Universidade do Algarve
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
Departamento de Arte e Humanidades
Monografia:
O Contrabando no Baixo Guadiana
A Raia, as “Gentes” e as Dimensões da
Sobrevivência
Orientador: Professor Doutor António Rosa Mendes (
Maio.2013) /
Professor Doutor António Paulo Oliveira
Discente: João Tomás Horta Rodrigues – nº 24020
Licenciatura em Património Cultural – Ano lectivo 2012/2013
Gambelas- Julho 2013
1
2
“A verdade tem de ser passada de contrabando; é preciso difundi-la por partes, uma gota
de cada vez, para as pessoas se habituarem, e não de uma vez só.”
Karel Capek (escritor checoslovaco – 1890-1938) in A Fábrica do Absoluto
3
Dedicatória
Aos meus pais e minha irmã, companheiros e cúmplices de uma “aventura com 20
anos”.
À minha companheira Fernanda, pelo apoio incondicional e paciência (e não só em
horário de trabalho).
Aos meus antecessores já falecidos, João Marçalo Horta, meu avô materno e antigo
agente da Guarda Fiscal, e ao meu avô paterno António Rodrigues pelos ensinamentos
de justiça, de respeito ao próximo e de elevação do valor do trabalho como direito
primeiro de qualquer ser humano e fulcro de toda a liberdade e dignidade… e por serem
ambos bons homens e meus grandes amigos.
Aos valentes contrabandistas do Guadiana – aos vivos, aos que já partiram e aos que
tombaram com as balas da lei- e pelos exemplos de vida enquanto gente indomável na
superação de todas as contrariedades
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Indice
Introdução………………………………………………………………… 7
1. Definição do Objecto de Estudo………………………………… 11
1.1.
Âmbito Geográfico associado……………………………….. 14
1.1.1 Âmbito Geográfico associado – Apêndices Fotográficos…... 22
1.2
A Fronteira e o Contrabando – Dinâmica Politica, Administrativa e
Económica do Baixo Guadiana…………………………………………. 29
2. O Contrabando no século XX
– Os actores e seus retratos de vida………………………......... 76
2.1. O Contabandista “caminheiro”…………………………….. 79
2.2. Os contrabandistas “freteiros” e individuais……………… 87
2.3. Os “comerciantes”…………………………………………… 99
2.4. As forças de segurança
– Os “Guardas” e os “Carabineros”……………………………. 103
3.
A estrutura de vigilância das forças de ordem – os Postos do Baixo
Guadiana………………………………………………………… 109
4. O Contrabando, como expressão artística de Memória e Identidade. Legado
de um passado, que se projecta no futuro……………………… 114
a) O Contrabando nos genéros literários em prosa…………… 114
b) O Contrabando na Poesia……………………………………. 122
c) O Contrabando – Outras expressões na cultura……………. 127
d) Abordagem museológica da temática do Contrabando…… 131
e) O Contrabando – a Escultórica e sua inserção em meio urbano.
………………………………………………………………………133
Conclusão…………………………………………………………..134
Bibliografia…………………………………………………………137
Apêndices Fotográficos e Documentais…………………………..143
5
Resumo
O trabalho aborda de forma abrangente a temática do contrabando, na fronteira lusoespanhola da região do Baixo Guadiana, delimitada por este importante rio da Península
Ibérica que representa o espaço físico que estabelece a fronteira política entre as regiões
portuguesas, geograficamente mais a sul – a do Algarve junto à foz e do Baixo Alentejo
a montante- e a província de Huelva, parte da comunidade autonómica da Andaluzia,
em Espanha.
O trabalho incide, num primeiro momento, sobre a análise da geografia e os factores
dinâmicos sociais, políticos e económicos que caracterizam uma fronteira com quase
novecentos anos de história.
Proceder-se-á ainda à contextualização da complexa dinâmica humana do contrabando,
e em concreto da primeira metade do século XX, enquanto resposta às duras condições
existentes, recorrendo a relatos orais de intervenientes no processo, e enfatizar-se-á as
duras vivências que levaram fontes históricas e jornalísticas a classificarem esta área
como a fronteira da fome e do medo.
Palavras-Chave: Fronteira, Contrabando, Rio Guadiana, História
Abstract
The monograph now presented, extensively details the smuggling (“contrabando”)
phenomena on the Portugal-Spain border, limited by the Guadiana River, one of the
most important rivers of the Iberian Peninsula. Specifically the study emphasizes the
Lower Guadiana (Baixo Guadiana) region, border´s area of the southern Portuguese
regions of Algarve and Baixo Alentejo, with the autonomic community of Spain,
Andalucia.
The monograph detaches, on a first approach, by the geographic analysis of the region
and the dynamics according to social, political and economic history, during almost
nine hundred years.
As one of the most valuable elements on the study, the second part of it establish the
complexity of the human character of the smuggling dynamics, and specifically
according to the smugglers activity developed during the first half of 20th. Century. The
clash of the visions and action between Smuggling intervenients and the Law
Enforcement agencies of both countries, will be revealed on the oral narratives
contrasted by some newspapers and historical sources, and culture´s expression
elements.
Keywords:Borders, Smuggling, Guadiana River, History
6
Introdução
Visa a monografia que agora se inicia, ser uma abordagem abrangente sobre um período
cronológico de aproximadamente novecentos anos de história dos povos raianos do
Algarve Oriental e da Andaluzia Ocidental1 e sobre a importância de um fenómeno que
se projecta de forma ampla e comum a ambos, e que é o contrabando.
Abordaremos, pois, a dimensão do Rio Guadiana e da fronteira por ele delimitada como
teremos oportunidade de registar, extrapola o entendimento maniqueísta de uma barreira
física ou geográfica que politicamente divide povos mas que, na prática, do ponto de
vista económico ou social vincula desde tempos ancestrais as gentes de cada lado da
raia2 e contribui para a aproximação das suas relações comuns, nas mais variadas
dimensões. O Guadiana é reflexo deste complexo imbrincado do binómio da sua
geografia própria e das relações entre comunidades a ele associadas e é por excelência
um espaço de contacto e de trocas, imposto pelo caracter periférico da região em relação
ao contexto de ambos países.
A monografia procurará, inicialmente, enquadrar o rio do ponto de vista de uma
abordagem às valências e limitações de cariz económico e demográfico das regiões e a
um estudo humano das comunidades a ele associadas. Não deve contudo ser isolado, de
forma mais ampla, das relações entre estados e ser despido do entendimento de como a
1
A monografia incidirá essencialmente sobre o paradigma do contrabando no Baixo Guadiana, que
engloba em Portugal, os concelhos de Vila Real de Santo António, Castro Marim, Alcoutim e Mértola
(limite no qual se inicia a fronteira seca ou seja onde o Guadiana se adentra em pleno no nosso país) e
em Espanha, compreendendo as três divisões administrativas (“comarcas”) da Província de Huelva que
se encontram limitadas pela fronteira com o Guadiana – Costa Occidental, Andévalo e Sierra de Huelva e até ao limite entre as comunidades autonómicas da Andaluzia e Extremadura espanhola.
2
Raia (derivado do castelhano raya e que se poderá traduzir de forma simplista como risco)- termo
comum usado em ambos países e em concreto pelas comunidades de ambos lados da fronteira, para
definir o limite fronteiriço entre países, neste caso a raia do Guadiana.
7
politica económica dos países, cria ou derruba fronteiras, segundo as necessidades
económicas definidas pelo poder central e determinadas tanto pela carência ou
abundância especificas de cada época.
Veremos que o contrabando nas suas várias dimensões, tem como denominador comum
o facto de sendo uma actividade marginal e transgressora poder complementar amiúde e
contribuir para a sobrevivência das comunidades e para que os estados adquiram maisvalias sobre limitações auto-impostas pelos condicionalismos da natureza das políticas
aplicadas.
O contrabando extrapolando a sua dimensão economicista e de enquadramento jurídicolegal é sobretudo um fenómeno humano onde se encontram condensados todos os
aspectos transversais à nossa natureza enquanto espécie. Assim, a monografia teria que
se complementar como condição sine qua non de elementos qualitativos de proposta
metodológica e análise do fenómeno do dito contrabando tradicional3 estritamente
relativas ao aspecto humano. Nesta lógica, o apoio e recolha de relatos orais e o uso de
fontes literárias que vão do suporte informativo do jornal até ao conto e ficção, serão
sempre alicerces fundamentais da imperativa complementaridade desta abordagem
qualitativa como fulcro do entendimento do processo e motivações da actividade
transgressora. Se existem exaltações ao contrabando como actividade plena de
imaginação, de bravura, de valentia, por exemplo, patentes na lenda do contrabandista
romântico que marcou época, caso do lendário Diego Corrientes4, não são menos
3
Defina-se por contrabando tradicional, como a actividade de contrabando que era caracterizada por
ser praticada, regra geral, por gente humilde, que por sua iniciativa e condicionados pela miséria e
dificuldades, se organizavam em quadrilhas de contrabandistas que transportavam mercadorias entre
países.
4
Lendário bandolero espanhol do séc.XVIII (1750 -1781) e afamado contrabandista de cavalos de
Espanha para o nosso país, fazendo passagem de carga ao longo de toda a fronteira desde o Algarve até
às Beiras. Era natural de Utrera – Sevilha - e era reverenciado pelo povo pelo desafio sistemático aos
poderes instituídos, pela sua benevolência para com o mesmo e pela inusitada proeza de ser um
8
relevantes os heroísmos ou plácidos modi vivendi do cidadão anónimo – homens e
mulheres - uns forçados pela necessidade do seu “pão” e dos seus; outros como pessoas
com aceitáveis rendimentos e actividade profissional lícita que procuraram de forma
facilitada um útil reforço económico, fazendo em ambos casos parte integrante dos
ciclos do contrabando e usufruindo da actividade. O contrabando fez-se dos que
impelidos pela miséria arriscaram temerariamente a cada passagem e a cada mochila5;
dos que sem participação activa no cruzar da fronteira, participavam na aquisição das
cargas a serem transportadas ou cobravam “tarifa de passagem” aos contrabandistas em
trânsito; dos que sendo senhores da pequena burguesia local eram os “patronos” e
acumuladores do lucro da actividade, sendo intocáveis pela autoridade; dos agentes da
lei, que sendo a outra face da moeda não eram o “inimigo” e sim tantas vezes o “amigo”
que limitando o contrabando, ganhavam com o mesmo.
O contrabando, ainda e em simultâneo, determinante maior da memória e construção
das vilas, aldeias e lugares do “lado de cá” e “de lá” da fronteira e um referencial já
aludido por escritores, poetas e artistas que o ilustraram nas suas obras para a
posteridade.
bandolero que até ao dia da sua execução, nunca lhe foram imputados “crimes de sangue”. Na Canción
de Diego Corrientes, famoso romance de cordel em terras espanholas e cantado até bem entrado o
séc.XX, se dizia “Roba a los ricos, socorre a los pobres y no mata a nadie" (rouba os ricos, auxilia os
pobres e não mata ninguém). É ainda hoje lembrado pelas afrontas, desafios e humilhações feitas ao
governador de Sevilha, Don Francisco de Bruma y Ahumada, que procurou a partir de 1780 e munido de
um mandato redigido pelo monarca espanhol Carlos III, dar “caça ao homem”. Foi talvez o primeiro caso
de colaboração de autoridades entre Portugal e Espanha, visando a captura de um foragido. Foi preso
nesse ano no nosso país – na Covilhã- por uma guarnição portuguesa liderada pelo Capitão Arias e
extraditado. Foi enforcado no ano seguinte (1781) e esquartejado, logo após e como exemplo, facto que
reforçou a sua lenda.
5
Mochila - Terminologia usada pelos contrabandistas para definir a carga transportada individualmente
e em geral até 50 kgs. O termo é mais comum entre os contrabandistas pertencentes às quadrilhas da
fronteira molhada do Guadiana – de Vila Real de Santo António ao Pomarão-, e eram em geral,
formadas por grupos de quatro a seis homens, e que que pelas condições de transporte determinadas
pela capacidade física de cada homem, bem como pelas especificidades de flutuabilidade e
acondicionamento da carga.
9
São inúmeras, na poesia e prosa, mas sobretudo na tradição oral, as histórias sobre as
“gentes” do contrabando, remanescendo a memória de uma actividade que pese a não
ocorrer nos tempos que vivemos e do paradigma da “abertura de fronteiras”, não
afastará um dia a possibilidade de “regresso” da mesma, caso as dificuldades e os
condicionalismos impostos pelo momentum político e económico assim o determinem.
A história assim o dita ao longo destes últimos quinhentos anos e na sua repetição
cíclica, muito embora com todas as nuances próprias de cada tempo e cada realidade, o
contrabando foi, é e será, além de “pão”, memória e identidade, fonte de trabalho
científico e beleza de relato oral, enquanto as águas do Guadiana teimarem em correr.
A monografia procurará ainda incidir a titulo de exemplo nos elementos patrimoniais
que respaldam a memória dos tempos do contrabando, especificamente os “postos de
vigia” da máquina repressiva ao longo de ambas margens do Guadiana e da recente
valorização e reabilitação do ponto de vista institucional do contrabando e da figura do
contrabandista, como é exemplo o enfâse que a vila de Alcoutim, no seu mobiliário
urbano faz, através da promoção de escultórica votiva aos mesmos ou ainda de
modestas mas preciosas propostas, a um nível museológico embrionário como as
existentes no Museu do Contrabando de Santana de Cambas6.
Iniciemos, pois, o estudo de uma monografia que pretende, de forma humilde, ser uma
homenagem a tantas gerações de bravos homens e mulheres, que pelo heroísmo estóico
da sobrevivência arriscaram tudo o que podiam, na árdua luta do seu quotidiano e que
mais do que transgressores, foram trabalhadores dignos exercendo nas mais duras
condições o seu oficio.
6
Aldeia e freguesia do concelho de Mértola, com profunda ligação e memória histórica ao contrabando
e que possui um interessante museu que funciona nas instalações de um antigo posto da Guarda Fiscal.
10
1. Definição do Objecto de Estudo
Com esta tese monográfica pretende-se abordar o contrabando nas suas diversas
dimensões, enquadrando determinantes histórico-económicas e sociais nacionais, mas
que encontram claro reflexo em relação às especificidades regionais e tendo como
fulcro a fenomenologia do contrabando tradicional na fronteira entre Portugal e
Espanha.
Será abordada a história deste tipo de contrabando, procurando contextualizar origens,
definir traços evolutivos que são reveladores das suas causas e motivações, do seu
decurso e do seu definhamento e ilustrar idiossincrasias que caracterizam as suas
especificidades. Procurar-se-ão ilustrar, ainda, os testemunhos e legados no referencial
de identidade dos povos e comunidades envolvidos na actividade, fazendo, por
exemplo, uso de elementos de produção cultural diversos, caso das abordagens literárias
sobre o tema; de estruturas arquitectónicas usadas pela máquina repressiva; ou da
produção de elementos artísticos votivos à temática do contrabando.
Este trabalho monográfico focar-se-á, pois, especificamente no contrabando tradicional
que é aquele que traduz de forma fiel, a dinâmica da actividade enquadrada no meio
geográfico a ele associado. Por contrabando tradicional terá que ser entendido aquele
que se praticou desde tempos ancestrais e que se desenvolveu de forma quase
espontânea entre as povoações de cada lado da fronteira, a titulo individual (ou quando
muito, em pequenas quadrilhas de número nunca superior a seis homens) e numa lógica
quase exclusiva de sobrevivência dos envolvidos e ficando de fora deste objecto de
estudo não só o contrabando de respaldo institucional como o que se registou em
tempos do proteccionismo cerealífero dos anos da vintismo do séc.XIX, bem como às
modernas dinâmicas de contrabando, não só exteriores ao território em estudo, mas
11
inerentes ao funcionamento, orgânica e objectivos das organizações criminosas da
actualidade.
Assim, a tese monográfica incidirá sobre as seguintes perspectivas:
1) Estabelecer as origens e a evolução do fenómeno, bem como das dinâmicas da
própria fronteira onde se inseriu.
2) Identificar e determinar os seus principais elementos estruturais, enquadrando o
seu contexto e fazendo análise dos elementos quantitativos a ele associados,
sejam as especificidades histórico-económicas da região, caracterização
demográfica e económica, circuitos de contrabando e bens transaccionados
segundo épocas, bem como os processos de transformação sofridos ao longo dos
tempos.
3) Abordagem qualitativa do fenómeno do contrabando associado ao período
cronológico que engloba essencialmente quatro décadas do século XX e em
concreto os anos da Guerra Civil Espanhola, da Segunda Guerra Mundial e as
décadas de 50 e 60, através dos registos assentes na oralidade (recolhas diversas
de relatos orais) e constituição de memória colectiva através do legado de fontes
literárias e jornalísticas.
Partimos, pois, do objectivo de assim tornar possível de forma abrangente, um
entendimento o mais amplo possível das dinâmicas do contrabando tradicional
associado a um limite geográfico específico, abordando a estrutura, analisando as causas
e encontrando o seu fulcro, segundo as condições próprias de cada época e
essencialmente, aproximar em conclusões a fundamental vertente humana e permitir a
12
compreensão do que representou o contrabando na vida das comunidades e das suas
gentes.
Esta tese monográfica não se esgotando no seu objectivo meramente académico, não
exclui ainda uma pretensão futura de uma análise mais cuidada e trabalhos que possam
aportar uma complementaridade mais desenvolvida e que sejam alicerces de novas
propostas que contribuam para que o contrabando e a sua temática sejam alavancas de
desenvolvimento de potencial nas comunidades raianas que se debatem com um
isolamento e esquecimento crescente. Que o património de um passado de contrabando
seja motor de futuro.
13
1.1.
Âmbito Geográfico associado.
A investigação que agora iniciamos, incide sobre a região do Baixo Guadiana, a sua
zona litoral junto à foz do Guadiana e envolvente e a projecção da “fronteira” entre
Alentejo e Algarve compreendida a montante da desembocadura da Ribeira do Vascão e
que engloba a fronteira definida pelo Rio Guadiana entre Portugal e Espanha e
compreendida pelos limites localizados a jusante e gradualmente mais próximos da foz
do mesmo e que em Portugal abarcam os actuais concelhos do distrito de Faro situados
na franja oriental da região algarvia adjacentes ao rio, e que são Vila Real de Santo
António, Castro Marim, Alcoutim e Mértola, concelho do distrito de Beja (Baixo
Alentejo) situado na posição mais a sueste do mesmo. No país vizinho, os limites do
Baixo Guadiana estão compreendidos dentro das comarcas7 situadas no extremo oeste
da província de Huelva e que são a Costa Occidental no limite sul e junto à foz do
Guadiana; a norte desta a comarca de El Andévalo e na projecção para interior no
extremo noroeste da província de Huelva e do sentido montante do rio, a Sierra de
Huelva.
A área geográfica que consideramos pois para este trabalho monográfico, incide sobre a
extensão do Guadiana no qual se torna navegável e em concreto nos últimos 48 Km, de
montante a jusante entre o Pomarão e Vila Real de Santo António, onde pode a sua
largura variar entre cem e quinhentos metros e sendo a sua profundidade média,
7
Definição de comarca patente no Estatuto de Autonomía de Andalucía no Título III. ORGANIZACIÓN
TERRITORIAL DE LA COMUNIDAD AUTÓNOMA e Artº 97 e em concreto no ponto.1.
Comarcas
1. La comarca se configura como la agrupación voluntaria de municipios limítrofes con características
geográficas, económicas, sociales e históricas afines. ( Trad. A comarca configura-se como a agregação
voluntária de municípios com características geográficas, económicas, sociais e históricas afins.)
14
superior a cinco metros8 (pese haver áreas como o “pego da curva” de Guerreiros do
Rio, onde sondagens apontam mais de setenta metros de profundidade e no caso do
canal de navegabilidade que corre centralmente em relação às margens do rio, que pode
ter em algumas variações de dezassete para apenas cinco metros de profundidade9).
