade marginal e transgressora poder complementar amiúde e contribuir para a sobrevivência das comunidades e para que os estados adquiram maisvalias sobre limitações auto-impostas pelos condicionalismos da natureza das políticas aplicadas. O contrabando extrapolando a sua dimensão economicista e de enquadramento jurídicolegal é sobretudo um fenómeno humano onde se encontram condensados todos os aspectos transversais à nossa natureza enquanto espécie. Assim, a monografia teria que se complementar como condição sine qua non de elementos qualitativos de proposta metodológica e análise do fenómeno do dito contrabando tradicional3 estritamente relativas ao aspecto humano. Nesta lógica, o apoio e recolha de relatos orais e o uso de fontes literárias que vão do suporte informativo do jornal até ao conto e ficção, serão sempre alicerces fundamentais da imperativa complementaridade desta abordagem qualitativa como fulcro do entendimento do processo e motivações da actividade transgressora. Se existem exaltações ao contrabando como actividade plena de imaginação, de bravura, de valentia, por exemplo, patentes na lenda do contrabandista romântico que marcou época, caso do lendário Diego Corrientes4, não são menos 3 Defina-se por contrabando tradicional, como a actividade de contrabando que era caracterizada por ser praticada, regra geral, por gente humilde, que por sua iniciativa e condicionados pela miséria e dificuldades, se organizavam em quadrilhas de contrabandistas que transportavam mercadorias entre países. 4 Lendário bandolero espanhol do séc.XVIII (1750 -1781) e afamado contrabandista de cavalos de Espanha para o nosso país, fazendo passagem de carga ao longo de toda a fronteira desde o Algarve até às Beiras. Era natural de Utrera – Sevilha - e era reverenciado pelo povo pelo desafio sistemático aos poderes instituídos, pela sua benevolência para com o mesmo e pela inusitada proeza de ser um 8 relevantes os heroísmos ou plácidos modi vivendi do cidadão anónimo – homens e mulheres - uns forçados pela necessidade do seu “pão” e dos seus; outros como pessoas com aceitáveis rendimentos e actividade profissional lícita que procuraram de forma facilitada um útil reforço económico, fazendo em ambos casos parte integrante dos ciclos do contrabando e usufruindo da actividade. O contrabando fez-se dos que impelidos pela miséria arriscaram temerariamente a cada passagem e a cada mochila5; dos que sem participação activa no cruzar da fronteira, participavam na aquisição das cargas a serem transportadas ou cobravam “tarifa de passagem” aos contrabandistas em trânsito; dos que sendo senhores da pequena burguesia local eram os “patronos” e acumuladores do lucro da actividade, sendo intocáveis pela autoridade; dos agentes da lei, que sendo a outra face da moeda não eram o “inimigo” e sim tantas vezes o “amigo” que limitando o contrabando, ganhavam com o mesmo. O contrabando, ainda e em simultâneo, determinante maior da memória e construção das vilas, aldeias e lugares do “lado de cá” e “de lá” da fronteira e um referencial já aludido por escritores, poetas e artistas que o ilustraram nas suas obras para a posteridade. bandolero que até ao dia da sua execução, nunca lhe foram imputados “crimes de sangue”. Na Canción de Diego Corrientes, famoso romance de cordel em terras espanholas e cantado até bem entrado o séc.XX, se dizia “Roba a los ricos, socorre a los pobres y no mata a nadie" (rouba os ricos, auxilia os pobres e não mata ninguém). É ainda hoje lembrado pelas afrontas, desafios e humilhações feitas ao governador de Sevilha, Don Francisco de Bruma y Ahumada, que procurou a partir de 1780 e munido de um mandato redigido pelo monarca espanhol Carlos III, dar “caça ao homem”. Foi talvez o primeiro caso de colaboração de autoridades entre Portugal e Espanha, visando a captura de um foragido. Foi preso nesse ano no nosso país – na Covilhã- por uma guarnição portuguesa liderada pelo Capitão Arias e extraditado. Foi enforcado no ano seguinte (1781) e esquartejado, logo após e como exemplo, facto que reforçou a sua lenda. 5 Mochila - Terminologia usada pelos contrabandistas para definir a carga transportada individualmente e em geral até 50 kgs. O termo é mais comum entre os contrabandistas pertencentes às quadrilhas da fronteira molhada do Guadiana – de Vila Real de Santo António ao Pomarão-, e eram em geral, formadas por grupos de quatro a seis homens, e que que pelas condições de transporte determinadas pela capacidade física de cada homem, bem como pelas especificidades de flutuabilidade e acondicionamento da carga. 9 São inúmeras, na poesia e prosa, mas sobretudo na tradição oral, as histórias sobre as “gentes” do contrabando, remanescendo a memória de uma actividade que pese a não ocorrer nos tempos que vivemos e do paradigma da “abertura de fronteiras”, não afastará um dia a possibilidade de “regresso” da mesma, caso as dificuldades e os condicionalismos impostos pelo momentum político e económico assim o determinem. A história assim o dita ao longo destes últimos quinhentos anos e na sua repetição cíclica, muito embora com todas as nuances próprias de cada tempo e cada realidade, o contrabando foi, é e será, além de “pão”, memória e identidade, fonte de trabalho científico e beleza de relato oral, enquanto as águas do Guadiana teimarem em correr. A monografia procurará ainda incidir a titulo de exemplo nos elementos patrimoniais que respaldam a memória dos tempos do contrabando, especificamente os “postos de vigia” da máquina repressiva ao longo de ambas margens do Guadiana e da recente valorização e reabilitação do ponto de vista institucional do contrabando e da figura do contrabandista, como é exemplo o enfâse que a vila de Alcoutim, no seu mobiliário urbano faz, através da promoção de escultórica votiva aos mesmos ou ainda de modestas mas preciosas propostas, a um nível museológico embrionário como as existentes no Museu do Contrabando de Santana de Cambas6. Iniciemos, pois, o estudo de uma monografia que pretende, de forma humilde, ser uma homenagem a tantas gerações de bravos homens e mulheres, que pelo heroísmo estóico da sobrevivência arriscaram tudo o que podiam, na árdua luta do seu quotidiano e que mais do que transgressores, foram trabalhadores dignos exercendo nas mais duras condições o seu oficio. 6 Aldeia e freguesia do concelho de Mértola, com profunda ligação e memória histórica ao contrabando e que possui um interessante museu que funciona nas instalações de um antigo posto da Guarda Fiscal. 10 1. Definição do Objecto de Estudo Com esta tese monográfica pretende-se abordar o contrabando nas suas diversas dimensões, enquadrando determinantes histórico-económicas e sociais nacionais, mas que encontram claro reflexo em relação às especificidades regionais e tendo como fulcro a fenomenologia do contrabando tradicional na fronteira entre Portugal e Espanha. Será abordada a história deste tipo de contrabando, procurando contextualizar origens, definir traços evolutivos que são reveladores das suas causas e motivações, do seu decurso e do seu definhamento e ilustrar idiossincrasias que caracterizam as suas especificidades. Procurar-se-ão ilustrar, ainda, os testemunhos e legados no referencial de identidade dos povos e comunidades envolvidos na actividade, fazendo, por exemplo, uso de elementos de produção cultural diversos, caso das abordagens literárias sobre o tema; de estruturas arquitectónicas usadas pela máquina repressiva; ou da produção de elementos artísticos votivos à temática do contrabando. Este trabalho monográfico focar-se-á, pois, especificamente no contrabando tradicional que é aquele que traduz de forma fiel, a dinâmica da actividade enquadrada no meio geográfico a ele associado. Por contrabando tradicional terá que ser entendido aquele que se praticou desde tempos ancestrais e que se desenvolveu de forma quase espontânea entre as povoações de cada lado da fronteira, a titulo individual (ou quando muito, em pequenas quadrilhas de número nunca superior a seis homens) e numa lógica quase exclusiva de sobrevivência dos envolvidos e ficando de fora deste objecto de estudo não só o contrabando de respaldo institucional como o que se registou em tempos do proteccionismo cerealífero dos anos da vintismo do séc.XIX, bem como às modernas dinâmicas de contrabando, não só exteriores ao território em estudo, mas 11 inerentes ao funcionamento, orgânica e objectivos das organizações criminosas da actualidade. Assim, a tese monográfica incidirá sobre as seguintes perspectivas: 1) Estabelecer as origens e a evolução do fenómeno, bem como das dinâmicas da própria fronteira onde se inseriu. 2) Identificar e determinar os seus principais elementos estruturais, enquadrando o seu contexto e fazendo análise dos elementos quantitativos a ele associados, sejam as especificidades histórico-económicas da região, caracterização demográfica e económica, circuitos de contrabando e bens transaccionados segundo épocas, bem como os processos de transformação sofridos ao longo dos tempos. 3) Abordagem qualitativa do fenómeno do contrabando associado ao período cronológico que engloba essencialmente quatro décadas do século XX e em concreto os anos da Guerra Civil Espanhola, da Segunda Guerra Mundial e as décadas de 50 e 60, através dos registos assentes na oralidade (recolhas diversas de relatos orais) e constituição de memória colectiva através do legado de fontes literárias e jornalísticas. Partimos, pois, do objectivo de assim tornar possível de forma abrangente, um entendimento o mais amplo possível das dinâmicas do contrabando tradicional associado a um limite geográfico específico, abordando a estrutura, analisando as causas e encontrando o seu fulcro, segundo as condições próprias de cada época e essencialmente, aproximar em conclusões a fundamental vertente humana e permitir a 12 compreensão do que representou o contrabando na vida das comunidades e das suas gentes. Esta tese monográfica não se esgotando no seu objectivo meramente académico, não exclui ainda uma pretensão futura de uma análise mais cuidada e trabalhos que possam aportar uma complementaridade mais desenvolvida e que sejam alicerces de novas propostas que contribuam para que o contrabando e a sua temática sejam alavancas de desenvolvimento de potencial nas comunidades raianas que se debatem com um isolamento e esquecimento crescente. Que o património de um passado de contrabando seja motor de futuro. 13 1.1. Âmbito Geográfico associado. A investigação que agora iniciamos, incide sobre a região do Baixo Guadiana, a sua zona litoral junto à foz do Guadiana e envolvente e a projecção da “fronteira” entre Alentejo e Algarve compreendida a montante da desembocadura da Ribeira do Vascão e que engloba a fronteira definida pelo Rio Guadiana entre Portugal e Espanha e compreendida pelos limites localizados a jusante e gradualmente mais próximos da foz do mesmo e que em Portugal abarcam os actuais concelhos do distrito de Faro situados na franja oriental da região algarvia adjacentes ao rio, e que são Vila Real de Santo António, Castro Marim, Alcoutim e Mértola, concelho do distrito de Beja (Baixo Alentejo) situado na posição mais a sueste do mesmo. No país vizinho, os limites do Baixo Guadiana estão compreendidos dentro das comarcas7 situadas no extremo oeste da província de Huelva e que são a Costa Occidental no limite sul e junto à foz do Guadiana; a norte desta a comarca de El Andévalo e na projecção para interior no extremo noroeste da província de Huelva e do sentido montante do rio, a Sierra de Huelva. A área geográfica que consideramos pois para este trabalho monográfico, incide sobre a extensão do Guadiana no qual se torna navegável e em concreto nos últimos 48 Km, de montante a jusante entre o Pomarão e Vila Real de Santo António, onde pode a sua largura variar entre cem e quinhentos metros e sendo a sua profundidade média, 7 Definição de comarca patente no Estatuto de Autonomía de Andalucía no Título III. ORGANIZACIÓN TERRITORIAL DE LA COMUNIDAD AUTÓNOMA e Artº 97 e em concreto no ponto.1. Comarcas 1. La comarca se configura como la agrupación voluntaria de municipios limítrofes con características geográficas, económicas, sociales e históricas afines. ( Trad. A comarca configura-se como a agregação voluntária de municípios com características geográficas, económicas, sociais e históricas afins.) 14 superior a cinco metros8 (pese haver áreas como o “pego da curva” de Guerreiros do Rio, onde sondagens apontam mais de setenta metros de profundidade e no caso do canal de navegabilidade que corre centralmente em relação às margens do rio, que pode ter em algumas variações de dezassete para apenas cinco metros de profundidade9). Importa referenciar ainda os principais aglomerados urbanos respeitantes a cada concelho e comarca em estudo. Assim, em Portugal, destacam-se nos concelhos supracitados, as sedes dos mesmos, caso da cidade de Vila Real de Santo António e as vilas de Castro Marim, Alcoutim e Mértola; e em Espanha, as sedes das comarcas, sendo a cidade da Ayamonte o centro comarcal da Costa Occidental; o municipio10 de Valverde del Camino no respeitante a El Andévalo e o municipio de Aracena para a Sierra de Huelva. Como veremos no desenvolvimento do trabalho, devem ser consideradas de forma muito destacada pequenas aldeias e lugares associadas aos concelhos, comarcas e municípios já referidos e que se revestem de extrema importância, por uma inerência que se prende com uma miríade de factores. Por exemplo, muitas das aldeias, lugarejos 8 Consulta de site, em 9 de Outubro de 2012 no site: http://www.odiana.pt/rio/ Consulta de site, em 10 de Outubro de 2012 no site: http://www.cima.ualg.pt/cimaualg/cimaualg_old/SPICOSA/local/estuario.html e contrastando informações empíricas recolhidas através do relato de José Martins, mestre da embarcação turística Guaditur, que faz cruzeiros de Vila Real de Santo António à Foz de Odeleite e Guerreiros do Rio 10 Terminologia administrativa espanhola associada à mais básica divisão administrativa. De maior a menor dimensão, ou seja no país Espanha, existem as comunidades autonómicas caso da Andaluzia, que se subdividem em províncias e neste exemplo Huelva, que se encontra por sua vez dividida em comarcas (que por exemplo existem na Andaluzia, mas que em algumas comunidades autonómicas em Espanha, não) como El Andévalo e comarcas estas que por sua vez que são unidades são formadas por conjuntos dos municípios, neste caso de Valverde del Camino ou Sanlúcar do Guadiana. Os municípios corresponderiam, pois, em Portugal ás sedes de concelhos - (independentemente da convencionalidade de atribuição e diferenciação entre a possibilidade de serem cidades, vilas ou aldeias) e abarcando vilas, aldeias, lugares, bairros e periferias no seu entorno (e que seriam de forma informal as freguesias no nosso país) e que junto ao municipio como sede, formam os terminos municipales – área total e limites de competências de intervenção dos municípios-, que corresponderiam isso sim e literalmente aos nossos concelhos (sede e freguesias). Destaque-se que os municípios são geridos por ayuntamientos que correspondem às nossas câmaras municipais. 9 15 e até sítios ermos adjacentes a um e outro lado do rio11, revestiam-se de fundamental importância na actividade do contrabando, quer por determinantes várias que se prendiam com a localização dos postos de vigilância da autoridade; com zonas específicas de correntes do rio em associação a factores como os ciclos de marés e os ciclos lunares que eram factores de vital importância para a facilidade e sucesso das “travessias”; dos lugares e “terras de passagem”12 que conectavam vias de acesso e localidades mais afastadas do rio, aos pontos de travessia dos contrabandistas. Assim, no nosso país e no concelho de Castro Marim (não considerando Vila Real de Santo António, que possuía instalações centrais e destacamentos no porto comercial e junto à foz do Guadiana, no sítio da Pedra Alta e junto à Praia de Vila Real popularmente conhecido pelos Sitio dos Três Pauzinhos), no referente a localidades e lugares associados ao contrabando, destacam- se algumas como Almada de Ouro e a Foz de Odeleite e todo um conjunto de localizações de postos da Guarda Fiscal, caso dos postos nas referidas localidades ou isolados mas de grande importância estratégica como os do lugar do Seixo (que se situa praticamente debaixo da actual Ponte Internacional do Guadiana), da Rocha (situado em plena Reserva do Sapal de Castro Marim), das Choças na projecção da aldeia do Azinhal para o rio ou da Ponta do Cinturão (que definia o limite junto ao rio dos concelhos de Castro Marim e Alcoutim). 11 Conhecidos vulgarmente por montes do rio Entenda-se as “terras de passagem” como terrenos - em geral de propriedade privada- que se encontravam a meio caminho dos eixos viários principais e de localidades mais afastadas do rio com as zonas de “travessia” e localidade situadas nas margens do Rio Guadiana. Eram “outra” das faces do contrabando, pois os proprietários cobravam em geral franquias de passagem pelas terras, aos contrabandistas, sob pena de delação às autoridades e lucravam paralelamente, mas de forma activa, com o contrabando. 12 16 No concelho de Alcoutim, além da Vila enquanto porto e de ter estreita ligação à villa localizada na outra margem do rio, Sanlúcar del Guadiana e ser a sede de secção13 da Guarda Fiscal do concelho, destacam-se as localidades vulgarmente conhecidas como os montes do rio e que são o Álamo, os Guerreirinhos, Guerreiros do Rio, Montinho das Laranjeiras e Laranjeiras, bem como os inúmeros postos da Guarda Fiscal situados de permeio e dos quais se destacam os de: Abrigo Segundo, Alcaçarinho, Barranco do Álamo, Barranco do Carrascal, Barranco das Pereiras, Canavial, Enxoval, Foz de Odeleite, Grandacinha, Guerreiros, Laranjeiras, Lourinhã, Pontal, Premedeiros e Vascão. Deve, de igual modo e com interesse de contextualização das rotas do contrabando, referir-se que os montes do Nordeste Algarvio, que se encontravam a meio caminho entre o Rio Guadiana e a estrada de Vila Real de Santo António a Mértola, eram pontos habituais de passagem e abrigo dos contrabandistas. Estes constituíam-se como verdadeiros entrepostos que se encontravam ligados a tantos outros lugares já muito distantes do rio e que serviam de fonte de matéria para a preparação das cargas dos bens transaccionados por via do contrabando e podemos destacar destes: Corte das Donas, Tenência, Torneiro, Cerro, Balurcos de Cima e de Baixo, Corte Tabelião, entre tantos outros, chegando mesmo a partidas tão longínquas quanto Giões e Martinlongo. As estradas existentes com todas as limitações do relevo da região desempenhavam uma fundamental função de escoamento a outros pontos do Algarve e até do país, das cargas trazidas de Espanha. No concelho de Mértola e especificamente na envolvente da zona do Pomarão, - que representou por mais de cem anos um porto de vital importância na economia regional e 13 Estrutura administrativa da Guarda Fiscal, que era responsável pela coordenação de postos e efectivos e tendo uma sede centralizada, em geral, na localidade onde se encontravam também serviços administrativos civis. 17 até nacional, por força do ciclo do minério da Mina de São Domingos - convêm referir que este local de bifurcação do Rio Guadiana e do afluente Chança era uma área prolifica no que diz respeito ao contrabando e que esta apetência pela actividade tinha relação com a distribuição das localidades e facilidade de acesso às mesmas, tanto portuguesas quanto espanholas, sem descurar, à semelhança do registado no concelho de Alcoutim, do determinante condicionalismo resultante dos parcos recursos e da necessidade de sobrevivência que assim o determinavam. Toda a área que se enquadra a norte da desembocadura da Ribeira do Vascão - que define o limite junto ao Guadiana, do Algarve e Alentejo- e até à curva14 do Pomarão, serviu como local de travessia. Diga-se que o Chança actualmente, nesta região, coloca uma barreira quase intransponível pela criação, no inicio dos anos oitenta do séc.XX, de uma das mais importantes albufeiras abastecedoras de água de toda a Andaluzia, mas que deve referirse que, em tempos idos, pela natureza do seu caudal intermitente segundo as estações do ano, foi um afluente que permitia até a passagem a pé podendo ser entendido quase como uma fronteira seca15. Localidades como Colgadeiros, Mesquita, Salgueiros, São Martinho, Santana de Cambas e a própria Mina de São Domingos, serviam de manancial humano de contrabandistas e como localidades de ligação a Mértola, onde iremos adiante registar que se localizava um importante entreposto de produtos vindos do resto do nosso país e até das colónias ultramarinas e onde alguns dos senhores da terra podiam ser entendidos como “capitalistas” dedicados em exclusivo ao negócio do contrabando e lucrando, com a protecção de autoridades e poderes, de forma abismal. 14 Local onde o Guadiana se bifurca com o seu afluente, a Ribeira do Chança, afastando-se o Guadiana da fronteira em direcção a Mértola e ficando esta definida pelo curso do Chança. 15 Fronteira Seca por oposição ao Guadiana enquanto fronteira molhada, ou seja, apenas passível de ser cruzada a nado ou com uso de embarcação. 18 No lado de lá da fronteira e de jusante a montante, será importante reter que junto à foz do Guadiana e na sua projecção para o litoral costeiro, localidades como Ayamonte, Lepe, Cartaya, Aljaraque e chegando mesmo até San Juan del Puerto já nas imediações da capital provincial, Huelva, eram essencialmente os pontos de recepção das cargas provenientes de Portugal. Convêm referir que pese a distância com a fronteira de algumas das referidas localidades, não representava obstáculo ao árduo labor das quadrilhas de contrabandistas, que acarretava a travessia do rio a nado, vários dias de caminhada portando cargas pesadíssimas, buscando esconderijos e procurando evitar a detecção das autoridades do país vizinho. Mais enfático será referir que estas localidades chegavam a distar mais de 60 quilómetros desde o local de inicio da epopeia dos contrabandistas portugueses, nomeadamente, dos que eram provenientes do concelho de Alcoutim, o que revela a dimensão titânica da tarefa. E não será demais referir, que a um caminho de ida correspondia um caminho de volta e também com a mochila carregada, na maioria das vezes. Não se limitando a estas rotas de contrabando de longo curso, poderiam de igual modo existir serviços de cariz intermédio ou curto, e nessa lógica no limite entre as comarcas da Costa Occidental e do El Andévalo, os principais núcleos populacionais correspondentes à projecção do concelho de Castro Marim e limites com o concelho de Alcoutim do outro lado da fronteira, eram Villablanca, San Silvestre de Gúzman ou Tariquejo que serviam não só de ponto de recepção de mercadoria, mas igualmente, em relação aos trajectos mais longos, como locais de passagem rumo aos destinos já referidos. Na área paralela ao concelho de Alcoutim e a montante da mesma Vila, encontrava-se Sanlúcar de Guadiana, vilarejo fronteiro que estando no mapa do contrabando e sendo igualmente terra de contrabandistas espanhóis, era evitado pelos contrabandistas do 19 nosso país, pela presença do posto local e guarnição dos Carabineros16. Para o interior de Sanlúcar de Guadiana, o contrabando era ainda levado (ou passado) por Villanueva de los Castillejos, Puebla de Gúzman, Tharsis, Alosno e chegando até locais tão distantes da fronteira como as Minas de Rio Tinto e Valverde del Camino, que se revestiam de enorme importância não só pela existência de um elevado número de pessoas que trabalhavam nas minas e pelas necessidades prementes de certos bens em escassez e ainda mais justificado pela fundamental e estratégica localização do principal eixo viário da região a Sevilha. Na mesma lógica, ainda que situada mais a norte na zona do Pomarão, até mesmo a Santana de Cambas e à Mina de São Domingos, as relações privilegiadas na entrega e recepção de cargas davam-se ainda com localidades de passagem mais a sul, e em direcção aos destinos acima mencionados, especialmente em El Granado e Santa Catalina de onde muitas vezes seguiriam depois para Puebla de Gúzman e dai para Valverde del Camino. É de destacar que outro ponto de recepção de cargas, em concreto para os contrabandistas oriundos da zona do Pomarão e Santana de Cambas, era Paymogo já bem entrado na Sierra de Huelva e nos limites da Andaluzia com a Extremadura espanhola, sendo esta localidade o ponto de passagem para as principais localidades da comarca mais a norte da província de Huelva, casos de Aracena e Cortegana. Tendo, até agora, dado o ênfase as rotas de contrabando ligadas em exclusivo ao rio Guadiana, não poderemos deixar de referir que existiram, em momentos determinados, fluxos muito relevantes de contrabando para limites muito afastados da fronteira, e 16 Apodo dado aos militares da Guardia Civil espanhola e que eram conhecidos pela sua brutalidade e falta de humanidade. Nos diversos relatos de contrabandistas que abordaremos, passa a ideia que os carabineros seriam incomensuravelmente mais cruéis e desumanos que os efectivos da nossa Guarda Fiscal, sendo referidas relatos dos longos meses de prisões sem julgamento, torturas e privação de água aos detidos. 20 especificamente da foz do Guadiana para pontos diversos da Baía de Cádiz (San Fernando, Chiclana, Barbate e inclusive Algeciras e Gibraltar). Que tipo de bens justificariam semelhante distância? Talvez o bem mais valioso, a mão-de-obra portuguesa que trabalhou nos campos do sul de Espanha, em períodos imediatamente anteriores e posteriores à Guerra Civil Espanhola. E, em jeito de fecho, para complementar a ideia de contrabando humano, que deve ser entendido como o auxílio para a travessia da fronteira luso-espanhola, não entrarão no campo da especulação e fantasia, as histórias dos perseguidos pelo regime fascista do nosso país, nos tenebrosos anos da ditadura, que encontraram nos contrabandistas, leais e zelosos cumpridores de um trabalho de elevado risco e pago muito acima da média e que representaram uma mercadoria, infelizmente, muito comum nos anos sessenta do passado século. Os contrabandistas foram dos principais obreiros do salto17 de muitos homens que se revelariam fundamentais na construção da nossa democracia após o 25 de Abril de 1974. 17 A expressão salto aplica-se neste caso, como a triste passagem da fronteira dos perseguidos pelo regime salazarista, tantas vezes sem destino, sem recursos e sem documentos. 21 1.1.1 Âmbito Geográfico associado. – Apêndices Fotográficos Geral – Mapa Portugal- Espanha (Região do Baixo Guadiana - sinalização com marcador amarelo) 22 Imagem 1 – Perspectiva Geral Mapa Baixo Guadiana 23 Infografia – Esquematização da região do Baixo Guadiana associada à pontos de referência e localidades 24 Imagem 2 – Relevo Geral região Baixo Guadiana – tramo Alcoutim – Foz de Odeleite. 25 Imagem 3 – Descritivo dos pontos de travessia da fronteira e principais rotas associadas ao contrabando ( de Vila Real de Santo a Alcoutim) Imagem 4 – Descritivo dos pontos de travessia da fronteira e principais rotas associadas ao contrabando ( de Alcoutim à Mina de São Domingos) 26 Imagem 5 – Mapa de Referência Concelho de Alcoutim – Igeo – Mapa Geodésico de Cartografia Militar M888 –folhas 575 ( área sombreada em detalhe Imagem 6) Imagem 6 – Mapa Geodésico (Noção de Relevo) Cartografia Militar 1/25000 (Alcaria -Alcoutim) – Relevo da zona de Laranjeiras /Guerreiros do Rio – M888 – folha 575 27 Imagem 7 – Mapa de Referência da área do Pomarão/Chança – IGeo – Mapa Geodésico de Cartografia Militar M888 –folhas 567 ( área sombreada em detalhe Imagem 8) Imagem 8 – Mapa Geodésico (Noção de Relevo) Cartografia Militar 1/25000 (Alcaria -Alcoutim) – Relevo da zona de Pomarão/Fronteira do Chança – M888 – folha 567 28 1.2. A Fronteira e o Contrabando – Dinâmica Politica, Administrativa e Económica do Baixo Guadiana. Importa, enquanto ponto de partida, definir o período cronológico associado à fenomenologia do contrabando, sem isolar o mesmo de um enquadramento mais complexo sobre as questões respeitantes à definição da fronteira, não meramente como barreira física, mas essencialmente como a criação artificial de uma estrutura política, económica e administrativa, associada às dimensões resultantes das relações entre Portugal, o Reino de Castela e, em sequência, com a Espanha. A região do Baixo Guadiana, insere-se na lógica ancestral de uma periferia somente quebrada pela vigência do rio, enquadrado numa lógica de estrada navegável e de fluxo comercial e populacional entre o interior e o litoral. O rio é, pois, fundamental para a fixação populacional em virtude das limitações de acesso justificadas pelo relevo da região, que representou factor limitante nos fluxos populacionais resultantes dos ciclos de transumância provenientes da meseta peninsular. Assim desde o séc. VI a.C e da narrativa de Heródoto sobre o Reino de Tartessos e da riqueza mineira da região, passando pelo Guadiana como área de contacto de povos provenientes do Mediterrâneo, caso de Cartagineses, Fenícios e Gregos e do desenvolvimento dos povos residentes da idade do Bronze no Sudoeste Peninsular, caso dos Cónios e os Turdentanos, passando pela Romanização e pela importância de Myrtilis Iulia (Mértola), não só justificada pela navegabilidade do rio e da prolifica actividade de produtos escoados desde o interior às várias partidas do Império, assim como, também, da entrada de bens e gentes e ainda pela inserção da região através de um dos principais eixos viários da Ulterior e Bética, do eixo Emerita Augusta (Mérida) 29 passando por Ebora Liberalitas Julia (Évora) a Pax Iulia (Beja)18. Com o declínio do Império Romano e a ocupação visigótica do séc. V da nossa era, a diminuição da actividade comercial teria reflexos no isolamento expresso pela esparsa população residente e a quase ausência de comunidades fixadas ao longo do Baixo Guadiana, que subsistiam por via da prática de agricultura, da pastorícia e da pesca no rio, quadro que se manteve, inclusive, durante os primeiros séculos do domínio islâmico e até a tomada de Mértola por ‘Abd al-Rahmān III em 929 d.C. O desenvolvimento deste núcleo urbano e da área de arrabalde portuário e, em concreto, no período áureo do séc.XI, define a região como importante área inserida na rede de intercâmbios do al-Ândalus19. É de destacar o carácter de periferia da fronteira do Guadiana, associada como normalmente toda a extensão de 1.234 quilómetros de fronteira entre os dois países, e como área periférica distante dos principais centros habitacionais, da riqueza e importância a eles associados. Refere Melón Jimenez (2010) que a fronteira “se situa en vacio natural existente en los dos lados, quedando alejada de ella las partes más pobladas y ricas de ambos países, así como los centros soberanos de poder”20. O mesmo autor refere ainda que a fronteira, inicialmente se tratava “más de una franja que una línea” e “era además un espacio discutido y controlado principalmente mediante un sistema de estabelecimientos aduaneros y plazas fuertes que actuaban como avanzada hacia el país vecino” 21. 