Importa referenciar ainda os principais aglomerados urbanos respeitantes a cada
concelho e comarca em estudo. Assim, em Portugal, destacam-se nos concelhos
supracitados, as sedes dos mesmos, caso da cidade de Vila Real de Santo António e as
vilas de Castro Marim, Alcoutim e Mértola; e em Espanha, as sedes das comarcas,
sendo a cidade da Ayamonte o centro comarcal da Costa Occidental; o municipio10 de
Valverde del Camino no respeitante a El Andévalo e o municipio de Aracena para a
Sierra de Huelva.
Como veremos no desenvolvimento do trabalho, devem ser consideradas de forma
muito destacada pequenas aldeias e lugares associadas aos concelhos, comarcas e
municípios já referidos e que se revestem de extrema importância, por uma inerência
que se prende com uma miríade de factores. Por exemplo, muitas das aldeias, lugarejos
8
Consulta de site, em 9 de Outubro de 2012 no site: http://www.odiana.pt/rio/
Consulta de site, em 10 de Outubro de 2012 no site:
http://www.cima.ualg.pt/cimaualg/cimaualg_old/SPICOSA/local/estuario.html e contrastando
informações empíricas recolhidas através do relato de José Martins, mestre da embarcação turística
Guaditur, que faz cruzeiros de Vila Real de Santo António à Foz de Odeleite e Guerreiros do Rio
10
Terminologia administrativa espanhola associada à mais básica divisão administrativa. De maior a
menor dimensão, ou seja no país Espanha, existem as comunidades autonómicas caso da Andaluzia, que
se subdividem em províncias e neste exemplo Huelva, que se encontra por sua vez dividida em
comarcas (que por exemplo existem na Andaluzia, mas que em algumas comunidades autonómicas em
Espanha, não) como El Andévalo e comarcas estas que por sua vez que são unidades são formadas por
conjuntos dos municípios, neste caso de Valverde del Camino ou Sanlúcar do Guadiana.
Os municípios corresponderiam, pois, em Portugal ás sedes de concelhos - (independentemente da
convencionalidade de atribuição e diferenciação entre a possibilidade de serem cidades, vilas ou aldeias)
e abarcando vilas, aldeias, lugares, bairros e periferias no seu entorno (e que seriam de forma informal
as freguesias no nosso país) e que junto ao municipio como sede, formam os terminos municipales –
área total e limites de competências de intervenção dos municípios-, que corresponderiam isso sim e
literalmente aos nossos concelhos (sede e freguesias). Destaque-se que os municípios são geridos por
ayuntamientos que correspondem às nossas câmaras municipais.
9
15
e até sítios ermos adjacentes a um e outro lado do rio11, revestiam-se de fundamental
importância na actividade do contrabando, quer por determinantes várias que se
prendiam com a localização dos postos de vigilância da autoridade; com zonas
específicas de correntes do rio em associação a factores como os ciclos de marés e os
ciclos lunares que eram factores de vital importância para a facilidade e sucesso das
“travessias”; dos lugares e “terras de passagem”12 que conectavam vias de acesso e
localidades mais afastadas do rio, aos pontos de travessia dos contrabandistas.
Assim, no nosso país e no concelho de Castro Marim (não considerando Vila Real de
Santo António, que possuía instalações centrais e destacamentos no porto comercial e
junto à foz do Guadiana, no sítio da Pedra Alta e junto à Praia de Vila Real
popularmente conhecido pelos Sitio dos Três Pauzinhos), no referente a localidades e
lugares associados ao contrabando, destacam- se algumas como Almada de Ouro e a
Foz de Odeleite e todo um conjunto de localizações de postos da Guarda Fiscal, caso
dos postos nas referidas localidades ou isolados mas de grande importância estratégica
como os do lugar do Seixo (que se situa praticamente debaixo da actual Ponte
Internacional do Guadiana), da Rocha (situado em plena Reserva do Sapal de Castro
Marim), das Choças na projecção da aldeia do Azinhal para o rio ou da Ponta do
Cinturão (que definia o limite junto ao rio dos concelhos de Castro Marim e Alcoutim).
11
Conhecidos vulgarmente por montes do rio
Entenda-se as “terras de passagem” como terrenos - em geral de propriedade privada- que se
encontravam a meio caminho dos eixos viários principais e de localidades mais afastadas do rio com as
zonas de “travessia” e localidade situadas nas margens do Rio Guadiana. Eram “outra” das faces do
contrabando, pois os proprietários cobravam em geral franquias de passagem pelas terras, aos
contrabandistas, sob pena de delação às autoridades e lucravam paralelamente, mas de forma activa,
com o contrabando.
12
16
No concelho de Alcoutim, além da Vila enquanto porto e de ter estreita ligação à villa
localizada na outra margem do rio, Sanlúcar del Guadiana e ser a sede de secção13 da
Guarda Fiscal do concelho, destacam-se as localidades vulgarmente conhecidas como
os montes do rio e que são o Álamo, os Guerreirinhos, Guerreiros do Rio, Montinho das
Laranjeiras e Laranjeiras, bem como os inúmeros postos da Guarda Fiscal situados de
permeio e dos quais se destacam os de: Abrigo Segundo, Alcaçarinho, Barranco do
Álamo, Barranco do Carrascal, Barranco das Pereiras, Canavial, Enxoval, Foz de
Odeleite, Grandacinha, Guerreiros, Laranjeiras, Lourinhã, Pontal, Premedeiros e
Vascão.
Deve, de igual modo e com interesse de contextualização das rotas do contrabando,
referir-se que os montes do Nordeste Algarvio, que se encontravam a meio caminho
entre o Rio Guadiana e a estrada de Vila Real de Santo António a Mértola, eram pontos
habituais de passagem e abrigo dos contrabandistas. Estes constituíam-se como
verdadeiros entrepostos que se encontravam ligados a tantos outros lugares já muito
distantes do rio e que serviam de fonte de matéria para a preparação das cargas dos bens
transaccionados por via do contrabando e podemos destacar destes: Corte das Donas,
Tenência, Torneiro, Cerro, Balurcos de Cima e de Baixo, Corte Tabelião, entre tantos
outros, chegando mesmo a partidas tão longínquas quanto Giões e Martinlongo. As
estradas existentes com todas as limitações do relevo da região desempenhavam uma
fundamental função de escoamento a outros pontos do Algarve e até do país, das cargas
trazidas de Espanha.
No concelho de Mértola e especificamente na envolvente da zona do Pomarão, - que
representou por mais de cem anos um porto de vital importância na economia regional e
13
Estrutura administrativa da Guarda Fiscal, que era responsável pela coordenação de postos e efectivos
e tendo uma sede centralizada, em geral, na localidade onde se encontravam também serviços
administrativos civis.
17
até nacional, por força do ciclo do minério da Mina de São Domingos - convêm referir
que este local de bifurcação do Rio Guadiana e do afluente Chança era uma área
prolifica no que diz respeito ao contrabando e que esta apetência pela actividade tinha
relação com a distribuição das localidades e facilidade de acesso às mesmas, tanto
portuguesas quanto espanholas, sem descurar, à semelhança do registado no concelho
de Alcoutim, do determinante condicionalismo resultante dos parcos recursos e da
necessidade de sobrevivência que assim o determinavam. Toda a área que se enquadra a
norte da desembocadura da Ribeira do Vascão - que define o limite junto ao Guadiana,
do Algarve e Alentejo- e até à curva14 do Pomarão, serviu como local de travessia.
Diga-se que o Chança actualmente, nesta região, coloca uma barreira quase
intransponível pela criação, no inicio dos anos oitenta do séc.XX, de uma das mais
importantes albufeiras abastecedoras de água de toda a Andaluzia, mas que deve referirse que, em tempos idos, pela natureza do seu caudal intermitente segundo as estações do
ano, foi um afluente que permitia até a passagem a pé podendo ser entendido quase
como uma fronteira seca15.
Localidades como Colgadeiros, Mesquita, Salgueiros, São Martinho, Santana de
Cambas e a própria Mina de São Domingos, serviam de manancial humano de
contrabandistas e como localidades de ligação a Mértola, onde iremos adiante registar
que se localizava um importante entreposto de produtos vindos do resto do nosso país e
até das colónias ultramarinas e onde alguns dos senhores da terra podiam ser
entendidos como “capitalistas” dedicados em exclusivo ao negócio do contrabando e
lucrando, com a protecção de autoridades e poderes, de forma abismal.
14
Local onde o Guadiana se bifurca com o seu afluente, a Ribeira do Chança, afastando-se o Guadiana
da fronteira em direcção a Mértola e ficando esta definida pelo curso do Chança.
15
Fronteira Seca por oposição ao Guadiana enquanto fronteira molhada, ou seja, apenas passível de ser
cruzada a nado ou com uso de embarcação.
18
No lado de lá da fronteira e de jusante a montante, será importante reter que junto à foz
do Guadiana e na sua projecção para o litoral costeiro, localidades como Ayamonte,
Lepe, Cartaya, Aljaraque
e chegando mesmo até San Juan del Puerto já nas
imediações da capital provincial, Huelva, eram essencialmente os pontos de recepção
das cargas provenientes de Portugal. Convêm referir que pese a distância com a
fronteira de algumas das referidas localidades, não representava obstáculo ao árduo
labor das quadrilhas de contrabandistas, que acarretava a travessia do rio a nado, vários
dias de caminhada portando cargas pesadíssimas, buscando esconderijos e procurando
evitar a detecção das autoridades do país vizinho. Mais enfático será referir que estas
localidades chegavam a distar mais de 60 quilómetros desde o local de inicio da epopeia
dos contrabandistas portugueses, nomeadamente, dos que eram provenientes do
concelho de Alcoutim, o que revela a dimensão titânica da tarefa. E não será demais
referir, que a um caminho de ida correspondia um caminho de volta e também com a
mochila carregada, na maioria das vezes.
Não se limitando a estas rotas de contrabando de longo curso, poderiam de igual modo
existir serviços de cariz intermédio ou curto, e nessa lógica no limite entre as comarcas
da Costa Occidental e do El Andévalo, os principais núcleos populacionais
correspondentes à projecção do concelho de Castro Marim e limites com o concelho de
Alcoutim do outro lado da fronteira, eram Villablanca, San Silvestre de Gúzman ou
Tariquejo que serviam não só de ponto de recepção de mercadoria, mas igualmente, em
relação aos trajectos mais longos, como locais de passagem rumo aos destinos já
referidos.
Na área paralela ao concelho de Alcoutim e a montante da mesma Vila, encontrava-se
Sanlúcar de Guadiana, vilarejo fronteiro que estando no mapa do contrabando e sendo
igualmente terra de contrabandistas espanhóis, era evitado pelos contrabandistas do
19
nosso país, pela presença do posto local e guarnição dos Carabineros16. Para o interior
de Sanlúcar de Guadiana, o contrabando era ainda levado (ou passado) por Villanueva
de los Castillejos, Puebla de Gúzman, Tharsis, Alosno e chegando até locais tão
distantes da fronteira como as Minas de Rio Tinto e Valverde del Camino, que se
revestiam de enorme importância não só pela existência de um elevado número de
pessoas que trabalhavam nas minas e pelas necessidades prementes de certos bens em
escassez e ainda mais justificado pela fundamental e estratégica localização do principal
eixo viário da região a Sevilha.
Na mesma lógica, ainda que situada mais a norte na zona do Pomarão, até mesmo a
Santana de Cambas e à Mina de São Domingos, as relações privilegiadas na entrega e
recepção de cargas davam-se ainda com localidades de passagem mais a sul, e em
direcção aos destinos acima mencionados, especialmente em El Granado e Santa
Catalina de onde muitas vezes seguiriam depois para Puebla de Gúzman e dai para
Valverde del Camino.
É de destacar que outro ponto de recepção de cargas, em concreto para os
contrabandistas oriundos da zona do Pomarão e Santana de Cambas, era Paymogo já
bem entrado na Sierra de Huelva e nos limites da Andaluzia com a Extremadura
espanhola, sendo esta localidade o ponto de passagem para as principais localidades da
comarca mais a norte da província de Huelva, casos de Aracena e Cortegana.
Tendo, até agora, dado o ênfase as rotas de contrabando ligadas em exclusivo ao rio
Guadiana, não poderemos deixar de referir que existiram, em momentos determinados,
fluxos muito relevantes de contrabando para limites muito afastados da fronteira, e
16
Apodo dado aos militares da Guardia Civil espanhola e que eram conhecidos pela sua brutalidade e
falta de humanidade. Nos diversos relatos de contrabandistas que abordaremos, passa a ideia que os
carabineros seriam incomensuravelmente mais cruéis e desumanos que os efectivos da nossa Guarda
Fiscal, sendo referidas relatos dos longos meses de prisões sem julgamento, torturas e privação de água
aos detidos.
20
especificamente da foz do Guadiana para pontos diversos da Baía de Cádiz (San
Fernando, Chiclana, Barbate e inclusive Algeciras e Gibraltar). Que tipo de bens
justificariam semelhante distância? Talvez o bem mais valioso, a mão-de-obra
portuguesa que trabalhou nos campos do sul de Espanha, em períodos imediatamente
anteriores e posteriores à Guerra Civil Espanhola.
E, em jeito de fecho, para complementar a ideia de contrabando humano, que deve ser
entendido como o auxílio para a travessia da fronteira luso-espanhola, não entrarão no
campo da especulação e fantasia, as histórias dos perseguidos pelo regime fascista do
nosso país, nos tenebrosos anos da ditadura, que encontraram nos contrabandistas, leais
e zelosos cumpridores de um trabalho de elevado risco e pago muito acima da média e
que representaram uma mercadoria, infelizmente, muito comum nos anos sessenta do
passado século. Os contrabandistas foram dos principais obreiros do salto17 de muitos
homens que se revelariam fundamentais na construção da nossa democracia após o 25
de Abril de 1974.
17
A expressão salto aplica-se neste caso, como a triste passagem da fronteira dos perseguidos pelo
regime salazarista, tantas vezes sem destino, sem recursos e sem documentos.
21
1.1.1 Âmbito Geográfico associado. – Apêndices Fotográficos
Geral – Mapa Portugal- Espanha (Região do Baixo Guadiana - sinalização com
marcador amarelo)
22
Imagem 1 – Perspectiva Geral Mapa Baixo Guadiana
23
Infografia – Esquematização da região do Baixo Guadiana associada à pontos de
referência e localidades
24
Imagem 2 – Relevo Geral região Baixo Guadiana – tramo Alcoutim – Foz de
Odeleite.
25
Imagem 3 – Descritivo dos pontos de travessia da fronteira e principais rotas
associadas ao contrabando ( de Vila Real de Santo a Alcoutim)
Imagem 4 – Descritivo dos pontos de travessia da fronteira e principais rotas
associadas ao contrabando ( de Alcoutim à Mina de São Domingos)
26
Imagem 5 – Mapa de Referência Concelho de Alcoutim – Igeo – Mapa Geodésico
de Cartografia Militar M888 –folhas 575 ( área sombreada em detalhe Imagem 6)
Imagem 6 – Mapa Geodésico (Noção de Relevo) Cartografia Militar 1/25000
(Alcaria -Alcoutim) – Relevo da zona de Laranjeiras /Guerreiros do Rio – M888 –
folha 575
27
Imagem 7 – Mapa de Referência da área do Pomarão/Chança – IGeo – Mapa
Geodésico de Cartografia Militar M888 –folhas 567 ( área sombreada em detalhe
Imagem 8)
Imagem 8 – Mapa Geodésico (Noção de Relevo) Cartografia Militar 1/25000
(Alcaria -Alcoutim) – Relevo da zona de Pomarão/Fronteira do Chança – M888 –
folha 567
28
1.2. A Fronteira e o Contrabando – Dinâmica Politica, Administrativa
e Económica do Baixo Guadiana.
Importa, enquanto ponto de partida, definir o período cronológico associado à
fenomenologia do contrabando, sem isolar o mesmo de um enquadramento mais
complexo sobre as questões respeitantes à definição da fronteira, não meramente como
barreira física, mas essencialmente como a criação artificial de uma estrutura política,
económica e administrativa, associada às dimensões resultantes das relações entre
Portugal, o Reino de Castela e, em sequência, com a Espanha.
A região do Baixo Guadiana, insere-se na lógica ancestral de uma periferia somente
quebrada pela vigência do rio, enquadrado numa lógica de estrada navegável e de fluxo
comercial e populacional entre o interior e o litoral. O rio é, pois, fundamental para a
fixação populacional em virtude das limitações de acesso justificadas pelo relevo da
região, que representou factor limitante nos fluxos populacionais resultantes dos ciclos
de transumância provenientes da meseta peninsular.
Assim desde o séc. VI a.C e da narrativa de Heródoto sobre o Reino de Tartessos e da
riqueza mineira da região, passando pelo Guadiana como área de contacto de povos
provenientes do Mediterrâneo, caso de Cartagineses, Fenícios e Gregos e do
desenvolvimento dos povos residentes da idade do Bronze no Sudoeste Peninsular, caso
dos Cónios e os Turdentanos, passando pela Romanização e pela importância de
Myrtilis Iulia (Mértola), não só justificada pela navegabilidade do rio e da prolifica
actividade de produtos escoados desde o interior às várias partidas do Império, assim
como, também, da entrada de bens e gentes e ainda pela inserção da região através de
um dos principais eixos viários da Ulterior e Bética, do eixo Emerita Augusta (Mérida)
29
passando por Ebora Liberalitas Julia (Évora) a Pax Iulia (Beja)18. Com o declínio do
Império Romano e a ocupação visigótica do séc. V da nossa era, a diminuição da
actividade comercial teria reflexos no isolamento expresso pela esparsa população
residente e a quase ausência de comunidades fixadas ao longo do Baixo Guadiana, que
subsistiam por via da prática de agricultura, da pastorícia e da pesca no rio, quadro que
se manteve, inclusive, durante os primeiros séculos do domínio islâmico e até a tomada
de Mértola por ‘Abd al-Rahmān III em 929 d.C. O desenvolvimento deste núcleo
urbano e da área de arrabalde portuário e, em concreto, no período áureo do séc.XI,
define a região como importante área inserida na rede de intercâmbios do al-Ândalus19.
É de destacar o carácter de periferia da fronteira do Guadiana, associada como
normalmente toda a extensão de 1.234 quilómetros de fronteira entre os dois países, e
como área periférica distante dos principais centros habitacionais, da riqueza e
importância a eles associados. Refere Melón Jimenez (2010) que a fronteira “se situa
en vacio natural existente en los dos lados, quedando alejada de ella las partes más
pobladas y ricas de ambos países, así como los centros soberanos de poder”20.
O mesmo autor refere ainda que a fronteira, inicialmente se tratava “más de una franja
que una línea” e “era además un espacio discutido y controlado principalmente
mediante un sistema de estabelecimientos aduaneros y plazas fuertes que actuaban
como avanzada hacia el país vecino” 21.
18
Consulta de site em 14 de Novembro de 2012 e informação sumulada sobre o artigo A Romanização
de Mértola em http://www.portugalromano.com/2011/09/myrtilis-iulia-mertola/
19
Consulta de site em 15 de Novembro de 2012 e súmula das conferências sobre Mértola Islâmica, a
Madina e o Arrabalde e dos responsáveis do Campo Arqueológico do Mértola, contido no site :
http://comum.rcaap.pt/handle/123456789/2130
20
MELÓN JIMENEZ, Miguel Ángel, “Contrabando y negócios en el limite de dos imperios” in Revista
Andaluzia en la Historia nº 27, 2010, p.12
21
Tradução própria: “(A fronteira) tratava-se mais de uma franja que uma linha” e “era além disso um
espaço discutido e controlado principalmente através de um sistema de estabelecimentos aduaneiros e
praças fortes que actuavam como linha avançada em relação ao país vizinho”
30
Medina García (2009) dando o mote para o objecto de estudo desta investigação, afirma
que o contrabando tradicional remonta praticamente ao início do estabelecimento das
fronteiras entre países e coincidindo com a ocupação militar dos portos secos pelos
cristãos aquando da Reconquista Cristã na primeira metade do séc. XIII22.