18 Consulta de site em 14 de Novembro de 2012 e informação sumulada sobre o artigo A Romanização de Mértola em http://www.portugalromano.com/2011/09/myrtilis-iulia-mertola/ 19 Consulta de site em 15 de Novembro de 2012 e súmula das conferências sobre Mértola Islâmica, a Madina e o Arrabalde e dos responsáveis do Campo Arqueológico do Mértola, contido no site : http://comum.rcaap.pt/handle/123456789/2130 20 MELÓN JIMENEZ, Miguel Ángel, “Contrabando y negócios en el limite de dos imperios” in Revista Andaluzia en la Historia nº 27, 2010, p.12 21 Tradução própria: “(A fronteira) tratava-se mais de uma franja que uma linha” e “era além disso um espaço discutido e controlado principalmente através de um sistema de estabelecimentos aduaneiros e praças fortes que actuavam como linha avançada em relação ao país vizinho” 30 Medina García (2009) dando o mote para o objecto de estudo desta investigação, afirma que o contrabando tradicional remonta praticamente ao início do estabelecimento das fronteiras entre países e coincidindo com a ocupação militar dos portos secos pelos cristãos aquando da Reconquista Cristã na primeira metade do séc. XIII22. Os limites de fronteira entre Portugal e o Reino de Castela relativos ao Baixo Guadiana, inserem-se numa leitura não linear do processo de Reconquista. Assim, todo o limite compreendido entre Mértola e a foz do Guadiana, quer de um lado, quer de outro da fronteira, enquadram-se nos domínios do reino português a partir do ano de 1238 e relativos aos resultados da campanha do Rei D.Sancho II (com a participação das Ordens de Santiago e dos Hospitalários) entre esse ano e 1240, e contra os domínios do reino de Ibn Mafhûz, com capital sediada em Niebla. É, então, a 2 de Maio de 1239 (ou 1240, segundo alguns especialistas), que as fontes documentais patentes na Carta de Doação à Ordem de Santiago do castelo de Ayamonte (que se crê tenha começado a ser construído nesta data) oficializam a conquista e entregam-na à guarda da referida ordem e à figura de Paio Peres Correia, através do disposto no seguinte excerto: “(…) Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amen. Saibam todos os que esta carta virem, que eu Sancho II, por graça de Deus rei de Portugal, de minha boa e livre vontade, e por acordo e parecer dos meus fidalgos e ricos-homens e pelo óptimo serviço que me prestaram D. Paio [Peres] Correia, comendador de Alcácer e os freires da Ordem de Santiago (…) lhes dou e concedo, e à Ordem de Santiago e a todos que no futuro lhe sucederem, o meu castelo de Aiamonte com os seguintes limites (…) com 22 MEDINA GARCIA, Eusebio (2009). “El contrabando de posguerra en la frontera de España con Portugal” in Revista Noudar nº0, 2009, p. 10. 31 todas as suas pertenças, com as entradas e saídas, quer por mar, quer por terra, e com todos os direitos reais que aí tenho ou devo ter(…)23. As ordens militares já referidas, dividiam assim desta forma os territórios conquistados ficando a Ordem dos Hospitalários com a tutela de Serpa, Moura, Aracena y Aroche; e a Ordem de Santiago com Mértola, Alfayat de la Peña (fortificação que se acredita ter-se situado na actual localidade de Puebla de Gúzman) e Ayamonte. Com a tomada de Alcoutim, Cacela e Tavira, Castro Marim, que representava o último bastião de resistência islâmica na proximidade ao Guadiana, cairia em mãos cristãs, em 1242. Em 1267, o Tratado de Badajoz entre o rei castelhano Afonso X e o monarca português Afonso III, definia que o rio Guadiana se estabelecesse como fronteira entre ambos os reinos, passando os territórios a leste do rio para a posse do Reino de Castela e este reconhecendo o Reino do Algarve como parte integrante do Reino de Portugal 24 e ficando finalmente a questão dos limites fronteiriços do Guadiana resolvida, já em finais do séc. XIII, através do Tratado de Alcañizes25 com a permuta de Ayamonte, Aroche e de Aracena para Castela e para Portugal das regiões de Campo Maior, Ouguela e Olivença e toda a região e praças fortes do Riba-Côa26. 23 Tradução moderna da “Carta de doação à Ordem de Santiago” BRANDÃO, Frei Francisco, Monarquia Lusitana, vol. V, 2008 p.348 24 BERRONES, Enrique Arroyo: "Ayamonte: musulmana/cristiana portuguesa/castellana, Historia del castillo de Ayamonte en el siglo XIII”; Publicación de las Jornadas de Historia de Ayamonte, 1997, p.13 25 Tratado de paz celebrado entre os reinos de Portugal e de Castela em 1297 (ao tempo de D. Dinis). O tratado definiu os limites do território continental português, que não tiveram alteração posterior, à excepção da perda de Olivença em 1801. Estipulava que certas localidades passavam definitivamente para domínio castelhano e outras para domínio português. Por outro lado, consagrava dois casamentos: o do futuro monarca D. Afonso IV com D. Beatriz de Castela e o da infanta D. Constança com o rei castelhano D. Fernando IV 26 Praças fortes do Riba-Côa: Almeida, Alfaiates, Castelo Bom, Castelo Melhor, Castelo Rodrigo, Monforte, Sabugal e Vilar Maior. 32 Com esta definição dos limites fronteiriços, os seguintes séculos – em concreto os séculos XIV e XV -, na região, irão reflectir uma substancial alteração do desenvolvimento das actividades comerciais ancestrais e da relação entre gentes de ambos países quer em Castela ou Portugal, associada aos alvores de uma nova política fiscal afecta ao poder central das coroas, que estabelecia um novo paradigma e através do surgimento de regulamentação na actividade comercial e da transacção ou troca directa de produtos e bens. A existência dessas relações comerciais ancestrais e anteriores ao surgimento dos reinos, apoiadas numa antiquíssima relação consuetudinária associada não só à prática comercial, mas igualmente transversal às diversas dimensões das relações entre gentes de ambas as margens do Guadiana, irá ser gradualmente afectada pelos determinismos de ordem política, administrativa e económica e até social, que se revelarão intrusivos a uma actividade que era comum e aceite entre gentes de ambos lados da raia, tendo em conta que, em tempos não distantes de domínio islâmico, se agregavam num denominador comum de existência e referencial de vida, sem qualquer barreira artificial que os diferenciasse. Não exclusivamente clivada por aspectos económicos, a fronteira do Baixo Guadiana, desde a sua criação, é também e essencialmente reveladora do novo paradigma político existente e logo, foi alvo de uma preocupação extrema por parte do poder régio de ambos países. O facto de Castro Marim se encontrar diante de Ayamonte e Alcoutim de Sanlúcar de Guadiana, reflecte essa política de controlo velado de cada um dos reinos em relação ao outro e de pretensões militares e territoriais. A dificuldade de proceder à fixação populacional nestas paragens, assentaria no facto da fronteira se constituir enquanto espaço vulnerável a perigos e com maior susceptibilidade, em caso de contenda. São relatadas, no desenrolar da Idade Média e no reinado de D.Afonso IV, campanhas, por exemplo, do rei castelhano Alfonso XI contras as praças de Alcoutim e 33 de Castro Marim27. Assim, a fronteira viverá tempos conturbados na Idade Média, justificados quer do ponto de vista de uma obrigatória política de povoamento que permitisse fixar a mesma contra as pretensões do país vizinho, quer da excepcionalidade dos privilégios que seriam necessários atribuir para permitir essa fixação28. As disposições regulamentares no nosso país expressas nas primeiras cartas de foral, representando ferramentas legais que vão ao encontro das particularidades produtivas e comerciais das localidades para as quais são outorgadas, são igualmente definidoras em termos tributários e de privilégios de uma lógica de incremento pelo qual a regulamentação da actividade comercial inserido nas especificidades da estrutura feudal local associada principalmente às ordens religiosas, em concreto da Ordem de Santiago, evoluirá pela alteração das determinantes socioecónomicas até aos inícios do séc. XVI, para elemento imprescindível na lógica da povoação da fronteira e da centralização do poder real29. No reino de Castela e em concreto nos domínios da Casa de Gúzman – o El Andévalo -, a lógica da introdução dos forais e da necessidade de povoamento fronteiriço no nosso país encontra reflexos, na criação a partir de meados do séc. XIV, das aduanas, do regime de portos secos e das figuras do titulares do bando regulador30, casos dos 27 PINA, Rui de - Crónica de D. Afonso IV, cap. XL, p. 108., refere que: “Hum Fernão Arrais, que por Castela tinha a frontaria da terra contra o Algarve, cõ muyta gente entrou em Portugal, & correo, & queymou,& destruhio muyta terra, & fez nella grãdes danos & veo correr a Castromarim, em huma cilada que lançou acertouse, que dos moradores do lugar que sem bom resguardo a elle sairão matou cento, & oitenta, & prendeo setenta, que levou a Castella cativos.” 28 Sobre a importância da criação dos coutos de homiziados: SERRÃO, Joaquim Veríssimo in História de Portugal, Vol. II, 1978. P.251 29 CAVACO, Hugo; Castro Marim Quinhentista, 2000, pp.17-18. O autor refere no relativo às determinantes da evolução socioeconómica patentes, entre o Foral Velho dos fins do séc. XIII até ao Foral Novo em 1504, condensa no capítulo da Síntese Explicativa do Foral Novo, a visão da desarticulação da estrutura feudal, substituída pelo incremento da acção da burguesia assente na actividade comercial de “mesteirais, mercadores e todo o tipo de gente” e do Foral Novo (Manuelino) e das novas regras que permitiam uma optimização das regras fiscais e tributárias, para o reforço central da coroa. 30 O étimo castelhano da palavra Contrabando, reside na oposição às práticas definidas pelo bando regulador. A palavra bando significava mandato que os titulares dos cargos acima referidos exerciam na 34 alcaldes de saca, guardas de los caminos e capitanes de fronteras que, localmente e intrinsecamente, ligados aos feudalismo senhorial que surgiu após a Reconquista, contribuíam para a fixação de território e sobretudo, ditavam regras associadas ao comércio. No entanto, pese à hostilidade existente, convêm contextualizar, nesta abordagem à política fiscal e tributária seguida, que em nenhum momento e no relativo às regras de taxação da actividade comercial, se diferenciavam países e especificamente em produtos que fossem provenientes do lado oposto da fronteira. Segundo Medina Garcia (2009), o contrabando surge quase de forma espontânea e em finais do séc. XIV, como resposta às novas contingências colocadas no país vizinho, por estes editais locais (o bando ou mandato), que redefinem as regras do jogo no que diz respeito ao comércio31. Aliás, é relevante afirmar que os reis de Castela, na entrada do séc. XV, incentivavam activamente e contra os interesses dos seus representantes do bando, as trocas entre gentes raianas numa lógica do suprimento das necessidades das populações aí residentes e que o bando como estrutura feudal local que, como já foi mencionado no caso dos forais em Portugal, quando se associou ao novo paradigma do surgimento de uma burguesia de cariz mercantil e financeiro, através do açabarcamento de direitos justificado pelos seus interesses, irá muscular a limitação à actividade comercial entre aplicação de regras de regulação à actividade comercial das localidades raianas do país vizinho com Portugal e relativos ao comércio de bens, indistintamente da proveniência, naquelas paragens. 31 O autor explicita no artigo o surgimento do contrabando na lógica de que o bando é quem cria o contrabando, ou seja, a lei é quem determina o surgimento da actividade transgressora. Ao estabelecer limites, normas e regulamentos, a própria lei cria a janela para ser violada e esta potestade que justifica o aparecimento do contrabando, acaba por ser um novo elemento introduzido e totalmente estranho às práticas comerciais, ancestrais, aceites de mútuo acordo, pelas comunidades. 35 gentes humildes da base da pirâmide social, em ambos lados da raia 32, assim fomentando o contrabando como única alternativa para a continuidade da relação comercial entre povos. O surgimento da referida burguesia de cariz mercantil e da apetência pela actividade transgressora do contrabando como fulcro da optimização do lucro, aportará também um elemento contraditório nesta ambiguidade resultante das hostilidades entre países e do tipo dos bens comercializados clandestinamente entre ambos, que são altamente valorizados. Assim, por oposição, às leis que restringem produtos susceptíveis de ser transaccionados com o país vizinho e pela vital necessidade politica de enfraquecimento do inimigo além-fronteiras, sobrepõe-se o afã do grande lucro e da alta rentabilidade da contabilidade evasiva ao Tesouro Real, assente precisamente no contrabando de produtos que paradoxalmente são fundamentais para a máquina de guerra, tais como cavalos, armaduras, espadas e outras armas, embarcações, entre outros, além de elementos de valor material, ouro, prata e outros metais preciosos, usados para pagar soldadesca e mercenários, ou ainda, vitais para a alimentação não só de populações, mas dos exércitos como gado e cereais33. Com a pacificação de relações entre os dois países na entrada do séc. XVI, na fronteira do Baixo Guadiana, em concreto, o contrabando coexistiria com o fluxo constante de um crescente volume de mercadorias transaccionadas, em geral, por via fluvial e em particular a partir do porto de Castro Marim, ocorrendo paralelamente a uma intensa actividade comercial dita legal de produtos entre o Algarve a Andaluzia, baseados nas produções locais, tais como as frutas cítricas, os figos, as passas, as amêndoas, ou ainda, 32 MEDINA GARCIA, Eusebio , Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y Cambio Social; Tese de Doutoramento; Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Ciencia Politicas y Sociologia, Madrid, 2001, p.92, 33 GRILO, Márcia Luisa, “O Controlo do Comercio Fronteiriço” in Vila Real de Santo António e o Urbanismo Iluminista, ed. CM. V.R.S.A., Cap. 2, p.25 36 outros produtos como o peixe fresco ou salgado, o vinho, o sal ou o azeite. Do lado castelhano, chegavam sobretudo os cereais, legumes e tecidos de lã ou linho. Luis Miguel Duarte (1998), refere para dar consistência a esta ideia, que “(…) o arsenal de leis e a atenção dos responsáveis pelas fronteiras nunca conseguiram obstar a que existisse um contrabando de pequena, média e grande escala nos dois sentidos da fronteira. Ou a que (…) existisse corrupção nos oficiais encarregados de cobrar os impostos (…)”34. Assim, na mesma lógica, não só do reforço militar da foz do Guadiana como ponto estratégico fundamental no controlo de navegabilidade do rio, mas também da vigilância costeira e fundamentalmente do controlo da actividade económica, na entrada do séc. XVI, em concreto em 1513, Santo António de Arenilha surgirá como ponto avançado na fronteira oriental do Algarve, expoente desta estratégia, criado por édito real manuelino, que define esta povoação como couto de homiziados, sendo à posteriori definido por D.João III para estes habitantes degredados, privilégios relativos à pesca35. O volume do contrabando é evidenciado, no outorgar do “Regimento” de 154736, por parte de Diogo Fernandes das Póvoas, Provedor e Feitor-mor das Alfândegas do Mar e Portos de Mar do Reino de Portugal e dos Algarve, onde informa o almoxarifado e restantes funcionários oficiais da Alfândega de Tavira, que através do contacto feito com habitantes da Vila de Santo António (de Arenilha), determinou que “avia necessidade de huma pessoa que olhace pellos direitos de mercadorias e couzas outras que pertencem despacharem-se na Alfandega de Tavira e nas outras alfandegas deste 34 DUARTE, Luís Miguel, “Contrabandistas de gado e «passadores de cousas defesas» para Castela e «terra de Mouros»”, in Actas das IV Jornadas Luso- Espanholas…, vol. 1, 1998, p. 457. 35 GRILO, Márcia Luisa, Vila Real de Santo António e o Urbanismo Iluminista, 2010;p.32, referência em rodapé de documento do ANTT (Núcleo Antigo), Chancelaria de D.João III, Livro 12, fl.62 in CAVACO, Hugo, Revisitando Santo António de Arenilha,1995, Apêndice Doc. (Doc.1),pp.27-28 36 GRILO, Márcia Luisa, op.cit.; p.45 37 Reyno do Algarve pera que os direitos dellas não soneguem e venhão a boa arrecadação como cumpre ao serviço de Sua Alteza” e indica ainda que “(…)pella informação que disso tomey, achey que pela ponta de Santo Antonio que he da parte de Castro Marim e pello esteiro da Carrasqueira e outras partes do Rio Godiana se pasavão muitas mercadorias da Villa de Ayamonte e de outras partes dos Reinos de Castela e de fora deles pera estes Reynos pellos ditos lugares, e asim outras mercadorias, escravos e dinheiro e outras couzas destes Reinos pera os de Castella e pera outras partes sem das ditas mercadorias, asim das que entrão no dito Reino como das que sahião dellee, pagarem os direitos a Sua Alteza como herão obrigados(…)”. Visando estabelecer um responsável o Regimento indica ainda que “(…)Hey por serviço do dito Senhor que daqui em diante o juis ordinário e das cizas que hora he e ao diante for na dita Villa de Santo Antonio tenha cuidado de vigiar, olhar, guardar todos os ditos, portos, esteiros e Rio(…)” Santo António de Arenilha, terá existido até ao primeiro quartel do séc.XVII, sucumbindo a factores naturais como os avanços marítimos e de areias, aos abalos telúricos e à vulnerabilidade dos ataques regulares do corso árabe, sendo revelado, por exemplo, por Henrique Fernandes Sarrão que, em 1607, já só residiam dois habitantes. A pacificação entre países, desde o último quartel do séc. XV, prolongando-se até ao último quartel do séc. XVI e à anexação filipina, reflectir-se-á numa aproximação social, politica e relacional entre comunidades raianas que assentou, essencialmente, nas relações de comércio e do contrabando entre si. E, como exemplo, é patente na crónica de João Cascão aquando da visita de D. Sebastião ao Algarve no ano de 157337, que um grande número de ayamontinos atravessou o rio para ver o monarca português em Santo 37 CASCÃO, João, “Relação da jornada de El-Rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora”, in SALES LOUREIRO, Francisco, Uma jornada ao Alentejo e ao Algarve…,1984, pp.119-125 38 António de Arenilha e Castro Marim e em ambiente de grande festa, facto que evidencia a cumplicidade entre comunidades. A jusante do rio e para a zona envolvente a Alcoutim, os relatos do séc. XVI referem a importância comercial da vila do Aleo, que usufruindo do regime de taxas liberalizado conferido aos almocreves para o transporte de produtos por terra (o que não acontecia por via fluvial), se deslocavam de aldeias afastadas do rio como Giões e Martilongo, para comerciar com os mercadores que se radicaram em Alcoutim e que não pretendiam pagar impostos sobre a fruta em Tavira. Ainda que limitados nas quantidades pelas particularidades associadas ao transporte terrestre, os almocreves do concelho do nordeste algarvio traziam azeite, pescado e sal desde Tavira e levavam os cereais, o grão e a cera que era consumida na cidade do Gilão. Nesta lógica, pela preferência dos almocreves no transporte do trigo, Alcoutim era conhecido pelo celeiro de Tavira, o que deixa perceber o volume de trigo levado ao litoral por estes. Esta rede de almocreves seria usada de forma a trazer bens que eram contrabandeados na outra margem do Guadiana, bem como produtos vindos de terras espanholas e que seriam levados a outras paragens do Algarve e do país, distantes do Guadiana. Na Corografia do Reino do Algarve de Frei João de São José, a região a norte de Alcoutim é destacada, através dos relatos do volumoso comércio clandestino de gados para Castela e ao comércio de escravos38. É de referir que, desde a Idade Média, a região nordestina do Algarve e as duras condições de isolamento da mesma, forçariam a uma necessidade politica por parte do poder central, de procurar nas regiões fronteiriças a todo o custo a fixação populacional. 38 ASCENÇÃO NUNES, António Miguel, Alcoutim-Capital do Nordeste Algarvio (Subsídios para uma Monografia) ,1985, p.101. 39 Assim, o estabelecimento dos coutos de homiziados à semelhança de Castro Marim e Mértola, a região de Alcoutim -entre Foupana e Vascão- obedece, pois, não só à necessidade de controlo fronteiriço mas está ainda, intrinsecamente, ligada ao contrabando e às dinâmicas criadas a partir deste fenómeno, justificada até pelos condicionalismos existentes para os homiziados e à sua natureza enquanto párias, condenados pelos crimes cometidos, como tal propensos à prática de delitos e à necessidade de vencer as dificuldades objectivas resultantes da fixação em terras tão hostis e de conflitualidade tão acesa e ainda da procura de alternativas ao parco rendimento agrícola das terras a eles atribuídas39. Assim, o contrabando dava-se em ambos os sentidos da fronteira, ainda que encontrando politicas repressivas que iam desde um pesado carácter pecuniário até casos extremos que podiam levar à morte, executados pela estrutura dos referidos elementos do bando e responsáveis do Tesouro Real, que eram quase idênticos nas atribuições e acção, em ambos lados da fronteira. No entanto, a dinâmica de comércio legal ou de contrabando na fronteira foi prolífica durante todo o séc. XVI e atendendo também ao facto do nosso país se afirmar como pioneiro do comércio ultramarino. Esta lógica será invertida somente em 1559, já com a nova proposta administrativa no reinado de Felipe II de Espanha (que viria em 1580, a tornar-se rei de Portugal com o nome de Felipe I) e do mandato conferido a dois funcionários da coroa espanhola – Hernando de Villafaña e Luis de Polanco- para a organização aduaneira ao longo da fronteira com Portugal. O documento elaborado previa a criação das aduanas fronteiriças entre a Andaluzia e o Algarve e situadas em Ayamonte, El Granado, Lepe, La Redondela e Sanlúcar de Guadiana. Do mesmo modo, mais a norte e na fronteira da 39 MEDINA GARCIA, Eusébio; “Perfiles Estructurales de la Frontera Hispano-Lusa (La Raya)” in Questões Sociais Contemporâneas -Actas das VIII Jornadas do Departamento de Sociologia da Universidade de Évora, 2006, pp.143-144. 40 região da Sierra de Huelva com o Alentejo, situavam-se Aroche, Paymogo e Encinasola40. Com a anexação de Portugal, a partir de 1580, foram logicamente suprimidas as referidas aduanas, vindo a ser retomadas em 1592 e obedecendo a uma lógica do intenso fluxo comercial da entrada de produtos que Portugal introduzia em território espanhol e da pressão para restrições a estes, feita ao monarca pelas oligarquias comerciais espanholas41. Assim, os produtos passados na fronteira e especificamente nestas aduanas, patentes nos registos da Memoria de las Mercaderias, documento do séc. XVI que faz a relação dos produtos provenientes de Portugal em terras castelhanas, onde se faz alarde da excelente qualidade dos mesmos e da abundância de todo o tipo de especiarias; doçarias e marmeladas, conservas; açúcar proveniente da Madeira, Brasil e Cabo Verde; algodão em rama ou já fiado; tapeçarias; colchas e sedas da India; cofres em nácar; pedras preciosas; colheres de nácar e marfim; porcelanas; ébano; lenços, cintas, rendilhados e tecidos de cambraia e damasco42. A retoma das aduanas e a política tributária foi definida pelo Arancel del Reyno de España de 1597, documento que se manteria em vigor até à restauração da independência portuguesa em 1640, que seria causador de profunda revolta entre as comunidades raianas, bem como um dos factores que causaria desequilíbrio determinante para a animosidade que conduziria à separação definitiva dos dois países. Medina Garcia (2001), inclusive, chega mais longe nesta ideia ao afirmar que “La Monarquía española volvió a ejercer de acuerdo con su particular naturaleza, en contra de los intereses comunes y pensando exclusivamente en su propio beneficio. A 40 MELÓN JIMENEZ, Miguel Ángel , “Contrabando y negócios en el limite de dos imperios” in Revista Andaluzia en la Historia, nº 27,2010, p.12 41 MEDINA GARCIA, Eusebio , “Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y Cambio Social”; Madrid, 2001, p.93. 42 MELÓN JIMENEZ, op.cit., p.13. 41 nuestro parecer, en este momento y tras estas importantes decisiones se perdió la mayor oportunidad para alcanzar la unidad efectiva de la península ibérica; a la vez que se condenaba al ostracismo y la separación a las poblaciones y territorios rayanos”.43 O documento estabelecia regras para um extraordinário volume de produtos transaccionados, enquadrando a enorme fonte de receita que o regime tributário sobre produtos provenientes do nosso país representava para a coroa espanhola. Neste período, compreendido entre a restauração da independência de Portugal, em 1640, e os vinte e oito anos em que durará a Guerra da Independência até 1668, paradoxalmente à instauração do “Muro Ibérico” – que ficará definido com o Tratado de Lisboa, nesse ano – ainda que se procure tornar hermética a fronteira, aos contactos de populações e comerciais entre países, quer por via da construção dos ditos sistemas fortificados seiscentistas –dos quais o Forte de São Sebastião em Castro Marim44 é exemplo na região do Baixo Guadiana- e de um redobrado incremento de guarnições ao longo da fronteira, a prática do contrabando teve igualmente um forte impulso, contrariando a vigência de hostilidades entre os dois países e da expressa proibição de qualquer actividade comercial entre gentes dos dois países, por parte das autoridades. Esta lógica, de ao aumento da repressão equivaler o aumento da actividade de contrabando, será uma constante nas dinâmicas de relações entre gentes raianas de ambos países, que se prolongará desde finais da Idade Média até à contemporaneidade, não obstante a acérrima querela entre os poderes centrais de Lisboa e Madrid, os habitantes da raia continuariam, como habitualmente, a ultrapassar os traumas e 43 MEDINA GARCIA, Eusebio , “Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y Cambio Social”; Madrid, 2001, p.94. 44 ARRUDA, Ana Margarida e PEREIRA, Carlos - “.XX - As ocupações antigas e modernas do Forte de São Sebastião, Castro Marim” in XELB 8 – Actas do 5º Encontro de Arqueologia do Algarve. Vol I; Silves, Out. 2007, pp. 394-396 42 animosidades resultantes dos confrontos e das campanhas militares determinadas pelo poder central dos países, por via da continuidade da ancestral relação comercial e pessoal, entre habitantes raianos do lado de cá e de lá da fronteira. Por oposição ao endurecimento das restrições impostas pelo poder em ambos países e determinadas pela guerra, que vigoraram inclusive após a paz firmada em 1668, o contrabando surge como solução funcional e única forma viável de permitir a continuidade de uma actividade comercial contraventora, com a qual se suprem as necessidades objectivas das populações raianas de ambos países. Se, por exemplo, o comércio do trigo que servia de base alimentar a exércitos e populações, estava com toda a naturalidade proibido, o mesmo era um dos produtos mais valorizados e alvo de contrabando para Portugal, sempre numa lógica de lucro das oligarquias locais, do clero e paradoxalmente até dos próprios soldados e chefias militares presentes na fronteira45. Outras das contradições resultantes associadas à dinâmica do contrabando nos tempos conturbados da Guerra da Restauração da Independência, até ao último quartel do séc. XVII, prende-se com a acção da soldadesca e das suas chefias, em ambos países, que representando por inteiro as figuras que executam as determinantes de carácter politico e militar ao serviço dos seus países e contra “o inimigo do outro lado da fronteira”, eram em simultâneo grandemente participativos, na prática do contrabando entre países. O étimo da palavra mochileiro, associada mais tarde nos sécs. XIX e XX, ao contrabandista individual, portando a sacola às costas, nasce da associação feita pelas 45 Medina Garcia(2001) na sua tese, referencia um documento do Arquivo Histórico de Simancas datado de 1641, onde explicita para na região fronteiriça de Badajoz que “Hacia 1.640, ya en plena guerra, las relaciones comerciales en la frontera eran cuantiosas; y en 1.641 florecía especialmente el contrabando de trigo hacia Portugal. En la ciudad de Badajoz, dicho comercio lícito e ilícito estaba dominado por las oligarquías locales y por una parte del clero” 43 populações raianas à acção dos soldados neste período, que contrabandeavam as mercadorias, passadas dentro das suas sacolas (mochilas) de campanha. Se o contrabando se irá manter como actividade intrinsecamente ligada às populações raianas até quase ao último quartel do séc. XX, a entrada no séc. XVIII irá alterar substancialmente o paradigma da forma como o poder central dos estados se focará do ponto de vista regulamentar e da criação de disposições jurídico-legais visando a repressão do mesmo, justificada pela dimensão da fuga fiscal que o mesmo representava. Numa lógica de desagregação do Antigo Regime e da vigência de um feudalismo anacrónico nas nações ibéricas, determinado por um poder real absoluto que armou a sua extensão de poder na concessão sem reservas de terras e do que nelas era produzido, aos grandes senhores da nobreza (em detrimento da realidade e figuras jurídicoadministrativa dos tempos dos forais) abrir-se-á com o surgimento do novo paradigma governativo e de mentalidades do séc. XVIII e da faceta da governação associada a uma ampliação de conhecimentos e saberes, que se reflecte num poder central que em ambos países, procurará determinar a dimensão da realidade económica e social existente, numa lógica do fortalecimento do perspectiva dos Estados Nações por oposição ao acima mencionado sistema de clientelas do Estado, no Antigo Regime. Um das perspectivas centrais do novo poder da razão e das luzes, encontra-se centrado na reforma fiscal do Estado, que se alicerçará num imprescindível combate à fraude e, como não, ao contrabando. Pretende-se com esta dimensão politica, uniformizar 44 critérios na política aduaneira, nas disposições regulamentares e jurídicas da actividade comercial e dar à Coroa, o controlo e gestão directa do sistema fiscal46. Em Espanha, nesse sentido, são a partir de 1720 e até 1780, conduzidos os Estados Generales de las Rentas47, conduzidos por funcionários administrativos da coroa e por administradores de las rentas, onde serão feitos os levantamentos do volume comercial do contrabando. Relatórios extensos sobre as dinâmicas económicas das regiões da Extremadura e Andaluzia serão produzidos destacando-se, em 1747, o Informe de Esteban Pérez Delgado48, visitando este funcionário todas as alfandegas espanholas nas referidas regiões, tendo discriminando extensivamente, a tipologia de fraudes que se verificavam e que eram, em geral, praticadas pelos funcionários alfandegários que não registavam na maior parte das ocasiões os manifesto de carga, omitindo valores transaccionados ou dando indicação de quantidades claramente menores. Em 1751, o Catastro (Cadastro) del Marqués de Ensenada49 surgirá como primeira ferramenta avançada no sentido de unificar a política de tributação, de forma a organizar um sistema vigente totalmente desagregado e desigual, estando subdividido por diversos funcionários que açabarcavam o controlo e execução legal para cada tipo de mercadoria. Por exemplo, existiam Rentas do Tabaco ou da Pólvora. 46 MEDINA GARCIA, Eusebio , Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y Cambio Social; Tese de Doutoramento; Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Ciencia Politicas y Sociologia, Madrid, 2001, p.99-100 47 MEDINA GARCIA, Eusebio , Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y Cambio Social; Tese de Doutoramento; Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Ciencia Politicas y Sociologiap.100 48 Idem, ibidem, p.101 49 in Archivo Histórico Provincial de Cáceres. Catastro del Marqués de la Ensenada. Formato online disponível e consultado a 15 de Maio de 2013, em: http://pares.mcu.es/Catastro/servlets/ImageServlet 45 Em 1759, será, então, pela primeira vez feito um levantamento exaustivo sobre a problemática do contrabando, indicando a relevante dimensão de desequilíbrio de balança comercial entre países. Fernando Costas Castillo, funcionário aragonês da Coroa espanhola e responsável pelo levantamento das Rentas na Extremadura e norte da Província de Huelva, discrimina de forma detalhada a natureza dos bens transaccionados e estabelece os valores estimativos do peso do contrabando, do ponto de vista de importante factor de evasão fiscal. Assim, neste relatório50, são indicados como principais bens provenientes de Portugal, os panos, o tabaco de fumo do Brasil, pedras preciosas como o topázio e a ametista, açúcar, plantas usadas em fármacia, lenços, atoalhados, tapetes, cordovão, artefactos de cobre, braseiros, círios e outras ceras, candeias, ferramentas diversas, esteiras, palha, vergame e vimes, barros e cântaras, tinalhas, vinho, etc., indicando que “todos estos géneros, “...vienen de Portugal”. Relativamente às mercadorias de contrabando que saiam para Portugal, o cálculo aproximativo indica que só da fronteira da Extremadura saiam anualmente, de forma ilícita, mais de 3.000 cabeças de gado bovino, 5.000 porcos vivos, 400 cavalos, 30.000 arrobas de grão e mais de 20.000 libras de seda em rama. Valores estimativos calculados, ilustravam que o valor tributário da entrada de produtos provenientes do nosso país em Espanha, ascendiam aos vinte milhões de maravedis, com o ciclo inverso de entrada de produtos espanhóis em Portugal, reflectindo uma acentuada discrepância e ficando muito aquém, saldando-se apenas nos quatro milhões de maravedis51. 50 MEDINA GARCIA, idem, ibidem p.102 MELÓN JIMENEZ, Miguel Ángel (2010), “Contrabando y negócios en el limite de dos imperios” in Revista Andaluzia en la Historia, nº 27, p.14 51 46 No nosso país, em concreto na região do Baixo Guadiana, o período compreendido entre o fim do séc. XVII e o início do séc. XVIII, estabelece uma notória tentativa de controlo alfandegário de um dos mais valiosos recursos da região e que assentava na pesca da sardinha e a sua venda, fresca, fumada ou salgada. Depreende-se, pelo confronto de fontes e autores, por exemplo, de Constantino Botelho de Lacerda e da sua Memoria da Decadencia da Pescaria de Monte Gordo ou do mencionado Regimento de Santo António de Arenilha de Diogo Fernandes das Povoas de 1547, e do contraste de visões, onde o primeiro autor enfatiza o nulo desenvolvimento da pesca da sardinha em Monte Gordo, por oposição ao segundo, que no seu relato destaca a pesca sazonal do referido pescado, como principal valência económica da área da foz do Guadiana. Não obstante, a leitura diversa dos autores, a evidência é que outros factores, acabariam por seriam determinantes para que a pesca da sardinha, ainda que realizada com maior ou menor frequência ou intensidade, se traduzia num produto com especial apetência para ser comercializada em terras de Espanha e por inerência, contrabandeada. Em 1620, o Regimento que data desse ano, indica a obrigatoriedade de pelo menos 40% da sardinha pescada nos mares de Monte Gordo e Cacela, que maioritariamente era vendida em Ayamonte, passasse a ser transportada para Tavira, de modo a prevenir a fuga ao fisco52. O contrabando imperou, não obstante existir, desde 1577, um registo de portagem em Monte Gordo53 e do férreo dispositivo legal que impunha aos infractores penas como a destruição de embarcações, artes de pesca e degredo para Castro Marim.54 Pese aos factores acima enumerados e para justificar a apetência pelo contrabando de pescado para Espanha, Frei João de São José faz referência, na Corografia do Reino do 52 ROMERO MAGALHÃES, Joaquim ; O Algarve Económico – 1600-1773; Lisboa, 1988, pp-205-206. CAVACO, Carminda; O Algarve Oriental- As Vilas, o Campo e o Mar- Volume 1; ed. Gabinete do Planeamento da Região Algarve, 1976, pp. 40-61. 54 Idem, ibidem p. 40. 53 47 Algarve, ao enorme volume da faina do pescado nestas águas e ao facto de ser consumido no país vizinho, “por estar vizinha e nela (Castela) sempre valer mais”.55 As condições de tributação impostas, aliadas aos constantes ataques da pirataria magrebina e os raides à costa algarvia de ingleses, franceses e holandeses, determinariam, pois, que durante todo o séc. XVII, a pesca da sardinha e o respectivo produto da faina, se transformasse de sector produtivo e recurso de grande relevo, para uma actividade esparsa, perigosa e dada ao contrabando, pelo progressivo abandono e pela própria escassez de recurso que se veio a registar. Já no início do séc. XVIII, relata Botelho de Lacerda que a actividade da pesca da sardinha foi retomada e volvidas quatro décadas a importância desta, levada a cabo por uma vaga de novos residentes de Monte Gordo, pescadores provenientes da Catalunha, chegando em 1774 a serem documentados trezentos habitantes a tempo inteiro e uma população flutuante durante a época de safra de Agosto a Dezembro, de mais de cinco mil pessoas56 e tendo sido inclusive estabelecida uma feira local por Provisão Régia, em 1760. O factor resultante da maioria destes pescadores residentes e sazonais não serem portugueses e dos lucros da sardinha vendida e descarregada em Ayamonte e noutros portos da Andaluzia, ficarem em mãos de armadores catalães e da enorme dispersão da arrecadação tributária devida à coroa portuguesa, determinou em grande medida a imperativa necessidade da fundação de Vila Real de Santo António. 55 JOÃO DE SÃO JOSÉ, Frei (1577) «Corografia do Reino do Algarve» ed. GUERREIRO, Manuel Viegas, “Duas Descrições do Algarve do séc. XVI” in Cadernos da Revista de Histórica Económica e Social, Liv IV, cap.2º, 1984, p. 54. 56 “Memoria sobre a decadência da Pescaria…”, in B.N.L, Memorias Económicas da Academia Documento publicado por Hugo CAVACO, Pelas praias de Arenilha…, 2007, em Apêndice Documental (doc.II), p. 154. 48 Assim, com a intervenção do poder central da coroa e do plenipotenciário ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, Vila Real de Santo António, à semelhança da sua “predecessora” Santo António de Arenilha, surge como proposta arrojada, para inverter o ciclo de enriquecimento de estrangeiros construído a partir de recursos nacionais, para travar a evasão fiscal e, logicamente, limitar o contrabando. Exemplo maior do foco da politica pombalina em matéria de limitação ao contrabando, é o Alvará de 14 de Novembro de 1757, onde se aponta o contrabando e os contrabandistas “como inimigos comuns do Erario Real, da Patria e do bem Publico della57”. A análise às condições de Portugal no período pós-sismo de 1755, contempla a existência de um paradigma de ruptura, ao qual se associa um país estruturalmente arrasado e com uma avultada perda de capital humano; com condições económicas agudizadas pelo exaurir dos cofres do Reino, com a assinalável redução de receitas do ouro proveniente do Brasil e uma extrema dependência em relação ao comércio de produtos coloniais, bem como de uma enraizada incapacidade de produzir o que se necessita, recorrendo-se a importações. A necessidade de inversão do panorama existente, incidirá no Algarve e na costa sotaventina e, concretamente, na adjacente à foz do Guadiana de forma destacada, determinado pela dinamização do sector produtivo como gerador de riqueza para o país, como elemento de imprescindível fomento do bem-estar da comunidade e de valia inegável para as finanças do Reino. Com o início da construção de Vila Real de Santo António e, em 1773, com o Alvará de 13 de Janeiro, surge ainda como ponto fulcral da estratégia económica a que a vila 57 SERRÃO, Joaquim Verissimo, História de Portugal - vol.VI, 1978,p.223 49 pombalina estaria associada, a Companhia Geral das Pescarias Reais do Algarve. Com ela procura-se-ia a monopolização e exclusividade da actividade piscatória no Algarve e a subordinação dos pescadores e da captura e venda do pescado ao aparelho administrativo estatal. Como reacção a esta medida, a coroa espanhola agravaria a taxação do pescado salgado proveniente do Algarve, tornando incomportável, de forma legal, a sua exportação para o país vizinho. Além do proteccionismo que se gerou imediatamente a seguir, com a suspensão imediata da importação de pescado fresco no norte do país, proveniente da Galiza ou de entrada de sardinha no Algarve vinda do país vizinho, isentou-se ainda, o pagamento de impostos pela circulação interna de pescado salgado no nosso país, de forma a fomentar o consumo interno do peixe algarvio. Naturalmente, apesar do proteccionismo e da substancial alteração de regras fiscais e de politica económica no nosso país, e da reacção espanhola, é de referir que a constante do contrabando se verifica de acordo com o mecanismo que ao longo da exposição desta monografia se repete e que é o de a um endurecimento da repressão e imposições politicas legais, corresponde também a prática transgressora e ilegal do contrabando, como forma dos pescadores tornearem a pobreza em que viviam e, que se prendia com o uso das ditas artes novas ou de arrasto – caso da arte xávega ou levada58-, que, pelo seu elevado custo e escassez, não eram na maioria das vezes propriedade dos mesmos, o que implicava que grande parte do produto de sua faina servisse para cobrir gastos de uso59. Assim, o obscuro circuito do contrabando do peixe de salga, levado nas embarcações 58 Arte xávega ou levada é uma arte tradicional de cerco em que uma rede é segura numa das extremidade no areal da praia e conduzida em cerco por uma embarcação, sendo a outra ponta trazida então de volta à terra, onde por meio de força braçal ou animal se puxa para a terra. 59 Esta ideia é desenvolvida em consulta ao site a 7 de Fevereiro de 2013, e ao artigo “A decadência das pescarias portuguesas e o constrangimento fiscal : entre a ilustração e o liberalismo” de Inês Amorim; FLUP, 2004 em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4959.pdf e ligada à enumeração das causas da decadência das pescas no mar de Monte Gordo na obra de Botelho de Lacerda. 50 que fainavam peixe fresco em costas do Golfo de Cádiz e, esquivando a presença musculada da armada espanhola no mar e dos funcionários da coroa em portos, como Barbate, San Juan, Ayamonte ou Isla Cristina, dava-se sendo fonte de fundamental rendimento para a subsistência dos humildes pescadores. Em 1782, a proibição imposta pelo monarca espanhol Carlos III, tanto de peixe salgado como peixe fresco proveniente do nosso país, significaria um rude golpe e contribuiria fortemente para o insucesso da proposta de inovação económica que representava Vila Real de Santo António. Outros factores como a sobrepesca, anos com condições climatéricas muito severas (excesso de chuvas) e, essencialmente, a já referida incapacidade dos pescadores poderem sustentar as artes usadas na sua actividade, a juntar, a depauperação de capitais por parte de administradores da Companhia de Pescas, determinaram o insucesso da iniciativa. Não obstante o fracasso da proposta inicial do ponto de vista de pólo de indústria conserveira, a dinâmica legal pós-Pombal de incentivo às pescas fomentou grandemente a pesca na região60 a despeito de, que a costumeira pirataria magrebina representasse um significativo handicap a uma maior prolificidade na actividade. A primeira metade do séc. XIX irá assistir à multiplicação de xávegas 61 nas costas entre Vila Real de Santo António e Cacela, passando de nove, nos tempos pombalinos, a mais de duas dezenas nos anos 40 deste século. A posição estratégica do Porto de Vila Real de Santo António na foz do Guadiana permitia, pela profundidade existente, a entrada de navios de grande calado e o porto servia de entrada de pescado e de escoamento do mesmo para Espanha 60 Após Pombal, várias medidas foram tomadas no sentido de estimular a pesca e o comércio de peixe, nomeadamente o alvará de D. Maria I datado de 18 de Junho de 1787, no qual todo o atum salgado foi isento de direitos por um período de dez anos. Esta isenção prolongou-se através de um decreto de 30 de Março de 1797 e alvarás de 1805 e 1825. Outra lei favorável foi o alvará de 3 de Maio de 1802, que concedeu liberdade de pesca no alto mar e no litoral, livre de direitos 61 “as xávegas que se revelaram mais lucrativas, pois os fundos baixos e arenosos que caracterizam o mar entre Cacela e a foz do Guadiana oferecem condições naturais propícias à execução deste tipo de arte”. Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental…, vol. 2, 1976, pp. 224-225 e 228-229 51 e para as vizinhas Ayamonte e Isla Cristina, onde as fábricas de conserva de salga de sardinha proliferaram no primeiro quartel do séc. XIX. Refira-se que o porto de Vila Real de Santo António, serviu ainda de entreposto para contrabando levado a paragens mais distantes, muito justificado pela presença de navios de grande calado, que faziam ligação a muitos dos portos do Golfo de Cádiz, de Marrocos e, inclusive, adentrando-se pelo Mediterrâneo. O primeiro quartel do séc. XIX na região do Baixo Guadiana, seria também marcado como um período em que o contrabando assumiu proporções nunca antes registadas na História, com a problemática resultante do proteccionismo cerealífero, que viria a moldar-se desde o dealbar do século com a revolução liberal e os tempos do “vintismo”. A introdução de politicas proteccionistas, logo a partir de finais do séc. XVIII, a proibição das importações cerealíferas provenientes do exterior, oficializada em Março de 1820, traduziu-se num incremento astronómico de preços no biénio seguinte, essencialmente justificado pelas insuficiências da produção nacional, dos interesses do lobby da concentração da produção e da lavoura e as condicionantes resultantes das dificuldades estruturais nas redes de distribuição. Assim, o Baixo Guadiana representou uma área geográfica que reflectiu o confronto entre a necessidade de sobrevivência das comunidades que se apoiaram no contrabando, como forma de suprir carências básicas, fazendo recurso à ancestral lógica comercial consuetudinária, tendo neste período um acrescido significado pela natureza do produto essencial à base alimentar; e por oposição às limitações impostas por distantes interesses, que através do poder central e dos lobbies da lavoura nacional, sofriam avultadas perdas pelo contrabando massivo, e que se traduzia de modo mais amplo, até na própria dinâmica produtiva do nosso país. Será interessante, de forma mais 52 aprofundada, destacar esta dinâmica, onde o contrabando é solução a uma escala e, problema numa outra, e como esta “guerra” entre a sobrevivência de população e os interesses mais vastos do país e do sector produtivo do mesmo, caminham num equilíbrio precário. A região representava o principal ponto de entrada de contrabando de cereal em grão ou farinha no Algarve proveniente de Espanha e de um novo elemento aportado, o da valorização do pão, enquanto bem de consumo essencial, sujeito também à restrição de importação e, nessa lógica, muito apetecível de ser contrabandeado. O trigo consumido na região do Baixo Guadiana e, essencialmente em Vila Real de Santo António, era proveniente de Espanha62, assim com o endurecimento das políticas alfandegárias e com as restrições impostas, as necessidades tiveram que ser supridas pelo abastecimento a partir de Mértola e Castro Marim, bem como recorrer à moagem de cereal nos moinhos próximos. O transporte de cereal recorrendo a animais e a pequenas embarcações através do Guadiana, agravou os preços de 500 réis para 640 réis63, o que determinou uma enorme vaga de contrabando. Pese às tomadias (apreensões)64 de cereal e a forte limitação exercida pelas autoridades, as necessidades objectivas e o ancestral referencial de trocas entre povos raianos imperou e o contrabando supriu por inteiro a demanda, evitando a fome. 62 O trigo nacional produzido na região apenas permitia cobrir um terço das necessidades de consumo, sendo o restante proveniente de Espanha e de Ayamonte, onde funcionavam também moinhos, que faziam por vezes moagem do grão produzido em Portugal, em tempos anteriores ao Proteccionismo Liberal. 63 FERREIRA, Jaime, “Proteccionismo Cerealifero 1821-1822” in Análise Social, vol. xxvi (112-113), 1991 (3.°-4.°), p. 489-511 , cit. Doc. Mappa Demonstrativo do Trigo, Milho e Cevada Manifestados Nesta Alfândega e Consumido Nesta Villa Real de Santo António, Importado por Porto Seco e Molhado, no Ano de 1821, ANTT, MR, Mç. 577. 64 Exemplo de tomadia (apreensões) expresso em documentos como por exemplo este de 1828 que é um: ”Decreto mandando apreender, como contrabando, os cereais estrangeiros que forem introduzidos no reino sem legitimas licenças, dividindo-se a tomadia em duas partes iguais, uma para quem fizer a apreensão e outra para os Hospitais da comarca e na falta deles para o Hospital de São José. De 18 de Abril de 1828” - ANTT PT/TT/HSJ/A-D- /005/0275/00094 53 Nas regiões a montante da foz do Guadiana, era por demais evidente que o contrabando de cereal se fazia numa escala quase institucionalizada, em quantidades de monta e sendo fonte de avultados lucros das classes abastadas locais. Como exemplo, fontes documentais revelam que «próximo à raia de Espanha, no sentido de Santa Ana de Combas (Santana de Cambas), há depósitos de trigo e que da parte de cá há comissários de Negociantes, que muitas vezes iludem a tropa, servindo-lhes de desculpa os moinhos de Chança. Que as malhadas da Serra de Serpa são os depósitos dos Contrabandistas e os Ganadeiros os próprios vigias da sua introdução»65. São referidos, ainda, exemplos da impunidade dos monopolistas e traficantes de Mértola, que em ligação com traficantes espanhóis, faziam seguir os seus cereais para o Terreiro do Trigo de Lisboa e o contrabando chegava, inclusive, a contar com a colaboração de altas esferas institucionais patentes nas referências às enormes quantidades de cereal enviadas para Mértola, com guias, passadas pelos juízes de diversas localidades no entorno, atestando o contrabando como sendo de produção nacional. Depois, na lógica da convulsão politica que o país atravessou durante a primeira metade do séc. XIX em que se mantiveram as políticas proteccionistas, com as necessidades surgidas em consequência da Guerra Civil portuguesa e da elevada quantidade de cereal e viveres disponibilizada ao exército miguelista, tudo isto aliado a um atraso endémico da lavoura algarvia, justificada sempre pela pobreza de terrenos e pela falta de conhecimentos e ferramentas que permitissem rentabilizar a agricultura, a somar a factores climatéricos imprevisíveis que determinaram calamitosos anos agrícolas, com fortes chuvadas alternadas por uma inclemente seca, até factores extraordinários como 65 FERREIRA, Jaime –“ Proteccionismo e contrabando cerealífero 1821-22” in Análise Social, vol. XXVI (112-113), 1991 (3.°-4.°), pp. 489-511 - Ct. Doc. ANTT - Ofício n. ° 166 do Marechal de Campo Encarregado do Governo de Armas da Província do Alentejo, de 19 de Abril de 1822. 54 uma praga de gafanhotos que arrasaram e contaminaram os campos ao longo de todo o Baixo Guadiana entre Mértola e Vila Real, redundaram no contrabando como elemento essencial de sobrevivência e generalizado a larga escala, entre as comunidades raianas do Baixo Guadiana. A situação foi, de tal modo, crítica que os habitantes dos concelhos de Alcoutim e de Castro Marim, tiveram que ser compelidos a uma gigantesca campanha de arroteamento, os porcos existentes usados em larga escala para comerem as plantas contaminadas com ovos dos gafanhotos e que qualquer intervenção de guardas de fronteira no intuito de travar o contrabando, eram susceptíveis de provocar linchamentos por parte das populações66. Deve ser destacado que, na primeira metade do séc. XIX, na fronteira do Baixo Guadiana e facto que se pode constatar através da leitura de algumas fontes historiográficas 67, seria um período onde recorrentemente se repetiria o principal factor que paralisou, de facto, o comércio oficial entre países, atingindo igualmente o contrabando e representando um momento particular e, que extrapola o que havíamos referenciado, onde nem as guerras nem a agudização de determinismos políticos impostos pelos poderes centrais, seriam impeditivos da ocorrência da actividade comercial e de contacto entre populações. Logo no início do século, em 1804-1805, o surgimento e proliferação da peste em portos situados na Andaluzia e, que mantinham uma prolífica relação com os portos e região do Guadiana, casos de Gibraltar ou Cádiz, foi determinante para a imposição no Algarve do primeiro cordão sanitário nesse século. O surgimento de mortíferas epidemias de cólera, em concreto a de 1833 e a de 1855, representam momentos em que o comércio legal cessava por completo entre as regiões 66 VILHENA MESQUITA, José Carlos; “A economia agrária do Algarve, na transição do Antigo Regime para o Liberalismo” (1790-1836) in Revista Estudos, Fac. Economia da Universidade do Algarve, pp.174-177 67 SERRÃO, Joaquim Veríssimo; História de Portugal- vol. V, 1978, pp.418-419 55 divididas pelo rio e, por força desses cordões sanitários, o contrabando também tendo as condições propícias para o seu incremento determinadas pela procura de bens, esbarrava no pânico social e medo de contágio da doença68. Do ponto de vista legal, e após as precedentes adaptações pombalinas do séc. XVIII às sanções diversas, que vinham de tempos das Ordenações Filipinas, e das penalizações, patentes nas competências dos Juízes dos Feitos do Rei da Fazenda (Livro 1, tít. LX)69 e, sem contudo tipificar ou enquadrar a infracção do contrabando (excepção feita ao ouro do Brasil e às severas punições aos infractores defraudadores da Coroa) , a viragem da primeira metade do século, em concreto, a partir de 1852, representou com a introdução do artº. 279 do Código Penal a tipificação do contrabando enquanto crime comum70, o que alterou substancialmente o enquadramento legal de uma actividade que sendo fortemente limitada ao longo de séculos, nunca havia sido devidamente enquadrada por disposições jurídico-legais. Com a normalização da situação política do país, a partir da segunda metade do séc. XIX, a região irá assistir a um novo momento que irá ter reflexos profundos no contexto económico e social e, que será o início do Ciclo do Minério, primeiro em 1858, no 68 A titulo de curiosidade, a cólera cujo agente infeccioso se encontra em geral nas águas contaminadas por via fecal e que se fixa também em produtos hortícolas regados por esta água, era indicada como doença contraída “por culpa própria” das populações carenciadas, sendo aludida esta rocambolesca tese, na edição d´O Seculo de 14 de Agosto de 1855 da seguinte forma: “ Estamos no período que mais é para recear, estamos no tempo dos pepinos, das ameixas, das frutas mal sazonadas, que os nossos camponeses, não por fome, mas por vício e repreensível abuso não deixam de comer", deixando esta “curiosa” propaganda de referir e até porque o desenvolvimento da ciência médica e do estudo dos mecanismos de propagação e factores de contágio de uma doença, como a cólera morbo, se encontrava ainda num estádio inicial se comparado aos dias de hoje, que a combinação do período estival, de contaminação de aquíferos e reservatórios com água destinada a consumo directo humano e animal, a rega com esta, entre outros riscos era um “passaporte” garantido para o contrair da doença, que com a desidratação das “gentes” que trabalhavam nos campos, a fulminante disenteria e a ausência de profilaxia para as febres, era garantia quase absoluta de morte dos infectados. Deve ainda referir-se que o Algarve sofreu um último surto da doença já em plenos anos 80 do séc.XX. 69 Apud. ALMEIDA, Cândido Mendes de.; Código Philipino, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. (fac símile) Fund. Calouste Gulbenkian, , 1985, p. 1315 70 FERREIRA, Carlos Manuel, O Crime Aduaneiro de Contrabando de Circulação - Dissertação de PósGraduação em Direito Penal Económico, 2008, p.6 56 nosso país e na Mina de São Domingos, no concelho de Mértola e em Espanha, nas Minas de Tharsis, La Zarza, Herrerias e La Laja, numa primeira instância e, mais tardiamente, na viragem para o último quartel do século, em 1873, a que viria a ser a maior exploração mineira do sul peninsular, as Minas de Riotinto. A dimensão destas explorações é tão destacada que, em 1892 e segundo o número da Revista Minera desse ano, cerca de 15 % do total de cobre produzido no mundo será desta área do Baixo Guadiana e adjacente a Sierra de Huelva (onde se localizam as minas espanholas), sendo distribuído da seguinte forma: número um mundial, Rio Tinto representando 10,9% da produção mundial com trinta e duas mil toneladas, Tharsis em oitavo com 3,6% e dez mil toneladas e a S. Domingos o décimo sétimo com 1,4% com quatro mil cento e cinquenta toneladas. Num primeiro momento, toda a infraestrutura para a mineração de três matérias essenciais à grande indústria metalúrgica de então, caso das Pirites, da sua posterior transformação em cobre e da extracção de compostos sulfurosos como o Sulfureto de Ferro para uso como superfosfatos, foi levantada pela Mason & Barry no eixo da Mina de São Domingos com o Pomarão (com o minério a ser transportado por terra, num primeiro momento, usando animais e depois, com a construção de uma via férrea com ligação ao Pomarão, que representava o limite navegável para navios de grande calado, o que permitiria escoar o minério). Assim com o inicio da actividade extractiva em Tharsis e das ligações ferroviárias e portuárias da Compañia Española de Minas de Tharsis e a posteriori da Riotinto Company Limited na exploração das Minas de Riotinto e da ligação, quer à capital provincial Huelva, como ao porto fluvial do Guadiana em Puerto de la Laja, requeria uma considerável demanda de mão-de-obra para a extracção e tratamento, transporte ferroviário, portos fluviais, habitação de 57 trabalhadores e de cargos técnicos e construção de estruturas de suporte às necessidades destes polos mineiros. Esta demanda traduzir-se-ia num considerável incremento da população71 residente na região, que se compunha em Portugal essencialmente de inúmeros trabalhadores provenientes de localidades na envolvente à Mina de São Domingos, que trocaram a actividade agrícola de parca rentabilidade pela pobreza de terrenos, e outros provenientes um pouco de todo o Alentejo e ainda do interior do Baixo Guadiana e da serra algarvia, nomeadamente dos concelhos de Castro Marim e Alcoutim72. Se, num primeiro momento, o início dos trabalhos na mina e sobretudo na construção do Tram-way entre a Mina de São Domingos e o Pomarão, se traduziu num aumento de postos de trabalho, com a sua conclusão, associada ainda a um momento de crise profunda no sector mineiro, em 1864, o desemprego fez-se sentir de forma muito vincada73, atirando estes trabalhadores para um paradigma de existência muito precário. Procurando esquivar a terrível situação em que se encontravam e, adiando a espera de melhores dias, fosse pela propalada construção da estrada nova entre Beja e Vila Real de Santo António, o fluxo de trabalhadores desempregados das minas procuraria “a sorte” nos dois sentidos da fronteira entre Portugal e Espanha, traduzindo uma outra forma de passagem ilícita de um bem pela fronteira e, neste caso, o bem mais valorizado – o da força de trabalho humano. Sofrendo as mais duras sevícias e vítimas de discriminação permanente, tanto os espanhóis no nosso país, quanto os portugueses em 71 Paulo Eduardo Guimarães(2004) aponta que: “O censo paroquial de 1862 aponta para mais de duas mil pessoas na freguesia de Santana de Cambas, onde se localizava a mina, quando o número de trabalhadores, em média por dia, não ultrapassava as seis centenas. Dois anos depois, quando os arranques ultrapassavam as 100 mil toneladas métricas anuais, o censo registava mais 2.700 indivíduos na freguesia. O censo realizado quinze anos depois revela ainda um incremento de mais mil indivíduos, em Santana de Cambas e na Corte Pinto, as duas freguesias debaixo da influência directa da exploração” 72 GUIMARÃES, Paulo Eduardo, “Recrutamento, mobilidade e demografia em São Domingos (18601900)” in VII Congresso da Associação de Demografia Histórica; Córdova, 2004, p.14 73 Idem, idem p. 20 58 terras espanholas, serão a face mais negra e exponente de uma triste ilicitude, que visava meramente buscar a sobrevivência. Para os nativos das localidades envolventes, caso dos habitantes de Santana de Cambas (onde se situava a exploração), Corte do Pinto, Salgueiro, e Telheiro, os já mencionados campos de parca rentabilidade agrícola, com a agravante da extensa área expropriada para a fixação da mina e com a poluição das águas, viram-se sem qualquer recurso de subsistência. Por conseguinte, o contrabando estabelece-se como resposta às necessidades de uma população em crescimento e privada dos mais elementares recursos. Miguel Rego (2009), expõe num breve artigo que este boom demográfico na região correspondeu a uma dinâmica em larga escala do “contrabando de víveres e explosivos”74. Por oposição ao pequeno contrabando, que ainda efectuado em larga escala, da segunda metade do séc. XIX aos alvores da instauração da República em Portugal, já entrado o séc. XX, o Baixo Guadiana destacar-se-á essencialmente pelo comércio licito, não só pelo incremento do tráfego de embarcações de grande calado rio adentro, como com o rio a representar via comercial privilegiada a bens de produção local, sendo feita a exportação através da navegação em direcção à foz e daí para as diversas paragens do país, da Europa e do mundo. Não alheio ao que este incremento comercial e quantidade de embarcações das mais diversas nacionalidades e de todos os tipos e tamanhos, envolvidos a diário no extraordinário volume de transporte de mercadorias, e em sequência da reorganização 74 REGO, Miguel, “O Papel da Polícia Privada da Mina de São Domingos no Combate ao Contrabando” in Cadernos do Museu do Contrabando.1 “Contrabando – A Geografia do Medo, Santana de Cambas, 2009, p.4 59 das forças incumbidas da fiscalização externa das alfândegas, testada incialmente em 1831, nos Açores foi consumado, a 17 de Setembro de 1885, o decreto n.