Os limites de fronteira entre Portugal e o Reino de Castela relativos ao Baixo Guadiana,
inserem-se numa leitura não linear do processo de Reconquista. Assim, todo o limite
compreendido entre Mértola e a foz do Guadiana, quer de um lado, quer de outro da
fronteira, enquadram-se nos domínios do reino português a partir do ano de 1238 e
relativos aos resultados da campanha do Rei D.Sancho II (com a participação das
Ordens de Santiago e dos Hospitalários) entre esse ano e 1240, e contra os domínios do
reino de Ibn Mafhûz, com capital sediada em Niebla. É, então, a 2 de Maio de 1239 (ou
1240, segundo alguns especialistas), que as fontes documentais patentes na Carta de
Doação à Ordem de Santiago do castelo de Ayamonte (que se crê tenha começado a ser
construído nesta data) oficializam a conquista e entregam-na à guarda da referida ordem
e à figura de Paio Peres Correia, através do disposto no seguinte excerto: “(…) Em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amen. Saibam todos os que esta carta
virem, que eu Sancho II, por graça de Deus rei de Portugal, de minha boa e livre
vontade, e por acordo e parecer dos meus fidalgos e ricos-homens e pelo óptimo
serviço que me prestaram D. Paio [Peres] Correia, comendador de Alcácer e os freires
da Ordem de Santiago (…) lhes dou e concedo, e à Ordem de Santiago e a todos que no
futuro lhe sucederem, o meu castelo de Aiamonte com os seguintes limites (…) com
22
MEDINA GARCIA, Eusebio (2009). “El contrabando de posguerra en la frontera de España con
Portugal” in Revista Noudar nº0, 2009, p. 10.
31
todas as suas pertenças, com as entradas e saídas, quer por mar, quer por terra, e com
todos os direitos reais que aí tenho ou devo ter(…)23.
As ordens militares já referidas, dividiam assim desta forma os territórios conquistados
ficando a Ordem dos Hospitalários com a tutela de Serpa, Moura, Aracena y Aroche; e a
Ordem de Santiago com Mértola, Alfayat de la Peña (fortificação que se acredita ter-se
situado na actual localidade de Puebla de Gúzman) e Ayamonte.
Com a tomada de Alcoutim, Cacela e Tavira, Castro Marim, que representava o último
bastião de resistência islâmica na proximidade ao Guadiana, cairia em mãos cristãs, em
1242.
Em 1267, o Tratado de Badajoz entre o rei castelhano Afonso X e o monarca português
Afonso III, definia que o rio Guadiana se estabelecesse como fronteira entre ambos os
reinos, passando os territórios a leste do rio para a posse do Reino de Castela e este
reconhecendo o Reino do Algarve como parte integrante do Reino de Portugal 24 e
ficando finalmente a questão dos limites fronteiriços do Guadiana resolvida, já em finais
do séc. XIII, através do Tratado de Alcañizes25 com a permuta de Ayamonte, Aroche e
de Aracena para Castela e para Portugal das regiões de Campo Maior, Ouguela e
Olivença e toda a região e praças fortes do Riba-Côa26.
23
Tradução moderna da “Carta de doação à Ordem de Santiago” BRANDÃO, Frei Francisco, Monarquia
Lusitana, vol. V, 2008 p.348
24
BERRONES, Enrique Arroyo: "Ayamonte: musulmana/cristiana portuguesa/castellana, Historia del
castillo de Ayamonte en el siglo XIII”; Publicación de las Jornadas de Historia de Ayamonte, 1997, p.13
25
Tratado de paz celebrado entre os reinos de Portugal e de Castela em 1297 (ao tempo de D. Dinis). O
tratado definiu os limites do território continental português, que não tiveram alteração posterior, à
excepção da perda de Olivença em 1801. Estipulava que certas localidades passavam definitivamente
para domínio castelhano e outras para domínio português. Por outro lado, consagrava dois casamentos:
o do futuro monarca D. Afonso IV com D. Beatriz de Castela e o da infanta D. Constança com o rei
castelhano D. Fernando IV
26
Praças fortes do Riba-Côa: Almeida, Alfaiates, Castelo Bom, Castelo Melhor, Castelo Rodrigo,
Monforte, Sabugal e Vilar Maior.
32
Com esta definição dos limites fronteiriços, os seguintes séculos – em concreto os
séculos XIV e XV -, na região, irão reflectir uma substancial alteração do
desenvolvimento das actividades comerciais ancestrais e da relação entre gentes de
ambos países quer em Castela ou Portugal, associada aos alvores de uma nova política
fiscal afecta ao poder central das coroas, que estabelecia um novo paradigma e através
do surgimento de regulamentação na actividade comercial e da transacção ou troca
directa de produtos e bens. A existência dessas relações comerciais ancestrais e
anteriores
ao
surgimento
dos
reinos,
apoiadas
numa
antiquíssima
relação
consuetudinária associada não só à prática comercial, mas igualmente transversal às
diversas dimensões das relações entre gentes de ambas as margens do Guadiana, irá ser
gradualmente afectada pelos determinismos de ordem política, administrativa e
económica e até social, que se revelarão intrusivos a uma actividade que era comum e
aceite entre gentes de ambos lados da raia, tendo em conta que, em tempos não
distantes de domínio islâmico, se agregavam num denominador comum de existência e
referencial de vida, sem qualquer barreira artificial que os diferenciasse.
Não exclusivamente clivada por aspectos económicos, a fronteira do Baixo Guadiana,
desde a sua criação, é também e essencialmente reveladora do novo paradigma político
existente e logo, foi alvo de uma preocupação extrema por parte do poder régio de
ambos países. O facto de Castro Marim se encontrar diante de Ayamonte e Alcoutim de
Sanlúcar de Guadiana, reflecte essa política de controlo velado de cada um dos reinos
em relação ao outro e de pretensões militares e territoriais. A dificuldade de proceder à
fixação populacional nestas paragens, assentaria no facto da fronteira se constituir
enquanto espaço vulnerável a perigos e com maior susceptibilidade, em caso de
contenda. São relatadas, no desenrolar da Idade Média e no reinado de D.Afonso IV,
campanhas, por exemplo, do rei castelhano Alfonso XI contras as praças de Alcoutim e
33
de Castro Marim27. Assim, a fronteira viverá tempos conturbados na Idade Média,
justificados quer do ponto de vista de uma obrigatória política de povoamento que
permitisse fixar a mesma contra as pretensões do país vizinho, quer da excepcionalidade
dos privilégios que seriam necessários atribuir para permitir essa fixação28. As
disposições regulamentares no nosso país expressas nas primeiras cartas de foral,
representando ferramentas legais que vão ao encontro das particularidades produtivas e
comerciais das localidades para as quais são outorgadas, são igualmente definidoras em
termos tributários e de privilégios de uma lógica de incremento pelo qual a
regulamentação da actividade comercial inserido nas especificidades da estrutura feudal
local associada principalmente às ordens religiosas, em concreto da Ordem de Santiago,
evoluirá pela alteração das determinantes socioecónomicas até aos inícios do séc. XVI,
para elemento imprescindível na lógica da povoação da fronteira e da centralização do
poder real29.
No reino de Castela e em concreto nos domínios da Casa de Gúzman – o El Andévalo -,
a lógica da introdução dos forais e da necessidade de povoamento fronteiriço no nosso
país encontra reflexos, na criação a partir de meados do séc. XIV, das aduanas, do
regime de portos secos e das figuras do titulares do bando regulador30, casos dos
27
PINA, Rui de - Crónica de D. Afonso IV, cap. XL, p. 108., refere que: “Hum Fernão Arrais, que por
Castela tinha a frontaria da terra contra o Algarve, cõ muyta gente entrou em Portugal, & correo, &
queymou,& destruhio muyta terra, & fez nella grãdes danos & veo correr a Castromarim, em huma
cilada que lançou acertouse, que dos moradores do lugar que sem bom resguardo a elle sairão matou
cento, & oitenta, & prendeo setenta, que levou a Castella cativos.”
28
Sobre a importância da criação dos coutos de homiziados: SERRÃO, Joaquim Veríssimo in História de
Portugal, Vol. II, 1978. P.251
29
CAVACO, Hugo; Castro Marim Quinhentista, 2000, pp.17-18. O autor refere no relativo às
determinantes da evolução socioeconómica patentes, entre o Foral Velho dos fins do séc. XIII até ao
Foral Novo em 1504, condensa no capítulo da Síntese Explicativa do Foral Novo, a visão da
desarticulação da estrutura feudal, substituída pelo incremento da acção da burguesia assente na
actividade comercial de “mesteirais, mercadores e todo o tipo de gente” e do Foral Novo (Manuelino) e
das novas regras que permitiam uma optimização das regras fiscais e tributárias, para o reforço central
da coroa.
30
O étimo castelhano da palavra Contrabando, reside na oposição às práticas definidas pelo bando
regulador. A palavra bando significava mandato que os titulares dos cargos acima referidos exerciam na
34
alcaldes de saca, guardas de los caminos e capitanes de fronteras que, localmente e
intrinsecamente, ligados aos feudalismo senhorial que surgiu após a Reconquista,
contribuíam para a fixação de território e sobretudo, ditavam regras associadas ao
comércio.
No entanto, pese à hostilidade existente, convêm contextualizar, nesta abordagem à
política fiscal e tributária seguida, que em nenhum momento e no relativo às regras de
taxação da actividade comercial, se diferenciavam países e especificamente em produtos
que fossem provenientes do lado oposto da fronteira.
Segundo Medina Garcia (2009), o contrabando surge quase de forma espontânea e em
finais do séc. XIV, como resposta às novas contingências colocadas no país vizinho, por
estes editais locais (o bando ou mandato), que redefinem as regras do jogo no que diz
respeito ao comércio31.
Aliás, é relevante afirmar que os reis de Castela, na entrada do séc. XV, incentivavam
activamente e contra os interesses dos seus representantes do bando, as trocas entre
gentes raianas numa lógica do suprimento das necessidades das populações aí residentes
e que o bando como estrutura feudal local que, como já foi mencionado no caso dos
forais em Portugal, quando se associou ao novo paradigma do surgimento de uma
burguesia de cariz mercantil e financeiro, através do açabarcamento de direitos
justificado pelos seus interesses, irá muscular a limitação à actividade comercial entre
aplicação de regras de regulação à actividade comercial das localidades raianas do país vizinho com
Portugal e relativos ao comércio de bens, indistintamente da proveniência, naquelas paragens.
31
O autor explicita no artigo o surgimento do contrabando na lógica de que o bando é quem cria o
contrabando, ou seja, a lei é quem determina o surgimento da actividade transgressora. Ao estabelecer
limites, normas e regulamentos, a própria lei cria a janela para ser violada e esta potestade que justifica
o aparecimento do contrabando, acaba por ser um novo elemento introduzido e totalmente estranho às
práticas comerciais, ancestrais, aceites de mútuo acordo, pelas comunidades.
35
gentes humildes da base da pirâmide social, em ambos lados da raia 32, assim
fomentando o contrabando como única alternativa para a continuidade da relação
comercial entre povos.
O surgimento da referida burguesia de cariz mercantil e da apetência pela actividade
transgressora do contrabando como fulcro da optimização do lucro, aportará também
um elemento contraditório nesta ambiguidade resultante das hostilidades entre países e
do tipo dos bens comercializados clandestinamente entre ambos, que são altamente
valorizados. Assim, por oposição, às leis que restringem produtos susceptíveis de ser
transaccionados com o país vizinho e pela vital necessidade politica de enfraquecimento
do inimigo além-fronteiras, sobrepõe-se o afã do grande lucro e da alta rentabilidade da
contabilidade evasiva ao Tesouro Real, assente precisamente no contrabando de
produtos que paradoxalmente são fundamentais para a máquina de guerra, tais como
cavalos, armaduras, espadas e outras armas, embarcações, entre outros, além de
elementos de valor material, ouro, prata e outros metais preciosos, usados para pagar
soldadesca e mercenários, ou ainda, vitais para a alimentação não só de populações, mas
dos exércitos como gado e cereais33.
Com a pacificação de relações entre os dois países na entrada do séc. XVI, na fronteira
do Baixo Guadiana, em concreto, o contrabando coexistiria com o fluxo constante de
um crescente volume de mercadorias transaccionadas, em geral, por via fluvial e em
particular a partir do porto de Castro Marim, ocorrendo paralelamente a uma intensa
actividade comercial dita legal de produtos entre o Algarve a Andaluzia, baseados nas
produções locais, tais como as frutas cítricas, os figos, as passas, as amêndoas, ou ainda,
32
MEDINA GARCIA, Eusebio , Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y
Cambio Social; Tese de Doutoramento; Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Ciencia
Politicas y Sociologia, Madrid, 2001, p.92,
33
GRILO, Márcia Luisa, “O Controlo do Comercio Fronteiriço” in Vila Real de Santo António e o
Urbanismo Iluminista, ed. CM. V.R.S.A., Cap. 2, p.25
36
outros produtos como o peixe fresco ou salgado, o vinho, o sal ou o azeite. Do lado
castelhano, chegavam sobretudo os cereais, legumes e tecidos de lã ou linho.
Luis Miguel Duarte (1998), refere para dar consistência a esta ideia, que “(…) o arsenal
de leis e a atenção dos responsáveis pelas fronteiras nunca conseguiram obstar a que
existisse um contrabando de pequena, média e grande escala nos dois sentidos da
fronteira. Ou a que (…) existisse corrupção nos oficiais encarregados de cobrar os
impostos (…)”34.
Assim, na mesma lógica, não só do reforço militar da foz do Guadiana como ponto
estratégico fundamental no controlo de navegabilidade do rio, mas também da
vigilância costeira e fundamentalmente do controlo da actividade económica, na entrada
do séc. XVI, em concreto em 1513, Santo António de Arenilha surgirá como ponto
avançado na fronteira oriental do Algarve, expoente desta estratégia, criado por édito
real manuelino, que define esta povoação como couto de homiziados, sendo à posteriori
definido por D.João III para estes habitantes degredados, privilégios relativos à pesca35.
O volume do contrabando é evidenciado, no outorgar do “Regimento” de 154736, por
parte de Diogo Fernandes das Póvoas, Provedor e Feitor-mor das Alfândegas do Mar e
Portos de Mar do Reino de Portugal e dos Algarve, onde informa o almoxarifado e
restantes funcionários oficiais da Alfândega de Tavira, que através do contacto feito
com habitantes da Vila de Santo António (de Arenilha), determinou que “avia
necessidade de huma pessoa que olhace pellos direitos de mercadorias e couzas outras
que pertencem despacharem-se na Alfandega de Tavira e nas outras alfandegas deste
34
DUARTE, Luís Miguel, “Contrabandistas de gado e «passadores de cousas defesas» para Castela e
«terra de Mouros»”, in Actas das IV Jornadas Luso- Espanholas…, vol. 1, 1998, p. 457.
35
GRILO, Márcia Luisa, Vila Real de Santo António e o Urbanismo Iluminista, 2010;p.32, referência em
rodapé de documento do ANTT (Núcleo Antigo), Chancelaria de D.João III, Livro 12, fl.62 in CAVACO,
Hugo, Revisitando Santo António de Arenilha,1995, Apêndice Doc. (Doc.1),pp.27-28
36
GRILO, Márcia Luisa, op.cit.; p.45
37
Reyno do Algarve pera que os direitos dellas não soneguem e venhão a boa arrecadação
como cumpre ao serviço de Sua Alteza” e indica ainda que “(…)pella informação que
disso tomey, achey que pela ponta de Santo Antonio que he da parte de Castro Marim e
pello esteiro da Carrasqueira e outras partes do Rio Godiana se pasavão muitas
mercadorias da Villa de Ayamonte e de outras partes dos Reinos de Castela e de fora
deles pera estes Reynos pellos ditos lugares, e asim outras mercadorias, escravos e
dinheiro e outras couzas destes Reinos pera os de Castella e pera outras partes sem das
ditas mercadorias, asim das que entrão no dito Reino como das que sahião dellee,
pagarem os direitos a Sua Alteza como herão obrigados(…)”.
Visando estabelecer um responsável o Regimento indica ainda que “(…)Hey por
serviço do dito Senhor que daqui em diante o juis ordinário e das cizas que hora he e ao
diante for na dita Villa de Santo Antonio tenha cuidado de vigiar, olhar, guardar todos
os ditos, portos, esteiros e Rio(…)”
Santo António de Arenilha, terá existido até ao primeiro quartel do séc.XVII,
sucumbindo a factores naturais como os avanços marítimos e de areias, aos abalos
telúricos e à vulnerabilidade dos ataques regulares do corso árabe, sendo revelado, por
exemplo, por Henrique Fernandes Sarrão que, em 1607, já só residiam dois habitantes.
A pacificação entre países, desde o último quartel do séc. XV, prolongando-se até ao
último quartel do séc. XVI e à anexação filipina, reflectir-se-á numa aproximação
social, politica e relacional entre comunidades raianas que assentou, essencialmente, nas
relações de comércio e do contrabando entre si. E, como exemplo, é patente na crónica
de João Cascão aquando da visita de D. Sebastião ao Algarve no ano de 157337, que um
grande número de ayamontinos atravessou o rio para ver o monarca português em Santo
37
CASCÃO, João, “Relação da jornada de El-Rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora”, in SALES
LOUREIRO, Francisco, Uma jornada ao Alentejo e ao Algarve…,1984, pp.119-125
38
António de Arenilha e Castro Marim e em ambiente de grande festa, facto que evidencia
a cumplicidade entre comunidades.
A jusante do rio e para a zona envolvente a Alcoutim, os relatos do séc. XVI referem a
importância comercial da vila do Aleo, que usufruindo do regime de taxas liberalizado
conferido aos almocreves para o transporte de produtos por terra (o que não acontecia
por via fluvial), se deslocavam de aldeias afastadas do rio como Giões e Martilongo,
para comerciar com os mercadores que se radicaram em Alcoutim e que não pretendiam
pagar impostos sobre a fruta em Tavira. Ainda que limitados nas quantidades pelas
particularidades associadas ao transporte terrestre, os almocreves do concelho do
nordeste algarvio traziam azeite, pescado e sal desde Tavira e levavam os cereais, o grão
e a cera que era consumida na cidade do Gilão. Nesta lógica, pela preferência dos
almocreves no transporte do trigo, Alcoutim era conhecido pelo celeiro de Tavira, o que
deixa perceber o volume de trigo levado ao litoral por estes. Esta rede de almocreves
seria usada de forma a trazer bens que eram contrabandeados na outra margem do
Guadiana, bem como produtos vindos de terras espanholas e que seriam levados a
outras paragens do Algarve e do país, distantes do Guadiana.
Na Corografia do Reino do Algarve de Frei João de São José, a região a norte de
Alcoutim é destacada, através dos relatos do volumoso comércio clandestino de gados
para Castela e ao comércio de escravos38.
É de referir que, desde a Idade Média, a região nordestina do Algarve e as duras
condições de isolamento da mesma, forçariam a uma necessidade politica por parte do
poder central, de procurar nas regiões fronteiriças a todo o custo a fixação populacional.
38
ASCENÇÃO NUNES, António Miguel, Alcoutim-Capital do Nordeste Algarvio (Subsídios para uma
Monografia) ,1985, p.101.
39
Assim, o estabelecimento dos coutos de homiziados à semelhança de Castro Marim e
Mértola, a região de Alcoutim -entre Foupana e Vascão- obedece, pois, não só à
necessidade de controlo fronteiriço mas está ainda, intrinsecamente, ligada ao
contrabando e às dinâmicas criadas a partir deste fenómeno, justificada até pelos
condicionalismos existentes para os homiziados e à sua natureza enquanto párias,
condenados pelos crimes cometidos, como tal propensos à prática de delitos e à
necessidade de vencer as dificuldades objectivas resultantes da fixação em terras tão
hostis e de conflitualidade tão acesa e ainda da procura de alternativas ao parco
rendimento agrícola das terras a eles atribuídas39.
Assim, o contrabando dava-se em ambos os sentidos da fronteira, ainda que
encontrando politicas repressivas que iam desde um pesado carácter pecuniário até
casos extremos que podiam levar à morte, executados pela estrutura dos referidos
elementos do bando e responsáveis do Tesouro Real, que eram quase idênticos nas
atribuições e acção, em ambos lados da fronteira. No entanto, a dinâmica de comércio
legal ou de contrabando na fronteira foi prolífica durante todo o séc. XVI e atendendo
também ao facto do nosso país se afirmar como pioneiro do comércio ultramarino.
Esta lógica será invertida somente em 1559, já com a nova proposta administrativa no
reinado de Felipe II de Espanha (que viria em 1580, a tornar-se rei de Portugal com o
nome de Felipe I) e do mandato conferido a dois funcionários da coroa espanhola –
Hernando de Villafaña e Luis de Polanco- para a organização aduaneira ao longo da
fronteira com Portugal. O documento elaborado previa a criação das aduanas
fronteiriças entre a Andaluzia e o Algarve e situadas em Ayamonte, El Granado, Lepe,
La Redondela e Sanlúcar de Guadiana. Do mesmo modo, mais a norte e na fronteira da
39
MEDINA GARCIA, Eusébio; “Perfiles Estructurales de la Frontera Hispano-Lusa (La Raya)” in Questões
Sociais Contemporâneas -Actas das VIII Jornadas do Departamento de Sociologia da Universidade de
Évora, 2006, pp.143-144.
40
região da Sierra de Huelva com o Alentejo, situavam-se Aroche, Paymogo e
Encinasola40.
Com a anexação de Portugal, a partir de 1580, foram logicamente suprimidas as
referidas aduanas, vindo a ser retomadas em 1592 e obedecendo a uma lógica do intenso
fluxo comercial da entrada de produtos que Portugal introduzia em território espanhol e
da pressão para restrições a estes, feita ao monarca pelas oligarquias comerciais
espanholas41. Assim, os produtos passados na fronteira e especificamente nestas
aduanas, patentes nos registos da Memoria de las Mercaderias, documento do séc. XVI
que faz a relação dos produtos provenientes de Portugal em terras castelhanas, onde se
faz alarde da excelente qualidade dos mesmos e da abundância de todo o tipo de
especiarias; doçarias e marmeladas, conservas; açúcar proveniente da Madeira, Brasil e
Cabo Verde; algodão em rama ou já fiado; tapeçarias; colchas e sedas da India; cofres
em nácar; pedras preciosas; colheres de nácar e marfim; porcelanas; ébano; lenços,
cintas, rendilhados e tecidos de cambraia e damasco42.
A retoma das aduanas e a política tributária foi definida pelo Arancel del Reyno de
España de 1597, documento que se manteria em vigor até à restauração da
independência portuguesa em 1640, que seria causador de profunda revolta entre as
comunidades raianas, bem como um dos factores que causaria desequilíbrio
determinante para a animosidade que conduziria à separação definitiva dos dois países.
Medina Garcia (2001), inclusive, chega mais longe nesta ideia ao afirmar que “La
Monarquía española volvió a ejercer de acuerdo con su particular naturaleza, en
contra de los intereses comunes y pensando exclusivamente en su propio beneficio. A
40
MELÓN JIMENEZ, Miguel Ángel , “Contrabando y negócios en el limite de dos imperios” in Revista
Andaluzia en la Historia, nº 27,2010, p.12
41
MEDINA GARCIA, Eusebio , “Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto
y Cambio Social”; Madrid, 2001, p.93.
42
MELÓN JIMENEZ, op.cit., p.13.
41
nuestro parecer, en este momento y tras estas importantes decisiones se perdió la
mayor oportunidad para alcanzar la unidad efectiva de la península ibérica; a la vez
que se condenaba al ostracismo y la separación a las poblaciones y territorios
rayanos”.43
O documento estabelecia regras para um extraordinário volume de produtos
transaccionados, enquadrando a enorme fonte de receita que o regime tributário sobre
produtos provenientes do nosso país representava para a coroa espanhola.
Neste período, compreendido entre a restauração da independência de Portugal, em
1640, e os vinte e oito anos em que durará a Guerra da Independência até 1668,
paradoxalmente à instauração do “Muro Ibérico” – que ficará definido com o Tratado de
Lisboa, nesse ano – ainda que se procure tornar hermética a fronteira, aos contactos de
populações e comerciais entre países, quer por via da construção dos ditos sistemas
fortificados seiscentistas –dos quais o Forte de São Sebastião em Castro Marim44 é
exemplo na região do Baixo Guadiana- e de um redobrado incremento de guarnições ao
longo da fronteira, a prática do contrabando teve igualmente um forte impulso,
contrariando a vigência de hostilidades entre os dois países e da expressa proibição de
qualquer actividade comercial entre gentes dos dois países, por parte das autoridades.
Esta lógica, de ao aumento da repressão equivaler o aumento da actividade de
contrabando, será uma constante nas dinâmicas de relações entre gentes raianas de
ambos países, que se prolongará desde finais da Idade Média até à contemporaneidade,
não obstante a acérrima querela entre os poderes centrais de Lisboa e Madrid, os
habitantes da raia continuariam, como habitualmente, a ultrapassar os traumas e
43
MEDINA GARCIA, Eusebio , “Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto
y Cambio Social”; Madrid, 2001, p.94.
44
ARRUDA, Ana Margarida e PEREIRA, Carlos - “.XX - As ocupações antigas e modernas do Forte de São
Sebastião, Castro Marim” in XELB 8 – Actas do 5º Encontro de Arqueologia do Algarve. Vol I; Silves, Out.
2007, pp. 394-396
42
animosidades resultantes dos confrontos e das campanhas militares determinadas pelo
poder central dos países, por via da continuidade da ancestral relação comercial e
pessoal, entre habitantes raianos do lado de cá e de lá da fronteira.
Por oposição ao endurecimento das restrições impostas pelo poder em ambos países e
determinadas pela guerra, que vigoraram inclusive após a paz firmada em 1668, o
contrabando surge como solução funcional e única forma viável de permitir a
continuidade de uma actividade comercial contraventora, com a qual se suprem as
necessidades objectivas das populações raianas de ambos países.
Se, por exemplo, o comércio do trigo que servia de base alimentar a exércitos e
populações, estava com toda a naturalidade proibido, o mesmo era um dos produtos
mais valorizados e alvo de contrabando para Portugal, sempre numa lógica de lucro das
oligarquias locais, do clero e paradoxalmente até dos próprios soldados e chefias
militares presentes na fronteira45.
Outras das contradições resultantes associadas à dinâmica do contrabando nos tempos
conturbados da Guerra da Restauração da Independência, até ao último quartel do séc.
XVII, prende-se com a acção da soldadesca e das suas chefias, em ambos países, que
representando por inteiro as figuras que executam as determinantes de carácter politico
e militar ao serviço dos seus países e contra “o inimigo do outro lado da fronteira”, eram
em simultâneo grandemente participativos, na prática do contrabando entre países. O
étimo da palavra mochileiro, associada mais tarde nos sécs. XIX e XX, ao
contrabandista individual, portando a sacola às costas, nasce da associação feita pelas
45
Medina Garcia(2001) na sua tese, referencia um documento do Arquivo Histórico de Simancas datado
de 1641, onde explicita para na região fronteiriça de Badajoz que “Hacia 1.640, ya en plena guerra, las
relaciones comerciales en la frontera eran cuantiosas; y en 1.641 florecía especialmente el contrabando
de trigo hacia Portugal. En la ciudad de Badajoz, dicho comercio lícito e ilícito estaba dominado por las
oligarquías locales y por una parte del clero”
43
populações raianas à acção dos soldados neste período, que contrabandeavam as
mercadorias, passadas dentro das suas sacolas (mochilas) de campanha.
Se o contrabando se irá manter como actividade intrinsecamente ligada às populações
raianas até quase ao último quartel do séc. XX, a entrada no séc. XVIII irá alterar
substancialmente o paradigma da forma como o poder central dos estados se focará do
ponto de vista regulamentar e da criação de disposições jurídico-legais visando a
repressão do mesmo, justificada pela dimensão da fuga fiscal que o mesmo
representava.
Numa lógica de desagregação do Antigo Regime e da vigência de um feudalismo
anacrónico nas nações ibéricas, determinado por um poder real absoluto que armou a
sua extensão de poder na concessão sem reservas de terras e do que nelas era produzido,
aos grandes senhores da nobreza (em detrimento da realidade e figuras jurídicoadministrativa dos tempos dos forais) abrir-se-á com o surgimento do novo paradigma
governativo e de mentalidades do séc. XVIII e da faceta da governação associada a uma
ampliação de conhecimentos e saberes, que se reflecte num poder central que em ambos
países, procurará determinar a dimensão da realidade económica e social existente,
numa lógica do fortalecimento do perspectiva dos Estados Nações por oposição ao
acima mencionado sistema de clientelas do Estado, no Antigo Regime. Um das
perspectivas centrais do novo poder da razão e das luzes, encontra-se centrado na
reforma fiscal do Estado, que se alicerçará num imprescindível combate à fraude e,
como não, ao contrabando. Pretende-se com esta dimensão politica, uniformizar
44
critérios na política aduaneira, nas disposições regulamentares e jurídicas da actividade
comercial e dar à Coroa, o controlo e gestão directa do sistema fiscal46.
Em Espanha, nesse sentido, são a partir de 1720 e até 1780, conduzidos os Estados
Generales de las Rentas47, conduzidos por funcionários administrativos da coroa e por
administradores de las rentas, onde serão feitos os levantamentos do volume comercial
do contrabando.
Relatórios extensos sobre as dinâmicas económicas das regiões da Extremadura e
Andaluzia serão produzidos destacando-se, em 1747, o Informe de Esteban Pérez
Delgado48, visitando este funcionário todas as alfandegas espanholas nas referidas
regiões, tendo discriminando extensivamente, a tipologia de fraudes que se verificavam
e que eram, em geral, praticadas pelos funcionários alfandegários que não registavam
na maior parte das ocasiões os manifesto de carga, omitindo valores transaccionados ou
dando indicação de quantidades claramente menores.
Em 1751, o Catastro (Cadastro) del Marqués de Ensenada49 surgirá como primeira
ferramenta avançada no sentido de unificar a política de tributação, de forma a organizar
um sistema vigente totalmente desagregado e desigual, estando subdividido por diversos
funcionários que açabarcavam o controlo e execução legal para cada tipo de mercadoria.
Por exemplo, existiam Rentas do Tabaco ou da Pólvora.
46
MEDINA GARCIA, Eusebio , Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y
Cambio Social; Tese de Doutoramento; Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Ciencia
Politicas y Sociologia, Madrid, 2001, p.99-100
47
MEDINA GARCIA, Eusebio , Contrabando en la Frontera de Portugal: Origenes, Estructuras, Conflicto y
Cambio Social; Tese de Doutoramento; Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Ciencia
Politicas y Sociologiap.100
48
Idem, ibidem, p.101
49
in Archivo Histórico Provincial de Cáceres. Catastro del Marqués de la Ensenada. Formato online
disponível e consultado a 15 de Maio de 2013, em:
http://pares.mcu.es/Catastro/servlets/ImageServlet
45
Em 1759, será, então, pela primeira vez feito um levantamento exaustivo sobre a
problemática do contrabando, indicando a relevante dimensão de desequilíbrio de
balança comercial entre países. Fernando Costas Castillo, funcionário aragonês da
Coroa espanhola e responsável pelo levantamento das Rentas na Extremadura e norte da
Província de Huelva, discrimina de forma detalhada a natureza dos bens
transaccionados e estabelece os valores estimativos do peso do contrabando, do ponto
de vista de importante factor de evasão fiscal.
Assim, neste relatório50, são indicados como principais bens provenientes de Portugal,
os panos, o tabaco de fumo do Brasil, pedras preciosas como o topázio e a ametista,
açúcar, plantas usadas em fármacia, lenços, atoalhados, tapetes, cordovão, artefactos de
cobre, braseiros, círios e outras ceras, candeias, ferramentas diversas, esteiras, palha,
vergame e vimes, barros e cântaras, tinalhas, vinho, etc., indicando que “todos estos
géneros, “...vienen de Portugal”.
Relativamente às mercadorias de contrabando que saiam para Portugal, o cálculo
aproximativo indica que só da fronteira da Extremadura saiam anualmente, de forma
ilícita, mais de 3.000 cabeças de gado bovino, 5.000 porcos vivos, 400 cavalos, 30.000
arrobas de grão e mais de 20.000 libras de seda em rama.
Valores estimativos calculados, ilustravam que o valor tributário da entrada de produtos
provenientes do nosso país em Espanha, ascendiam aos vinte milhões de maravedis,
com o ciclo inverso de entrada de produtos espanhóis em Portugal, reflectindo uma
acentuada discrepância e ficando muito aquém, saldando-se apenas nos quatro milhões
de maravedis51.
50
MEDINA GARCIA, idem, ibidem p.102
MELÓN JIMENEZ, Miguel Ángel (2010), “Contrabando y negócios en el limite de dos imperios” in
Revista Andaluzia en la Historia, nº 27, p.14
51
46
No nosso país, em concreto na região do Baixo Guadiana, o período compreendido
entre o fim do séc. XVII e o início do séc. XVIII, estabelece uma notória tentativa de
controlo alfandegário de um dos mais valiosos recursos da região e que assentava na
pesca da sardinha e a sua venda, fresca, fumada ou salgada. Depreende-se, pelo
confronto de fontes e autores, por exemplo, de Constantino Botelho de Lacerda e da sua
Memoria da Decadencia da Pescaria de Monte Gordo ou do mencionado Regimento de
Santo António de Arenilha de Diogo Fernandes das Povoas de 1547, e do contraste de
visões, onde o primeiro autor enfatiza o nulo desenvolvimento da pesca da sardinha em
Monte Gordo, por oposição ao segundo, que no seu relato destaca a pesca sazonal do
referido pescado, como principal valência económica da área da foz do Guadiana. Não
obstante, a leitura diversa dos autores, a evidência é que outros factores, acabariam por
seriam determinantes para que a pesca da sardinha, ainda que realizada com maior ou
menor frequência ou intensidade, se traduzia num produto com especial apetência para
ser comercializada em terras de Espanha e por inerência, contrabandeada.
Em 1620, o Regimento que data desse ano, indica a obrigatoriedade de pelo menos 40%
da sardinha pescada nos mares de Monte Gordo e Cacela, que maioritariamente era
vendida em Ayamonte, passasse a ser transportada para Tavira, de modo a prevenir a
fuga ao fisco52. O contrabando imperou, não obstante existir, desde 1577, um registo de
portagem em Monte Gordo53 e do férreo dispositivo legal que impunha aos infractores
penas como a destruição de embarcações, artes de pesca e degredo para Castro Marim.54
Pese aos factores acima enumerados e para justificar a apetência pelo contrabando de
pescado para Espanha, Frei João de São José faz referência, na Corografia do Reino do
52
ROMERO MAGALHÃES, Joaquim ; O Algarve Económico – 1600-1773; Lisboa, 1988, pp-205-206.
CAVACO, Carminda; O Algarve Oriental- As Vilas, o Campo e o Mar- Volume 1; ed. Gabinete do
Planeamento da Região Algarve, 1976, pp. 40-61.
54
Idem, ibidem p. 40.
53
47
Algarve, ao enorme volume da faina do pescado nestas águas e ao facto de ser
consumido no país vizinho, “por estar vizinha e nela (Castela) sempre valer mais”.55
As condições de tributação impostas, aliadas aos constantes ataques da pirataria
magrebina e os raides à costa algarvia de ingleses, franceses e holandeses,
determinariam, pois, que durante todo o séc. XVII, a pesca da sardinha e o respectivo
produto da faina, se transformasse de sector produtivo e recurso de grande relevo, para
uma actividade esparsa, perigosa e dada ao contrabando, pelo progressivo abandono e
pela própria escassez de recurso que se veio a registar.
Já no início do séc. XVIII, relata Botelho de Lacerda que a actividade da pesca da
sardinha foi retomada e volvidas quatro décadas a importância desta, levada a cabo por
uma vaga de novos residentes de Monte Gordo, pescadores provenientes da Catalunha,
chegando em 1774 a serem documentados trezentos habitantes a tempo inteiro e uma
população flutuante durante a época de safra de Agosto a Dezembro, de mais de cinco
mil pessoas56 e tendo sido inclusive estabelecida uma feira local por Provisão Régia, em
1760.
O factor resultante da maioria destes pescadores residentes e sazonais não serem
portugueses e dos lucros da sardinha vendida e descarregada em Ayamonte e noutros
portos da Andaluzia, ficarem em mãos de armadores catalães e da enorme dispersão da
arrecadação tributária devida à coroa portuguesa, determinou em grande medida a
imperativa necessidade da fundação de Vila Real de Santo António.
55
JOÃO DE SÃO JOSÉ, Frei (1577) «Corografia do Reino do Algarve» ed. GUERREIRO, Manuel Viegas,
“Duas Descrições do Algarve do séc. XVI” in Cadernos da Revista de Histórica Económica e Social, Liv IV,
cap.2º, 1984, p. 54.
56
“Memoria sobre a decadência da Pescaria…”, in B.N.L, Memorias Económicas da Academia
Documento publicado por Hugo CAVACO, Pelas praias de Arenilha…, 2007, em Apêndice Documental
(doc.II), p. 154.
48
Assim, com a intervenção do poder central da coroa e do plenipotenciário ministro,
Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, Vila Real de Santo António,
à semelhança da sua “predecessora” Santo António de Arenilha, surge como proposta
arrojada, para inverter o ciclo de enriquecimento de estrangeiros construído a partir de
recursos nacionais, para travar a evasão fiscal e, logicamente, limitar o contrabando.
Exemplo maior do foco da politica pombalina em matéria de limitação ao contrabando,
é o Alvará de 14 de Novembro de 1757, onde se aponta o contrabando e os
contrabandistas “como inimigos comuns do Erario Real, da Patria e do bem Publico
della57”.
A análise às condições de Portugal no período pós-sismo de 1755, contempla a
existência de um paradigma de ruptura, ao qual se associa um país estruturalmente
arrasado e com uma avultada perda de capital humano; com condições económicas
agudizadas pelo exaurir dos cofres do Reino, com a assinalável redução de receitas do
ouro proveniente do Brasil e uma extrema dependência em relação ao comércio de
produtos coloniais, bem como de uma enraizada incapacidade de produzir o que se
necessita, recorrendo-se a importações.
A necessidade de inversão do panorama existente, incidirá no Algarve e na costa
sotaventina e, concretamente, na adjacente à foz do Guadiana de forma destacada,
determinado pela dinamização do sector produtivo como gerador de riqueza para o país,
como elemento de imprescindível fomento do bem-estar da comunidade e de valia
inegável para as finanças do Reino.
Com o início da construção de Vila Real de Santo António e, em 1773, com o Alvará de
13 de Janeiro, surge ainda como ponto fulcral da estratégia económica a que a vila
57
SERRÃO, Joaquim Verissimo, História de Portugal - vol.VI, 1978,p.223
49
pombalina estaria associada, a Companhia Geral das Pescarias Reais do Algarve. Com
ela procura-se-ia a monopolização e exclusividade da actividade piscatória no Algarve e
a subordinação dos pescadores e da captura e venda do pescado ao aparelho
administrativo estatal.