º 4 que criava o Corpo da Guarda Fiscal, sendo no ano seguinte, definindo os seus princípios orgânicos, aumentados poderes e áreas de jurisdição a todo o país com o decreto complementar de 9 de Setembro de 1886. Definida como corpo especial da força pública, organizada militarmente para o serviço da fiscalização dos impostos e rendimentos públicos e a cargo da administração das alfândegas e contribuições indirectas, fazia parte das forças militares do reino. Nesse mesmo ano de 1886, inicia-se a construção ao longo do Baixo Guadiana, que será seguramente a região do país com maior número de postos implantados numa menor distância, chegando aos 26 postos entre Vila Real de Santo António e o Pomarão. Como referia, no relativo à actividade comercial neste período e ao tráfego de embarcações a ele associadas, devemos distinguir dois tipos definidos: o do tráfego descendente que transportava para o litoral e para populações ribeirinhas situadas a jusante essencialmente os cereais (provenientes de paragens a norte em pleno Alentejo), o vinho e azeite (o primeiro com uma limitação de distribuição imposta pela escassa produção, que basicamente se destinava ao consumo local de comunidades ribeirinhas e o azeite que em excedente se destinava à indústria conserveira em Vila Real de Santo António); o mel e a cera (sendo este último produto um valioso bem muito valorizado em terras de Espanha); a lenha e o carvão (proveniente e transportado também da raia seca alentejana até ao Pomarão, importante recurso para o funcionamento dos navios a vapor e nas indústrias na foz do Guadiana); as canas (existentes nas ribeiras situadas na bacia do Guadiana e destinadas à construção de telhados de casas e canastas para a pesca artesanal no litoral), a cortiça (bem de extremo valor em terras de Sua Majestade 60 e proveniente do montado alentejano, transportado até ao Pomarão onde se encontravam negociantes que tratavam especificamente da aquisição e exportação do mesmo) e o esparto (abundante na região e usado também para canastas, solas de calçado, sacos de albarda e cordame); e como principais produtos produzidos no lado espanhol a lã, as peles (que serão como cortume, um dos bens de contrabando de típica proveniência de Espanha) e a dita chacina – embutidos e salgados de carne75. No relativo ao tráfego ascendente que subia o rio, visando abastecer as comunidades raianas e paragens do interior do país, o peixe da costa e o sal de Castro Marim, sendo característico elemento de troca com bens produzidos entre habitantes raianos das localidades a montante da foz e os do litoral, sendo o fluxo muitas vezes também estabelecido de forma inversa como, por exemplo, nos é relatado por Silva Lopes na sua Corografia do Reino do Algarve76 onde se refere sobre Alcoutim e os seus habitantes que: " têm alguns barcos pequenos, ou botes, que se empregão na conducção de fructas para Mértola, Castro Marim, e Villa Real, trazendo em retorno pescarias das últimas villas.". Todavia, em geral, os residentes junto ao estuário, traziam o sal em pequenas embarcações comprando este bem a grosso e vendendo depois nos mercados do interior pobre, sendo um bem de essencial uso na confecção de alimentos e na conservação dos mesmos, nomeadamente das carnes. Destaca-se, ainda, a constante da carência de todo o tipo de cereais, entrados para montante ao longo do Baixo Guadiana, tanto em Alcoutim, quanto em Sanlúcar de Guadiana e estendendo-se às localidades do circulo mineiro, próximas ao Pomarão. A zona representava um ponto intermédio com grande carência, pois as fontes de 75 GARCIA, João Carlos, A Navegação no Baixo Guadiana Durante o Ciclo do Minério, Dissertação de Doutoramento em Geografia Humana vol.I, FLUP - Porto, 1996, pp.415-443 76 SILVA LOPES, João Baptista - Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve, typ. Academia R. das Sciencias de Lisboa, 1841, p.396 61 produção tanto provinham de zonas mais a norte no Alentejo, como das áreas litorais da Província de Huelva e até dos mais diversos portos do Mediterrâneo. Era comum barcos ascenderem o Guadiana carregando trigo, cevada (usada na alimentação de gado), de forma mais irregular, milho e arroz e um enorme fluxo de transporte e distribuição dos mais diversos bens alimentares como produtos hortícolas e frutas (produzidos em abundância, nas regiões litorais da província de Huelva e do sotavento algarvio), leguminosas secas como favas e grão-de-bico, para suprir as necessidades das comunidades, nomeadamente, das povoações mineiras que, como referimos, com o aumento populacional e em virtude da existência de terrenos com fraco aproveitamento agrícola destes géneros, impossibilitavam a produção dos mesmos de modo a suprir as necessidades. Outro dos exemplos paradigmáticos de um produto de “primeira necessidade”, que circularia em sentido ascendente e descendente, proveniente de outras paragens, ou produzido localmente e transportado isoladamente, ou ligado ao transporte de outros bens, carregado em simultâneo em pequenas quantidades, ou até de produção própria local, era o álcool – a “droga” dos trabalhadores, que tanto foi criticado pela cartilha republicana e pela proposta “educativa” após a implantação desta no nosso país. Muito apreciada e demandada pelos mineiros, pescadores e generalizada um pouco por toda a classe laboriosa, determinaram um incremento proporcional na circulação das “aguardentes” no período de expansão da mina, do aumento do tráfego fluvial e de gentes novas ao longo do Rio Guadiana77. Esta etapa, conhecida como "ciclo do minério do Guadiana", caracteriza-se ainda pela introdução, transporte fluvial e incremento do volume do mesmo relativo a produtos 77 GARCIA, João Carlos; A Navegação no Baixo Guadiana Durante o Ciclo do Minério - Dissertação de Doutoramento em Geografia Humana, FLUP - Porto, 1996, p.443 62 como os materiais de construção, provenientes de portos portugueses ou estrangeiros, que serviram de base construtiva para as explorações mineiras, para dar resposta ao já mencionado crescimento populacional e a necessidades objectivas de habitação por ele gerado. Assim, materiais usados para a construção dos caminhos-de-ferro mineiros ou das Tapadas78 (represas de água de grande dimensão) do complexo mineiro de São Domingos, a maquinaria usada para a extracção e tratamento das pirites e os equipamentos de apoio e estruturas para trabalhadores e chefias da mina, caso de escritórios, oficinas, escolas, cantinas ou hospital, seriam transportados pelo rio. A construção dos portos fluviais do Pomarão e de Puerto de La Laja, implicaram também volumoso transporte de materiais. Deste modo, a madeira de proveniência do norte de Portugal seria das mercadorias mais destacadas. A "importação" de madeira do norte de Portugal é um dos casos mais exemplares, alcançando um enorme volume que com o caminhar para o fim do séc. XIX, não pararia de crescer. No relativo à diversidade de materiais necessários para a miríade de trabalhos relacionados com a actividade mineira e estruturas necessárias, desde já, se assinala, como exemplo, na Real Orden de 1913, relativa à construção do caminho-de-ferro mineiro que faria a ligação de La Laja (poucos quilómetros a jusante do Pomarão) às explorações mineiras de Tharsis, Herrerias ou Riotinto, legalizando o desembarque de "[...] maderas de todas clases, maquinaria y calderas de vapor, herramientas, maquinaria 78 O termo Tapada, usado pelos habitantes da Mina de São Domingos, prende-se com a função última destes enormes represamentos de água que inicialmente se destinavam ao uso e necessidades de laboração na mina, tendo sido usados pela empresa Mason & Barry para alagar e tapar (e daí o termo) as minas de forma a inutilizá-las no final da exploração. A Tapada Grande da Mina de São Domingos, na actualidade, representa uma das mais-valias da localidade e da região, pois é usada como praia fluvial, tendo uma completa estrutura de apoio de bares e quiosques, e funcionando como agradável parque de merendas e de espaço de convívio familiar, sendo visitada por bastantes forasteiros essencialmente em período estival, que representam uma fundamental fonte de receita para uma das regiões mais deprimidas e pobres da União Europeia. 63 eléctrica, material móvil y fijo para ferrocarriles y puertos, hierro viejo y en lingotes, cales, cementos y demás materiales de construción, sacos, envases para cascaras de cobre y minérales y abonos quimicos."79 A exigência construtiva de estruturas de apoio implicaria ainda, no último quartel do séc. XIX, enormes cargas de ladrilhos, cal, telhas, além da já mencionada madeira. Curiosamente, como caso paradigmático de como o contrabando e esquemas de defraudação interna poderiam desenvolver-se, dá-se exemplo de um manifesto de um navio que fazia a cabotagem80 de Ayamonte a La Laja e incluso no Boletim da Dirección de Aduanas de Novembro de 190281 onde o pedido, que enumera produtos necessários as minas e releva outros produtos que viajavam na carga do navio, caindo fora das estatísticas de muitos dos bens transportados e registados, e trazendo lucros a quem discriminava apenas o que interessava no referido manifesto e com, curiosamente, a aprovação oficial. Assim, o responsável fiscal indica em relatório que: "Considerando que ningún prejuicio puede ocasionar á los intereses del Tesoro, el que por el aludido puerto se verifiquen las operaciones de descarga pretendidas, excepción hecha de los abonos y granos cuya necesidad para aquella explotación no se halla justificada." Estatisticamente, a discrepância das quantidades declaradas e a evidente generalização dos produtos no circuito comercial, evidenciadas através leitura de diversos manifestos de carga portugueses ou espanhóis, ao longo do ciclo áureo do minério no Guadiana, deixam aferir da dimensão e dinâmica do contrabando e, essencialmente, no relativo aos ditos produtos “coloniais” e a tríade do açúcar, café e tabaco. Segundo a leitura, neste particular, da dinâmica económica feita por João Garcia (2006), são revelados dados de 79 Boletin Oficial de la Dirección General de Aduanas, XXIX, 1012, 10 de Dezembro de 1913, p. 351. Navegação entre portos do mesmo país, de cariz fluvial ou sempre com a costa em vista. 81 Boletin Oficial de la Dirección General de Aduanas ; XVIII, 613, 10 de Novembro de 1902, p. 323. 80 64 extrema importância que se prendem com o facto de, a um aumento de procura resultante do incremento demográfico na região por via da demanda resultante do incremento da mão-de-obra envolvida na actividade mineira, corresponder um acentuado decréscimo das quantidades declaradas dos produtos acima referidos. Assim se, em 1861, o açúcar declarado em Sanlúcar de Guadiana atingiu as 130 toneladas, dez anos volvidos o valor não superou as 40 toneladas. No relativo ao café, das 17 toneladas de 1861 para somente 3 toneladas em 1881. Ou o tabaco, onde apenas existe menção para a saída de duas embarcações de Ayamonte para Sanlúcar, em 1886, com esta carga. Além destes produtos, outro elemento de grande destaque na dinâmica de transacção dos produtos de contrabando, encontrava-se associado às necessidades do sector terciário local, em concreto aos produtos transaccionados em drogaria, mercearia e nas lojas de panos, sendo comum os estabelecimentos da época concentrarem as três vertentes. Assim, os manifestos de cargas de produtos como o anil, o petróleo, o sabão, o papel ou os tecidos e fazendas de algodão, onde são discriminados valores irrisórios que não alcançam a dezena de toneladas em qualquer dos produtos e onde é patente o já referido decréscimo da declaração destes, à semelhança do açúcar, café e tabaco, que configuravam bens de essencial necessidade e, logicamente, pela elevada procura a que estavam sujeitos, seriam transportados em pequenas quantidades por inúmeras embarcações que em seu manifesto e carga legal, as introduziriam na região, vindo a ser depois de recepcionadas pelos referidos estabelecimentos, distribuídas à consignação ou revendidas para que o circuito comercial paralelo se completasse por acção de contrabandistas embora a uma escala ainda menor, correndo enormes riscos e sem uma margem de lucro que permitisse mais do que a mera sobrevivência, fechassem o “ciclo” como parte mais frágil do conjunto. 65 A lógica deste fervilhante incremento da actividade comercial e produtiva na região, teve reflexo no aumento das condições de acesso a bens por parte dos habitantes do Baixo Guadiana, tanto no nosso país quanto em Espanha. Não obstante, as condições de miséria e exploração dos mesmos enquanto trabalhadores, por inerência nas famílias e ainda no restante conjunto social das localidades permaneceram uma constante, empurrando gerações de raianos para a prática do contrabando como actividade que supria, como subsistência, as carências mais variadas dos mesmos. Durante as duas primeiras décadas do século XX, a região, ainda mantendo uma assinalável actividade económica associada ao rio, seria assolada pela sucessão de convulsões registadas nos dois países, com a implantação da República no nosso país e a deposição da monarquia em Espanha. A falibilidade prática do modelo económico da I República e a permanente convulsão politica registada, que se traduziu na antepara dos fascismos nos países, incorporados por Sidónio Pais no nosso país e José António Primo de Rivera em Espanha. A participação do nosso país na I Grande Guerra (sendo de destacar o elevado número de mancebos da região integrados no Corpo Expedicionário Português); a Revolução de 1926, o grande crash de 1929 e a posterior instauração do Estado Novo, determinaram uma incomparável agudização das condições de vida dos habitantes das comunidades raianas. O período de ditadura nacional e o início do Estado Novo, de 1928 a 1934, seriam catastróficos em termos do paradigma de exploração e produtividade agrícola, onde assentava a obtenção da subsistência das comunidades raianas dos concelhos de Alcoutim e de Mértola. A Campanha do Trigo promovida neste período pelo governo de Salazar, significou, a curto prazo, uma verdadeira tragédia para terrenos pobres como os da região. Uma sucessão de anos agrícolas terríveis, o uso irracional de terrenos agrícolas paupérrimos, explorados em excesso, não obedecendo a pousios e à rotação 66 tradicional de culturas, determinaram que, em poucos anos, muitos dos mesmos se tornassem improdutivos, contribuindo para o grassar da fome e da miséria nas comunidades82. Aos factores acima mencionados, juntou-se o agravamento das relações institucionais a partir de 1931 (ano do triunfo eleitoral da República no país vizinho), entre o Portugal fascista de Salazar (aliado privilegiado da insurreição nacionalista de Francisco Franco que se iniciaria, a partir de Marrocos em 1936, ainda enquanto colónia espanhola, sendo o ponto de partida para o início da Guerra Civil Espanhola, mas que se delineava desde a vitória da República no país vizinho) e a República socialista Espanhola de Manuel Azaña, contribuíram de forma decisiva para um agravamento do controlo alfandegário na região (e no resto da fronteira entre países), introduzindo-se uma verdadeira repressão e o erguer explicito de um novo muro ibérico, quer de cerceamento à actividade comercial legal entre países, quer da limitação de circulação de pessoas e bens, com Salazar num polo ideológico e político, oposto à República Espanhola, e o governo republicano espanhol profundamente indignado pela colaboração logística, militar e diplomática aos rebeldes, prestada por Salazar e principais detentores do poder económico no nosso país83. A deflagração e evolução do conflito civil espanhol no triénio 1936-1939, será um tempo que muito dos raianos do Baixo Guadiana, ainda hoje vivos, relembram com profundo horror e assumindo esta memória como tempos de atroz dificuldade, sendo em regra chamados “os anos da fome e da miséria”. Não será alheio que estes tempos significaram, não obstante a relativa precocidade de pacificação da província de Huelva (totalmente em mãos do bando nacionalista em finais de 1937), tempos em que a limitação de trocas comerciais, a carência extrema de bens em ambos países e a 82 SIMÃO, José Manuel; A Nordeste de Todas as Histórias – 9 Histórias pela Pena de Jose Manuel Simão; Alcoutim, 1999, p.14 83 REZOLA, Maria Inácia – «O Estado Novo e o Apoio à Causa Franquista» in Portugal e a Guerra Civil de Espanha in Catálogo de uma Exposição, Lisboa, 1996, pp.37-63. 67 ausência total de excedente produtivo em terras espanholas, que servia, desde tempos imemoriais, para suprir as necessidades no nosso país e em concreto da região; associado ainda a milhares de portugueses do sotavento algarvio que, até 1936, trabalhavam além fronteira e que tiveram que regressar ao nosso país, literalmente com a roupa do corpo, sem perspectivas de trabalho portando consigo as horríveis histórias dos ajustes de contas e massacres perpetrados por soldados muçulmanos da Legião Espanhola e das milícias falangistas, em lugares como Rio Tinto, localidade de mineiros que eram na sua maioria ligados a sindicatos comunistas e anarquistas, tendo expoentes nas confederações sindicais da C.N.T e da F.A.I., que se organizaram também militarmente durante o conflito para combater os nacionalistas franquistas, e um pouco por toda a província de Huelva, onde existissem grémios e cooperativas agrícolas e de pescas. A Guerra Civil de Espanha representou ainda a face brutal da mais violenta repressão aos refugiados de guerra vindos do país vizinho e que tentavam entrar no nosso país. Foram os tempos da força musculada da PVDE em ligação à acção da Guarda Fiscal e da GNR, e em Espanha do Cuerpo de Carabineros e da Guardia Civil84 (forças militares que se revelaram, por exemplo, logo após a pacificação da província de Huelva, os mais ferozes braços repressivos do regime franquista e, em concreto, um corpo de secção de tropa especial da Guardia Civil, chamada Cuerpo de Asalto) que em ligação às milícias falangistas e regulares do exército franquista – levaram a cabo autênticas operações de limpeza, assim classificadas em relatórios das nossas forças de 84 GUILLÉN, Antonio Rodriguez; “Contrabando na Serra de Aroche” in Cadernos do Museu do Contrabando, vol.I, p.43. O autor refere que a Guardia Civil e os Carabineros eram conjuntamente os corpos militares responsáveis pela manutenção da ordem, sendo em especifico os Carabineros responsáveis pela vigilância da fronteira. Com a reorganização das forças de ordem, no país vizinho, em 1952, a Guardia Civil Rural- maioritária na região- e os Carbineros sofreram uma fusão dando origem à Guardia Civil de Frontera. 68 segurança85. Em zonas de fonteira do centro do país, inclusive, verificou-se ainda a acção articulada das nossas forças de segurança em concertação com as referidas espanholas, para cercar as bolsas de resistência republicanas remanescentes. Muitos dos refugiados, mais que meramente, fugindo à guerra, haviam sido declaradamente apoiantes da República e, como tal, representando os vencidos. À violência da repressão, responderam as gentes humildes das comunidades raianas com uma total ajuda e partilha sem reservas, com os refugiados. Tantas vezes, humildes famílias portuguesas de recursos reduzidos ou inexistentes albergaram, em gesto exemplar de dignidade e solidariedade humana, os espanhóis que cruzaram a fronteira em busca da paz ou fugindo à repressão, mantendo essa lógica de interacção e partilha que é fundamento para a actividade comercial e para o contrabando que é o cerne desta tese monográfica. Por oposição, os senhores da terra e famílias abastadas nas regiões fronteiriças, costumavam entregar o paradeiro dos refugiados, que ao serem repatriados e entregues à irracionalidade do revanchismo das forças franquistas, corriam sorte incerta, tendo sido muitos encarcerados por longos períodos ou fuzilados arbitrariamente e de imediato.86 Em 1939, com o fim da contenda civil espanhola e o início da II Guerra Mundial, agravar-se-ia ainda de forma mais significativa o período de carência das comunidades raianas do Baixo Guadiana. A imposição do racionamento (e até mesmo anteriormente ao mesmo) determinou para a larga maioria da população do nosso país e da região, uma carestia sem precedentes, todavia o racionamento significou um incremento de lucro dos donos de estabelecimentos e uma janela de oportunidade para o contrabando, 85 OLIVEIRA, César; Salazar e a Guerra Civil de Espanha. Lisboa: O Jornal, 1987, pp.160-161 Consulta em 12 de Maio de 2013 em http://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/23079/2/manuelloffmemoria000092863.pdf – Artigo de LOFF, Manuel - “A memória da Guerra de Espanha em Portugal através da historiografia portuguesa” 86 69 que ao mencionado lucro do “grossista” acabava por não mais equivaler que à pequena oportunidade de subsistência que a altíssimo risco, o contrabandista através da sua actividade, corria. Numa região periférica como o Baixo Guadiana, a disponibilidade do pequeno quinhão de bens de racionamento atribuídos a cada chefe de família (que variava em quantidade segundo a composição do agregado familiar87) – tais como o pão, o açúcar, a farinha, o arroz, o petróleo, o sabão, o tabaco, entre outros-, esbarrava em limitações que se prendiam com a obrigatoriedade das senhas de racionamento só poderem ser usadas em casas comerciais válidas para essas senhas (por exemplo, uma senha de um habitante de Alcoutim ou do concelho, não podia ser trocada senão no estabelecimento de Alcoutim ou do concelho, assinado para o efeito). A escassez de bens para revenda nos estabelecimentos, determinado pelo racionamento, era contornado pelos proprietários dos mesmos no evasivo e falacioso argumento dado aos titulares de senhas mais incautos, que a determinada altura já não existiam bens para efectivar o levantamento das mesmas. O preço tabelado por lei e as escassas margens de lucro determinavam este procedimento ilícito e a própria falibilidade do sistema de distribuição centralizado no Estado que, na maioria das vezes, destacava uma quantidade de bens aos estabelecimentos em menor quantidade daquelas previstas pelas senhas, servia de argumento válido aos proprietários dos estabelecimentos, para justificar ao consumidor o esgotar dos produtos sem realmente tal ter acontecido. Se juntarmos este “esquema oficial” de obtenção de excedente, a alguns outros produtos obtidos de forma paralela junto de fornecedores e produtores, encontraremos a base material na qual se alicerçou o negócio do contrabando neste período, permitindo aos 87 A única excepção eram os militares aos quais lhes estava destinado o dobro dos bens alimentares ou não, que eram destinados ao cidadão comum. 70 proprietários lucrar em dobro ou triplo (e por vezes mais) sobre os preços tabelados e estabelecer redes de contrabando individual ou em quadrilhas (que, na região, não superavam, em regra, seis homens capitaneados por um intermediário directo junto dos proprietários), que, como já foi referido, representavam a estrutura da actividade de sobrevivência de muitos habitantes da região, nestes tempos de tribulação. Os anos da Guerra Civil de Espanha e anos subsequentes da II Guerra Mundial, foram ainda os anos de todas as carências em Espanha, que definhava destruída nas mais atrozes condições e que representava um mercado florescente de contrabando, pela enorme procura e necessidade vital de muitos produtos e bens acima descritos. No relativo a actividade produtiva agrícola, estes anos significaram também tempos de enormes dificuldades justificados, em primeira instância, pelo controlo estatal de toda a actividade. Do mais abastado lavrador ao mais modesto rendeiro, a imposição de declarar em manifesto toda a produção anual, a obrigatoriedade de venda ao Estado de todo o excedente obtido e que legalmente ultrapassasse as quotas destinadas a cada agregado familiar, colocaram os produtores agrícolas do país e em especial da região – pela já mencionada pobreza de terrenos – em sérias dificuldades. Pese a que os produtores tivessem direito ao dobro da quantidade do produto produzido em comparação a um não-produtor, a sombra das autoridades detectarem esquemas fraudulentos pairava e era factor limitante decisivo na prática ilícita e, pela severidade de penalização, muitos não arriscavam algo que poderia, em última instância, representar a total apreensão da colheita anual e o esforço de todo um ano de trabalho. A perspectiva da enorme privação neste período, não só diz respeito ao país vizinho. Na região de Alcoutim e para as gentes serranas do nordeste algarvio, a base alimentar era constituída essencialmente pelo pão (ao qual se dava uso das mais diversas formas na 71 gastronomia costumeira entre gentes humildes) e, neste período de racionamento, os relatos das intermináveis filas de habitantes que se deslocavam ao concelho, por mais de cinquenta quilómetros para obtenção de senhas de racionamento na Câmara Municipal local, de modo a obter uma quantidade de farinha, que mal daria para a confecção de quatro ou cinco pães, traduz a enorme carência registada. A já referida Campanha do Trigo do Estado Novo, contribuiu de forma decisiva a evidenciar esta carência para a esmagadora maioria da população da região. A esparsa existência de terrenos onde era possível plantar trigo na região serrana do Baixo Guadiana, associada ainda à concentração dos mesmos nas mãos de um reduzido número de lavradores abastados, associada à referida valorização do trigo como produto preferencial das comunidades, que implicava na prática, que uma arroba de trigo com um custo de 50$00 permitisse confeccionar dez pães, por oposição ao salário médio diário de um trabalhador agrícola que não excedia 5$00, com uma duríssima jorna de sol a sol, colocava estes últimos na posição de mendicância aos primeiros, à cedência de um quinhão de terra válida de plantio a qual “custava” aos referidos trabalhadores a módica quantia de 25 % da produção final anual, ao dono da terra. Os terrenos cedidos a estes trabalhadores eram em geral, os de pior qualidade e de menor rentabilidade, pelo que o ciclo de dependência à farinha das senhas de racionamento era constante, ainda assim insuficiente para alimentar tantas vezes, um sem-fim de bocas dentro da mesma família, agravando e perpetuando o ciclo de fome e miséria a que os humildes nordestinos estiveram condenados88. O fim da II Guerra Mundial, veio trazer condições que, não alterando o referencial tradicional de pobreza, periferia e isolamento da região, atenuaram de alguma forma as duríssimas condições de vida. No país vizinho, numa lógica de inclusão no Plano 88 SIMÃO, José Manuel, A Nordeste de Todas as Histórias – 9 Histórias pela Pena de Jose Manuel Simão; ed. C.M.Alcoutim, 1999, p.16-20. 72 Marshall, e de um desenvolvimento industrial que permitiu que a Espanha produzisse muitos dos produtos que o contrabando originário do nosso país havia suprido ao longo das duras décadas anteriores, tendo mesmo nos inícios da década de 50 do século XX começado a produzir produtos que eram valorizados pela ausência de produção ou de preços proibitivos no nosso país. No Museu do Contrabando de Santana de Cambas é possível registar ainda alguns desses produtos, que o ciclo do contrabando do pósguerra começou a introduzir no nosso país. São exemplos, os materiais em borracha usados para calçados como sandálias e botas de borracha, as lingeries de senhora, a famosa gasosa Vicasti ou o conhaque Domeq e, ainda, os derivados de carne de porco, que pela abundância no país vizinho e pelo baixo preço, se tornaram extremamente apetecíveis ao contrabando. O café colonial português, de grande qualidade e a preço muito acessível em comparação ao preço do café produzido em Espanha, proveniente dos torriés de Campo Maior e de Mértola, com uma rede de distribuição fortemente organizada continuou a impor-se como principal produto de contrabando português em Espanha. Ao estrito produto café, o nosso país associava ainda como produto de contrabando de grande apetência, toda a parafernália usada para moagem doméstica de grão que era ainda comum nos referidos estabelecimentos fronteiriços onde se preparava o envio do café já moído em pó. Socialmente, a década de 50 assinala ainda o início do massivo êxodo populacional para regiões junto ao litoral e grandes cidades (em ambos países) justificado pela procura dos habitantes destas região por novas oportunidades de fazer seus filhos esquivar a miséria em que haviam vivido; e para o estrangeiro, especificamente no nosso país, determinado pela eclosão já no início dos anos 60, do conflito colonial português. Politicamente, a eterna relação de desconfiança mútua que Salazar e Franco, desenvolveram ao longo de largas décadas em que os regimes vigoraram em ambos 73 países, não obstante a concordância ideológica entre ambos, foram ainda determinantes para que progressivamente a relação ancestral das comunidades raianas do Guadiana, fossem sofrendo limitações pela ferocidade do controlo fronteiriço, que com a vaga de migração portuguesa para o estrangeiro da década de 60, determinavam pedidos de tramites especiais às autoridades para trânsito fronteiriço. Não obstante o acordo LusoEspanhol, firmado em 1960, a gradual abertura de fronteiras só será uma realidade efectiva após vigorarem os sistemas democráticos em ambos países, já depois da segunda metade da década de 70, mas ainda com limitações evidentes. Economicamente, a década de 50 corresponderá ainda a uma mudança de paradigma que representará um duro golpe para as regiões a montante da foz do Guadiana. A força da pobreza e isolamento endémico da região vincada pelo exaurir da produtividade dos poucos campos produtivos restantes nas regiões serranas algarvias e do limite sul do concelho de Mértola, em grande parte determinado por políticas erróneas das quais destaca a Campanha do Trigo do Estado Novo, como já foi referido, associado ao colapso da actividade mineira que teve o seu acto final com o fecho da Mina de São Domingos em 1965, e ainda, a progressiva redução de navegabilidade do Guadiana por navios de grande calado e por força de obras várias como a construção de barragens em Espanha e o assoreamento natural do rio foram factores determinantes para que o rio Guadiana passasse de um canal de navegação ligado com prolifica actividade comercial, a um rio tão silencioso quanto as suas margens. Após a revolução democrática do 25 de Abril de 1974, da morte de Francisco Franco e a transição democrática espanhola depois de 1975, Vila Real de Santo António, Ayamonte e a foz do Guadiana com a pesca e a actividade conserveira mantiveram-se como últimos esteios dos tempos dourados da economia da região e de um rio que foi o fulcro do desenvolvimento e troca, entre ambas as margens do Guadiana. Ainda assim e 74 como duro exemplo dos tempos, em 1985, registou-se a morte, baleado, do último contrabandista às mãos da Guarda Fiscal junto ao local onde hoje estão erguidos os pilares da Ponte Internacional do Guadiana89. Com a entrada de Portugal e Espanha, a 1 de Janeiro de 1986, na Comunidade Económica Europeia e com o introdução mais tarde do tratado de Schengen de livre comércio e circulação, as fronteiras finalmente foram abertas; tendo a já referida Ponte Internacional do Guadiana inaugurada em 1992 representando um inusitado e irónico corolário desses dias distantes em que a fronteira do Guadiana significando a separação politica e física entre países, foi essencialmente o espaço de todas as trocas e de fluxo de populações e bens, sendo por excelência e por força do contacto constante ao longo da História, elemento fulcral que moldou as comunidades de ambas as margens, que contrariando o poder e vontades políticas distantes do seu centro, não mais utilizaram o Guadiana como aquilo que sempre foi, um espaço comum e a fonte de vida que ligou e ergueu as referidas comunidades, que souberam ultrapassar na coragem quotidiana todas as dificuldades. 89 Hemeroteca online do diário espanhol El Pais dando conta da morte de Juan Flores, e do processo de contrabando levantado ao colaborante português António Monteiro, no Tribunal de Instrução de Vila Real de Santo António e que transitou para a Relação de Évora a posteriori. A noticia explicita o tipo de contrabando, neste caso “caixas de marisco”, indicando também o nome do agente (cabo) da Guarda Fiscal, José Nunes, responsável pelo disparo mortal que vitimou o pescador ayamontino. Refira-se como importante nota que este incidente diplomático, à semelhança de outros ocorridos recorrentemente e em geral associados à violação de águas territoriais por parte de pescadores e “ametralhamentos” por parte das Marinhas de ambos países, ao longo dos anos, levou ao encerramento da fronteira entre Vila Real de Santo António e Ayamonte. Juan Flores, foi o último contrabandista “tradicional”, morto no Guadiana. Artigo consultado em 18 de Junho de 2013 em : http://elpais.com/diario/1985/01/17/espana/474764419_850215.html 75 2. O Contrabando no século XX –Os actores e seus retratos de vida Além de todos os condicionalismos que mencionamos no capitulo anterior de ordem politica, económica e social, o contrabando no Baixo Guadiana durante o século XX, fez-se em geral obedecendo a um modus operandi muito particular, determinado não só pelas contingências da travessia de uma fronteira molhada, mas também essencialmente pela vigência de uma fortíssima rede de vigilância, estruturada nos postos da Guarda Fiscal - espaçados em alguns casos por distâncias não superiores a dois quilómetros nas margens do Guadiana-. Esta dura limitação determinou que, por oposição aos grandes grupos de contrabandistas com mais de quarenta elementos que operavam na raia seca alentejana situada mais a norte, no respeitante à realidade do Baixo Guadiana se privilegiasse a actuação individual ou da “quadrilha” com não mais que seis elementos, vigorando como estrutura preferencial na travessia da fronteira para a prática do contrabando. Neste capitulo do trabalho, incidiremos nas visões dos intervenientes fazendo uso de recolhas orais e essencialmente da revisitação emocional dos intervenientes nelas contidas e efectuadas ao longo do ano de 2013, bem como do contraste dos mesmos com fontes jornalísticas, documentos oficiais e publicações locais, que abordam a realidade do contrabando90, servindo assim de factor de reforço à problemática da 90 No presente trabalho monográfico, o recurso à memória oral é por igual valorizada no contraste entre o valor da memória vivida e remanescente, e o esquecimento e a dissolução que o tempo traduz na memória dos intervenientes, obedecendo ao principio de complementaridade do binómio “vida e morte” em que Marc Augé (2010), na obra Les Formes de l´Oubli procura estabelecer a valia da memória oral como processo aquisitivo onde o misto de lembrança e esquecimento configuram por igual, a importância de aproximação à fidedignidade dos acontecimentos. Augé usa a metáfora “a memória e o esquecimento possuem, de alguma maneira, a mesma relação que a vida e a morte, e da mesma maneira que pensar na vida nos remete a pensar na morte, pensar na memória passa necessariamente 76 subjectividade da perda ou transformação de elementos, que a natureza da memória humana e transmissão da mesma tendem a revelar. Importou, neste particular, recolher a visão dos diversos actores, desde a figura do contrabandista caminheiro91 ou “chefe de quadrilha”; aos freteiros “solitários” masculinos ou femininos, e ainda a figura do comerciante que ligados visceralmente pela actividade, reflectem nos seus relatos de vida uma miríade de contingências, diferindo o modo de actuação, como veremos, entre os contrabandistas do “Guadiana”; os originários da serra algarvia ou os que actuavam junto à foz, na fronteira de Vila Real de Santo António-Ayamonte, ou, ainda, as especificidades da actividade dos actuantes no “Chança”; passando ainda pelos agentes das forças da ordem, em concreto da Guarda Fiscal, ligados muitas vezes por relação directa de parentesco com contrabandistas e por vezes, participantes directos no processo (não é incomum encontrar contrabandistas na juventude, que na idade adulta passaram a agentes da Guarda Fiscal). Todos eles com a sua particular visão e intervenientes directos da complexa fenomenologia do contrabando, mas vinculados intrinsecamente pelas experiências de vida e essencialmente, como veremos, pelo contrabando como mais que uma mera actividade económica enquadrada como transgressão pelo contexto jurídico-legal. O contrabando representa sim, essencialmente, uma realidade social e antropológica complexa, com vincadas dinâmicas e com processos que não primam pela linearidade. O contrabando é, pela compreensão de que não há memória sem esquecimento” Procuraremos, não definir o relato como verdade indisputável, mas como reflexo do conceito dinâmico da oralidade, enquanto base válida de construção da memória e identidade e da emoção dos narradores como parte integrante da construção da mesma. 91 BERNARDO, António; As Noites da Raia – Prova de Aptidão da Escola Bento de Jesus Caraça – Delegação de Mértola, 1996 p.6. O autor faz a distinção entre os três principais tipos de interveniente no esquema do contrabando. O “Caminheiro”, líder e orientador do grupo de contrabandistas, que seguia à frente, conhecendo os trilhos usados e sujeitando-se pelo “encabeçamento da coluna” a ser o primeiro aprisionado. O “Freteiro” que transportava os bens de outrem, até ao país vizinho e para um destino acordado entre fornecedores e compradores, recebendo depois pelo transporte efectuado. E finalmente os fornecedores/compradores, em geral proprietários de estabelecimentos comerciais que contratavam os “caminheiros” como “homens de confiança” no sentido de proceder à entrega dos bens transaccionáveis ou que na definição do serviço a ser levado a cabo pelos “freteiros”. 77 isso sim, a arte da versatilidade em nome da sobrevivência, do assumir do risco por necessidade ou “por vocação”, da expressão do melhor e pior da natureza humana, como a vida em si. 78 2.1 O Contrabandista “Caminheiro”92 Com 92 anos curtidos na face pelo passo inexorável do tempo, pela sabedoria de homens que muito sabem porque muito viveram, mas sobretudo neste caso, por um sentido romântico de “valentia” ligada a um duro ofício. Ildefonso Martins, o “Sr. Ildefonso dos Balurcos” ou, ainda, carinhosamente, “Ti Lifonso” para os seus poucos amigos que ainda restam vivos em Balurcos de Baixo, no concelho de Alcoutim, onde nasceu e onde passa seus dias entre a sua pequena courela de terra, entre tarefas de cuidar o que planta e alimentar alguma que outra galinha que tem, e os momentos de uma “solidão de 90 anos que detesta” na sua casa localizada a poucos metros da antiga EN122 – junto a menos de um quilómetro das Quatro Estradas de Alcoutim, na antiga estrada Vila Real de Santo António – Beja-, e onde guarda muito da sua história em memórias que “dariam uma dúzia de livros de aventuras” e os objectos necessários ao “amor maior” de uma vida vivida em plenitude, os seus instrumentos de música que executados pelas suas mão talentosas, serviram em tempos da vida do contrabando para lhe “abrir portas” e estabelecer conhecimentos que se revelariam muito importantes, em terras do outro lado da fronteira. Caminheiro ou “responsável da quadrilha” como se assume, além de músico de bailaricos, marinheiro com uma mulher em cada porto, trabalhador ferroviário já nos anos 60 do século passado, na Gare de Austerlitz em Paris, vincando que “nunca viveu em França como o emigrante que passa todos os sacrifícios em nome do “pé de meia” para ser desfrutado 92 Entrevista conduzida em 13 de Março de 2013, em Balurcos de Baixo, concelho de Alcoutim, na residência do Sr. Ildefonso Martins, famoso contrabandista do Guadiana. Muitos dos dados expostos pela entrevista, encontram-se contrastados e confirmados, quer na edição nº 135 do Jornal do Baixo Guadiana de Agosto de 2011, pp.13-15 e e na já referenciada publicação da C.M.Alcoutim da autoria de José Manuel Simão e a compilação de histórias sobre a região, intitulada A NORDESTE DE TODAS AS HISTÓRIAS de 1999. 79 um dia mais tarde”. Viver muito e plenamente, este é o seu lema, ainda hoje! E a lucidez do alto dos seus 92 anos, é exemplo de para quem a idade é uma data num documento que vai guardado numa carteira. Começou por falar da terra que o viu nascer e crescer, o Nordeste Algarvio e o concelho de Alcoutim, começando por dizer que no seu tempo de menino “havia mais gente…mas também muito mais fome” e que por causa disso “muitos tiveram que se dedicar ao contrabando”. Diz-me que começou com 16 anos e que depressa se tornou “patrão”, ainda no tempo final da Guerra Civil de Espanha. Deixo a pergunta, se não haveria outra vida que pudesse seguir sem tanto risco, ao que me respondeu peremptoriamente ”Trabalhar na lavoira? Ganhava-se naquele tempo de sol a sol, “capinando” mato, ceifando, lavrando ou em qualquer outro serviço menos de 200 escudos por mês e no contrabando, um homem na quadrilha ganhava de uma só passagem de carga a Espanha, 120 escudos e da nova carga trazida depois, de volta para Portugal, mais oitenta. Mais tarde, ganhava só de um serviço de dois dias e duas noites, 600 escudos como “chefe”, e ainda dava a ganhar aos freteiros93 100 escudos à cabeça (sendo que o grupo que liderava nunca excedia os seis, sete homens) e pagava do meu bolso, uns cabritos para assarmos e umas adamaguanas94, para as noites nos “poisos” onde nos escondíamos, quando o serviço era mais longe95. Questiono-o se foi a necessidade que o empurrou para o contrabando e responde-me, surpreendentemente, “foi por vocação”. Acto contínuo questiono-o se não era demasiado arriscado e se não se arrependeu na vida de ter sido contrabandista, ao que me responde “eu gostava muito 93 Integrantes subalternos da quadrilha ou a titulo individual, que participavam informalmente segundo cargas e necessidades, e obedecendo a acordo pré estabelecido entre comerciantes e consumidores, nos diferentes países. 94 Nota: medida de recipiente com capacidade para 16 litros e usada em geral para vinho . Era o recipiente mais comum, em Espanha, na primeira metade do séc.XX. 95 Na entrevista ao Jornal do Baixo Guadiana refere a titulo de exemplo dos longos percursos “Fornecíamo-nos em Huelva e depois em Gibraltar também”, o que pela distância à fronteira do Guadiana representaria vários dias ou até semanas, de viagem. 80 de correr riscos e por ser valente é que cheguei depressa a “patrão” e fazia tudo outra vez”. Chegamos, então, às perguntas que ilustram como se processava o contrabando. O Sr. Ildefonso diz-me que se passava “de tudo um pouco” e sem reservas identifica a fonte de fornecimento dos bens que contrabandeava. Fala-me do Sr. António Feio, de Mértola, um abastado comerciante e proprietário de um estabelecimento nessa localidade, que na consignação para revenda dava poderes alargados ao Sr. Ildefonso como seu “homem de confiança” e lucrava astronomicamente, se comparado aos homens que corriam os riscos do contrabando. Afirma o Sr. Ildefonso que passou “cargas”, nos dois sentidos da fronteira, com tudo o que as pessoas queriam e que não podiam ter acesso no seu país. De açúcar, de ovos, de armas de caça, de arroz, de sabão, de farinha, de pão, de perfumes, de lã, de gado vivo96, de tabaco, mas essencialmente de Portugal para Espanha, o café e de Espanha para Portugal, pano crú, tecidos de bombazine e “miolo de amêndoa, muito miolo de amêndoa”. Surge, assim, a questão do motivo pelo qual os miolos de amêndoa serem um dos principais produtos de contrabando vindo de Espanha , tendo em conta que existiam tantas amendoeiras na serra do Nordeste algarvio, ao que me respondeu “ porque o miolo em Espanha era mais grado e porque eles tinham umas prensas para partir que deixavam o miolo inteirinho e como havia mais, era mais barato”. Pergunto-lhe então como se processava a travessia do Guadiana, ao que me responde para grande surpresa “abanhando-nos com uma corda aos dentes e segurando o oleado97”. Diz-me ainda que como era “valente” para ele 96 Como curiosidade, o Sr. Ildefonso Martins revelou que o gado vivo e em concreto, cavalos, vacas e até ovelhas, eram excelentes nadadores e fáceis de conduzir de uma margem à outra do rio com a maré cheia, sendo amarrados em geral pelo pescoço e conduzidos juntos por uma pequena embarcação. Deixou ainda entender, por oposição, que os porcos (que de forma tão comum era introduzidos pela raia seca alentejana, sendo muito contrabandeados), eram quase “impossíveis” de passar através do Guadiana, pela “indisciplina” dos suínos que seguiam nas mais diversas direcções, alheios à vontade dos “condutores”. 97 “Abanhar” – termo que definia a travessia do Guadiana a nado. O “oleado” mencionado pelo Sr. Ildefonso Martins, era o comum método de passagem da carga na travessia do Guadiana, envolvendo a mesma numa lona impermeável que boiava, não obstante o peso que por vezes podia superar os cinquenta quilogramas. O “oleado” da travessia do Guadiana contrastava com a “mochila” às costas 81 nunca houve diferença de invernos ou verões no Guadiana, que se o “serviço pagasse bem” atravessava, mas em jeito de mote diz que “não havia muitos como ele”. Pergunto-lhe então como era passar o Guadiana a nado, ao que me responde que “há muita coisa que se tem que ter atenção e tem que se saber o que se faz, com atenção principalmente as quebradas98 e correntes do rio, às marés e até a lua”. Peço que me explique em detalhe ao que me responde “ além à Ponta do Cinturão99, o rio faz uma quebrada que a gente “abanha” com a carga e que a corrente leva logo “a gente” para o outro lado, nem é preciso quase nadar, depois tem que se tirar a carga depressa não vá aparecer algum “carabineiro”. Espanto-me de ainda usar o tempo presente para descrever as suas aventuras e pergunto-lhe sobre as luas e as mares, ao que o Sr. Ildefonso completa “as marés fazem a corrente andar mais depressa ou mais devagar ou fazem a quebrada ir dar a outra margem mais longe”. Então e as luas? As luas é porque nas noites de lua clara, a Guarda vê a gente e a coberto do escuro corre-se menos perigo”. A cada explicação, não cesso de me surpreender com essa “vaidade” que no início da entrevista o Sr. Ildefonso me fez questão de a dar entender. A vaidade é, com certeza, menos “vaidade” que valentia. Muitíssima valentia. Passamos então à parte em que o questiono sobre a Guarda Fiscal e de como faziam para antecipar os movimentos desta força de ordem e atendendo que existia um elevado número de postos ao longo do Guadiana. O Sr. Ildefonso diz-me que “conheciam-se todos e havia uns quantos que tinham irmãos e filhos que até fizeram ´serviços´ comigo e até havia um ou outro que trabalhavam com “a gente””, o que é revelador desta estranha partilha no relacionamento entre as forças de ordem e os transgressores. O Sr. que era o método mais comum, nas paragens mais a norte na parte alentejana do Baixo Guadiana e na zona do Chança. A carga de um “oleado” ou de uma mochila, em geral, adequava-se à capacidade física de cada homem e nunca excedia, em regra, os cinquenta quilos. 98 “Quebradas”- zonas de corrente que naturalmente facilitam pelo sentido das mesmas a travessia 99 Marco geográfico, na margem portuguesa do Guadiana sensivelmente, no limite entre o concelho de Castro Marim e o concelho de Alcoutim, onde se situava uma dos postos da Guarda Fiscal. 82 Ildefonso diz-me “eles também ganhavam pouco e também tinham muitas bocas para dar de comer e além do mais, sabiam que “a gente” do contrabando também passava muitas necessidades”. Conta-me a história de como, por vezes, se colocava junto aos terraços dos postos da Guarda Fiscal100, para ouvir os agentes falarem uns com os outros e assim saber, quando era a hora do render da guarnição e quando podendo aproveitar esses momentos faria a travessia de forma mais “segura”, de maneira a não ter a carga apreendida. Diz-me que em Portugal nunca o prenderam, tendo por vezes que deixar “cargas perdidas” para fugir e evitar ser detido e relembra um famoso episódio de uma valiosa carga de lã “deitada a perder” (uma “autêntica fortuna de quinze contos nesse tempo”), em pleno mês de Janeiro, com um vendaval enorme e “encharcado até aos ossos” da água gelada do rio, e após ele e mais dois ajudantes terem sido detectados por um agente da Guarda Fiscal. Fala-me então, dos agentes que eram realmente tenebrosos, os carabineiros espanhóis101. Pródigos em espancamentos e em torturas, tais como negar aos contrabandistas presos, água no cárcere em pleno Verão e, ainda, pela apresentação imediata dos detidos após a Guerra Civil a tribunais militares, que a extremo podiam condenar a prisões perpétuas e até à morte. Conta-me então a história rocambolesca de 100 Em geral e veremos em apêndice fotográfico, num capitulo particular sobre a estrutura das forças de ordem, que os postos da Guarda Fiscal no Guadiana se compunham da casa de habitação/serviço e de um terraço fronteiro à mesma, que permitia a observação panorâmica e estratégica da área onde o posto se encontrava implantado. 101 Manuela de Azevedo, em artigo publicado no Diário de Lisboa em 28 de Março de 1952, disponível online e consultado em 18 de Junho de 2013, no site da Fundação Mário Soares em : http://www.fmsoares.pt/aeb_online/visualizador.php?nome_da_pasta=06334.055.13201&bd=IMPRE NSA e com o nome “Altos serros abaixai-vos, Deixai ver o Guadiana” procura ilustrar de alguma maneira a diferenciação entre o modo de actuação e motivações associadas às forças de ordem de Portugal e Espanha, Assim refere: “São diferentes os modos de actuar. Depois da Guerra Civil de Espanha, a Guardia Civil é dona e senhora de uma pistola-metralhadora que lhe deram; a Guarda Fiscal é responsável pela espingarda e pelas munições que lhe confiaram. “Eles” poderão despejar as munições que ninguém lhes perguntará onde e por que é que o fizeram. “Nós” teremos que elaborar um relatório, por cada bala que falte no cartuchame, pagando-a do próprio bolso, se se provar que foi gasta contra os interesses do Estado…” Por isso /…/o contrabandista saberá , acima de tudo, que aquilo que interessa em primeiro lugar ao guarda-fiscal não é a sua vida, mas a sua carga”. 83 uma das suas detenções em Espanha em tempos do pós-Guerra Civil e, em concreto em Sanlúcar de Guadiana, onde passou alguns dias detido. Podendo aproveitar uma desatenção do carabinero responsável pelo cárcere e fugando-se, em completa fúria (como curiosidade, devo mencionar, em abono da verdade, que ainda hoje com a sua idade o Sr. Ildefonso tem mais de um metro e oitenta de altura e dispõe uma compleição física invejável, o que me leva a imaginá-lo com cerca de vinte anos), derrubou o referido agente espanhol e para sua má sorte já à saída para a rua, derrubou uma senhora de famílias abastadas desta vila raiana espanhola, estatelando-se ele mesmo, no chão. Como consequência é de novo capturado, e foi condenado a tribunal militar que teria que acontecer em Huelva. Ao ser conduzido para esta localidade, o chefe da polícia de Ayamonte “a quem dava muito dinheiro a ganhar com o contrabando” e que, por “coincidência”, soube da prisão do Sr. Ildefonso, foi o primeiro prestar-se a interceder e abonar a “idoneidade” deste, poupando-o assim à corte marcial e acabando por ser escoltado até Vila Real de Santo António, sem qualquer sobressalto e com um pedido de desculpas do chefe de polícia de Ayamonte, pelos incómodos causados. Termina o relato deste episódio com um “às vezes a vida tem estas ironias…e tive muita, muita sorte”. Fala-me então de uma passagem que destaca pela sua relevância histórica e politica, que aconteceu na entrada nos anos 60, com a crescente procura na passagem da fronteira de refugiados políticos através Guadiana, destacando-se a figura do doutor Mário Soares. O Sr. Ildefonso revela que este tipo de “contrabando” era pago “a peso de ouro”, dando o exemplo do acordo inicial para a passagem do histórico dirigente do Partido Socialista, fixado em várias dezenas de “contos” e que previa a passagem em segurança do dissidente por toda a geografia espanhola “ até Biarritz e Hendaye”. O 84 “plano” gorou-se pelo medo do dirigente socialista, em cruzar o Guadiana a nado102, tendo que ser levado a norte, à raia seca para cruzar a fronteira. Em virtude do risco envolvido pelas ligações políticas a elementos ligados a forças na clandestinidade e que combatiam o fascismo, compra de salvo-condutos às autoridades espanholas para uma circulação “tranquila” no país vizinho , interpelo-o se teve, então, problemas com a tenebrosa PIDE ao que retorquiu que “ainda fui a Faro, lá (sede regional da policia politica) umas duas ou três vezes”. Conta-me que passou muitos homens e que muitas vezes esses grupos de “dez, quinze homens”, faziam a travessia sem quaisquer garantias de segurança ou sucesso da jornada rumo à liberdade em terras de Espanha, sendo amiúde, capturados pela Guardia Civil espanhola e devolvidos à fronteira e às autoridades portuguesas, onde ficariam sujeitos à arbitrariedade da perseguição, por parte das forças do regime, ao qual procuravam fugir. Conta-me, então, uma história marcante e que é reveladora dos riscos que a actividade de contrabandista envolvia. A morte de um seu “camarada” chamado António Anica. O Sr. Ildefonso deixa pela primeira vez, transparecer na sua face a sombra dos difíceis tempos de outrora, das agruras da vida de um contrabandista e a lástima pela “ morte de um homem que considerava de valor e que teria tido uma vida plena”. Afirma que “há coisas que acontecem porque parece que existe uma hora marcada para toda a gente”. Refere, então, que numa das centenas de travessias que fez ao longo da vida e na companhia do referido “camarada”, ao cruzarem sem problemas a fronteira e já nos caminhos rurais a caminho do interior da província de Huelva, se cruzaram com um carabinero que vinha, montado a cavalo, de uma deslocação por uma ocorrência, em Ayamonte. Ao deparar-se com o grupo de contrabandistas liderado pelo 102 O Sr. Ildefonso, afirmou com um sorriso que “ele (Mário Soares) teve medo de “abanhar” aqui no rio e tivemos que o ir levar à fronteira seca” 85 Sr. Ildefonso, abriu fogo com o seu revólver tendo atingido “com a última bala” o famigerado António Anica, que ficou impossibilitado de fugar-se, tendo sido aprisionado de imediato. Sujeito ao cárcere em Sanlúcar de Guadiana e pela “ironia do destino” do chefe do posto da Guardia Civil da localidade se encontrar ausente de fimde-semana, mantiveram o contrabandista ferido sem qualquer assistência ao ferimento, pelo que este se dessangrou até à morte, durante três dias, tornando infrutífero o esforço vão do médico chamado “às pressas”, quando o prisioneiro já se encontrava praticamente morto. Depois, um instante de silêncio do Sr. Ildefonso que valeu por mil palavras. Perguntei, então, ao Sr. Ildefonso o que era para ele ter sido contrabandista e se tinha ganho para ter tido uma vida “desafogada” comparativamente à pobreza das “gentes” da região que ganhavam o seu mísero sustento pela via legal, ao que me respondeu com uma convicção que marcou toda a entrevista “ Gostei de ser contrabandista e voltaria a sê-lo. Gostava de ser valente e que “a gente” me visse assim e via-me a mim com uma pessoa “por aí além”. Não era só o dinheiro”. Ficou a promessa de um regresso à sua casa, para que pudesse partilhar comigo mais histórias que são o exemplo da coragem e de alguém que não envidou esforços ou deixou de assumir riscos, para fazer sem reservas “aquilo que mais gostava”. Ildefonso Martins, 92 anos, contrabandista “orgulhoso”, caminheiro e chefe de “quadrilha” durante quase trinta anos. Um enorme exemplo de vida! 86 2.2 Os contrabandistas “freteiros” e individuais. Francisco Calafate103, 81 anos, natural de Ayamonte e residente na cidade espanhola até aos oito anos de idade durante os atrozes tempos da Guerra Civil espanhola e das lembranças que marcam uma vida desde a mais tenra idade e “ dos tiros no cemitério de Ayamonte”104 e das “pessoas com disenteria e os cães mortos na rua”105. Residente desde 1940, em Vila Real de Santo António, filho de portugueses, que trabalhavam à altura do início da Guerra Civil em Espanha, neto de uma das mais afamadas contrabandistas da fronteira Vila Real de Santo António – Ayamonte (e que era feita por barco, passando-se obrigatoriamente pelos postos alfandegários fronteiriços das duas localidades vizinhas), a Dona Isilda de Jesus. Lembra-se “como se fosse hoje” da avó e dos primeiros anos passados em casa desta em Ayamonte, da vida do contrabando que ela levava que dava “para não passar fome em casa e onde nunca faltou nada, ao contrário da maioria da gente e da ´miséria franciscana´ que era Vila Real e Ayamonte, naquele tempo”. Conta, com jocosidade, que a “avó passava “magra” de Ayamonte pra Vila Real e voltava “gorda” com um “corpete que era uma cartucheira onde se encaixavam fileiras de ovos e das saias e casacos onde vinha cozido, em bolsas, o café, os “carros de linhas” e especiarias, para esquivar as “apalpadeiras” 106 e que a 103 Recolha oral feita dia 28 de Abril de 2013, em Vila Real de Santo António, em minha residência Na relatório online Todos los Nombres – Memoria de las Fosas de la Guerra Civil en la Provincia de Huelva, - http://www.todoslosnombres.org/php/verArchivo.php?id=1121, e na página 45, consultada no dia 20 de Abril de 2013, consta registo das execuções sumárias, registadas no cemitério de Ayamonte, e de pelo menos 16 pessoas levadas a cabo no dia 7 de Setembro de 1936. Segundo populares ainda hoje vivos, teriam sido mais de 100 pessoas, que depois teriam sido distribuídas em valas comuns, em Ayamonte e localidades próximas. 105 Sintomatologia característica do uso de rícino químico como contaminante dos reservatórios de água potável, de uso comum na Guerra Civil espanhola. O nosso entrevistado usou uma curiosa expressão para classificar o rícino dizendo que a disenteria e a morte dos animais domésticos “era por causa das bolinhas”. 106 Agentes alfandegárias que, especificamente, apalpavam as mulheres para detectar mercadorias de contrabando e que também, paralelamente, desempenhavam funções na saídas das fábricas 104 87 sua casa, mesmo junto à velha Igreja del Carmen, na parte mais alta de Ayamonte, era lugar de “gente que vinha buscar coisas que encomendavam à minha avó” e “lugar de acoito e de passagem de contrabandistas que iam até Lepe, Cartaya, Gibraleón e Huelva, com outras coisas”. E nestas “coisas do contrabando”, dando o exemplo de como a avó, num transporte de uma “pequena fortuna em ouro que era destinada a uma dos senhores mais ricos da indústria conserveira vilarealense”, foi detida pela Guarda Fiscal, que nunca revelando o destinatário da “carga” e afirmando sempre que o ouro era seu, foi condenada a seis meses de prisão maior, tendo nesse período o nosso entrevistado, “comido e bebido, melhor que nunca”, pois o referido “senhor” como sinal de reconhecimento e gratidão pela lealdade demonstrada, se encarregara “religiosamente” das necessidades da família. “Na luta pela subsistência, os riscos assumidos pelo contrabandista eram quase sempre proporcionais aos lucros dos “senhores” e donos de estabelecimentos que consignavam mercadoria”107. E a pior parte, caso corresse mal, era sempre para o contrabandista e não foram poucos que ainda deixaram a família mais faminta por irem para a prisão, para ganharem meia dúzia de tostões, por “um par” de quilos de café ou por duas dúzias de ovos”, termina assertivamente o popular Chico Calafate, sem traumas pelo contrabando ter sido o “pão que a sua avó punha na mesa” e afirmando que “a sua velha avó foi candongueira108, até quase ao dia da sua morte já em finais dos anos 60. Mais a norte no rio, José Afonso, dos sítio dos Bens, no concelho de Mértola, numa entrevista contida na obra Memórias do Contrabando em Santana de Cambas de conserveiras, para detectar se as operárias, na saída de turno, carregavam nas “partes intímas” restos de pescado ou atum, para alimentar as suas miseráveis e numerosas famílias. 