Como reacção a esta medida, a coroa espanhola agravaria a taxação do pescado salgado
proveniente do Algarve, tornando incomportável, de forma legal, a sua exportação para
o país vizinho. Além do proteccionismo que se gerou imediatamente a seguir, com a
suspensão imediata da importação de pescado fresco no norte do país, proveniente da
Galiza ou de entrada de sardinha no Algarve vinda do país vizinho, isentou-se ainda, o
pagamento de impostos pela circulação interna de pescado salgado no nosso país, de
forma a fomentar o consumo interno do peixe algarvio.
Naturalmente, apesar do proteccionismo e da substancial alteração de regras fiscais e de
politica económica no nosso país, e da reacção espanhola, é de referir que a constante
do contrabando se verifica de acordo com o mecanismo que ao longo da exposição desta
monografia se repete e que é o de a um endurecimento da repressão e imposições
politicas legais, corresponde também a prática transgressora e ilegal do contrabando,
como forma dos pescadores tornearem a pobreza em que viviam e, que se prendia com o
uso das ditas artes novas ou de arrasto – caso da arte xávega ou levada58-, que, pelo seu
elevado custo e escassez, não eram na maioria das vezes propriedade dos mesmos, o que
implicava que grande parte do produto de sua faina servisse para cobrir gastos de uso59.
Assim, o obscuro circuito do contrabando do peixe de salga, levado nas embarcações
58
Arte xávega ou levada é uma arte tradicional de cerco em que uma rede é segura numa das
extremidade no areal da praia e conduzida em cerco por uma embarcação, sendo a outra ponta trazida
então de volta à terra, onde por meio de força braçal ou animal se puxa para a terra.
59
Esta ideia é desenvolvida em consulta ao site a 7 de Fevereiro de 2013, e ao artigo “A decadência das
pescarias portuguesas e o constrangimento fiscal : entre a ilustração e o liberalismo” de Inês Amorim;
FLUP, 2004 em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4959.pdf e ligada à enumeração das causas da
decadência das pescas no mar de Monte Gordo na obra de Botelho de Lacerda.
50
que fainavam peixe fresco em costas do Golfo de Cádiz e, esquivando a presença
musculada da armada espanhola no mar e dos funcionários da coroa em portos, como
Barbate, San Juan, Ayamonte ou Isla Cristina, dava-se sendo fonte de fundamental
rendimento para a subsistência dos humildes pescadores.
Em 1782, a proibição imposta pelo monarca espanhol Carlos III, tanto de peixe salgado
como peixe fresco proveniente do nosso país, significaria um rude golpe e contribuiria
fortemente para o insucesso da proposta de inovação económica que representava Vila
Real de Santo António. Outros factores como a sobrepesca, anos com condições
climatéricas muito severas (excesso de chuvas) e, essencialmente, a já referida
incapacidade dos pescadores poderem sustentar as artes usadas na sua actividade, a
juntar, a depauperação de capitais por parte de administradores da Companhia de
Pescas, determinaram o insucesso da iniciativa.
Não obstante o fracasso da proposta inicial do ponto de vista de pólo de indústria
conserveira, a dinâmica legal pós-Pombal de incentivo às pescas fomentou grandemente
a pesca na região60 a despeito de, que a costumeira pirataria magrebina representasse um
significativo handicap a uma maior prolificidade na actividade. A primeira metade do
séc. XIX irá assistir à multiplicação de xávegas 61 nas costas entre Vila Real de Santo
António e Cacela, passando de nove, nos tempos pombalinos, a mais de duas dezenas
nos anos 40 deste século. A posição estratégica do Porto de Vila Real de Santo António
na foz do Guadiana permitia, pela profundidade existente, a entrada de navios de grande
calado e o porto servia de entrada de pescado e de escoamento do mesmo para Espanha
60
Após Pombal, várias medidas foram tomadas no sentido de estimular a pesca e o comércio de peixe,
nomeadamente o alvará de D. Maria I datado de 18 de Junho de 1787, no qual todo o atum salgado foi
isento de direitos por um período de dez anos. Esta isenção prolongou-se através de um decreto de 30
de Março de 1797 e alvarás de 1805 e 1825. Outra lei favorável foi o alvará de 3 de Maio de 1802, que
concedeu liberdade de pesca no alto mar e no litoral, livre de direitos
61
“as xávegas que se revelaram mais lucrativas, pois os fundos baixos e arenosos que caracterizam o
mar entre Cacela e a foz do Guadiana oferecem condições naturais propícias à execução deste tipo de
arte”. Cf. Carminda CAVACO, O Algarve Oriental…, vol. 2, 1976, pp. 224-225 e 228-229
51
e para as vizinhas Ayamonte e Isla Cristina, onde as fábricas de conserva de salga de
sardinha proliferaram no primeiro quartel do séc. XIX.
Refira-se que o porto de Vila Real de Santo António, serviu ainda de entreposto para
contrabando levado a paragens mais distantes, muito justificado pela presença de navios
de grande calado, que faziam ligação a muitos dos portos do Golfo de Cádiz, de
Marrocos e, inclusive, adentrando-se pelo Mediterrâneo.
O primeiro quartel do séc. XIX na região do Baixo Guadiana, seria também marcado
como um período em que o contrabando assumiu proporções nunca antes registadas na
História, com a problemática resultante do proteccionismo cerealífero, que viria a
moldar-se desde o dealbar do século com a revolução liberal e os tempos do “vintismo”.
A introdução de politicas proteccionistas, logo a partir de finais do séc. XVIII, a
proibição das importações cerealíferas provenientes do exterior, oficializada em Março
de 1820, traduziu-se num incremento astronómico de preços no biénio seguinte,
essencialmente justificado pelas insuficiências da produção nacional, dos interesses do
lobby da concentração da produção e da lavoura e as condicionantes resultantes das
dificuldades estruturais nas redes de distribuição.
Assim, o Baixo Guadiana representou uma área geográfica que reflectiu o confronto
entre a necessidade de sobrevivência das comunidades que se apoiaram no contrabando,
como forma de suprir carências básicas, fazendo recurso à ancestral lógica comercial
consuetudinária, tendo neste período um acrescido significado pela natureza do produto
essencial à base alimentar; e por oposição às limitações impostas por distantes
interesses, que através do poder central e dos lobbies da lavoura nacional, sofriam
avultadas perdas pelo contrabando massivo, e que se traduzia de modo mais amplo, até
na própria dinâmica produtiva do nosso país. Será interessante, de forma mais
52
aprofundada, destacar esta dinâmica, onde o contrabando é solução a uma escala e,
problema numa outra, e como esta “guerra” entre a sobrevivência de população e os
interesses mais vastos do país e do sector produtivo do mesmo, caminham num
equilíbrio precário.
A região representava o principal ponto de entrada de contrabando de cereal em grão ou
farinha no Algarve proveniente de Espanha e de um novo elemento aportado, o da
valorização do pão, enquanto bem de consumo essencial, sujeito também à restrição de
importação e, nessa lógica, muito apetecível de ser contrabandeado.
O trigo consumido na região do Baixo Guadiana e, essencialmente em Vila Real de
Santo António, era proveniente de Espanha62, assim com o endurecimento das políticas
alfandegárias e com as restrições impostas, as necessidades tiveram que ser supridas
pelo abastecimento a partir de Mértola e Castro Marim, bem como recorrer à moagem
de cereal nos moinhos próximos. O transporte de cereal recorrendo a animais e a
pequenas embarcações através do Guadiana, agravou os preços de 500 réis para 640
réis63, o que determinou uma enorme vaga de contrabando. Pese às tomadias
(apreensões)64 de cereal e a forte limitação exercida pelas autoridades, as necessidades
objectivas e o ancestral referencial de trocas entre povos raianos imperou e o
contrabando supriu por inteiro a demanda, evitando a fome.
62
O trigo nacional produzido na região apenas permitia cobrir um terço das necessidades de consumo,
sendo o restante proveniente de Espanha e de Ayamonte, onde funcionavam também moinhos, que
faziam por vezes moagem do grão produzido em Portugal, em tempos anteriores ao Proteccionismo
Liberal.
63
FERREIRA, Jaime, “Proteccionismo Cerealifero 1821-1822” in Análise Social, vol. xxvi (112-113), 1991
(3.°-4.°), p. 489-511 , cit. Doc. Mappa Demonstrativo do Trigo, Milho e Cevada Manifestados Nesta
Alfândega e Consumido Nesta Villa Real de Santo António, Importado por Porto Seco e Molhado, no Ano
de 1821, ANTT, MR, Mç. 577.
64
Exemplo de tomadia (apreensões) expresso em documentos como por exemplo este de 1828 que é
um: ”Decreto mandando apreender, como contrabando, os cereais estrangeiros que forem introduzidos
no reino sem legitimas licenças, dividindo-se a tomadia em duas partes iguais, uma para quem fizer a
apreensão e outra para os Hospitais da comarca e na falta deles para o Hospital de São José. De 18 de
Abril de 1828” - ANTT PT/TT/HSJ/A-D- /005/0275/00094
53
Nas regiões a montante da foz do Guadiana, era por demais evidente que o contrabando
de cereal se fazia numa escala quase institucionalizada, em quantidades de monta e
sendo fonte de avultados lucros das classes abastadas locais. Como exemplo, fontes
documentais revelam que «próximo à raia de Espanha, no sentido de Santa Ana de
Combas (Santana de Cambas), há depósitos de trigo e que da parte de cá há comissários
de Negociantes, que muitas vezes iludem a tropa, servindo-lhes de desculpa os moinhos
de Chança. Que as malhadas da Serra de Serpa são os depósitos dos Contrabandistas e
os Ganadeiros os próprios vigias da sua introdução»65.
São referidos, ainda, exemplos da impunidade dos monopolistas e traficantes de
Mértola, que em ligação com traficantes espanhóis, faziam seguir os seus cereais para o
Terreiro do Trigo de Lisboa e o contrabando chegava, inclusive, a contar com a
colaboração de altas esferas institucionais patentes nas referências às enormes
quantidades de cereal enviadas para Mértola, com guias, passadas pelos juízes de
diversas localidades no entorno, atestando o contrabando como sendo de produção
nacional.
Depois, na lógica da convulsão politica que o país atravessou durante a primeira metade
do séc. XIX em que se mantiveram as políticas proteccionistas, com as necessidades
surgidas em consequência da Guerra Civil portuguesa e da elevada quantidade de cereal
e viveres disponibilizada ao exército miguelista, tudo isto aliado a um atraso endémico
da lavoura algarvia, justificada sempre pela pobreza de terrenos e pela falta de
conhecimentos e ferramentas que permitissem rentabilizar a agricultura, a somar a
factores climatéricos imprevisíveis que determinaram calamitosos anos agrícolas, com
fortes chuvadas alternadas por uma inclemente seca, até factores extraordinários como
65
FERREIRA, Jaime –“ Proteccionismo e contrabando cerealífero 1821-22” in Análise Social, vol. XXVI
(112-113), 1991 (3.°-4.°), pp. 489-511 - Ct. Doc. ANTT - Ofício n. ° 166 do Marechal de Campo
Encarregado do Governo de Armas da Província do Alentejo, de 19 de Abril de 1822.
54
uma praga de gafanhotos que arrasaram e contaminaram os campos ao longo de todo o
Baixo Guadiana entre Mértola e Vila Real, redundaram no contrabando como elemento
essencial de sobrevivência e generalizado a larga escala, entre as comunidades raianas
do Baixo Guadiana.
A situação foi, de tal modo, crítica que os habitantes dos concelhos de Alcoutim e de
Castro Marim, tiveram que ser compelidos a uma gigantesca campanha de
arroteamento, os porcos existentes usados em larga escala para comerem as plantas
contaminadas com ovos dos gafanhotos e que qualquer intervenção de guardas de
fronteira no intuito de travar o contrabando, eram susceptíveis de provocar linchamentos
por parte das populações66.
Deve ser destacado que, na primeira metade do séc. XIX, na fronteira do Baixo
Guadiana e facto que se pode constatar através da leitura de algumas fontes
historiográficas 67, seria um período onde recorrentemente se repetiria o principal factor
que paralisou, de facto, o comércio oficial entre países, atingindo igualmente o
contrabando e representando um momento particular e, que extrapola o que havíamos
referenciado, onde nem as guerras nem a agudização de determinismos políticos
impostos pelos poderes centrais, seriam impeditivos da ocorrência da actividade
comercial e de contacto entre populações. Logo no início do século, em 1804-1805, o
surgimento e proliferação da peste em portos situados na Andaluzia e, que mantinham
uma prolífica relação com os portos e região do Guadiana, casos de Gibraltar ou Cádiz,
foi determinante para a imposição no Algarve do primeiro cordão sanitário nesse século.
O surgimento de mortíferas epidemias de cólera, em concreto a de 1833 e a de 1855,
representam momentos em que o comércio legal cessava por completo entre as regiões
66
VILHENA MESQUITA, José Carlos; “A economia agrária do Algarve, na transição do Antigo Regime para
o Liberalismo” (1790-1836) in Revista Estudos, Fac. Economia da Universidade do Algarve, pp.174-177
67
SERRÃO, Joaquim Veríssimo; História de Portugal- vol. V, 1978, pp.418-419
55
divididas pelo rio e, por força desses cordões sanitários, o contrabando também tendo as
condições propícias para o seu incremento determinadas pela procura de bens, esbarrava
no pânico social e medo de contágio da doença68.
Do ponto de vista legal, e após as precedentes adaptações pombalinas do séc. XVIII às
sanções diversas, que vinham de tempos das Ordenações Filipinas, e das penalizações,
patentes nas competências dos Juízes dos Feitos do Rei da Fazenda (Livro 1, tít. LX)69
e, sem contudo tipificar ou enquadrar a infracção do contrabando (excepção feita ao
ouro do Brasil e às severas punições aos infractores defraudadores da Coroa) , a
viragem da primeira metade do século, em concreto, a partir de 1852, representou com a
introdução do artº. 279 do Código Penal a tipificação do contrabando enquanto crime
comum70, o que alterou substancialmente o enquadramento legal de uma actividade que
sendo fortemente limitada ao longo de séculos, nunca havia sido devidamente
enquadrada por disposições jurídico-legais.
Com a normalização da situação política do país, a partir da segunda metade do séc.
XIX, a região irá assistir a um novo momento que irá ter reflexos profundos no contexto
económico e social e, que será o início do Ciclo do Minério, primeiro em 1858, no
68
A titulo de curiosidade, a cólera cujo agente infeccioso se encontra em geral nas águas contaminadas
por via fecal e que se fixa também em produtos hortícolas regados por esta água, era indicada como
doença contraída “por culpa própria” das populações carenciadas, sendo aludida esta rocambolesca
tese, na edição d´O Seculo de 14 de Agosto de 1855 da seguinte forma: “ Estamos no período que mais é
para recear, estamos no tempo dos pepinos, das ameixas, das frutas mal sazonadas, que os nossos
camponeses, não por fome, mas por vício e repreensível abuso não deixam de comer", deixando esta
“curiosa” propaganda de referir e até porque o desenvolvimento da ciência médica e do estudo dos
mecanismos de propagação e factores de contágio de uma doença, como a cólera morbo, se encontrava
ainda num estádio inicial se comparado aos dias de hoje, que a combinação do período estival, de
contaminação de aquíferos e reservatórios com água destinada a consumo directo humano e animal, a
rega com esta, entre outros riscos era um “passaporte” garantido para o contrair da doença, que com a
desidratação das “gentes” que trabalhavam nos campos, a fulminante disenteria e a ausência de
profilaxia para as febres, era garantia quase absoluta de morte dos infectados. Deve ainda referir-se que
o Algarve sofreu um último surto da doença já em plenos anos 80 do séc.XX.
69
Apud. ALMEIDA, Cândido Mendes de.; Código Philipino, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal.
(fac símile) Fund. Calouste Gulbenkian, , 1985, p. 1315
70
FERREIRA, Carlos Manuel, O Crime Aduaneiro de Contrabando de Circulação - Dissertação de PósGraduação em Direito Penal Económico, 2008, p.6
56
nosso país e na Mina de São Domingos, no concelho de Mértola e em Espanha, nas
Minas de Tharsis, La Zarza, Herrerias e La Laja, numa primeira instância e, mais
tardiamente, na viragem para o último quartel do século, em 1873, a que viria a ser a
maior exploração mineira do sul peninsular, as Minas de Riotinto.
A dimensão destas explorações é tão destacada que, em 1892 e segundo o número da
Revista Minera desse ano, cerca de 15 % do total de cobre produzido no mundo será
desta área do Baixo Guadiana e adjacente a Sierra de Huelva (onde se localizam as
minas espanholas), sendo distribuído da seguinte forma: número um mundial, Rio Tinto
representando 10,9% da produção mundial com trinta e duas mil toneladas, Tharsis em
oitavo com 3,6% e dez mil toneladas e a S. Domingos o décimo sétimo com 1,4% com
quatro mil cento e cinquenta toneladas.
Num primeiro momento, toda a infraestrutura para a mineração de três matérias
essenciais à grande indústria metalúrgica de então, caso das Pirites, da sua posterior
transformação em cobre e da extracção de compostos sulfurosos como o Sulfureto de
Ferro para uso como superfosfatos, foi levantada pela Mason & Barry no eixo da Mina
de São Domingos com o Pomarão (com o minério a ser transportado por terra, num
primeiro momento, usando animais e depois, com a construção de uma via férrea com
ligação ao Pomarão, que representava o limite navegável para navios de grande calado,
o que permitiria escoar o minério). Assim com o inicio da actividade extractiva em
Tharsis e das ligações ferroviárias e portuárias da Compañia Española de Minas de
Tharsis e a posteriori da Riotinto Company Limited na exploração das Minas de
Riotinto e da ligação, quer à capital provincial Huelva, como ao porto fluvial do
Guadiana em Puerto de la Laja, requeria uma considerável demanda de mão-de-obra
para a extracção e tratamento, transporte ferroviário, portos fluviais, habitação de
57
trabalhadores e de cargos técnicos e construção de estruturas de suporte às necessidades
destes polos mineiros.
Esta demanda traduzir-se-ia num considerável incremento da população71 residente na
região, que se compunha em Portugal essencialmente de inúmeros trabalhadores
provenientes de localidades na envolvente à Mina de São Domingos, que trocaram a
actividade agrícola de parca rentabilidade pela pobreza de terrenos, e outros
provenientes um pouco de todo o Alentejo e ainda do interior do Baixo Guadiana e da
serra algarvia, nomeadamente dos concelhos de Castro Marim e Alcoutim72.
Se, num primeiro momento, o início dos trabalhos na mina e sobretudo na construção
do Tram-way entre a Mina de São Domingos e o Pomarão, se traduziu num aumento de
postos de trabalho, com a sua conclusão, associada ainda a um momento de crise
profunda no sector mineiro, em 1864, o desemprego fez-se sentir de forma muito
vincada73, atirando estes trabalhadores para um paradigma de existência muito precário.