107 GUILLÉN, Antonio Rodriguez; “Contrabando na Serra de Aroche” in Cadernos Museu do Contrabando, nº1 , p.35 refere que : “O contrabando foi um meio de vida para os pobres. Mas não deixou de ser a acumulação de fortuna para os ricos”. 108 Termo vernáculo, muito usado em Vila Real de Santo António para definir Contrabandista 88 Luís Filipe Maçarico (2005), dá a conhecer uma visão bem mais árdua e dramática da vida do contrabandista em terras alentejanas do Baixo Guadiana, e aquela que se encontrava associada aos contrabandistas da “rebêra” 109. José Afonso revela que “(…)trinta e seis anos andei ê no contrabando(…)” e adiante que era “(…)uma rêbera malinha. Eram mais de mil tiros. Carabineros e Guarda Fiscal, eram uns e outros”. Como exemplo da dureza do oficio do contrabandista por estas paragens alentejanas, sobre a já mencionada necessidade de “largar cargas” para evitar a detenção”, refere fazendo uma estranha comparação que “(…)aqui de roda do monte, tem aí uns vinte calvários110…Pois! Cargas que eu perdi!”. Fala, sem pejo, de um cenário bem mais agressivo em termos de perseguição à actividade e que mais próximo à foz do Guadiana, felizmente, era menos comum, o da morte de contrabandistas e de um constante “abrir fogo” por parte das autoridades tanto portuguesas, quanto espanholas. “Na minha presença mataram o Raposo(…)Mataramno ali ao Moinho das Juntas! O guarda fez o tiro para ali e não matou mais porque não calharam(…)Aí às Juntas ajuntava-se o Margão111 e o Chança (…)passei o açude por baixo e vejo (…) um carabinero a correr por cima, volto para trás, por cima do açude e se você visse os tiros, era só fogo, pá!”. 109 Termo vernáculo local, para definir a Ribeira do Chança e os afluentes que formavam a bacia desta. Os calvários da região, assinalam a triste memória dos tempos do contrabando e o lugar onde tombaram contrabandistas mortos pelos tiros da Guarda Fiscal ou dos carabineiros, ou outros que pereceram afogados em açudes da Ribeira do Chança. O relato do sr. António Pinheiro (MAÇARICO;2005 p.42) ilustra como as famílias dos “infortunados” erigiam esses memoriais de forma a perpetuar a lembrança daqueles que partiam tragicamente, neste duro “oficio” da subsistência que era o contrabando. 111 “Margão” ou “Malagão” – afluente da Ribeira do Chança com curso regular de água durante todo o ano. Assim se encontra descrito nas Memorias Paroquiais de 1758: “Mértola - Corte do Pinto : Neste tal rio ou ribeyra de Chança entrão vários regattos ou barrancos que só correm enquanto chove. Entre todos, os principais são três: he o primeiro, o barranco de Alcaydes, que prencepia dentro da serra e em parte devide a serra da terra dos particulares, e entra em Chança no sitio aonde chamão as Varges Largas. Corre o tal barranco de Norte para o Sul athé entrar na dicta ribeyra pella parte de Portugal. // O segundo se chama Chumbeyro e tão bem corre do Norte pera o Sul, e vay meterce em Chança aonde chamão o Moinho de Nossa Senhora, tão bem pella parte de Portugal. O terceyro se chama Malagão, cujo entra na tal ribeyra pella parte de Castella, e corre de Nascente pera o Poente. Entre os três este tal Malagão he o maior e corre a maior parte do anno.” 110 89 Dá em jeito final da sua entrevista, um retrato fiel da miséria que fazia parte da existência e trabalho de um contrabandista “(…)Quilómetros! Com trinta quilos! Vinte e tal léguas!...Então cheguei a trazer também cargas de ferro! Aqui compravam o ferro, pois112! (…)Passei tantas! Cheguei a estar das cruzes para lá de oito dias sem comer, nem beber. Mamávamos o café e o açúcar, chupávamos…então não podíamos ir ao povo nem a parte nenhuma! Entrava e saia de noite!”. Finaliza, com um lacónico comentário sobre aqueles tempos e aquela existência. “Era uma vida triste!” Sobre o episódio da morte do contrabandista Raposo, aqui deixado por José Afonso, quem melhor que o irmão do referido contrabandista morto a tiro para elucidar sobre a natureza familiar do contrabando e o envolvimento de muitos elementos da mesma família na actividade. José Teixeira Raposo, de À-dos-Fernandes, nas proximidades da Mina de São Domingos, ilustra a difícil travessia da Ribeira do Chança, no Inverno, quando o volume de água era elevado e a travessia só era possível a nado e já perto da confluência entre o Chança e o Guadiana. Refere na sua entrevista, em que se respalda das intervenções e memórias de um primo seu de nome Feliciano Marcelino Teixeira que a “Espanha era para além, mas não saiam (os contrabandistas) para além, tinham que sair aqui para a vila, para dar as curvas, para passar para lá ao pé do rio…Andavam debaixo de chuva…Quando tinhas que passar a ribeira a banho, passar agarrados a uma corda?” Ao que o Sr. Raposo, assente: “A banho! Oh quantas vezes…!” José Raposo conta, para ilustrar o risco assumido e que por vezes se tornava inglório que: “ chegámos a andar quatro noites…quatro noites! Com uma carga às costas e às vezes chegávamos além e perdíamos as cargas e não ganhávamos um tostão” 112 Cargas de ferro, trazidas para Portugal e para a zona de Santana de Cambas, de paragens tão distantes como as minas de Las Herrerias, situadas a mais de trinta quilómetros. Foi também comum o transporte de “ferro-velho” do nosso país para Espanha. 90 e no rocambolesco e irónico destino, de episódios onde parecia estar marcado o insucesso e, essencialmente também, porque, por vezes, a deslealdade de uns, no intuito de salvarem a face ou caírem nas graças das autoridades, correspondia o infortúnio de outros. “Uma vez tínhamos as cargas agachadas ali no barranco, vínhamos além, encontrámos dois que iam para lá, foram ter com a guarda fiscal que tava ali, deram ameseio113, amarrei a carga e pús uma pedra, vieram, eles passaram por cima da pedra e nunca viram a carga, eu fui buscá-la e a minha mão, que Deus tem, deitou-a dentro de um alguidar e mesmo dentro do alguidar veio aqui a guarda, mesmo assim levou-a(…)”. Sobre a face mais obscura dos comportamentos humanos entre contrabandistas retorque que “ outros perdiam a carga e outros roubavam uns aos outros”. Para o conceito negativo das autoridades, de José Raposo, não será alheio o facto do episódio da morte do seu irmão às mãos da Guarda Fiscal, baleado com um tiro na cabeça. O sr. Raposo “abre o livro” para amarguradamente denunciar “os crimes” da força de ordem fronteiriça, do nosso país. Começa por dizer “foi um irmão meu, ali no Moinho das Juntas, levou um tiro na cabeça. Foi um dos nossos guardas que eram piores que os outros114! Mataram muitos! Então houve aí um, filho dum cabrão! Que matou três” (repete que, no local onde seu irmão tombou, mataram três homens mas que muitos morreram afogados). O cabrão ainda deu um tiro num homem de Moreanes. Apanhavam a gente e ainda davam porrada! Alguns iam para a cadeia, estavam lá meses, em Beja. Eu fui também. A Guarda levou-nos à frente dos cavalos até à Mina…Fui para a tropa…fui para o pelotão desse sargento que nos prendeu...ficou mê amigo” . 113 “deram ameseio”- denunciaram-nos à Guarda Fiscal. Os ameseantes ou amesantes era o termo usado nestas paragens alentejanas do Baixo Guadiana, para definir os informadores ao serviço das autoridades. 114 “outros” – os carabineiros espanhóis. 91 A confirmar a visceral relação de ódio aos agentes da Guarda Fiscal, o Sr. Raposo dá o exemplo de como em tempos da Guerra Civil, a nossa força de segurança “apanhavam os espanhóis (que fugiam da Guerra Civil) e levavam-nos para Sanlúcar e à noite os guardas espanhóis descarregavam as balas e matavam-nos”. Em fecho de entrevista, revela as mazelas que os contrabandistas carregaram até ao fim dos seus dias pelas duríssimas condições que a sua actividade lhes impunha e termina afirmando “ a gente era novo, mas estamos pagando agora. Então tem morrido muitos por causa disso, apanharam reumático”. Nem um laivo da “vaidade” e romantismo “de valentia”, expresso no relato do Sr. Ildefonso Martins e nem um louvor a uma mínima virtude. O mundo do contrabando era também o mundo da deslealdade, dos informadores, do “salve-se quem puder” e de duríssimas limitações para aqueles que tantas agruras passavam, pagando um alto preço pelo mísero sustento, seu e de suas famílias. Da parte mais frágil de um Portugal profundo e de cariz patriarcal, as mulheres eram também e essencialmente sujeitas às mais duras sevicias e ao desdobramento de actividades, não só como amas de casa que tudo faziam no seu espaço doméstico e ainda eram obrigadas pelas circunstâncias ao duro ofício do contrabando, carregando pesadas cargas e sujeitas a mil perigos e com a agravante de que à restrição de penas de prisão para contrabandistas femininas, correspondia um agravamento incomportável do valor pecuniário das multas aplicadas. Das histórias da já falecida115 anciã Emília da Conceição, conhecida popularmente como Emília Carrasco, rezam as crónicas que a “sua vida foi uma lenda”.(…)de mil tarefas, de cozer o pão e atravessar ribeiras com 115 À data da entrevista, em 2004 e com 97 anos, onde já surda e incapaz de falar, foi louvada pela sua vizinha Isabel Batista – filha da companheira contrabandista de Emilia, Maria Luísa - que deu o exemplo de coragem desta mulher e por Miguel Bento que a classificou como “uma grande contrabandista”, sendo comovente a exaltação a esta senhora da qual vizinhos afirmam que teve “uma vida lendária” 92 cargas” que com a sua “companheira de oficio” Maria Luísa, tantas vezes atravessou a fronteira sem certezas e deixando a família e a pequena filha, então, Isabel Batista que empresta hoje a memória e que diz “ elas iam em grupos, E a gente, pequenas, e depois a minha mãe não chegava e a gente andava sempre espreitando, aflitas.” Já a Dona Bárbara Luciana, de Montes Altos, refere que “ (…)os guardas fechavam os olhinhos às mulheres. A gente abalava daqui, tinha que escolher as horas que pudesse escapar dos guardas. Se os guardas iam para aquele lado, a gente ia para este lado… Levava dois, três quilos de café. Nas ribeiras levávamos às costas e à cabeça. Era uma vida muito triste!”. Em jeito de conclusão afirma que “ eles (os guardas) respeitavam a gente, não tratavam as pessoas mal, apanhavam as coisas (…) Tinham que fazer também a vida deles!”. José Manuel Medeiros, de Bens, confirmando a ideia de sacrifício e de extremas dificuldades sofridas pelas muitas mulheres, quer portuguesas quer espanholas, que se dedicaram ao “oficio” de contrabandista, ilustra de forma dramática as formas que a sobrevivência assumia, deixando um “ (…)elas (contrabandistas espanholas) vinham aqui descalças, coitadas”. Sobre o contrabando e as suas raízes, desde os primeiros tempos da Mina de São Domingos e da sevícias por parte das forças de ordem vivida na própria pele, tanto das autoridades portuguesas – as oficiais e a policia privada da Mina de São Domingos-, quanto espanholas, dois contrabandistas da Corte do Gafo de Baixo, o Sr. Eurico Mestre e o Sr. Francisco Constantino Pereira deixam seus testemunhos. O Sr. Eurico, ilustra no seu relato a tipologia de contrabando, no séc. XIX e ínicio do séc. XX, fazendo alusão aos seus bisavós que “(…) levavam para lá gado. Primeiro era de cabras, iam para lá com gado!. Mais tarde levavam grão, farinha, 93 açucar, sabão, arroz, corda.(…) E de lá traziam sedas, bombazinas, enxadas, cravos para as bestas, sacos de chumbo”. O relato do Sr. Eurico, reforça a natureza brutal da intervenção das autoridades dando a conhecer um particular modo de actuação dos carabineros espanhóis. “os carabineiros chegavam a cheirar as costas dos portugueses: Cheiras a café! Onde está a carga?” E afirma peremptoriamente “Eram muito brutos!”. Enfatiza ainda à situação deplorável dos refugiados espanhóis da Guerra Civil no país vizinho, revelando que “ às vezes vinham para aqui as espanholas, fugidas da guerra, cansadinhas, cheias de piolhos, comiam saramagos amargos”, não sendo igualmente “famosa” a vida das pessoas no nosso país, afirmando que na Corte Gafo, “a gente aqui ficávamos comendo farelos!” e do recurso a frascos de sangue de cavalo para suprir a fome que grassava, nesse difíceis tempos. O Sr. Francisco Constantino Pereira também da Corte Gafo, é exemplo do contrabandista de “carreira curta” em virtude do infortúnio e das agruras passadas. Já sendo “velho” quando se iniciou na actividade “devia ter aí 27-28 anos”, conta como abruptamente a carreira de contrabandista chegou ao fim. “Aquilo estava uma patrulha, alguns sete ou oito lá no rio…Malagão. Eram seis guardas, todos em círculo, até por acaso, quando íamos a baixar para o Malagão eu vi a lanterna e disse ao meu camarada para não avançarmos, porque à frente quando demos por isso, estávamos todos metidos no circulo deles. Dei uma porrada numa pedra da ribeira que ainda hoje me doí. Fui com os carabineiros, estive ali…na Póvoa116…estive quatro dias preso numa casa…Depois fomos para Huelva. Tive lá preso 27 dias. De lá então viemos para Portugal. Viemos ali pela polícia de Vila Real de Santo António. E no outro dia fomos lá ao tribunal, depois 116 “Póvoa” - termo para definir Puebla de Gúzman, onde se encontrava a comandância da Guardia Civil. 94 vieram com a gente até Mértola entregar a tribunal. Depois daí nunca mais fui ao contrabando.”. Do outro lado da fronteira, a crueza dos relatos não se diferencia quanto às dificuldades sofridas. Como traços comuns, as motivações que impeliam ao contrabando (“la necesidad que habia era muchísima…mucha hambre”), a Guarda Fiscal portuguesa entendida como muito mais benevolente que os Carabineros e o louvor depois de tantos anos à solidariedade dos habitantes raianos portugueses, que mesmo sujeitos à miséria e a todas as dificuldades foram inexcedíveis para os vizinhos que sofriam as agruras da guerra fratricida de 1936-39. O “solitário” Don Bartolomé117, da localidade de Paymogo na Sierra de Huelva, começa o seu relato por ilustrar a natureza familiar da actividade “De pequeño iba com mi abuelo(…)mi padre murió y me dedique al contrabando, contrabando de café, de muchas cosas…llevaba artículos de España para Portugal, una carga de aqui para allá y de allá para acá”. Quanto à natureza das mercadorias transaccionadas, Don Bartolomé indica “pana(tecido)…coñac…de todas las marcas…” e dá ainda indicações sobre a realidade cambial desses tempos “la peseta estaba a cuatro tostones”, o que facilitava enormemente o comércio e se traduzia no lucro vital à subsistência, para os contrabandistas do país vizinho. E, ainda, da singularidade dos produtos que tinham procura em Portugal, casos dos “ sombreros de (…) torero, zapatos, pañuelos de todas las calidades, ropas para mujeres, todos los perfumes…”Montenegro”, “Tabú” y “Madera de Oriente”. Conta igualmente a realidade da miséria, aludindo que “trabajando aqui (em Espanha) se ganaba 12 pesetas y un pan vália dieciseis.”. Descrevendo as rotinas conta que passava a fronteira no Guadiana, recorrendo a uma 117 MAÇARICO, Luis Filipe; Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, Santana de Cambas, 2005 pp.58-59 95 barca que existia en Los Molinos (perto de Sanlúcar de Guadiana) e que chegava a ir fazer entregas a Beja, onde chegou a estar preso. De volta, trazia o valorizadíssimo café português proveniente de Angola, onde “costaba setenta y tal pesetas y de alta calidad”, pelo que era um produto que ocupava o topo de preferências nos esquemas de contrabando, tantos dos contrabandistas do nosso país, quer dos do país vizinho. Rafael Maestre de Aroche118, localidade bem adentrada na região da Sierra de Huelva, mas que a miúde usavam o caminho sul e a “rota do Chança” para a prática do contrabando, revela no seu relato uma das mais comoventes histórias de heroísmo e camaradagem de todas as recolhidas nesta investigação. A heróica resistência e lealdade até à morte do seu “compañero” Vidal, que teve o infortúnio de ser detido pelos carabineros nos campos de Monteblanco, com uma “carga” de café, é uma exaltação à grandeza do espirito humano. Recorda com avassaladora emoção, que o levam às lágrimas depois de tantos anos volvidos, que "había una enorme luna llena, escuchamos el alto de los guardias y yo pude correr, Vidal fue encarcelado y recibió palizas para que revelará mi nombre, pero siempre se mantuvo en silencio diciendo que no me conocía, me salvó, pues querían ir a por mi, él moriría en la cárcel". Famosas pelas epopeias levadas a cabo, as contrabandistas espanholas, em coragem e sofrimento, ombreavam de igual para igual com os homens de ambos países. Deve ser referido que a politica de represálias às contrabandistas espanholas por parte dos agentes da Guardia Civil e Carabineros, era incomensuravelmente mais dura que a praticada pelos agentes da Guarda Fiscal, estando prevista a prisão119. Muitas destas mulheres que iniciavam-se no contrabando impelidas pelo facto de serem sustento único 118 Relato presente na edição online do jornal Huelva Información , no artigo Contrabandistas por la Sierra, consultado em 28 de Março de 2013 e disponível em: http://www.huelvainformacion.es/article/ocio/20279/contrabandistas/por/la/sierra.html 119 Em Portugal, as mulheres contrabandistas em caso de detenção “apenas” se sujeitavam a multas, que pecuniariamente eram bastante gravosas. 96 da família, em virtude da prisão e morte de muitos dos seus maridos, nos períodos da Guerra Civil e no pós-guerra. Rodriguéz Guillén no seu artigo Contrabando na Serra de Aroche120, refere a recorrência de abusos de todo o tipo, a que as mulheres se encontravam sujeitas121 e revela um dos retratos mais cruéis das contingências agravadas a que as mulheres estavam sujeitas, com a referência à necessidade de, por vezes, transportarem para o contrabando filhos de tenra idade, por não terem com quem ficar . A anciã Doña Josefa122, também conhecida por Pepa, residente em El Granado, representa a face destemida de tantas outras mulheres contrabandistas do país vizinho que além do sustentáculo dos seus lares, eram bravas mulheres que não regateavam esforços em busca do sustento das suas famílias. No seu relato, descreve como as jornadas de contrabando só até Portugal, levavam “dos horas de camino, mirando para todos los lados. Unas veces salíamos muy bien, otras veces con cosa poca. No había problema con la Guardia”. As condições da Ribeira do Chança eram determinantes para a prática da actividade para as mulheres, revelando que quando a ribeira estava cheia “No salia” e que por vezes aconteceu que, no regresso, encontrando-se a ribeira impraticável, se albergava em Santana de Cambas na casa de uma família portuguesa onde ficava “en família”. A amiga portuguesa Maria Júlia completa a estória de Doña Pepa, revelando que esta depois de anos de contrabando e ganhando com o açúcar e café que transportou ao longo de anos e com a venda dos “carrinhos de linha que cosia 120 GUILLÉN, Antonio Rodriguez; “Contrabando na Serra de Aroche” in Cadernos do Contrabando do Museu de Santana de Cambas, vol. I, p.42 121 Rodriguéz Guillén, refere a natureza abusiva da chantagem às mulheres contrabandistas, praticada quer por agentes portugueses, quer pelos carabineros. Refere que a troca de favores sexuais era uma prática imposta às mulheres, de modo a evitar a prisão e o consequente agravamento da miséria das suas familías. Esta ideia não obtem qualquer confirmação, nem é mencionada remotamente nas dezenas de relatos, tanto de homens ou mulheres, pelo que esta tese defendida é altamente discutível e impossível de confirmar, seja pelo número reduzido de intervenientes que chegaram aos dias de hoje, ou por força da vergonha e constrangimento que impediram a franqueza dos relatos. 122 MAÇARICO, Luis Filipe, Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, p.63 97 debaixo da roupa”, acumulou o suficiente para iniciar o seu próprio próspero negócio na localidade espanhola, tendo uma das “casas”, melhor apetrechadas da região e que fornecia os contrabandista, porque “ela nasceu para ser comerciante”. Um dos raros casos de como, o contrabandista (e uma mulher!) construiu a vida, ascendendo a pulso nessa cruel estratificação profissional, de solitária a comerciante. 98 2.3 Os “comerciantes” Deve entender-se também a figura do comerciante como elemento fundamental do ciclo e estrutura do contrabando. Além do referido abastecedor e patrão do Sr. Ildefonso Martins, o Sr. António Feio, de Mértola, ou dos senhores Vargas ou Capa, donos em Vila Real de Santo António de estabelecimentos que abasteciam amplamente de bens, um grande número de contrabandistas do Baixo Guadiana, assume, ainda, importância transcendente do ponto de vista humano, casos particulares como o do já falecido Sr. João Carrasco, comerciante de mercearia e bebidas durante quase cinco décadas, em Santana de Cambas, que, pelo exemplo do elevado carácter e humanismo revelados para com os refugiados espanhóis durante a Guerra Civil no país vizinho, tem uma merecidíssima placa evocativa de homenagem nesta localidade, conferida pela associação republicana do país vizinho Foro por la Memoria de Huelva ou da própria Junta de Andaluzia pela ajuda prestada aos refugiados, não obstante, os enormes riscos que decidiu assumir, tendo sempre os valores da justiça e defesa da vida humana como principal bandeira. Em entrevista dada em 2003, as memórias do já então centenário Sr. Carrasco (e já falecido entretanto) vão ao encontro do que os relatos dos intervenientes até agora mencionados, repetem à exaustão. Começa por referir sobre a vida na região que “era uma vida de miséria quase total. Aqui era a agricultura e era a mina de São Domingos que ocupava toda esta gente, que mourejava aí ao rigor do campo. E o contrabando – afinal de contas era umas das bases em que aqui se vivia. A região sempre foi agreste e muito desprotegida. Era uma zona muito habitada. Os chefes de família que trabalhavam no campo ou na mina viviam de um salário exíguo, que mal lhes dava para 99 comer. Viviam com dificuldades, pois.” E refere em sua defesa e da sua actividade, para justificar as opções tomadas em favor das pessoas que “muitas vezes quem suportava toda esta crise era o pequeno comércio.” E, com veemência, reforça a ideia que ainda tantos lhe reconhecem, enquanto humanista e homem que abraçou ao longo de toda a vida, valores socialistas indisputáveis: “(…) além de toda a miséria que grassava aqui com abundância, eu sempre fui um defensor dos que viviam mal e dos que viviam na miséria, por conseguinte, dispensei-lhes todo o meu auxílio, aquele que pude”, e dando o exemplo do preço que pagou, sendo “(…) multado algumas sete vezes pela Guarda Republicana…e isto porquê? Porque favorecia os mais desfavorecidos, porque estava sempre ao lado deles, defendia-os. E para mim era uma causa que eu julgava de todo defender para minimizar a miséria que grassava aqui na região”. Resgatando a memória da Guerra Civil e procurando que a memória seja sempre o legado para que nunca sejam esquecidos os tempos que não se devem repetir, afirmou “ os alentejanos não conhecem o que se passou na fronteira (…)Foi uma miséria constante e os que vinham de lá famintos aqui à procura de uma migalha de pão e eu aqui recolhi muitos foragidos de além, que eram contra o Francisco Franco. Havia aqui um palheiro, uma habitaçãozinha qualquer, que era da minha sogra, e eu arranjei-lhes ali cama e tudo e dava-lhes de comer e muitas vezes ali o servia”. Assumindo sem reservas a fraternidade internacionalista, colocou-se tantas vezes em risco, a sua filha Maria Júlia Raposo, num relato também de 2003, recorda com orgulho o enorme carácter do seu pai contando o seguinte episódio “ um guarda-fiscal que era uma pessoa muito bem formada, muitas vezes eu ouvi ele dizer para o meu pai: João, tu qualquer dia és escudilhado, porque os gajos vão-te à biqueira e lixam-te a ti e vão sofrer os teus. E o meu pai defendia-se: Então mas as pessoas vêm e eu não vou negar-lhes abrigo, não vou fechar-lhes a porta, 100 não vou mandá-los para trás. Porque eu, se vivesse na situação deles, também gostava que me acolhessem…”. No polo oposto, mas na mesma actividade de comerciante se encontra, o famoso “Marrocos” de nome Manuel Afonso Palma, que de forma menos altruísta, se tornou lendário por ser o maior comerciante e organizador de esquemas de contrabando na região da Mina de São Domingos123. O irmão deste, de nome José Afonso Palma deixa-nos o relato de como, o comerciante “Marrocos” pagava também a maioria de vezes para que a prática transgressora pudesse vigorar sem dissabores. A necessidade de corrupção das autoridades é constante no relato, destacando-se uma prática inusitada conhecida como despacho e inclusive institucionalizada pelos comandos superiores da Guarda Fiscal, nos anos 30, onde se davam internamente instruções, aos praças da mesma, para acompanhar os contrabandistas à fronteira de modo a facilitar a circulação dos mesmos124. Refere o Sr. José Palma, que o pior era do outro lado da fronteira “ (…)pois via-me ali negro com os carabineiros(…)Ia-lhe a vender a eles (…) às vezes ainda despachava uns quilinhos, uma coisa qualquer para eles ficarem contentes senão ainda era pior(…)porque depois o pessoal tinha falta de se ir governar além…e era pior.”. Mas em jeito de fecho, refere a propósito desta cultura de corrupção e favores que “eu tinha muita confiança com eles, eles comigo tinha sempre muita confiança, sempre. Eu ia além (Espanha) de qualquer forma, viam-me…nada, nada, a mim tampouco125”. 123 MAÇARICO, Luis Filipe, Memoria do Contrabando em Santana de Cambas, 2005, pp.41-45. Os relatos do Sr. António Pinheiro e o Sr. Francisco Neto, (pp.41-45), referem o “Marrocos” (assim chamado pelo sítio próximo à Mina de São Domingos de onde era originário) como “o rei da zona” e afirmando-se os referidos contrabandistas como “trabalhadores” por conta do comerciante. 124 Idem, ibidem, p.69 125 Idem, ibidem, p.41 101 Nas dimensões do contrabando houve, pois, comerciantes que entraram para a posteridade pelo que lucraram com as perdas, mas com o ganho das vidas salvas e pelo sofrimento de tantos, minorado, ou outros que ganharam ainda a notoriedade não só pela acumulação de lucro, mas pelo número de caminheiros e freteiros a seu cargo. João Carrasco ou o “Marrocos”, duas faces da mesma moeda. Pelo meio a miséria atroz que impelia ao contrabando, os indivíduos íntegros no oficio de contrabandistas ou a vileza dos amesados, um limbo permanente entre brutalidade e corrupção nas forças de ordem, em ambos os lados da fronteira. “Era uma vida muito triste!” 102 2.4 As forças de segurança – os “Guardas” e os “Carabineros”. Como o desenvolvimento do trabalho tem vindo a revelar, a Guarda Fiscal e os carabineiros espanhóis, representavam a face oposta da actividade do contrabando, sem contudo muitas vezes ser clara ou linear, a análise do papel e participação dos agentes. Dos “sanguinários” que ansiavam pelo “honroso” acto para a folha de serviço, que sendo um “castigo” fosse “salvo-conduto” para os desejos de reunião familiar do agente deslocado da sua área de proveniência, como é expresso no relato do Sr. António Pinheiro126, de Moreanes que conta, a terrível história como um dos agentes da Guarda Fiscal destacado em Santana de Cambas, originário do Algarve, em concreto de Salir, “que estava lá todos os dias com a gente nos copos. Todos os dias, todos” e que repetia “eu tenho que matar um homem para ir daqui embora”. O Sr. Pinheiro “pensava que era brincadeira”, até que a dura realidade dos factos o fez ver que o dito agente da GF, falava demasiado a sério. Diz o Sr. Pinheiro sobre a natureza do dito agente “ matou o João Raposo porque ele quis. Para aí uns três tiros, para me matar também a mim. Quando a gente ia, passa perto da gente…deu um tiro ao camarada, matou-o logo!”. O Sr. Pinheiro reitera que estes “comportamentos” eram de maior propensão nos agentes vindos “de fora”, pois à “morte de um homem” correspondia esse “castigo”, que os pudesse reunir com a mulher e filhos, que se encontravam longe. Ao longo desta pesquisa, em concreto neste capítulo, onde se consubstanciam os relatos dos intervenientes que apoiam a realidade existente à altura, temos tido a oportunidade de verificar as principais diferenças entre a Guarda Fiscal e o Cuerpo de Carabineros. Na série de artigos do início dos anos 50 (em concreto de 1952), que a 126 MAÇARICO, Luis Filipe ; Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, p.42 103 jornalista Manuela de Azevedo, no extinto Diário de Lisboa, dedicou à fronteira do Guadiana com o titulo “Altos serros abaixai-vos, Deixai ver o Guadiana”, são apontados alguns factores que eram determinantes para a compreensão revelada, em regra geral, pela nossa força de segurança fronteiriça para a miséria e contingência de vida dos contrabandistas, por oposição, à ferocidade e brutalidade dos Carabineros. As contingências politicas e sociais resultantes do pós-Guerra Civil, da fronteira como espaço de fuga de simpatizantes da República espanhola e populações, dos massacres e ajustes de contas perpetrados pelos Ultras, corpos militares e paramilitares do regime franquista, deram o armamento e poderes ampliados enquanto força repressiva aos carabineros. A Guarda Fiscal, tendo uma limitação imposta pelos comandos superiores e pela política de economia do Estado, que comprometia os agentes no pagamento de armamento usado e no completo detalhe das operações realizadas, por força, peso burocrático e económico da manutenção do armamento e até dos disparos, era claramente mais equilibrada na hora de actuar. Outra das razões para a cumplicidade entre guardas e contrabandistas no nosso país, prendia-se com uma curiosa relação que se estabelecia, em regra, nas tabernas e num conhecimento mútuo, que permitia de igual modo estabelecer entendimentos quanto a despachos127, que permitiam rendimentos adicionais aos agentes que, igualmente, viviam com grandes dificuldades por força do exíguo salário auferido. A natureza de uns e outros foi inclusive determinante para a evidente fixação em definitivo dos agentes e da sua vida familiar, nas áreas de fronteira. Se muitos dos nossos agentes continuaram pela região e aí se radicaram, constituindo e criando as suas famílias junto às zonas fronteiriças, os carabineros espanhóis que prestaram serviço no 127 Mercadorias ou valores monetários, pagos em “esquema de corrupção” pelos contrabandistas aos agentes da Guarda, para garantir segurança e liberdade, nos transportes de cargas. 104 Baixo Guadiana, em regra, após o seu período de comissão ou até de aposentadoria, não continuaram na região e permaneceram lembrados, apenas, pelos piores motivos. Outro dos particulares destaques desta complexa relação, entre agentes da Guarda Fiscal e os contrabandistas, prendia-se com a relação familiar existente entre ambos. Não são incomuns os casos de guardas que tinham irmãos ou familiares envolvidos no contrabando e em inúmeras ocasiões, contrabandistas na juventude foram agentes da Guarda Fiscal, em idade adulta. Manuel Bernardo Pereira128, antigo agente da Guarda Fiscal, natural da Mina de São Domingos, onde residia à altura da entrevista em 2004, é exemplo desta relação familiar sui generis. Afirma sem renegar os seus familiares, que “o meu pai foi contrabandista e foi mineiro. O meu irmão foi contrabandista…”. Após esta nota descreve, então, as actividades e composição da força à qual pertencia, e no concreto para a zona de Mértola, referindo que quanto à origem dos agentes “ havia mais nortenhos. Mas depois já em 1966 a coisa estava mais ou menos equilibrada. Eu nasci na década de 40. Lembro-me perfeitamente das quadrilhas. Tive lá o meu irmão. Havia dos comandos, directrizes para apanhar cargas. Tenho o orgulho de dizer que nunca apanhei cargas de contrabando. Figuro numa apreensão que nunca fiz. Eu estava de serviço no cruzamento dos Sapos129. E então vi passar uns, e apanharam depois uma égua e dois machos. Veio-se a saber que eram da Corte Sines130. Depois teve que se levantar auto de notícia. Como eu estava de serviço, eu tive que figurar na apreensão”. A relação demasiado próxima com os contrabandistas valeu-lhe dissabores com os comandos, dando como exemplo: “eu estava de serviço no Pomarão e às vezes tinha dissabores com os comandos por me dar bem com os contrabandistas. Entre os contrabandistas havia rivalidades. Por vezes havia amesados. Numa altura há 128 MAÇARICO, Luis Filipe; Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, p.71 Sapos –localidade na freguesia de Santana de Cambas, e próxima à Mina de São Domingos. 130 Outra localidade situada nas proximidades à Mina de São Domingos 129 105 um grupo que passa no Poço das Mós e saltam-lhe os guardas…o ti Zé Afonso131 viu-se tão apertado que disse «Eh compadre Pereira sou eu!». Os guardas pensaram “Será que o Pereira estará feito com eles?” Em geral, numa análise mais ampla sobre os diversos e mais comuns tipos de actuação dos agentes da Guarda Fiscal, patentes nos relatos orais da obra Memórias do Contrabando em Santana de Cambas, destacam-se os poucos que preferiam não actuar e que ficavam sujeitos à alçada disciplinar com despromoções, transferências e punições. Aqueles que pareciam ter gozo na retenção de cargas e de como este tipo de intervenção, os poderia compensar. Outros que se destacavam pela especial apetência, em prender contrabandistas. E o último (e já mencionado) tipo, o dos agentes “assassinos” em geral, homens deslocados dos seus locais de origem, sem conhecimentos ou comprometimentos com envolvidos no contrabando e que matavam por lhes facilitar “o regresso a casa”. Outra vida dentro da Guarda Fiscal, foi a do Sr. Mário Batista132 de 80 anos e que prestou serviço em Alcoutim. Entrou “bem novo”, pois “era isso ou a ir para a lavoura, que naquela altura era muito difícil”. Conta como o “salário era curto, mas todos os meses picava o ponto” e, mais tarde, teve direito à almejada reforma. Ao serviço durante mais de 30 anos, quase sempre na zona de Alcoutim tendo apenas dois breves interregnos, quando inicialmente prestou serviço, em Faro e depois em Lagos, tendo também sido nesta localidade, onde primeiramente foi destacado para a função de tripulante de lancha, e a posteriori, tendo sido destacado para patrão da lancha da Guarda Fiscal, que controlava as actividades no Guadiana, da foz até ao Pomarão. Recorda os difíceis tempos da Guerra Civil espanhola e do Estado Novo, para referir 131 132 Do qual já abordámos o relato no capítulo dos “Freteiros”. In Jornal do Baixo Guadiana, nº151, Dezembro de 2012, p.13 106 “que as fronteiras estavam cerradas a ferro e fogo e nesse tempo era muito difícil tanto para os civis como para os militares.”. O Sr. Mário Batista, refere que a função que principalmente lhes estava destacada, desde a fundação da Guarda Fiscal em 1885 (ainda enquanto corporação paramilitar), era a do controlo fronteiriço e fundamentalmente o combate à fraude e evasão fiscal que o contrabando representava. Fazendo alusão às tipologias de contrabando que tanto já aqui foram descritas, faz uso de um assinalável sentido de humor para justificar que ao longo de 30 anos jamais tenha feito uma apreensão e que não tenha detectado em flagrante, qualquer contrabando ou actividade de contrabandistas. Refere que “a lancha se calhar fazia muito barulho e eles escondiam-se, nas margens do rio e dos ribeiros e safavam-se à apreensão.”. De uma vida de controlo e combate ao contrabando, destaca-se uma ideia em que “não considerava um contrabandista um inimigo”, revelando que conhecia a grande maioria tanto os dos montes, quanto os da vila (Alcoutim)” e relembra a engenhosidade dos contrabandistas, que inclusive chegavam a recorrer a crianças para controlar os movimentos da guarda e, em concreto, para espiar as conversas entre agentes junto aos postos. Na lógica de uma relação de respeito mútuo existente, revela a compreensão para aqueles que desenvolveram actividade enquanto contrabandistas e que contribuiu, sem descurar as suas próprias responsabilidades, para que ainda hoje os tenha como amigos, fica bem patente no seu depoimento onde afirma que “eles tinham que sobreviver e sempre fui amigo de todos(…)cada um tinha a sua missão eu a minha, eles a deles”. 107 Quanto aos carabineros, quase nada restou da memória própria. Presos na encruzilhada histórica da sua brutalidade, do papel desempenhado no Franquismo e do carácter desumano e atroz das suas intervenções. Talvez a vergonha ou o peso na consciência sejam determinantes para a quase inexistência de fontes onde os mesmos, em discurso directo, falem sobre esses tempos. Sabemos ao certo e pelos inúmeros relatos de contrabandistas e população da raia do Baixo Guadiana, que, em regra, praticamente nenhum dos agentes desta força de ordem, se radicou na região, ficando a sombra da sua presença, marcada, por exemplo, pelos calvários junto ao Chança que marcam lugares de tragédia, ou pelo relato do Sr. Ildefonso Martins e a estória do infortunado António Anica. A memória dos carabineros tanto no nosso país, quanto em Espanha é, essencialmente, a memória das balas que fizeram tombar tantos infelizes, que pelo contrabando e misera subsistência, ou por motivos políticos, pagaram o mais alto preço. 108 3. A estrutura de vigilância das forças de ordem – os Postos do Baixo Guadiana. O corpo da Guarda Fiscal, desde a sua criação oficial com o decreto nº4 de 17 de Setembro de 1885, na sequência da reorganização resultante do relatório da Reforma Aduaneira desse mesmo ano, em substituição da anteriormente existente Guarda de Alfândegas, constituiu-se como força responsável em todo o país pela fiscalização visando o controlo da actividade mercantil, logicamente do contrabando, da devida arrecadação das receitas públicas a esta associados, quer nos espaços interiores do país, mas essencialmente no espaço de fronteiras, quer as costas de mar, quer as fronteiras secas e fluviais. Com a estruturação de cariz militar deste corpo, efectivada no ano seguinte, deu-se a criação de quatro batalhões nacionais – Lisboa, Porto, Coimbra e Évora- e a oficialização da Guarda Fiscal, como força de ordem de estrutura militar, possuindo nas suas fileiras mais de 4.200 homens na força terrestre (chegando durante o século XX aos 8.600 homens), além dos efectivos destacados pela Marinha Real ao serviço da Guarda Fiscal, para o serviço marítimo de vigilância de costas, feito pelas canhoneiras “Tejo”, “Faro”, “Guadiana” e “Açor”. A Guarda Fiscal relativamente ao serviço terrestre (que nos interessa em particular, pois era a categoria de serviço em que os agentes responsáveis pelo controlo da fronteira do Baixo Guadiana se enquadravam), distribuía os efectivos, descentralizando a partir dos locais de Batalhão Nacional fazendo parte (no que respeita ao Baixo Guadiana) do Batalhão nº 2 sediado em Évora, depois em Companhias segundo os distritos (Faro ou Beja), numa escala mais local em Secções, onde se procedia à coordenação de actividades e efectivos de uma região específica, açabarcando a actividade de diversos 109 postos (Vila Real de Santo António, Alcoutim e Mina de São Domingos), como estrutura de base os Postos que, de forma mais ampla, enquadravam os efectivos em termos de desenvolvimento da actividade em função à especificidade territorial onde se localizavam, podendo destrinçar-se depois, segundo tipologias, em postos fiscais, postos de controlo de passageiros, postos com missão de serviço especial, postos de serviço marítimo, ou ainda, a delegação de efectivos em outros órgãos que necessitassem da presença de elementos da Guarda Fiscal. No Baixo Guadiana, além das secções responsáveis pela coordenação, encontravam-se a quase totalidade de tipologia de postos, acima discriminados. A construção dos postos, na região, remonta ao período da criação desta força de ordem após 1885 e estender-seà por quase uma década. A sua distribuição foi assim efectivada: como dependentes da Mina de São Domingos - Corte da Azinha, Corte do Pinto, Santana de Cambas, Malpique e Pomarão- enquanto postos fiscais; sob a jurisdição de Alcoutim e ao longo do Guadiana desde Mértola, localizavam-se os postos de Mértola, Vaqueira, Bombeira, Barranco dos Lombardos, Pinheirinho, Penha de Águia, Barranco do Carrascal, Barranco da Ameixoeira, Porto das Mós, Rocha Vermelha, Posto da Mesquita, Canavial, Barranco do Álamo, Vascão, Enxoval, Premedeiros, Lourinhã, Alcoutim, Alcaçarinho, Abrigo 2º, Grandacinha, Pontal, Laranjeiras, Guerreiros, Barranco dos Pereiras e Foz do Odeleite. Para jusante, Vila Real de Santo António controlava Freixo, Amoreira, Vinharias, Almada do Ouro, Abrigo 1º, Azinhal, Ponta do Cinturão, Corte e Junqueira133. Destaca-se ainda nestes primeiros anos da Guarda Fiscal, as funções desempenhadas na vigilância do rio entre Mértola e Vila Real de Santo António, pela lancha a vapor Guadiana, como “parte especial de esquadrilha” na vigilância costeira ao sotavento 133 In Boletim da Guarda Fiscal, 1894, pp. 457-458 110 algarvio134. Após a Guerra Civil espanhola e, durante o segundo e terceiro quartel do século passado, a lancha Marezia pilotada pelo sr. Mário Batista garantiu estas importantes funções no espaço fluvial. Por oposição a este grande número de postos no nosso país, a estrutura de vigilância dos carabineiros diferenciava-se pelo reduzido número de postos, todavia os existentes albergavam um grande número de efectivos. Neste espaço do Baixo Guadiana até ao Pomarão, onde o Chança começa a definir a fronteira entre países, encontravam-se tão somente três casas cuartel , a de Cañaveral, a de Puerto de la Laja e a de Cumbres de Sán Blas. Este sistema baseava-se na residência dos efectivos e suas famílias em amplos casarões, onde se encontrava a guarnição e havendo inclusive blocos anexos também de grandes dimensões onde se localizavam cavalariças, oficinas e paióis. No relativo à análise da arquitectura dos postos situados ao longo do Baixo Guadiana, predominantemente nos concelhos de Alcoutim e Castro Marim (com nuances evidentes em Vila Real de Santo António, ou nos postos inseridos já na circunscrição da área da Mina de São Domingos), tendo áreas superficiais diversas dependentes da tipologia de posto ou da importância dos mesmos, um traço comum os vincula, que é a construção em típica arquitectura rural que se enquadra nas tipologias do Património Rural construído no Baixo Guadiana135. Em regra, junto ao Guadiana, os postos da Guarda Fiscal localizavam-se na proximidade dos aglomerados, ou mesmo em posição isolada em relação aos mesmos, correspondendo sempre um projecto tipo, com pequenas variantes, que se organizavam em dois edifícios próximos: o edifício principal de duas águas e a cozinha dissociada com uma água apenas. O caso particular do Posto do Pontal, apresenta ainda uma tipologia que denuncia uma evolução desta tipologia 134 135 In Boletim da Guarda Fiscal ,1891, p.48. In Rural Med – Património Rural Construido do Baixo Guadiana, 2004, p.205. 111 inicial, era composto por um edifício único, com a cozinha integrada e um corredor central, bem como um espaço exterior com cavalariças, pois os agentes que cumpriam serviço eram em maior número e, muitas vezes, as missões de vigilância requeriam o uso de montadas, pelas longas distâncias percorridas. A solução arquitectónica dos postos do Guadiana, primou pela simplicidade rústica e pela concordância com a envolvente rural e enquadramento paisagístico da região, privilegiou sobretudo o utilitarismo por oposição ao conforto (que, diga-se, mesmo nas habitações particulares não era a prioridade, quer pelos parcos recursos das “gentes”, quer pelos extensos agregados familiares que nesses tempos eram uma constante). Partindo da composição padrão dos postos em termos de pessoal, que se constituía por um comandante de posto (um graduado ou, como acontecia recorrentemente nesta região, um cabo) e a guarnição constituída até cinco soldados em regra136. O posto no relativo às divisões que o compunham, era formado por uma caserna onde estavam as camas destinadas aos soldados, um gabinete e um quarto individual reservado ao comandante de posto e ainda uma divisão destinada a ser arrecadação. A fachada do edifício, era composta por uma porta central simples em madeira, e duas janelas batentes simples com caixilhos de madeira formando cruz, dois vidros quadrados em cada batente, colocados em posição paralela à mesma distância da porta para ambos lados. As portas e janelas eram contornadas por emolduramentos em relevo, que eram pintados com a cor verde regulamentar, contrastando com o branco caiado das paredes. Em alguns casos, encontrava-se em relevo o logo da GF e o mastro da bandeira encontrava-se inserido superiormente em relação ao eixo de simetria da fachada, em posição inclinada e obliqua à face da parede. 136 In Rural Med – Património Rural Construido do Baixo Guadiana, ed. Odiana, 2004, p.205. - relatos sobre os postos da Guarda Fiscal e sobre o posto das Laranjeiras de Carlos Francisco do Monte do Cerro dos Balurcos, n.1939 e Manuel Afonso, Monção do Minho, n.1927 112 Os telhados eram os típicos telhados da região com estrutura de sustentação em vigas de madeira e forros interiores com alinhamento em canas, preenchimento de argila e esparto, com recurso a telha rústica para isolamento, das referidas variantes dos edifícios que compunham o esquema tipo dos postos. No exterior, no espaço localizado diante da fachada, pontuava um terraço, onde geralmente os integrantes do posto, efectuavam a vigilância, tendo excelente panorâmica do rio. É de referir que a localização dos postos, surgiu da necessidade de controlo e vigilância, especificamente em locais onde se processavam desembarques e embarques de pessoas e bens, e que hoje, ainda que pareça descontextualizado o local de sua inserção, desempenharam de forma assinalável as funções para o qual foram criados. Alguns após a cessação de actividade137 e posterior abandono, que foi acontecendo nos anos 70 e 80 do séc.XX , foram vendidos pelo Estado a privados que os reabilitaram como casas de habitação – sobretudo aqueles adjacentes à rede viária. Outros encontram-se à venda, outros, ainda, sucumbiram ao abandono e passo inexorável do tempo, sendo ruínas que já quase não deixam entender a força do seu passado. 137 Não obstante, a extinção oficial da GF e integração de quadros na Brigada Fiscal da GNR, que viria a consumar-se só em 1993, o fim de actividade nos postos da região do Baixo Guadiana e abandono dos mesmos, iniciou-se em finais da década de 70 e dealbar dos 80, conjugando-se a mudança do paradigma diplomático e económico entre Portugal e Espanha, bem como o declínio do Guadiana como via navegável, a desertificação humana do Nordeste Algarvio e raia do Baixo Alentejo, além da obsoleta estrutura da GF já incapaz de dar resposta aos novos “contrabandistas” integrantes de redes altamente organizadas e lucrativas. Sobra como posto activo remanescente, na foz do Guadiana, junto ao molhe da localidade situado no caminho da praia da cidade pombalina, o Subdestacamento de Controlo Costeiro da BF-GNR. 113 4. O Contrabando como expressão artística de Memória e Identidade. Legado de um passado, que se projecta no futuro. a) O Contrabando nos genéros literários em prosa. Este capítulo fechando esta investigação, abordará a não menos relevante faceta do contrabando enquanto temática de expressão artística, nas mais diversas dimensões. Do cinema aos géneros literários mais diversos, quer de cariz erudito ou popular, passando pela estatuária inserida em mobiliário urbano que ganha relevo como ex libris de particular importância e, ainda, enquanto elemento de musealização como condição de defesa e salvaguarda, a partir da construção de Identidade e transmissão da Memória, como contexto de um património imaterial que se impõe defender e que pode e deve projectar, a cultura do contrabando enquanto mais-valia a regiões deprimidas e desertificadas. Inicialmente, no particular da expressão literária, existem menções em grandes obras de clássicos da literatura romântica no nosso país. Camilo Castelo Branco nas suas Mémórias do Cárcere (1861) relata a situação particular de um dos presos, detido na Cadeia da Relação do Porto, que estando a cumprir pena pela falsificação de papel selado, revela que um “ sócio tinha uma quinta, que de (há) muito servia de escala para contrabandos desembarcados na costa”. Aliás, Camilo será prodigo ao longo da sua obra em aludir a contrabandistas e a actividade do contrabando, como nas Aventuras de Bazilio Fernandes Enxertado (1863), onde expressa os proveitos lucrativos da actividade, lançando a polémica afirmação do contrabando como actividade de alta rentabilidade e como o enriquecimento de muitas famílias do Porto, se forjou de forma 114 ilícita. Nesta obra, Camilo espelha no diálogo entre um despachante de alfândega de nome Manuel José Borges e o merceeiro Enxertado, a forma como o primeiro “roubara a fazenda nacional contrabandeando” e o segundo em tempos do “Cerco do Porto” em 1832, “metera 300 pipas de vinho sem pagar direitos” e “contrabandeando há 25 anos com felicidade de burro”. Camilo criticava assim, de forma original, os esquemas de corrupção institucionais e de modo subtil, ilustrava a participação da burguesia portuense em esquemas de enriquecimento ilícitos. Percursor de uma analise antropológica às “gentes” do nosso país já em pleno séc.XX, mas sempre fazendo uso de um esplendoroso domínio estilístico na sua escrita, Raul Brandão na sua obra de referencia Os Pescadores, relativamente a Olhão, expressa de forma explicita a particularidade da cidade cubista e da suas gentes, afirmando que “o grande negócio de Olhão foi sempre o contrabando”, revelando que a faina, em mares e portos de Marrocos e com passagem de regresso por Gibraltar, era o fulcro para a actividade ilícita, que garantia sobrevivência e até desafogo, para as agruras da vida do mar. Descreve fazendo um louvor claro aos contrabandistas que “não é contrabandista quem quer; é preciso ter inteligência e astúcia, arrojo, o alerta de um chefe selvagem e a imaginação de um poeta” e refere como exemplo maior, a saga do famoso “Mendinho”, “mestre reputado” de uma goleta que fazia a rota de Gibraltar e que, por força de um temporal, se abrigou em Marrocos, regressando a Olhão com o navio destruído, mas com uma profusa carga de contrabando nos seus porões “que descarregou nas barbas do fisco compungido”. Falou ainda da natureza solidária entre filhos de Olhão, em particular para com os contrabandistas, referindo que “toda a gente em Olhão, ricos ou pobres, protegia os contrabandistas e entrava no negócio” e da eficaz forma de funcionamento do contrabando, até aproveitando as particulares características habitacionais da localidade, referindo que “nunca em terra se apreendeu uma peça de 115 fazenda. Passava-se de soteia para soteia – para o que basta estender os braços- e corria, se fosse preciso, a vila toda, porque nessas ocasiões até inimigos rancorosos se julgavam no dever de esconder o contrabando e todas as casas tinham uma guardadeira ou falso entre duas paredes” 138, ao descrever o fim da sua visita a Olhão e a sua saída por barco desta que “ a brancura imaculada dos terraços com o céu todo de ouro em cima” o faz desejar “ter um barco para contrabando nos mercados de Gibraltar e de Marrocos” de modo a dar azo aos seus “velhos instintos de pirata” 139. Especificamente sobre a temática do contrabando, o romance Maria Mim de 1939, escrito por Nuno de Montemor, pseudónimo do Padre Joaquim Augusto Álvares de Almeida, natural de Quadrazais em plena serra da Malcata, no concelho do Sabugal, região de contrabandistas por excelência, é um retrato de uma realidade pungente que reflecte a violência da perseguição das autoridades aos contrabandistas e a coragem e grande dignidade dos mesmos, perante uma atroz existência de miséria. O enredo parte de um idílio entre um oficial do exército, que é em simultâneo artista-pintor, e uma mulher contrabandista do povo, desse confronto social interclassista onde se acaba por reflectir, essencialmente, a questão da subsistência como factor que impele homens e mulheres ao contrabando, destaca-se ainda do ponto de vista estilístico, pelo uso da gíria dos contrabandistas, numa curiosa transformação da oralidade em escrita. A lógica do uso da gíria e da conversão da oralidade e do trejeito linguístico das “gentes”, ocorre também numa obra de referência, que diz respeito à região em estudo neste trabalho, que aborda as dimensões da sobrevivência em Vila Real de Santo António e, logicamente, dos contrabandistas. A obra é Fronteiriços de António Vicente Campinas, publicada em 1952, que é um retrato tocante e emocional, da realidade da 138 139 Cf. Raul Brandão, Os Pescadores, Lisboa, 1957, p.162-163 Ibidem,p.163 116 então industriosa localidade algarvia e dos seus pescadores, operários fabris e, claro, dos seus contrabandistas. O enredo onde o Guadiana é o rio de vida e de morte, onde se conjugam esperanças e a dura realidade que é lugar onde a fatalidade ou a audácia impelem o homem comum à busca do seu sustento no contrabando e os riscos a ele associados. A estória de Manuel Patacho, personagem incontornável do livro que morre na sua primeira incursão na candonga140 é reveladora de como as ironias do destino e a fatalidade se conjugam para a perdição do personagem. Pescador humilde que vive da faina feita na sua canoa e recorrendo à arte de palangre 141, vê um temporal no rio destruir-lhe as ferramentas de trabalho, de encontro ao cais onde se encontravam. Revoltado com o destino, decide ir a uma taberna onde bebendo a sua desgraça e “mais da sua conta”, se envolve num altercado com o proprietário que lhe recusa fiado e é preso. Após ser libertado, o único caminho que lhe resta é o do contrabando e na primeira ocasião que enceta a travessia é baleado pela Guarda e morto. Os fronteiriços de Vila Real de Santo António, revoltam-se com a morte do seu camarada e a revolta na manifestação de pesar é violentamente reprimida pelas autoridades, sem contudo se apagar o fogo da mesma e o regresso de muitos, logo nesse mesmo dia, à sobrevivência do contrabando. Vicente Campinas condensa no pensamento de um outro personagem, o contrabandista Ti Currito, aquilo que era a fronteira e a dura vida destas “gentes”, ao afirmar este “a felicidade deve estar muito perto e muito longe dos fronteiriços (…) Os fronteiriços saberão unir os seus esforços no sentido de romper as barreiras que os separam da felicidade?”. Todo o livro é, pois, esse misto de denúncia das injustiças sociais e do espirito indomável do povo sofrido, clamando ele por verdadeira justiça, lutando contra o seu 140 Termo usado para definir o contrabando. Tipo de arte de pesca à linha constituído por uma linha principal, forte e comprida, de onde dependem outras linhas secundárias mais curtas e em grande número, a intervalos regulares, onde cada uma termina num anzol. 141 117 destino e do exemplo de bravura e valentia dos contrabandistas, em busca do seu sustento. Um dos vultos maiores do género de conto, Miguel Torga, aborda no conto “ A Fronteira” da obra “Novos Contos da Montanha”142, a temática do contrabando ilustrando as dimensões heróicas e trágicas do mesmo, patentes através do seguinte excerto : “quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala de uma lei que Fronteira não pode compreender, o coração da aldeia estremece, mas não hesita. Desde que o mundo é mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a terra permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite escurece, continua a faina. A vida está acima das desgraças e dos códigos. De mais, diante da fatalidade a que a povoação está condenada, a própria guarda acaba por descrer da sua missão hirta e fria na escuridão das horas. E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros – guardas e contrabandistas –, fala-se honradamente da melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro.” Outro dos grandes autores contemporâneos nacionais, Fernando Namora, no romance “A Noite e a Madrugada”143, ficciona na obra, a realidade do contrabando produzida aquando da sua residência de 1946 a 1951, na vila alentejana de Pavia e aborda a sobrevivência das “gentes” da Beira Baixa e da região de Seixial, na fronteira da região de Idanha-a-Nova com Valverde del Fresno na província de Cáceres, nas Hurdes144 Espanholas. O romance retrata não só a realidade do contrabando, mas as 142 TORGA, Miguel; “A Fronteira” in Novos Contos da Montanha, Public. Visão/Dom Quixote, Lisboa, 2003 143 NAMORA, Fernando; A Noite e a Madrugada, Ed. Inquérito Lda, Lisboa 1950. 144 Las Hurdes – região serrana a fronteira entre as comunidades autonómicas espanholas da Extremadura e de Castela, que fazem fronteira com a região da Beira Baixa. É uma região de parcos recursos e extrema pobreza ainda hoje, e onde em pleno séc.XX algumas fontes historiográficas do país vizinho, deram conta de relatos de existência extrema de pobreza. Um dos retratos sociológicos e antropológicos da região, mais pungente, é o famoso documentário de 1933, chamado Las Hurdes, Tierra sin Pan (As Hurdes, Terra sem Pão) do emblemático realizador Luis de Buñuel, autor entre outros 118 condições miseráveis dos trabalhadores rurais da região e a clivagem social entre as classes abastadas e os trabalhadores, sem descurar a visão da sua actividade enquanto médico, que em todas as suas obras costumava abordar. O romance foi, depois, levado ao cinema já em 1985, numa produção portuguesa com o mesmo nome, realizada por Artur Ramos e com guião de Carlos Coutinho145. Fenando Namora, retrata ainda de forma sublime, na obra Minas de San Francisco146 de 1946, a natureza específica do contrabando do volfrâmio durante a II Guerra Mundial, traduzindo na ficção a realidade em terras das Minas da Panasqueira e da particularidade do lucrativo contrabando que, paradigmaticamente, se traduziu num massivo abandono dos campos por força do lucro que pequenas quantidades do minério, usado na indústria de guerra, representaram. Dentro dos autores que no Algarve se debruçaram sobre o contrabando, o livro Fronteiras do farense António Assis Esperança de 1963147, descreve como as redes e os caminhos do contrabando foram usados, de modo a permitir que muitos portugueses dessem o salto em busca de outra sorte nas mais diversas paragens da Europa, não obstante o forte controlo da máquina repressiva da ditadura salazarista da obra cinematográfica surrealista, de referência- Un Chien Andalou- com a parceria entre este e Salvador Dalí. 145 Banco de dados da UBICinema-Cinema Português. Ficha sinóptica do filme “A Noite e a Madrugada” consultada em 25 de Julho de 2013, no endereço: http://www.cinemaportugues.ubi.pt/bd/info/2409 146 NAMORA, Fernando; Minas de San Francisco; Lisboa, 2003 147 António Assis Esperança (Faro, 1892 - Lisboa, 1975), unido por fraterna amizade a Ferreira de Castro, Julião Quintinha, Jaime Brasil e Alexandre Vieira, animadores do jornal A Batalha, foi um intrépido defensor da classe operária. Novelista e dramaturgo, expoente do neo-realismo, publicou: os romances Vertigem (1919), Viver! (1921), Ressurgir(1928), Gente de Bem (1939), Servidão (1947), galardoado com o prémio Ricardo Malheiros, Trinta Dinheiros (1958), Pão Incerto (1964); as colectâneas de novelas Funâmbulos (1925) e O Dilúvio (1932); as peças de teatro Náufragos (1921) e Noite de Natal (1923). Escritor de escassas virtualidades estilísticas, mas aberto à problemática social, encarava a literatura como instrumento de combate. Daí a sua pertinente crítica de costumes e comportamentos ditos burgueses. Para Franco Nogueira, se lhe « escasseia sobretudo talento verbal», por sua vez não « são poucas nem pequenas as suas faculdades de observação, de análise, de anotação psicológica », possuindo « em grau elevado a percepção dos aspectos dramáticos, dos acontecimentos e das figuras ». Ver: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo Instituto da Biblioteca Nacional e do livro, vol. III, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, p. 439-440. 