Procurando esquivar a terrível situação em que se encontravam e, adiando a espera de
melhores dias, fosse pela propalada construção da estrada nova entre Beja e Vila Real
de Santo António, o fluxo de trabalhadores desempregados das minas procuraria “a
sorte” nos dois sentidos da fronteira entre Portugal e Espanha, traduzindo uma outra
forma de passagem ilícita de um bem pela fronteira e, neste caso, o bem mais valorizado
– o da força de trabalho humano. Sofrendo as mais duras sevícias e vítimas de
discriminação permanente, tanto os espanhóis no nosso país, quanto os portugueses em
71
Paulo Eduardo Guimarães(2004) aponta que: “O censo paroquial de 1862 aponta para mais de duas
mil pessoas na freguesia de Santana de Cambas, onde se localizava a mina, quando o número de
trabalhadores, em média por dia, não ultrapassava as seis centenas. Dois anos depois, quando os
arranques ultrapassavam as 100 mil toneladas métricas anuais, o censo registava mais 2.700 indivíduos
na freguesia. O censo realizado quinze anos depois revela ainda um incremento de mais mil indivíduos,
em Santana de Cambas e na Corte Pinto, as duas freguesias debaixo da influência directa da exploração”
72
GUIMARÃES, Paulo Eduardo, “Recrutamento, mobilidade e demografia em São Domingos (18601900)” in VII Congresso da Associação de Demografia Histórica; Córdova, 2004, p.14
73
Idem, idem p. 20
58
terras espanholas, serão a face mais negra e exponente de uma triste ilicitude, que visava
meramente buscar a sobrevivência.
Para os nativos das localidades envolventes, caso dos habitantes de Santana de Cambas
(onde se situava a exploração), Corte do Pinto, Salgueiro, e Telheiro, os já mencionados
campos de parca rentabilidade agrícola, com a agravante da extensa área expropriada
para a fixação da mina e com a poluição das águas, viram-se sem qualquer recurso de
subsistência. Por conseguinte, o contrabando estabelece-se como resposta às
necessidades de uma população em crescimento e privada dos mais elementares
recursos.
Miguel Rego (2009), expõe num breve artigo que este boom demográfico na região
correspondeu a uma dinâmica em larga escala do “contrabando de víveres e
explosivos”74.
Por oposição ao pequeno contrabando, que ainda efectuado em larga escala, da segunda
metade do séc. XIX aos alvores da instauração da República em Portugal, já entrado o
séc. XX, o Baixo Guadiana destacar-se-á essencialmente pelo comércio licito, não só
pelo incremento do tráfego de embarcações de grande calado rio adentro, como com o
rio a representar via comercial privilegiada a bens de produção local, sendo feita a
exportação através da navegação em direcção à foz e daí para as diversas paragens do
país, da Europa e do mundo.
Não alheio ao que este incremento comercial e quantidade de embarcações das mais
diversas nacionalidades e de todos os tipos e tamanhos, envolvidos a diário no
extraordinário volume de transporte de mercadorias, e em sequência da reorganização
74
REGO, Miguel, “O Papel da Polícia Privada da Mina de São Domingos no Combate ao Contrabando” in
Cadernos do Museu do Contrabando.1 “Contrabando – A Geografia do Medo, Santana de Cambas, 2009,
p.4
59
das forças incumbidas da fiscalização externa das alfândegas, testada incialmente em
1831, nos Açores foi consumado, a 17 de Setembro de 1885, o decreto n.º 4 que criava
o Corpo da Guarda Fiscal, sendo no ano seguinte, definindo os seus princípios
orgânicos, aumentados poderes e áreas de jurisdição a todo o país com o decreto
complementar de 9 de Setembro de 1886.
Definida como corpo especial da força pública, organizada militarmente para o serviço
da fiscalização dos impostos e rendimentos públicos e a cargo da administração das
alfândegas e contribuições indirectas, fazia parte das forças militares do reino.
Nesse mesmo ano de 1886, inicia-se a construção ao longo do Baixo Guadiana, que será
seguramente a região do país com maior número de postos implantados numa menor
distância, chegando aos 26 postos entre Vila Real de Santo António e o Pomarão.
Como referia, no relativo à actividade comercial neste período e ao tráfego de
embarcações a ele associadas, devemos distinguir dois tipos definidos: o do tráfego
descendente que transportava para o litoral e para populações ribeirinhas situadas a
jusante essencialmente os cereais (provenientes de paragens a norte em pleno Alentejo),
o vinho e azeite (o primeiro com uma limitação de distribuição imposta pela escassa
produção, que basicamente se destinava ao consumo local de comunidades ribeirinhas e
o azeite que em excedente se destinava à indústria conserveira em Vila Real de Santo
António); o mel e a cera (sendo este último produto um valioso bem muito valorizado
em terras de Espanha); a lenha e o carvão (proveniente e transportado também da raia
seca alentejana até ao Pomarão, importante recurso para o funcionamento dos navios a
vapor e nas indústrias na foz do Guadiana); as canas (existentes nas ribeiras situadas na
bacia do Guadiana e destinadas à construção de telhados de casas e canastas para a
pesca artesanal no litoral), a cortiça (bem de extremo valor em terras de Sua Majestade
60
e proveniente do montado alentejano, transportado até ao Pomarão onde se encontravam
negociantes que tratavam especificamente da aquisição e exportação do mesmo) e o
esparto (abundante na região e usado também para canastas, solas de calçado, sacos de
albarda e cordame); e como principais produtos produzidos no lado espanhol a lã, as
peles (que serão como cortume, um dos bens de contrabando de típica proveniência de
Espanha) e a dita chacina – embutidos e salgados de carne75.
No relativo ao tráfego ascendente que subia o rio, visando abastecer as comunidades
raianas e paragens do interior do país, o peixe da costa e o sal de Castro Marim, sendo
característico elemento de troca com bens produzidos entre habitantes raianos das
localidades a montante da foz e os do litoral, sendo o fluxo muitas vezes também
estabelecido de forma inversa como, por exemplo, nos é relatado por Silva Lopes na sua
Corografia do Reino do Algarve76 onde se refere sobre Alcoutim e os seus habitantes
que: " têm alguns barcos pequenos, ou botes, que se empregão na conducção de fructas
para Mértola, Castro Marim, e Villa Real, trazendo em retorno pescarias das últimas
villas.". Todavia, em geral, os residentes junto ao estuário, traziam o sal em pequenas
embarcações comprando este bem a grosso e vendendo depois nos mercados do interior
pobre, sendo um bem de essencial uso na confecção de alimentos e na conservação dos
mesmos, nomeadamente das carnes.
Destaca-se, ainda, a constante da carência de todo o tipo de cereais, entrados para
montante ao longo do Baixo Guadiana, tanto em Alcoutim, quanto em Sanlúcar de
Guadiana e estendendo-se às localidades do circulo mineiro, próximas ao Pomarão. A
zona representava um ponto intermédio com grande carência, pois as fontes de
75
GARCIA, João Carlos, A Navegação no Baixo Guadiana Durante o Ciclo do Minério, Dissertação de
Doutoramento em Geografia Humana vol.I, FLUP - Porto, 1996, pp.415-443
76
SILVA LOPES, João Baptista - Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do
Algarve, typ. Academia R. das Sciencias de Lisboa, 1841, p.396
61
produção tanto provinham de zonas mais a norte no Alentejo, como das áreas litorais da
Província de Huelva e até dos mais diversos portos do Mediterrâneo. Era comum barcos
ascenderem o Guadiana carregando trigo, cevada (usada na alimentação de gado), de
forma mais irregular, milho e arroz e um enorme fluxo de transporte e distribuição dos
mais diversos bens alimentares como produtos hortícolas e frutas (produzidos em
abundância, nas regiões litorais da província de Huelva e do sotavento algarvio),
leguminosas secas como favas e grão-de-bico, para suprir as necessidades das
comunidades, nomeadamente, das povoações mineiras que, como referimos, com o
aumento populacional e em virtude da existência de terrenos com fraco aproveitamento
agrícola destes géneros, impossibilitavam a produção dos mesmos de modo a suprir as
necessidades.
Outro dos exemplos paradigmáticos de um produto de “primeira necessidade”, que
circularia em sentido ascendente e descendente, proveniente de outras paragens, ou
produzido localmente e transportado isoladamente, ou ligado ao transporte de outros
bens, carregado em simultâneo em pequenas quantidades, ou até de produção própria
local, era o álcool – a “droga” dos trabalhadores, que tanto foi criticado pela cartilha
republicana e pela proposta “educativa” após a implantação desta no nosso país. Muito
apreciada e demandada pelos mineiros, pescadores e generalizada um pouco por toda a
classe laboriosa, determinaram um incremento proporcional na circulação das
“aguardentes” no período de expansão da mina, do aumento do tráfego fluvial e de
gentes novas ao longo do Rio Guadiana77.
Esta etapa, conhecida como "ciclo do minério do Guadiana", caracteriza-se ainda pela
introdução, transporte fluvial e incremento do volume do mesmo relativo a produtos
77
GARCIA, João Carlos; A Navegação no Baixo Guadiana Durante o Ciclo do Minério - Dissertação de
Doutoramento em Geografia Humana, FLUP - Porto, 1996, p.443
62
como os materiais de construção, provenientes de portos portugueses ou estrangeiros,
que serviram de base construtiva para as explorações mineiras, para dar resposta ao já
mencionado crescimento populacional e a necessidades objectivas de habitação por ele
gerado.
Assim, materiais usados para a construção dos caminhos-de-ferro mineiros ou das
Tapadas78 (represas de água de grande dimensão) do complexo mineiro de São
Domingos, a maquinaria usada para a extracção e tratamento das pirites e os
equipamentos de apoio e estruturas para trabalhadores e chefias da mina, caso de
escritórios, oficinas, escolas, cantinas ou hospital, seriam transportados pelo rio.
A construção dos portos fluviais do Pomarão e de Puerto de La Laja, implicaram
também volumoso transporte de materiais. Deste modo, a madeira de proveniência do
norte de Portugal seria das mercadorias mais destacadas. A "importação" de madeira do
norte de Portugal é um dos casos mais exemplares, alcançando um enorme volume que
com o caminhar para o fim do séc. XIX, não pararia de crescer.
No relativo à diversidade de materiais necessários para a miríade de trabalhos
relacionados com a actividade mineira e estruturas necessárias, desde já, se assinala,
como exemplo, na Real Orden de 1913, relativa à construção do caminho-de-ferro
mineiro que faria a ligação de La Laja (poucos quilómetros a jusante do Pomarão) às
explorações mineiras de Tharsis, Herrerias ou Riotinto, legalizando o desembarque de
"[...] maderas de todas clases, maquinaria y calderas de vapor, herramientas, maquinaria
78
O termo Tapada, usado pelos habitantes da Mina de São Domingos, prende-se com a função última
destes enormes represamentos de água que inicialmente se destinavam ao uso e necessidades de
laboração na mina, tendo sido usados pela empresa Mason & Barry para alagar e tapar (e daí o termo)
as minas de forma a inutilizá-las no final da exploração. A Tapada Grande da Mina de São Domingos, na
actualidade, representa uma das mais-valias da localidade e da região, pois é usada como praia fluvial,
tendo uma completa estrutura de apoio de bares e quiosques, e funcionando como agradável parque de
merendas e de espaço de convívio familiar, sendo visitada por bastantes forasteiros essencialmente em
período estival, que representam uma fundamental fonte de receita para uma das regiões mais
deprimidas e pobres da União Europeia.
63
eléctrica, material móvil y fijo para ferrocarriles y puertos, hierro viejo y en lingotes,
cales, cementos y demás materiales de construción, sacos, envases para cascaras de
cobre y minérales y abonos quimicos."79
A exigência construtiva de estruturas de apoio implicaria ainda, no último quartel do
séc. XIX, enormes cargas de ladrilhos, cal, telhas, além da já mencionada madeira.
Curiosamente, como caso paradigmático de como o contrabando e esquemas de
defraudação interna poderiam desenvolver-se, dá-se exemplo de um manifesto de um
navio que fazia a cabotagem80 de Ayamonte a La Laja e incluso no Boletim da
Dirección de Aduanas de Novembro de 190281 onde o pedido, que enumera produtos
necessários as minas e releva outros produtos que viajavam na carga do navio, caindo
fora das estatísticas de muitos dos bens transportados e registados, e trazendo lucros a
quem discriminava apenas o que interessava no referido manifesto e com, curiosamente,
a aprovação oficial. Assim, o responsável fiscal indica em relatório que: "Considerando
que ningún prejuicio puede ocasionar á los intereses del Tesoro, el que por el aludido
puerto se verifiquen las operaciones de descarga pretendidas, excepción hecha de los
abonos y granos cuya necesidad para aquella explotación no se halla justificada."
Estatisticamente, a discrepância das quantidades declaradas e a evidente generalização
dos produtos no circuito comercial, evidenciadas através leitura de diversos manifestos
de carga portugueses ou espanhóis, ao longo do ciclo áureo do minério no Guadiana,
deixam aferir da dimensão e dinâmica do contrabando e, essencialmente, no relativo aos
ditos produtos “coloniais” e a tríade do açúcar, café e tabaco. Segundo a leitura, neste
particular, da dinâmica económica feita por João Garcia (2006), são revelados dados de
79
Boletin Oficial de la Dirección General de Aduanas, XXIX, 1012, 10 de Dezembro de 1913, p. 351.
Navegação entre portos do mesmo país, de cariz fluvial ou sempre com a costa em vista.
81
Boletin Oficial de la Dirección General de Aduanas ; XVIII, 613, 10 de Novembro de 1902, p. 323.
80
64
extrema importância que se prendem com o facto de, a um aumento de procura
resultante do incremento demográfico na região por via da demanda resultante do
incremento da mão-de-obra envolvida na actividade mineira, corresponder um
acentuado decréscimo das quantidades declaradas dos produtos acima referidos. Assim
se, em 1861, o açúcar declarado em Sanlúcar de Guadiana atingiu as 130 toneladas, dez
anos volvidos o valor não superou as 40 toneladas. No relativo ao café, das 17 toneladas
de 1861 para somente 3 toneladas em 1881. Ou o tabaco, onde apenas existe menção
para a saída de duas embarcações de Ayamonte para Sanlúcar, em 1886, com esta carga.
Além destes produtos, outro elemento de grande destaque na dinâmica de transacção
dos produtos de contrabando, encontrava-se associado às necessidades do sector
terciário local, em concreto aos produtos transaccionados em drogaria, mercearia e nas
lojas de panos, sendo comum os estabelecimentos da época concentrarem as três
vertentes. Assim, os manifestos de cargas de produtos como o anil, o petróleo, o sabão,
o papel ou os tecidos e fazendas de algodão, onde são discriminados valores irrisórios
que não alcançam a dezena de toneladas em qualquer dos produtos e onde é patente o já
referido decréscimo da declaração destes, à semelhança do açúcar, café e tabaco, que
configuravam bens de essencial necessidade e, logicamente, pela elevada procura a que
estavam sujeitos, seriam transportados em pequenas quantidades por inúmeras
embarcações que em seu manifesto e carga legal, as introduziriam na região, vindo a ser
depois de recepcionadas pelos referidos estabelecimentos, distribuídas à consignação ou
revendidas para que o circuito comercial paralelo se completasse por acção de
contrabandistas embora a uma escala ainda menor, correndo enormes riscos e sem uma
margem de lucro que permitisse mais do que a mera sobrevivência, fechassem o “ciclo”
como parte mais frágil do conjunto.
65
A lógica deste fervilhante incremento da actividade comercial e produtiva na região,
teve reflexo no aumento das condições de acesso a bens por parte dos habitantes do
Baixo Guadiana, tanto no nosso país quanto em Espanha. Não obstante, as condições de
miséria e exploração dos mesmos enquanto trabalhadores, por inerência nas famílias e
ainda no restante conjunto social das localidades permaneceram uma constante,
empurrando gerações de raianos para a prática do contrabando como actividade que
supria, como subsistência, as carências mais variadas dos mesmos.
Durante as duas primeiras décadas do século XX, a região, ainda mantendo uma
assinalável actividade económica associada ao rio, seria assolada pela sucessão de
convulsões registadas nos dois países, com a implantação da República no nosso país e
a deposição da monarquia em Espanha. A falibilidade prática do modelo económico da I
República e a permanente convulsão politica registada, que se traduziu na antepara dos
fascismos nos países, incorporados por Sidónio Pais no nosso país e José António Primo
de Rivera em Espanha. A participação do nosso país na I Grande Guerra (sendo de
destacar o elevado número de mancebos da região integrados no Corpo Expedicionário
Português); a Revolução de 1926, o grande crash de 1929 e a posterior instauração do
Estado Novo, determinaram uma incomparável agudização das condições de vida dos
habitantes das comunidades raianas.
O período de ditadura nacional e o início do Estado Novo, de 1928 a 1934, seriam
catastróficos em termos do paradigma de exploração e produtividade agrícola, onde
assentava a obtenção da subsistência das comunidades raianas dos concelhos de
Alcoutim e de Mértola. A Campanha do Trigo promovida neste período pelo governo
de Salazar, significou, a curto prazo, uma verdadeira tragédia para terrenos pobres como
os da região. Uma sucessão de anos agrícolas terríveis, o uso irracional de terrenos
agrícolas paupérrimos, explorados em excesso, não obedecendo a pousios e à rotação
66
tradicional de culturas, determinaram que, em poucos anos, muitos dos mesmos se
tornassem improdutivos, contribuindo para o grassar da fome e da miséria nas
comunidades82. Aos factores acima mencionados, juntou-se o agravamento das relações
institucionais a partir de 1931 (ano do triunfo eleitoral da República no país vizinho),
entre o Portugal fascista de Salazar (aliado privilegiado da insurreição nacionalista de
Francisco Franco que se iniciaria, a partir de Marrocos em 1936, ainda enquanto colónia
espanhola, sendo o ponto de partida para o início da Guerra Civil Espanhola, mas que se
delineava desde a vitória da República no país vizinho) e a República socialista
Espanhola de Manuel Azaña, contribuíram de forma decisiva para um agravamento do
controlo alfandegário na região (e no resto da fronteira entre países), introduzindo-se
uma verdadeira repressão e o erguer explicito de um novo muro ibérico, quer de
cerceamento à actividade comercial legal entre países, quer da limitação de circulação
de pessoas e bens, com Salazar num polo ideológico e político, oposto à República
Espanhola, e o governo republicano espanhol profundamente indignado pela
colaboração logística, militar e diplomática aos rebeldes, prestada por Salazar e
principais detentores do poder económico no nosso país83.
A deflagração e evolução do conflito civil espanhol no triénio 1936-1939, será um
tempo que muito dos raianos do Baixo Guadiana, ainda hoje vivos, relembram com
profundo horror e assumindo esta memória como tempos de atroz dificuldade, sendo em
regra chamados “os anos da fome e da miséria”. Não será alheio que estes tempos
significaram, não obstante a relativa precocidade de pacificação da província de Huelva
(totalmente em mãos do bando nacionalista em finais de 1937), tempos em que a
limitação de trocas comerciais, a carência extrema de bens em ambos países e a
82
SIMÃO, José Manuel; A Nordeste de Todas as Histórias – 9 Histórias pela Pena de Jose Manuel Simão;
Alcoutim, 1999, p.14
83
REZOLA, Maria Inácia – «O Estado Novo e o Apoio à Causa Franquista» in Portugal e a Guerra Civil de
Espanha in Catálogo de uma Exposição, Lisboa, 1996, pp.37-63.
67
ausência total de excedente produtivo em terras espanholas, que servia, desde tempos
imemoriais, para suprir as necessidades no nosso país e em concreto da região;
associado ainda a milhares de portugueses do sotavento algarvio que, até 1936,
trabalhavam além fronteira e que tiveram que regressar ao nosso país, literalmente com
a roupa do corpo, sem perspectivas de trabalho portando consigo as horríveis histórias
dos ajustes de contas e massacres perpetrados por soldados muçulmanos da Legião
Espanhola e das milícias falangistas, em lugares como Rio Tinto, localidade de
mineiros que eram na sua maioria ligados a sindicatos comunistas e anarquistas, tendo
expoentes nas confederações sindicais da C.N.T e da F.A.I., que se organizaram
também militarmente durante o conflito para combater os nacionalistas franquistas, e
um pouco por toda a província de Huelva, onde existissem grémios e cooperativas
agrícolas e de pescas.
A Guerra Civil de Espanha representou ainda a face brutal da mais violenta repressão
aos refugiados de guerra vindos do país vizinho e que tentavam entrar no nosso país.
Foram os tempos da força musculada da PVDE em ligação à acção da Guarda Fiscal e
da GNR, e em Espanha do Cuerpo de Carabineros e da Guardia Civil84 (forças
militares que se revelaram, por exemplo, logo após a pacificação da província de
Huelva, os mais ferozes braços repressivos do regime franquista e, em concreto, um
corpo de secção de tropa especial da Guardia Civil, chamada Cuerpo de Asalto) que em
ligação às milícias falangistas e regulares do exército franquista – levaram a cabo
autênticas operações de limpeza, assim classificadas em relatórios das nossas forças de
84
GUILLÉN, Antonio Rodriguez; “Contrabando na Serra de Aroche” in Cadernos do Museu do
Contrabando, vol.I, p.43. O autor refere que a Guardia Civil e os Carabineros eram conjuntamente os
corpos militares responsáveis pela manutenção da ordem, sendo em especifico os Carabineros
responsáveis pela vigilância da fronteira. Com a reorganização das forças de ordem, no país vizinho, em
1952, a Guardia Civil Rural- maioritária na região- e os Carbineros sofreram uma fusão dando origem à
Guardia Civil de Frontera.
68
segurança85. Em zonas de fonteira do centro do país, inclusive, verificou-se ainda a
acção articulada das nossas forças de segurança em concertação com as referidas
espanholas, para cercar as bolsas de resistência republicanas remanescentes.
Muitos dos refugiados, mais que meramente, fugindo à guerra, haviam sido
declaradamente apoiantes da República e, como tal, representando os vencidos. À
violência da repressão, responderam as gentes humildes das comunidades raianas com
uma total ajuda e partilha sem reservas, com os refugiados. Tantas vezes, humildes
famílias portuguesas de recursos reduzidos ou inexistentes albergaram, em gesto
exemplar de dignidade e solidariedade humana, os espanhóis que cruzaram a fronteira
em busca da paz ou fugindo à repressão, mantendo essa lógica de interacção e partilha
que é fundamento para a actividade comercial e para o contrabando que é o cerne desta
tese monográfica. Por oposição, os senhores da terra e famílias abastadas nas regiões
fronteiriças, costumavam entregar o paradeiro dos refugiados, que ao serem repatriados
e entregues à irracionalidade do revanchismo das forças franquistas, corriam sorte
incerta, tendo sido muitos encarcerados por longos períodos ou fuzilados
arbitrariamente e de imediato.86
Em 1939, com o fim da contenda civil espanhola e o início da II Guerra Mundial,
agravar-se-ia ainda de forma mais significativa o período de carência das comunidades
raianas do Baixo Guadiana. A imposição do racionamento (e até mesmo anteriormente
ao mesmo) determinou para a larga maioria da população do nosso país e da região,
uma carestia sem precedentes, todavia o racionamento significou um incremento de
lucro dos donos de estabelecimentos e uma janela de oportunidade para o contrabando,
85
OLIVEIRA, César; Salazar e a Guerra Civil de Espanha. Lisboa: O Jornal, 1987, pp.160-161
Consulta em 12 de Maio de 2013 em http://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/23079/2/manuelloffmemoria000092863.pdf – Artigo de LOFF, Manuel
- “A memória da Guerra de Espanha em Portugal através da historiografia portuguesa”
86
69
que ao mencionado lucro do “grossista” acabava por não mais equivaler que à pequena
oportunidade de subsistência que a altíssimo risco, o contrabandista através da sua
actividade, corria.
Numa região periférica como o Baixo Guadiana, a disponibilidade do pequeno quinhão
de bens de racionamento atribuídos a cada chefe de família (que variava em quantidade
segundo a composição do agregado familiar87) – tais como o pão, o açúcar, a farinha, o
arroz, o petróleo, o sabão, o tabaco, entre outros-, esbarrava em limitações que se
prendiam com a obrigatoriedade das senhas de racionamento só poderem ser usadas em
casas comerciais válidas para essas senhas (por exemplo, uma senha de um habitante de
Alcoutim ou do concelho, não podia ser trocada senão no estabelecimento de Alcoutim
ou do concelho, assinado para o efeito). A escassez de bens para revenda nos
estabelecimentos, determinado pelo racionamento, era contornado pelos proprietários
dos mesmos no evasivo e falacioso argumento dado aos titulares de senhas mais
incautos, que a determinada altura já não existiam bens para efectivar o levantamento
das mesmas. O preço tabelado por lei e as escassas margens de lucro determinavam este
procedimento ilícito e a própria falibilidade do sistema de distribuição centralizado no
Estado que, na maioria das vezes, destacava uma quantidade de bens aos
estabelecimentos em menor quantidade daquelas previstas pelas senhas, servia de
argumento válido aos proprietários dos estabelecimentos, para justificar ao consumidor
o esgotar dos produtos sem realmente tal ter acontecido.
Se juntarmos este “esquema oficial” de obtenção de excedente, a alguns outros produtos
obtidos de forma paralela junto de fornecedores e produtores, encontraremos a base
material na qual se alicerçou o negócio do contrabando neste período, permitindo aos
87
A única excepção eram os militares aos quais lhes estava destinado o dobro dos bens alimentares ou
não, que eram destinados ao cidadão comum.
70
proprietários lucrar em dobro ou triplo (e por vezes mais) sobre os preços tabelados e
estabelecer redes de contrabando individual ou em quadrilhas (que, na região, não
superavam, em regra, seis homens capitaneados por um intermediário directo junto dos
proprietários), que, como já foi referido, representavam a estrutura da actividade de
sobrevivência de muitos habitantes da região, nestes tempos de tribulação.
Os anos da Guerra Civil de Espanha e anos subsequentes da II Guerra Mundial, foram
ainda os anos de todas as carências em Espanha, que definhava destruída nas mais
atrozes condições e que representava um mercado florescente de contrabando, pela
enorme procura e necessidade vital de muitos produtos e bens acima descritos.
No relativo a actividade produtiva agrícola, estes anos significaram também tempos de
enormes dificuldades justificados, em primeira instância, pelo controlo estatal de toda a
actividade. Do mais abastado lavrador ao mais modesto rendeiro, a imposição de
declarar em manifesto toda a produção anual, a obrigatoriedade de venda ao Estado de
todo o excedente obtido e que legalmente ultrapassasse as quotas destinadas a cada
agregado familiar, colocaram os produtores agrícolas do país e em especial da região –
pela já mencionada pobreza de terrenos – em sérias dificuldades.
Pese a que os produtores tivessem direito ao dobro da quantidade do produto produzido
em comparação a um não-produtor, a sombra das autoridades detectarem esquemas
fraudulentos pairava e era factor limitante decisivo na prática ilícita e, pela severidade
de penalização, muitos não arriscavam algo que poderia, em última instância,
representar a total apreensão da colheita anual e o esforço de todo um ano de trabalho.
A perspectiva da enorme privação neste período, não só diz respeito ao país vizinho. Na
região de Alcoutim e para as gentes serranas do nordeste algarvio, a base alimentar era
constituída essencialmente pelo pão (ao qual se dava uso das mais diversas formas na
71
gastronomia costumeira entre gentes humildes) e, neste período de racionamento, os
relatos das intermináveis filas de habitantes que se deslocavam ao concelho, por mais de
cinquenta quilómetros para obtenção de senhas de racionamento na Câmara Municipal
local, de modo a obter uma quantidade de farinha, que mal daria para a confecção de
quatro ou cinco pães, traduz a enorme carência registada. A já referida Campanha do
Trigo do Estado Novo, contribuiu de forma decisiva a evidenciar esta carência para a
esmagadora maioria da população da região. A esparsa existência de terrenos onde era
possível plantar trigo na região serrana do Baixo Guadiana, associada ainda à
concentração dos mesmos nas mãos de um reduzido número de lavradores abastados,
associada à referida valorização do trigo como produto preferencial das comunidades,
que implicava na prática, que uma arroba de trigo com um custo de 50$00 permitisse
confeccionar dez pães, por oposição ao salário médio diário de um trabalhador agrícola
que não excedia 5$00, com uma duríssima jorna de sol a sol, colocava estes últimos na
posição de mendicância aos primeiros, à cedência de um quinhão de terra válida de
plantio a qual “custava” aos referidos trabalhadores a módica quantia de 25 % da
produção final anual, ao dono da terra. Os terrenos cedidos a estes trabalhadores eram
em geral, os de pior qualidade e de menor rentabilidade, pelo que o ciclo de
dependência à farinha das senhas de racionamento era constante, ainda assim
insuficiente para alimentar tantas vezes, um sem-fim de bocas dentro da mesma família,
agravando e perpetuando o ciclo de fome e miséria a que os humildes nordestinos
estiveram condenados88.
O fim da II Guerra Mundial, veio trazer condições que, não alterando o referencial
tradicional de pobreza, periferia e isolamento da região, atenuaram de alguma forma as
duríssimas condições de vida. No país vizinho, numa lógica de inclusão no Plano
88
SIMÃO, José Manuel, A Nordeste de Todas as Histórias – 9 Histórias pela Pena de Jose Manuel Simão;
ed. C.M.Alcoutim, 1999, p.16-20.
72
Marshall, e de um desenvolvimento industrial que permitiu que a Espanha produzisse
muitos dos produtos que o contrabando originário do nosso país havia suprido ao longo
das duras décadas anteriores, tendo mesmo nos inícios da década de 50 do século XX
começado a produzir produtos que eram valorizados pela ausência de produção ou de
preços proibitivos no nosso país. No Museu do Contrabando de Santana de Cambas é
possível registar ainda alguns desses produtos, que o ciclo do contrabando do pósguerra começou a introduzir no nosso país. São exemplos, os materiais em borracha
usados para calçados como sandálias e botas de borracha, as lingeries de senhora, a
famosa gasosa Vicasti ou o conhaque Domeq e, ainda, os derivados de carne de porco,
que pela abundância no país vizinho e pelo baixo preço, se tornaram extremamente
apetecíveis ao contrabando. O café colonial português, de grande qualidade e a preço
muito acessível em comparação ao preço do café produzido em Espanha, proveniente
dos torriés de Campo Maior e de Mértola, com uma rede de distribuição fortemente
organizada continuou a impor-se como principal produto de contrabando português em
Espanha. Ao estrito produto café, o nosso país associava ainda como produto de
contrabando de grande apetência, toda a parafernália usada para moagem doméstica de
grão que era ainda comum nos referidos estabelecimentos fronteiriços onde se
preparava o envio do café já moído em pó.
Socialmente, a década de 50 assinala ainda o início do massivo êxodo populacional para
regiões junto ao litoral e grandes cidades (em ambos países) justificado pela procura dos
habitantes destas região por novas oportunidades de fazer seus filhos esquivar a miséria
em que haviam vivido; e para o estrangeiro, especificamente no nosso país, determinado
pela eclosão já no início dos anos 60, do conflito colonial português.
Politicamente, a eterna relação de desconfiança mútua que Salazar e Franco,
desenvolveram ao longo de largas décadas em que os regimes vigoraram em ambos
73
países, não obstante a concordância ideológica entre ambos, foram ainda determinantes
para que progressivamente a relação ancestral das comunidades raianas do Guadiana,
fossem sofrendo limitações pela ferocidade do controlo fronteiriço, que com a vaga de
migração portuguesa para o estrangeiro da década de 60, determinavam pedidos de
tramites especiais às autoridades para trânsito fronteiriço. Não obstante o acordo LusoEspanhol, firmado em 1960, a gradual abertura de fronteiras só será uma realidade
efectiva após vigorarem os sistemas democráticos em ambos países, já depois da
segunda metade da década de 70, mas ainda com limitações evidentes.
Economicamente, a década de 50 corresponderá ainda a uma mudança de paradigma
que representará um duro golpe para as regiões a montante da foz do Guadiana. A força
da pobreza e isolamento endémico da região vincada pelo exaurir da produtividade dos
poucos campos produtivos restantes nas regiões serranas algarvias e do limite sul do
concelho de Mértola, em grande parte determinado por políticas erróneas das quais
destaca a Campanha do Trigo do Estado Novo, como já foi referido, associado ao
colapso da actividade mineira que teve o seu acto final com o fecho da Mina de São
Domingos em 1965, e ainda, a progressiva redução de navegabilidade do Guadiana por
navios de grande calado e por força de obras várias como a construção de barragens em
Espanha e o assoreamento natural do rio foram factores determinantes para que o rio
Guadiana passasse de um canal de navegação ligado com prolifica actividade comercial,
a um rio tão silencioso quanto as suas margens.
Após a revolução democrática do 25 de Abril de 1974, da morte de Francisco Franco e a
transição democrática espanhola depois de 1975, Vila Real de Santo António,
Ayamonte e a foz do Guadiana com a pesca e a actividade conserveira mantiveram-se
como últimos esteios dos tempos dourados da economia da região e de um rio que foi o
fulcro do desenvolvimento e troca, entre ambas as margens do Guadiana. Ainda assim e
74
como duro exemplo dos tempos, em 1985, registou-se a morte, baleado, do último
contrabandista às mãos da Guarda Fiscal junto ao local onde hoje estão erguidos os
pilares da Ponte Internacional do Guadiana89.
Com a entrada de Portugal e Espanha, a 1 de Janeiro de 1986, na Comunidade
Económica Europeia e com o introdução mais tarde do tratado de Schengen de livre
comércio e circulação, as fronteiras finalmente foram abertas; tendo a já referida Ponte
Internacional do Guadiana inaugurada em 1992 representando um inusitado e irónico
corolário desses dias distantes em que a fronteira do Guadiana significando a separação
politica e física entre países, foi essencialmente o espaço de todas as trocas e de fluxo de
populações e bens, sendo por excelência e por força do contacto constante ao longo da
História, elemento fulcral que moldou as comunidades de ambas as margens, que
contrariando o poder e vontades políticas distantes do seu centro, não mais utilizaram o
Guadiana como aquilo que sempre foi, um espaço comum e a fonte de vida que ligou e
ergueu as referidas comunidades, que souberam ultrapassar na coragem quotidiana
todas as dificuldades.
89
Hemeroteca online do diário espanhol El Pais dando conta da morte de Juan Flores, e do processo de
contrabando levantado ao colaborante português António Monteiro, no Tribunal de Instrução de Vila
Real de Santo António e que transitou para a Relação de Évora a posteriori. A noticia explicita o tipo de
contrabando, neste caso “caixas de marisco”, indicando também o nome do agente (cabo) da Guarda
Fiscal, José Nunes, responsável pelo disparo mortal que vitimou o pescador ayamontino. Refira-se como
importante nota que este incidente diplomático, à semelhança de outros ocorridos recorrentemente e
em geral associados à violação de águas territoriais por parte de pescadores e “ametralhamentos” por
parte das Marinhas de ambos países, ao longo dos anos, levou ao encerramento da fronteira entre Vila
Real de Santo António e Ayamonte. Juan Flores, foi o último contrabandista “tradicional”, morto no
Guadiana. Artigo consultado em 18 de Junho de 2013 em :
http://elpais.com/diario/1985/01/17/espana/474764419_850215.html
75
2. O Contrabando no século XX –Os actores e seus retratos de
vida
Além de todos os condicionalismos que mencionamos no capitulo anterior de
ordem politica, económica e social, o contrabando no Baixo Guadiana durante o século
XX, fez-se em geral obedecendo a um modus operandi muito particular, determinado
não só pelas contingências da travessia de uma fronteira molhada, mas também
essencialmente pela vigência de uma fortíssima rede de vigilância, estruturada nos
postos da Guarda Fiscal - espaçados em alguns casos por distâncias não superiores a
dois quilómetros nas margens do Guadiana-. Esta dura limitação determinou que, por
oposição aos grandes grupos de contrabandistas com mais de quarenta elementos que
operavam na raia seca alentejana situada mais a norte, no respeitante à realidade do
Baixo Guadiana se privilegiasse a actuação individual ou da “quadrilha” com não mais
que seis elementos, vigorando como estrutura preferencial na travessia da fronteira para
a prática do contrabando.
Neste capitulo do trabalho, incidiremos nas visões dos intervenientes fazendo uso
de recolhas orais e essencialmente da revisitação emocional dos intervenientes nelas
contidas e efectuadas ao longo do ano de 2013, bem como do contraste dos mesmos
com fontes jornalísticas, documentos oficiais e publicações locais, que abordam a
realidade do contrabando90, servindo assim de factor de reforço à problemática da
90
No presente trabalho monográfico, o recurso à memória oral é por igual valorizada no contraste entre
o valor da memória vivida e remanescente, e o esquecimento e a dissolução que o tempo traduz na
memória dos intervenientes, obedecendo ao principio de complementaridade do binómio “vida e
morte” em que Marc Augé (2010), na obra Les Formes de l´Oubli procura estabelecer a valia da memória
oral como processo aquisitivo onde o misto de lembrança e esquecimento configuram por igual, a
importância de aproximação à fidedignidade dos acontecimentos. Augé usa a metáfora “a memória e o
esquecimento possuem, de alguma maneira, a mesma relação que a vida e a morte, e da mesma
maneira que pensar na vida nos remete a pensar na morte, pensar na memória passa necessariamente
76
subjectividade da perda ou transformação de elementos, que a natureza da memória
humana e transmissão da mesma tendem a revelar.
Importou, neste particular, recolher a visão dos diversos actores, desde a figura do
contrabandista caminheiro91 ou “chefe de quadrilha”; aos freteiros “solitários”
masculinos ou femininos, e ainda a figura do comerciante que ligados visceralmente
pela actividade, reflectem nos seus relatos de vida uma miríade de contingências,
diferindo o modo de actuação, como veremos, entre os contrabandistas do “Guadiana”;
os originários da serra algarvia ou os que actuavam junto à foz, na fronteira de Vila Real
de Santo António-Ayamonte, ou, ainda, as especificidades da actividade dos actuantes
no “Chança”; passando ainda pelos agentes das forças da ordem, em concreto da Guarda
Fiscal, ligados muitas vezes por relação directa de parentesco com contrabandistas e por
vezes, participantes directos no processo (não é incomum encontrar contrabandistas na
juventude, que na idade adulta passaram a agentes da Guarda Fiscal). Todos eles com a
sua particular visão e intervenientes directos da complexa fenomenologia do
contrabando, mas vinculados intrinsecamente pelas experiências de vida e
essencialmente, como veremos, pelo contrabando como mais que uma mera actividade
económica enquadrada como transgressão pelo contexto jurídico-legal. O contrabando
representa sim, essencialmente, uma realidade social e antropológica complexa, com
vincadas dinâmicas e com processos que não primam pela linearidade. O contrabando é,
pela compreensão de que não há memória sem esquecimento” Procuraremos, não definir o relato como
verdade indisputável, mas como reflexo do conceito dinâmico da oralidade, enquanto base válida de
construção da memória e identidade e da emoção dos narradores como parte integrante da construção
da mesma.
91
BERNARDO, António; As Noites da Raia – Prova de Aptidão da Escola Bento de Jesus Caraça –
Delegação de Mértola, 1996 p.6. O autor faz a distinção entre os três principais tipos de interveniente
no esquema do contrabando. O “Caminheiro”, líder e orientador do grupo de contrabandistas, que
seguia à frente, conhecendo os trilhos usados e sujeitando-se pelo “encabeçamento da coluna” a ser o
primeiro aprisionado. O “Freteiro” que transportava os bens de outrem, até ao país vizinho e para um
destino acordado entre fornecedores e compradores, recebendo depois pelo transporte efectuado. E
finalmente os fornecedores/compradores, em geral proprietários de estabelecimentos comerciais que
contratavam os “caminheiros” como “homens de confiança” no sentido de proceder à entrega dos bens
transaccionáveis ou que na definição do serviço a ser levado a cabo pelos “freteiros”.