119 Ainda no género do conto, Veríssimo Serrão na sua obra Contrabando/Contos148, aborda a dura realidade do contrabando em Torre de Moncorvo, obra que reflecte também um traço comum a todas as outras já mencionadas, onde a aventurosa actividade do contrabando ilustrada pelas vivências de enorme dificuldade, serve igualmente de suporte a tantos episódios de heroísmo e coragem por parte dos contrabandistas e a um vínculo solidário e de respeito que os diversos autores, provenientes em maioria de meios sociais mais favorecidos, votam à coragem dos homens e mulheres contrabandistas. Para concluir este capítulo, menção ainda a três obras sobre o contrabando e a realidade fronteiriça que assumem destaque e que são: Volfrâmio de Aquilino Ribeiro, publicado inicialmente em 1943149, onde o autor descreve o mesmo panorama abordado por Namora nas Minas de San Francisco e da avassaladora transformação da realidade por força da extracção das “pedras negras que rendiam oiro (o volfrâmio)”, e retratando também a profunda realidade do atraso social e cultural, das regiões rurais portuguesas. O romance regionalista O Lobo Guerrilheiro de Bento Gonçalves da Cruz, publicado em 1990150, pelo autor nascido no Barroso e filho de lavradores, retrata a vida de André Lobo que pratica o contrabando na juventude, vindo a integrar posteriormente, a Guarda Fiscal, até que se apaixona por uma bela guerrilheira anti-franquista. No livro premiado com o Prémio “Diário de Noticias” em 1991, o autor conjuga as tradições agrárias, as paixões proibidas, as contradições do caciquismo local e violência exercida contra as classes sociais mais desfavorecidas, contextualizando de forma sólida as vicissitudes das terras barrosãs e dos difíceis tempos aí vividos. 148 SERRÃO, Veríssimo; Contrabando/Contos, Torre de Moncorvo, 1995. RIBEIRO, Aquilino; Volfrâmio; ed. Circulo de Leitores, 1983. 150 Análise à obra por: GONÇALVES, Bela Cândida de Azevedo Pereira; Regionalismo/Universalismo em Bento da Cruz - Tese de Mestrado em Estudos literários, Culturais e Interartes –FLUP, 2009 149 120 Para finalizar alusão, ainda, à colectânea de contos intitulado Fronteiras de Manuel Tiago151, pseudónimo de Álvaro Cunhal e publicado em 1998, onde pontuam contos sobre a fronteira e o contrabando e tendo um denominador comum que o autor faz questão de vincar: que a ficção nunca superará a dureza da realidade. O autor afirma que, “o essencial dos acontecimentos narrados, o fio de cada história de saltos clandestinos de fronteira, bem como esquemas, situações, dificuldades incluindo as mais duras, e mesmo grande parte dos incidentes, correspondem a experiências de homens e mulheres que as viveram na vida real”. 151 TIAGO, Manuel (pseud. Álvaro Cunhal); Fronteiras – Contos; Atalaia-Seixal, 1998 121 b) O Contrabando na Poesia A poesia popular, forjada no referencial cultural quotidiano e identitário dos seus autores, e a de cariz erudito associada a uma visão idílica da actividade, abordada por escritores que se encontram deslocados do espaço físico e das vivências associadas ao contrabando, servem de suporte a nossa análise neste particular, todavia vincula-se a poesia como reflexo da vida, que é também o reflexo do contrabando. Assim, o contrabando na poesia é abordado, por autores eruditos da poesia europeia, caso do nome maior da poesia e dramaturgia romântica espanhola, José Zorrilla152. Na sua obra maior Cantos del Trovador de 1841, encontra-se o poema El Contrabandista que canta heroicamente a imagem do contrabandista “bandolero” a cavalo, que sendo de origem andaluza, desenvolve a sua actividade na fronteira pirenaica da Catalunha com o Languedoc francês. Em Espanha, a cultura de reverência às figuras contraventoras, dos bandoleiros e contrabandistas é tema para diversa produção poética. A exaltação no cancioneiro romanesco Romances de Andalucia , usado na literatura de cordel em voga no século XIX e princípios do XX, louva a figura incontornável do “bandolero” e contrabandista de cavalos dos fins do séc.XVIII, Diego Corrientes. Este contrabandista de Utrera, na província de Sevilha, já referido na introdução do trabalho, ficou famoso quer pela audácia e pelas sistemáticas humilhações e afrontas feitas ao governador de Sevilha, que 152 Fonte wikipédia – consultada em 27 de Julho de 2013 http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Zorrilla : Resenha biográfica: José Zorrilla y Moral (Valladolid, 21 de Fevereiro de 1817 — Madrid, 23 de Janeiro de 1893) foi um poeta e dramaturgo romântico espanhol. Suas poesias líricas surgem em 1837 e principalmente em 1841 com a publicação de "Os Cantos do Trovador". Contudo, sua reputação se definiu em proporções mais extraordinárias nos versos inspirados em lendas e motivos de tradições nacionais. Esccreveu: "Rosa de Alexandria", "Álbum de um Louco", "O Punhal do Godo", "D.João Tenório", "O Sapateiro e o Rei", "Recordações de Viagem" 122 se repercutiu na sua atroz execução nesta cidade, após a sua captura em Portugal, o que reforçou a sua lenda junto do povo que via nele um herói, muito mais que um vilão. E no mote do poema, essa quadra que fica : “Ese tal Diego Corrientes /robaba con fantasia /a los ricos les robaba /y a los pobres socorría.” Em português, destacam-se alguns autores de cariz erudito, com destaque para o tropicalista e nome grande do modernismo literário brasileiro, autor do Manifesto Antropófago e do livro de referência Pau Brasil, Oswald de Andrade153, encerra a obra aludindo ao contrabando, onde enfatiza as saudades sentidas após uma viagem a Paris: “Os alfandegueiros de Santos/ Examinaram minhas malas/ Minhas roupas / Mas se esqueceram de ver / Que eu trazia no coração /Uma saudade feliz/ De Paris.” Dos nomes maiores da poesia erudita que se consolida na institucionalização do fado promovida pelo Estado Novo nos anos 50, quando esta forma de expressão musical de cariz popular começa a integrar poetas provenientes de círculos intelectuais da cultura erudita, casos de David Mourão-Ferreira ou Pedro Homem de Mello, que escreveria a seguinte quadra no seu poema 37 e que viria a ser cantado por Amália Rodrigues: “Vim morrer a Gondarém / Pátria de Contrabandistas/ A farda dos bandoleiros / Não consinto que ma vistas”. Azinhal Abelho154, ilustre poeta, encenador e cineasta português, na sua obra Arraianos de 1955, refere numa quadra “ Contrabandista Valente!/ Que corres campinas 153 Fonte wikipédia – consultada em 27 de Julho de 2013 : http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade Resenha Biográfica: José Oswald de Sousa Andrade (São Paulo, 11 de Janeiro de 1890 — São Paulo, 22 de Outubro de 1954) foi um escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro. Foi um dos promotores da Semana de Arte Moderna que ocorreu 1922 em São Paulo, tornando-se um dos grandes nomes do modernismo literário brasileiro. 154 Nota Biográfica de Azinhal Abelho, pela C.M. Borba – consultada em 1 de Agosto de 2013 em : http://www.cmborba.pt/pt/conteudos/noticias/Autarquia%20de%20Borba%20adquiriu%20espolio%20de%20Azinhal %20Abelho.htm 123 e vais / Com guardas à tua frente / De pistola e punhais!” . Do mesmo autor, figura em Santana de Cambas e no Museu do Contrabando, um painel com o Poema da Guarda Fiscal, de 1943, que assim reza: “Dão-lhe uma farda/ e uma espingarda/ e um regulamento/Que tem que ver e saber/ Com toda a gente que saia/ ou entre na raia / O regulamento é militar / E permite-lhe tudo/ até matar/ Os que obedecem as leis/ que guardam mercadorias/ Dos direitos do Fisco/ E é isto/ Aqueles homens/ são obrigados a tudo/ Um produto sonegado/ um metro de seda ou veludo/ Aqui extraviado nesta raia seca/ Entre dois países iguais/ Quase de irmão para irmão/ Não, não vejo razão/ Nos Guarda Fiscais // Correm loucamente/ Atrás de contrabandistas/ Carregados de café/ Do café do Império Português/ Quando se dá a batida / Ficam satisfeitos // Se fazem prisões/ que apresentam orgulhosos/ como motivos de serviço/ E andam nesta luta esgotante/ de matar, prender e correr/ Ao longo da fronteira/ É a sua maneira/ de viver/ Quando são velhos e reformados/ Apresentam medalhas/ Dos tais serviços prestados/ Se os põem fora/ Por qualquer serviço ou castigo/ Não têm outro refúgio/ nem abrigo/ E vão eles ao caminho/ como os outros mais/ Furtando-se às vistas/ dos outros GuardasFiscais/ Agora são/ Contrabandistas.” No relativo, a recolhas de poesia popular que serviam de versos que o canto tradicional alentejano musicava, a recolha levada a cabo por Manuel Joaquim Delgado155, nesse mesmo ano, integrava uma recolha feita na Mina de São Domingos que assim rezava: “Os rapazes de hoje em dia / Já não sabem ser fadistas / Deixam-se apanhar da guarda /Som ruins contrabandistas// Contrabando deve andar / Muito bem acautelado / Saem fora do caminho / P´ra não serem apanhados // P´ra não serem 155 Professor, percursor musicólogo, compilador e anotador de canto repentista contido na publicação “Subsidio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo”, ed. Álvaro Pinto (Revista de Portugal), Lisboa, 1955. 124 apanhados / Não se apanha aqui ninguém/ Destas rosas que aqui estão/ Qual é a tua, meu bem?”. Os repentistas e autores de quadras são, no Alentejo, prolíficos na produção de obra poética que louva o contrabando e o desafio audacioso às condições de vida das comunidades. José-Augusto de Carvalho, de Viana do Alentejo, poeta alentejano que se destaca pela obra produzida, integra na sua Antologia da Princesa da Poesia de 2012, o maravilhoso poema Rimance do Lua Nova que canta: “ Lua Nova era o meu nome / de registo de campanha/ quando resistia à fome / lá para a raia de Espanha. // Clandestino até no lar,/ nem à mulher concedia/ saber qual o meu andar /ou ao certo o que fazia. // Aos trabalhos da lavoura/ me entregara de menino./Outra sorte melhor fora,/ mas tive esta por destino.// Neste saber várias artes,/ saltava de galho em galho./ Em qualquer de tantas partes,/ tinha agasalho e trabalho.// De empreitada, ali ceifava;/ mais além, era a cortiça;/ nos tempos mortos, parava / e dava o corpo à preguiça.// Sempre com desembaraço,/ a minha jorna suava./ Nunca neguei o meu braço/ à tarefa que acertava.//Ah, mas num dia azarado,/e quem os não tem na vida?,/ fiquei incapacitado/ para a minha dura lida.// Esperto entre tantas liças,/ eu já conhecera mundo…/Sabia até que a cortiça/ boia e nunca vai ao fundo!...// Sob a manta de maltês/ andava de monte em monte/ rasgava, de quando em vez,/ as trevas deste horizonte. // Passava a salto o Guadiana,/ entrava em terras de Espanha…/ A Guarda Fiscal se dana / e grita: ninguém o apanha?// Ia e vinha, sempre a pé,/ a noite me protegia…/ Cada carga de café / boa féria me rendia…// Lua Nova, a minha alcunha,/ deu rimance popular./ Até eu fui testemunha/ de tanto o ouvir cantar…// Lua Nova é uma lenda,/ o Alentejo é um destino;/ não há aqui quem se renda,/ às claras ou clandestino.// Apanhá-lo quem se atreve?/ Quem consegue tal façanha?/ Em Portugal é pé leve/ e pé leve é em Espanha!// Aquém ou além Guadiana,/ desmonta qualquer ardil:/ a Guarda Fiscal engana, / engana 125 a Guardia Civil…// Entre limpas e montados,/ astuto também engana/ o ardis sempre aprontados/ p'la Guarda Republicana.// Lua Nova, morto ou vivo,/ hoje é já a lenda viva / que serve de lenitivo/ à vida sempre cativa.//” 126 c) O Contrabando – Outras expressões na cultura Faremos neste particular uma breve resenha sobre algumas das mais destacadas expressões do contrabando enquanto temática no âmbito cultural. Assim, destacamos a ópera Carmen de George Bizet, estreada em Paris em 1875, e obra inspirada na novela de Prosper Merimée, e dos encantos de sedução da cigana de Sevilha que dá o nome à ópera. No enredo, plena de figuras contraventoras e de agentes da lei que enfeitiçados, pela cigana, que enveredam pela marginalidade, caso de Don José, cabo do exército que se “tresmalha” por força do feitiço e outras personagens que ilustram a temática do contrabando, caso de Remendado, contrabandista e namorado da amiga inseparável de Carmen, Fresquita ou Dancaire, servo de Remendado e ajudante deste no contrabando. O Comandante Zuñiga ou o ajudante Morales, representam as faces das forças da ordem, que punindo a ilicitude e os contraventores, terminam sucumbindo aos encantos e magia da protagonista. No campo musical, entre uma miríade de modas populares, cantos alentejanos e expressões folclóricas que têm o contrabando como tema, destaca-se ainda nas últimas décadas, a expressão da temática na canção ligeira portuguesa, na copla156 e no pop espanhol. A famosa composição de Paco Bandeira, A Minha Cidade (Ó Elvas) imortalizouse na cultura popular portuguesa com o seu refrão “Ó Elvas, ó Elvas / Badajoz à vista./ Sou contrabandista/ De amor e saudade / Transporto no peito / A minha cidade”. 156 Género musical espanhol que associa a musicalidade e instrumentos de raiz popular, à lírica poética de cariz popular e até erudita. A linguagem das coplas é coloquial e directa, e faz-se recurso por vezes, ao sentido duplo para conseguir efeito cómico ou lascivo. 127 Em Espanha, o já falecido cantor de copla, Carlos Cano, é interprete de uma das mais famosas coplas de sempre no país vizinho, intitulada Maria La Portuguesa, composição que aborda uma história de amor entre um pescador espanhol e uma mulher portuguesa de Castro Marim, com o contrabando e o rio Guadiana como contexto e cenário. Uma das estrofes reza assim, “Dicen que fue el “te quiero” de un marinero / razón de su padecer, que una noche en los barcos / de contrabando pal langostino se fue. / Y en las sombras del río un disparo sonó / y de aquel sufrimiento nació el lamento de esta canción”. O contrabando é ainda tema na cultura pop espanhola e num dos maiores artistas espanhoís das últimas décadas, Joaquin Sabina, com a sua composição Contrabando de 2007. A canção deste poeta urbano que, como em outras composições suas, utiliza o tema do contrabando e a sua carga simbólica para descrever o espaço onde algumas relações humanas, são unicamente possíveis. Diz o tema: “Ando buscando una pasión de contrabando / sigo esperando en el mercado de ocasión una opinión de quita y pon / una razón para ir tirando, una canción capaz de hacer de tripas corazón”. No campo da cinematografia, o contrabando tem sido também tema recorrente em longas-metragens, destacando-se além das já mencionadas versões de romances caso de “A Noite e a Madrugada”, trazida ao cinema em 1985, numa produção portuguesa realizada por Artur Ramos e com guião de Carlos Coutinho. Os anos 40 e a produtora Tobis, abordaram ainda o contrabando no filme Lobos da Serra de 1942 do realizador Jorge Brum do Canto. O enredo do filme reflecte um grupo de contrabandistas que, fugindo à vigilância da Guarda Fiscal, desce a um povoado, para tentar a vida calma na paisagem da terra minhota. As vicissitudes da vida deste 128 grupo dentro do povoado e a tragédia em que culmina a história, reflectem as agruras do contrabando e da difícil vivência no espaço de fronteira. No país vizinho, destacam-se nos últimos anos, o filme Furtivos de José Luis Borau, de 1975, que retrata a vida de um caçador furtivo dominado por uma mãe de forte carácter, nos anos negros do franquismo e retratando a vida, na Espanha profunda. Outra longa-metragem, Tasio, realizada por Montxo Armendáriz em 1984, é um retrato intimista que espelha a realidade dos que nada têm e a sua luta pela sobrevivência nos agrestes meios rurais. En Teo el Pelirrojo, realizado por Paco Lucio em 1986, é reflectido um drama rural, decorrido no periodo da pós-guerra Guerra Civil espanhola, e tendo como enredo o contraste entre as personagens com relevo para o furtivo que vive do tráfico, da caça, da pesca e do carvão, e um guarda-mato como figura das forças de ordem. O drama Pasos Largos de Rafael Moreno Alba, de 1986, baseia-se na história do último bandoleiro andaluz, abatido pela Guardia Civil en 1934, na serra de Ronda. É um retrato pungente, da vida miserável do personagem, passada entre a caça furtiva e episódios de extrema violência. No referente ao contrabando contemporâneo das mafias e grupos organizados, o filme Inferno do realizador português Joaquim Leitão, de 2002, é um thriller que se baseia na acção dos corpos de operações especiais das forças de ordem e da complexidade de factores que abordam a actividade policial, o tráfico de droga e a prostituição, tendo fronteira lusa - espanhola como cenário. Relativamente a documentários e curtas-metragens, destacamos aqui a edição do documentário promovido pela Associação Odiana, sobre o Contrabando no Baixo Guadiana, apoiado num trabalho de investigação promovido pelo programa Tursos, inserido no Interreg IIIA de 2004 e desenvolvido entre 2007 e 2011. Também de 2007, 129 outro documentário sobre a realidade do contrabando é Los Refugiados de Barrancos, produzido e realizado pela Asociación Cultural Mórrimer, Llerena, e que foi financiado pelo Gabinete de Iniciativas Transfronterizas (GIT), de Badajoz. O premiado documentário Mulheres da Raia de Diana Gonçalves, do ano de 2009, é sublime na resgate da realidade onde se cruza o espaço físico da fronteira luso-espanhola e da natureza emocional dos relatos, na primeira pessoa, das antigas contrabandistas, que lutavam contra o destino e na busca do sustento de suas famílias, esquivando o arbítrio e brutalidade das forças da lei, da pobreza endémica e da iliteracia Outros projectos menores, mas com uma não menor importância, são também de destacar, e em concreto, a recolha audiovisual de relatos levada a cabo pela Junta de Freguesia de Santana de Cambas e do Museu do Contrabando da localidade, inserido na temática dos Cadernos do Contrabando. 130 d) Abordagem museológica da temática do Contrabando Tanto em Portugal quanto em Espanha, além do já muitas vezes mencionado Museu do Contrabando de Santana de Cambas, existe um grande número de museus e centros de interpretação dedicados à temática do contrabando, que desenvolvem activamente trabalho, não só pelo espaço físico e proposta museológica, mas por a promoção de conferências, publicações e apoio a projectos com enfoque na temática. Destacamos assim alguns dos principais museus: Em Portugal: -Espaço Memória e Fronteira / Museu do Contrabando e da Emigração Clandestina em Melgaço. -Museu do Contrabando em Quadrazais – Sabugal. -Museu do Café, em Campo Maior . Neste destaca-se a particularidade de abordagem ao papel desempenhado pelas autoridades que protelaram o papel das grandes famílias do negócio do café, caso da familía Nabeiro, que com acordo tácito do Estado organizaram grupos de contrabandistas “mochileiros” que introduziam grandes quantidades de café, na Espanha do pós-guerra. -Museu do Pão em Seia, onde estão expostos elementos relativos à apreensão de produtos contrabandeados, em concreto de trigo. -Museu de Vilar de Perdizes em Vilar de Perdizes – Montalegre, um pequeno museu etnográfico com algumas alusões relativas ao contrabando. 131 -Museu do Rio em Alcoutim, com réplicas de embarcações que navegavam o Guadiana, entre as quais as da Guarda Fiscal. Em Espanha: -Museo del Contrabando y de las Regiones Fronterizas em Sallent de Gállego, provincia de Huesca. -Zumalakarregi Museoa em Ormaiztegi, Guipúzcoa, no País Vasco. -Museo Etnográfico “González Santana” alusivo em exclusivo ao contrabando e localizado em Olivença, província de Badajoz. -Museo del Bandolero “Serranía de Ronda” em Ronda, província de Málaga. Espanha, e o destaque ao papel dos “bandoleros” enquanto contrabandistas. -Museo Casa de la Aduana em Puerto de la Cruz, Tenerife, nas Ilhas Canárias. Em ambos países encontram-se ainda centros de recepção, informação e interpretação, destacam-se o Albergue de Montaña de Bangueses de Arriba em Verea, Orense, na Galiza onde se expõem as rotas do contrabando entre as localidades de Bangueses e de Madalena, em Trás-os-Montes. Do mesmo modo, o Centro de interpretação do Contrabando em Quirás, Vinhais, que é um antigo posto da Guarda Fiscal na aldeia de Quirás, votivo à memória daquela que foi principal actividade da freguesia. Ainda, o Centro de Interpretación e a rota do contrabando, em Cidadela, Orense, também na Galiza. E, para finalizar, o Centro de Interpretación de las Fronteras em Oliva de la Frontera, provincia de Badajoz, que funciona como museu dedicado a mostrar o passado fronteiriço entre os dois países. 132 e) O Contrabando – a Escultórica e sua inserção em meio urbano. Para finalizar, destaque ainda à Escultórica com a temática do contrabando, que pontua em algumas localidades. Em Espanha, Oliva de la Frontera, na província de Badajoz, apresenta no seu centro urbano, o Monumento ao Contrabando em bronze, dedicado às várias gerações de contrabandistas de ambas as margens do Ardila e que complementa toda uma estrutura dedicada ao contrabando, que passa pelo museu local, o Centro de Intepretación de Fronteras e ainda pelos roteiros do contrabando, que atraem turistas e representam uma clara mais-valia para a economia local. Em Portugal, o caso de Alcoutim é paradigmático, com o projecto consubstanciado em 2008, com a colocação de estatuária dedicada ao contrabando na zona ribeirinha da vila do Aleo. A obra escultórica ficou a cargo dos artistas Pedro Félix e Teresa Paulino. Duas das estátuas esculpidas em mármore num conjunto total de três (a terceira é dedicada aos pescadores do Guadiana, outra das actividades destacadas da história e vida da localidade), são alusivas à figura do Contrabandista e à figura do Guarda Fiscal. São elementos de referência na paisagem urbana de Alcoutim e ex libris da localidade, para o visitante. 133 Conclusão A investigação agora concluída, intitulada o Contrabando no Baixo Guadiana – A Raia, as “Gentes” e as Dimensões da Sobrevivência - enquadra-se enquanto trabalho relativo à unidade curricular de Seminário, na conclusão do plano curricular de estudos da Licenciatura de Património Cultural, da Universidade do Algarve. Sugerido o tema, em sequência de conversas informais surgidas ao longo do último ano, com alguns amigos que contam hoje com mais de sete décadas de vida e da leitura que fiz ainda enquanto jovem do romance Fronteiriços de António Vicente Campinas, sobre o tema do contrabando na região donde sou originário e de onde a vida e memória ancestral de minha família se perde no tempo, não poderia ter mais significado num contributo e homenagem à História local e como subsidio a um futuro estudo mais aprofundado sobre a temática. Ao longo de muitos meses, fui confrontado no desenvolvimento da pesquisa com um dos problemas mais significativos, no estudo e análise de uma actividade que pela sua natureza transgressora, pela dissipação da memória dos intervenientes, e por uma amargura que o tempo não apaga, resultante da extrema dificuldade e dramatismo que esses tempos e vida do contrabando, significaram para as pessoas. Se na análise quantitativa de fontes historiográficas, o trabalho tantas vezes evoluiu sem sobressaltos, alicerçando-se em documentos que abordam a perspectiva da evolução histórica associada ao foro administrativo e político entre estados, ao enquadramento jurídico-legal da actividade económica e ao aprofundamento de análise de dinâmicas económicas e sociais já estudadas por diversos autores, a análise 134 qualitativa do contrabando enquanto fulcro de memória e identidade, associada à subjectividade individual do relato oral e à dissipação do facto relatado ocorrido há mais de cinco décadas, confronta-nos com um universo contraditório dai resultante, que obriga a investigação a avanços e recuos, e procura de reiterada confirmação da recolha feita. As experiências de vida, sendo facto não são cientificamente lineares, e a emoção desempenha um papel no cumprimento do velho adágio de “quem conta um conto, acrescenta um ponto”. Muitas vezes, como foi caso do Sr. Ildefonso Martins de Balurcos de Baixo, a concordância do relato obtido em entrevista, com outras entrevista já dadas ao longo dos anos em publicações diversas, permitem aquilatar sobre a coerência do relato, que se consolida indisputavelmente, como facto. Esta coerência torna-se extensiva, ao avaliar que a dureza da vida do contrabando, dará pouco azo a fantasia. As análises e trabalhos já existentes, confrontam-se com esta problemática e o tempo tenderá a agravar de modo irreversível a perda de elementos para estudo, pois o período áureo do contrabando no Baixo Guadiana ocorreu há mais de cinquenta anos e os sobreviventes são cada vez menos. Sem qualquer pretensão, a pesquisa agora concluída pretende abrir uma janela para que instituições públicas e privadas, associadas à área geográfica em causa, se sensibilizem para a necessária continuidade do trabalho que já desenvolvem, ou para um incremento significativo do apoio ao desenvolvimento do estudo sobre o contrabando, como mais-valia para a construção e salvaguarda da memória como referencial identitário e potencial elemento de criação e fruição cultural, que possa aportar a economias locais vetadas a duras circunstâncias de interioridade, eterna mas crescente periferia, e ainda associadas ao envelhecimento populacional e à desertificação humana quase inevitável. 135 Fazendo uso das palavras do nosso saudoso professor António Rosa Mendes, na sua obra O que é o Património Cultural?, a temática do Contrabando – aquilo que foi e aquilo que pode vir a ser- para a região do Baixo Guadiana e as suas instituições terá que ser sempre o exemplo dado do deus bifacetado romano Jano Bifronte, esta é a ideia condensada pelo professor, nas sábias palavras que encerram o livro: “A visão do passado não é um fim em si, é sempre um meio que se exerce em função do futuro, um meio para uma melhor inteligência do presente que no futuro se projecta; a visão do passado fornece, no presente, como um radiar de promessas, a inspiração, o estímulo, o acicate de novas energias criadoras e de novas experiências vitais no futuro. Assim o património cultural.” 136 Bibliografia Especifica sobre contrabando: DUARTE, Luis Miguel, "Contrabandistas de gado e "passadores de cousas defesas "para Castela e "Terra de Mouros" in Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto : História nº 15, Série II, Porto, 1998, p.457. GUILLÉN, Antonio Rodriguez, “Contrabando na Serra de Aroche” in Cadernos do Museu do Contrabando.1 “Contrabando – A Geografia do Medo, Santana de Cambas, ed. JF Santana de Cambas, 2009 MAÇARICO, Luis Filipe, Memorias do Contrabando em Santana de Cambas – Um Contributo para o seu Estudo, Santana de Cambas, ed. JF Santana de Cambas, 2005. MEDINA GARCIA, Eusebio, “El contrabando de posguerra en la frontera de España con Portugal” in Revista Noudar- nº0 ; Badajoz, 2010, p.10 MEDINA GARCIA, Eusebio, Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y Cambio Social- Tesis Doctoral; Madrid, publ. 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Borba – consultada em 1 de Agosto de 2013 em : http://www.cmborba.pt/pt/conteudos/noticias/Autarquia%20de%20Borba%20adquiriu%20espolio%20de% 20Azinhal%20Abelho.htm 142 Apêndices Fotográficos e Documentais Apêndice 1 - Gravura fac simile do original de Castro Marim e do Rio Guadiana no sentido Norte-Sul ( junto às naus encontra-se a inscrição Arenilha relativa a Santo António de Arenilha), séc. XVI Apêndice 2 - Representação figurativa de Santo António de Arenilha, no séc. XVI, da autoria do pintor Luís Mansinho 143 Apêndice 3 - Forte de São Sebastião de Castro Marim – parte da estrutura defensiva edificada como parte do Muro Peninsular, depois da restauração da independência em 1640. Apêndice 4 - Gravura com o Levantamento Topográfico de Monte Gordo e foz do Guadiana, datado de 1774 144 Apêndice 5 - Edifício da Alfândega, datado fundação de Vila Real de Santo António. O edifício representa eixo da fachada da quadra pombalina, posicionada na “marginal frente rio” da cidade pombalina. Funcionou durante o séc. XIX e XX como secção da Guarda Fiscal. Apêndice 6 - Fotografia do porto de Vila Real de Santo António, na segunda metade do séc.XIX e alvor do período áureo de navegação do ciclo do minério, que ilustra o enorme tráfego de embarcações no Guadiana 145 Apêndice 7 - Estruturas de duas das grandes minas da região, A Mina de São Domingos e as Minas de Las Herrerias, em Espanha. 146 Apêndice 8 - Remanescente de estruturas de carregamento de minério para embarcações, de dois dos grandes portos de transporte de minério no Guadiana, Pomarão e Puerto de La Laja 147 Apêndice 9 - Evolução das embarcações de vigilância e controlo fronteiriço marítimo e fluvial, em serviço entre a foz do Guadiana e o Pomarão – Canhoneira Guadiana; Lancha a vapor Guadiana e lancha do tipo P (Marezia) Canhoneira Rio Minho (embarcação gémea à Guadiana que prestou serviço no Rio Guadiana) Lancha a Vapor Guadiana Lanchas tipo P 148 Apêndice 10 - Forças da Ordem – 1 -Guardas Fiscais no terraço do posto da Ponta do Cinturão – anos 50; 2- Efectivo da Guarda Fiscal (o meu avô materno, João Marçalo Horta)-anos 50; 3- Carabinero Espanhol – anos 40 e 4- Efectivos da Guardia Civil – anos 50. 1 3 2 4 149 Apêndice 11 - Auto de noticia de apreensão de uma carga de açucar de contrabando nos anos 40; e fotografia de apreensão inserida numa acção de divulgação do trabalho da Guarda Fiscal, no Batalhão Territorial nº2 de Évora, onde se pode constatar o curioso trajo usado pelo “mochileiro”. 150 Apêndice 12 - Infra-estrutura das Forças de Ordem – Vigilância e Casas Cuartel. Guaritas, Postos de Guarda Fiscal (Portugal) Guarita em Alcoutim Ruina do antigo posto das Laranjeiras Posto reabilitado para habitação particular junto à Ponte internacional do Guadiana Carabineros de Espãna Casa Cuartel Cañaveral (Bloco Habitacional e anexo das Cavalariças) 151 Apêndice 13 - Planta de edifício-tipo dos postos da Guarda Fiscal (Posto das Laranjeiras) Posto da Guarda Fiscal - Laranjeiras Planta, alçado e cortes escala 1:200 Disposto por esta ordem : Alçado Principal e Corte Longitudinal (sobre a esquerda) e Cortes Transversais (sobre a direita) Legenda da Planta 1 caserna 2 gabinete do comandante 3 arrecadação 4 cozinha 152 Apêndice 14 - O comércio legal – 1- foto de “venda” (taberna) tradicional onde se vendia de tudo e se trocavam senhas de racionamento; 2 – Boletim de senhas de racionamento de bens (anos 50); 3 – Filas para o racionamento durante a II Guerra Mundial (foto em Lisboa) 1 2 3 153 Apêndice 15 - Os contrabandistas, em primeira pessoa Sr. Ildefonso Martins , de Balurcos de Baixo, o “Caminheiro” 154 Sr. José Afonso, dos Bens, “36 anos no contrabando” 155 Sr. José Raposo, contrabandista e irmão de um dos muitos mortos pelas balas da lei, nos tempos dessa “vida triste” que era o contrabando 156 Maria Júlia Carrasco, filha do comerciante altruísta João Carrasco e “uma vida de vivências juntos aos contrabandistas” 157 Apêndice 16 - Alguns produtos de contrabando. Calçado espanhol Café e Moinho para preparação de pó (Solas de borracha) Gasosa espanhola “Vicasti”, Calçado tipo “alpergata” isqueiros e tabaco 158 Apêndice 17 - Diversos Gravura de Cássio Mello “A arte Xavéga” As “faces” do contrabando Painel do Museu do Contrabando Santana de Cambas Uniforme Guarda Fiscal A “Mochila” de contrabandista 159 Painel “Poema do Guarda Fiscal” Poema de Azinhal Abelho Escultórica de Alcoutim “O Guarda Fiscal” Pintura a óleo “Contrabandistas –Senhores da Noite” Escultórica de Alcoutim “ O Contrabandista” 160 Divulgação de actividades e programas relacionados com o contrabando O Contrabando na toponímia Lisboa – Freguesia dos Prazeres 161