77
isso sim, a arte da versatilidade em nome da sobrevivência, do assumir do risco por
necessidade ou “por vocação”, da expressão do melhor e pior da natureza humana,
como a vida em si.
78
2.1 O Contrabandista “Caminheiro”92
Com 92 anos curtidos na face pelo passo inexorável do tempo, pela sabedoria de
homens que muito sabem porque muito viveram, mas sobretudo neste caso, por um
sentido romântico de “valentia” ligada a um duro ofício.
Ildefonso Martins, o “Sr. Ildefonso dos Balurcos” ou, ainda, carinhosamente, “Ti
Lifonso” para os seus poucos amigos que ainda restam vivos em Balurcos de Baixo, no
concelho de Alcoutim, onde nasceu e onde passa seus dias entre a sua pequena courela
de terra, entre tarefas de cuidar o que planta e alimentar alguma que outra galinha que
tem, e os momentos de uma “solidão de 90 anos que detesta” na sua casa localizada a
poucos metros da antiga EN122 – junto a menos de um quilómetro das Quatro Estradas
de Alcoutim, na antiga estrada Vila Real de Santo António – Beja-, e onde guarda muito
da sua história em memórias que “dariam uma dúzia de livros de aventuras” e os
objectos necessários ao “amor maior” de uma vida vivida em plenitude, os seus
instrumentos de música que executados pelas suas mão talentosas, serviram em tempos
da vida do contrabando para lhe “abrir portas” e estabelecer conhecimentos que se
revelariam muito importantes, em terras do outro lado da fronteira. Caminheiro ou
“responsável da quadrilha” como se assume, além de músico de bailaricos, marinheiro
com uma mulher em cada porto, trabalhador ferroviário já nos anos 60 do século
passado, na Gare de Austerlitz em Paris, vincando que “nunca viveu em França como o
emigrante que passa todos os sacrifícios em nome do “pé de meia” para ser desfrutado
92
Entrevista conduzida em 13 de Março de 2013, em Balurcos de Baixo, concelho de Alcoutim, na
residência do Sr. Ildefonso Martins, famoso contrabandista do Guadiana. Muitos dos dados expostos
pela entrevista, encontram-se contrastados e confirmados, quer na edição nº 135 do Jornal do Baixo
Guadiana de Agosto de 2011, pp.13-15 e e na já referenciada publicação da C.M.Alcoutim da autoria de
José Manuel Simão e a compilação de histórias sobre a região, intitulada A NORDESTE DE TODAS AS
HISTÓRIAS de 1999.
79
um dia mais tarde”. Viver muito e plenamente, este é o seu lema, ainda hoje! E a
lucidez do alto dos seus 92 anos, é exemplo de para quem a idade é uma data num
documento que vai guardado numa carteira.
Começou por falar da terra que o viu nascer e crescer, o Nordeste Algarvio e o
concelho de Alcoutim, começando por dizer que no seu tempo de menino “havia mais
gente…mas também muito mais fome” e que por causa disso “muitos tiveram que se
dedicar ao contrabando”. Diz-me que começou com 16 anos e que depressa se tornou
“patrão”, ainda no tempo final da Guerra Civil de Espanha. Deixo a pergunta, se não
haveria outra vida que pudesse seguir sem tanto risco, ao que me respondeu
peremptoriamente ”Trabalhar na lavoira? Ganhava-se naquele tempo de sol a sol,
“capinando” mato, ceifando, lavrando ou em qualquer outro serviço menos de 200
escudos por mês e no contrabando, um homem na quadrilha ganhava de uma só
passagem de carga a Espanha, 120 escudos e da nova carga trazida depois, de volta para
Portugal, mais oitenta. Mais tarde, ganhava só de um serviço de dois dias e duas noites,
600 escudos como “chefe”, e ainda dava a ganhar aos freteiros93 100 escudos à cabeça
(sendo que o grupo que liderava nunca excedia os seis, sete homens) e pagava do meu
bolso, uns cabritos para assarmos e umas adamaguanas94, para as noites nos “poisos”
onde nos escondíamos, quando o serviço era mais longe95. Questiono-o se foi a
necessidade que o empurrou para o contrabando e responde-me, surpreendentemente,
“foi por vocação”. Acto contínuo questiono-o se não era demasiado arriscado e se não
se arrependeu na vida de ter sido contrabandista, ao que me responde “eu gostava muito
93
Integrantes subalternos da quadrilha ou a titulo individual, que participavam informalmente segundo
cargas e necessidades, e obedecendo a acordo pré estabelecido entre comerciantes e consumidores,
nos diferentes países.
94
Nota: medida de recipiente com capacidade para 16 litros e usada em geral para vinho . Era o
recipiente mais comum, em Espanha, na primeira metade do séc.XX.
95
Na entrevista ao Jornal do Baixo Guadiana refere a titulo de exemplo dos longos percursos
“Fornecíamo-nos em Huelva e depois em Gibraltar também”, o que pela distância à fronteira do
Guadiana representaria vários dias ou até semanas, de viagem.
80
de correr riscos e por ser valente é que cheguei depressa a “patrão” e fazia tudo outra
vez”. Chegamos, então, às perguntas que ilustram como se processava o contrabando. O
Sr. Ildefonso diz-me que se passava “de tudo um pouco” e sem reservas identifica a
fonte de fornecimento dos bens que contrabandeava. Fala-me do Sr. António Feio, de
Mértola, um abastado comerciante e proprietário de um estabelecimento nessa
localidade, que na consignação para revenda dava poderes alargados ao Sr. Ildefonso
como seu “homem de confiança” e lucrava astronomicamente, se comparado aos
homens que corriam os riscos do contrabando. Afirma o Sr. Ildefonso que passou
“cargas”, nos dois sentidos da fronteira, com tudo o que as pessoas queriam e que não
podiam ter acesso no seu país. De açúcar, de ovos, de armas de caça, de arroz, de sabão,
de farinha, de pão, de perfumes, de lã, de gado vivo96, de tabaco, mas essencialmente de
Portugal para Espanha, o café e de Espanha para Portugal, pano crú, tecidos de
bombazine e “miolo de amêndoa, muito miolo de amêndoa”. Surge, assim, a questão do
motivo pelo qual os miolos de amêndoa serem um dos principais produtos de
contrabando vindo de Espanha , tendo em conta que existiam tantas amendoeiras na
serra do Nordeste algarvio, ao que me respondeu “ porque o miolo em Espanha era mais
grado e porque eles tinham umas prensas para partir que deixavam o miolo inteirinho e
como havia mais, era mais barato”. Pergunto-lhe então como se processava a travessia
do Guadiana, ao que me responde para grande surpresa “abanhando-nos com uma corda
aos dentes e segurando o oleado97”. Diz-me ainda que como era “valente” para ele
96
Como curiosidade, o Sr. Ildefonso Martins revelou que o gado vivo e em concreto, cavalos, vacas e até
ovelhas, eram excelentes nadadores e fáceis de conduzir de uma margem à outra do rio com a maré
cheia, sendo amarrados em geral pelo pescoço e conduzidos juntos por uma pequena embarcação.
Deixou ainda entender, por oposição, que os porcos (que de forma tão comum era introduzidos pela
raia seca alentejana, sendo muito contrabandeados), eram quase “impossíveis” de passar através do
Guadiana, pela “indisciplina” dos suínos que seguiam nas mais diversas direcções, alheios à vontade dos
“condutores”.
97
“Abanhar” – termo que definia a travessia do Guadiana a nado. O “oleado” mencionado pelo Sr.
Ildefonso Martins, era o comum método de passagem da carga na travessia do Guadiana, envolvendo a
mesma numa lona impermeável que boiava, não obstante o peso que por vezes podia superar os
cinquenta quilogramas. O “oleado” da travessia do Guadiana contrastava com a “mochila” às costas
81
nunca houve diferença de invernos ou verões no Guadiana, que se o “serviço pagasse
bem” atravessava, mas em jeito de mote diz que “não havia muitos como ele”.
Pergunto-lhe então como era passar o Guadiana a nado, ao que me responde que “há
muita coisa que se tem que ter atenção e tem que se saber o que se faz, com atenção
principalmente as quebradas98 e correntes do rio, às marés e até a lua”. Peço que me
explique em detalhe ao que me responde “ além à Ponta do Cinturão99, o rio faz uma
quebrada que a gente “abanha” com a carga e que a corrente leva logo “a gente” para o
outro lado, nem é preciso quase nadar, depois tem que se tirar a carga depressa não vá
aparecer algum “carabineiro”. Espanto-me de ainda usar o tempo presente para
descrever as suas aventuras e pergunto-lhe sobre as luas e as mares, ao que o Sr.
Ildefonso completa “as marés fazem a corrente andar mais depressa ou mais devagar ou
fazem a quebrada ir dar a outra margem mais longe”. Então e as luas? As luas é porque
nas noites de lua clara, a Guarda vê a gente e a coberto do escuro corre-se menos
perigo”. A cada explicação, não cesso de me surpreender com essa “vaidade” que no
início da entrevista o Sr. Ildefonso me fez questão de a dar entender. A vaidade é, com
certeza, menos “vaidade” que valentia. Muitíssima valentia.
Passamos então à parte em que o questiono sobre a Guarda Fiscal e de como faziam
para antecipar os movimentos desta força de ordem e atendendo que existia um elevado
número de postos ao longo do Guadiana. O Sr. Ildefonso diz-me que “conheciam-se
todos e havia uns quantos que tinham irmãos e filhos que até fizeram ´serviços´ comigo
e até havia um ou outro que trabalhavam com “a gente””, o que é revelador desta
estranha partilha no relacionamento entre as forças de ordem e os transgressores. O Sr.
que era o método mais comum, nas paragens mais a norte na parte alentejana do Baixo Guadiana e na
zona do Chança. A carga de um “oleado” ou de uma mochila, em geral, adequava-se à capacidade física
de cada homem e nunca excedia, em regra, os cinquenta quilos.
98
“Quebradas”- zonas de corrente que naturalmente facilitam pelo sentido das mesmas a travessia
99
Marco geográfico, na margem portuguesa do Guadiana sensivelmente, no limite entre o concelho de
Castro Marim e o concelho de Alcoutim, onde se situava uma dos postos da Guarda Fiscal.
82
Ildefonso diz-me “eles também ganhavam pouco e também tinham muitas bocas para
dar de comer e além do mais, sabiam que “a gente” do contrabando também passava
muitas necessidades”. Conta-me a história de como, por vezes, se colocava junto aos
terraços dos postos da Guarda Fiscal100, para ouvir os agentes falarem uns com os outros
e assim saber, quando era a hora do render da guarnição e quando podendo aproveitar
esses momentos faria a travessia de forma mais “segura”, de maneira a não ter a carga
apreendida. Diz-me que em Portugal nunca o prenderam, tendo por vezes que deixar
“cargas perdidas” para fugir e evitar ser detido e relembra um famoso episódio de uma
valiosa carga de lã “deitada a perder” (uma “autêntica fortuna de quinze contos nesse
tempo”), em pleno mês de Janeiro, com um vendaval enorme e “encharcado até aos
ossos” da água gelada do rio, e após ele e mais dois ajudantes terem sido detectados por
um agente da Guarda Fiscal.
Fala-me então, dos agentes que eram realmente tenebrosos, os carabineiros
espanhóis101. Pródigos em espancamentos e em torturas, tais como negar aos
contrabandistas presos, água no cárcere em pleno Verão e, ainda, pela apresentação
imediata dos detidos após a Guerra Civil a tribunais militares, que a extremo podiam
condenar a prisões perpétuas e até à morte. Conta-me então a história rocambolesca de
100
Em geral e veremos em apêndice fotográfico, num capitulo particular sobre a estrutura das forças de
ordem, que os postos da Guarda Fiscal no Guadiana se compunham da casa de habitação/serviço e de
um terraço fronteiro à mesma, que permitia a observação panorâmica e estratégica da área onde o
posto se encontrava implantado.
101
Manuela de Azevedo, em artigo publicado no Diário de Lisboa em 28 de Março de 1952, disponível
online e consultado em 18 de Junho de 2013, no site da Fundação Mário Soares em :
http://www.fmsoares.pt/aeb_online/visualizador.php?nome_da_pasta=06334.055.13201&bd=IMPRE
NSA
e com o nome “Altos serros abaixai-vos, Deixai ver o Guadiana” procura ilustrar de alguma maneira a
diferenciação entre o modo de actuação e motivações associadas às forças de ordem de Portugal e
Espanha, Assim refere: “São diferentes os modos de actuar. Depois da Guerra Civil de Espanha, a
Guardia Civil é dona e senhora de uma pistola-metralhadora que lhe deram; a Guarda Fiscal é
responsável pela espingarda e pelas munições que lhe confiaram. “Eles” poderão despejar as munições
que ninguém lhes perguntará onde e por que é que o fizeram. “Nós” teremos que elaborar um relatório,
por cada bala que falte no cartuchame, pagando-a do próprio bolso, se se provar que foi gasta contra os
interesses do Estado…” Por isso /…/o contrabandista saberá , acima de tudo, que aquilo que interessa
em primeiro lugar ao guarda-fiscal não é a sua vida, mas a sua carga”.
83
uma das suas detenções em Espanha em tempos do pós-Guerra Civil e, em concreto em
Sanlúcar de Guadiana, onde passou alguns dias detido. Podendo aproveitar uma
desatenção do carabinero responsável pelo cárcere e fugando-se, em completa fúria
(como curiosidade, devo mencionar, em abono da verdade, que ainda hoje com a sua
idade o Sr. Ildefonso tem mais de um metro e oitenta de altura e dispõe uma compleição
física invejável, o que me leva a imaginá-lo com cerca de vinte anos), derrubou o
referido agente espanhol e para sua má sorte já à saída para a rua, derrubou uma senhora
de famílias abastadas desta vila raiana espanhola, estatelando-se ele mesmo, no chão.
Como consequência é de novo capturado, e foi condenado a tribunal militar que teria
que acontecer em Huelva. Ao ser conduzido para esta localidade, o chefe da polícia de
Ayamonte “a quem dava muito dinheiro a ganhar com o contrabando” e que, por
“coincidência”, soube da prisão do Sr. Ildefonso, foi o primeiro prestar-se a interceder e
abonar a “idoneidade” deste, poupando-o assim à corte marcial e acabando por ser
escoltado até Vila Real de Santo António, sem qualquer sobressalto e com um pedido de
desculpas do chefe de polícia de Ayamonte, pelos incómodos causados. Termina o
relato deste episódio com um “às vezes a vida tem estas ironias…e tive muita, muita
sorte”.
Fala-me então de uma passagem que destaca pela sua relevância histórica e
politica, que aconteceu na entrada nos anos 60, com a crescente procura na passagem da
fronteira de refugiados políticos através Guadiana, destacando-se a figura do doutor
Mário Soares. O Sr. Ildefonso revela que este tipo de “contrabando” era pago “a peso de
ouro”, dando o exemplo do acordo inicial para a passagem do histórico dirigente do
Partido Socialista, fixado em várias dezenas de “contos” e que previa a passagem em
segurança do dissidente por toda a geografia espanhola “ até Biarritz e Hendaye”. O
84
“plano” gorou-se pelo medo do dirigente socialista, em cruzar o Guadiana a nado102,
tendo que ser levado a norte, à raia seca para cruzar a fronteira.
Em virtude do risco envolvido pelas ligações políticas a elementos ligados a
forças na clandestinidade e que combatiam o fascismo, compra de salvo-condutos às
autoridades espanholas para uma circulação “tranquila” no país vizinho , interpelo-o se
teve, então, problemas com a tenebrosa PIDE ao que retorquiu que “ainda fui a Faro, lá
(sede regional da policia politica) umas duas ou três vezes”. Conta-me que passou
muitos homens e que muitas vezes esses grupos de “dez, quinze homens”, faziam a
travessia sem quaisquer garantias de segurança ou sucesso da jornada rumo à liberdade
em terras de Espanha, sendo amiúde, capturados pela Guardia Civil espanhola e
devolvidos à fronteira e às autoridades portuguesas, onde ficariam sujeitos à
arbitrariedade da perseguição, por parte das forças do regime, ao qual procuravam fugir.
Conta-me, então, uma história marcante e que é reveladora dos riscos que a
actividade de contrabandista envolvia. A morte de um seu “camarada” chamado
António Anica. O Sr. Ildefonso deixa pela primeira vez, transparecer na sua face a
sombra dos difíceis tempos de outrora, das agruras da vida de um contrabandista e a
lástima pela “ morte de um homem que considerava de valor e que teria tido uma vida
plena”. Afirma que “há coisas que acontecem porque parece que existe uma hora
marcada para toda a gente”. Refere, então, que numa das centenas de travessias que fez
ao longo da vida e na companhia do referido “camarada”, ao cruzarem sem problemas a
fronteira e já nos caminhos rurais a caminho do interior da província de Huelva, se
cruzaram com um carabinero que vinha, montado a cavalo, de uma deslocação por uma
ocorrência, em Ayamonte. Ao deparar-se com o grupo de contrabandistas liderado pelo
102
O Sr. Ildefonso, afirmou com um sorriso que “ele (Mário Soares) teve medo de “abanhar” aqui no rio
e tivemos que o ir levar à fronteira seca”
85
Sr. Ildefonso, abriu fogo com o seu revólver tendo atingido “com a última bala” o
famigerado António Anica, que ficou impossibilitado de fugar-se, tendo sido
aprisionado de imediato. Sujeito ao cárcere em Sanlúcar de Guadiana e pela “ironia do
destino” do chefe do posto da Guardia Civil da localidade se encontrar ausente de fimde-semana, mantiveram o contrabandista ferido sem qualquer assistência ao ferimento,
pelo que este se dessangrou até à morte, durante três dias, tornando infrutífero o esforço
vão do médico chamado “às pressas”, quando o prisioneiro já se encontrava
praticamente morto. Depois, um instante de silêncio do Sr. Ildefonso que valeu por mil
palavras.
Perguntei, então, ao Sr. Ildefonso o que era para ele ter sido contrabandista e se
tinha ganho para ter tido uma vida “desafogada” comparativamente à pobreza das
“gentes” da região que ganhavam o seu mísero sustento pela via legal, ao que me
respondeu com uma convicção que marcou toda a entrevista “ Gostei de ser
contrabandista e voltaria a sê-lo. Gostava de ser valente e que “a gente” me visse assim
e via-me a mim com uma pessoa “por aí além”. Não era só o dinheiro”.
Ficou a promessa de um regresso à sua casa, para que pudesse partilhar comigo
mais histórias que são o exemplo da coragem e de alguém que não envidou esforços ou
deixou de assumir riscos, para fazer sem reservas “aquilo que mais gostava”.
Ildefonso Martins, 92 anos, contrabandista “orgulhoso”, caminheiro e chefe de
“quadrilha” durante quase trinta anos. Um enorme exemplo de vida!
86
2.2 Os contrabandistas “freteiros” e individuais.
Francisco Calafate103, 81 anos, natural de Ayamonte e residente na cidade
espanhola até aos oito anos de idade durante os atrozes tempos da Guerra Civil
espanhola e das lembranças que marcam uma vida desde a mais tenra idade e “ dos tiros
no cemitério de Ayamonte”104 e das “pessoas com disenteria e os cães mortos na
rua”105. Residente desde 1940, em Vila Real de Santo António, filho de portugueses,
que trabalhavam à altura do início da Guerra Civil em Espanha, neto de uma das mais
afamadas contrabandistas da fronteira Vila Real de Santo António – Ayamonte (e que
era feita por barco, passando-se obrigatoriamente pelos postos alfandegários fronteiriços
das duas localidades vizinhas), a Dona Isilda de Jesus. Lembra-se “como se fosse hoje”
da avó e dos primeiros anos passados em casa desta em Ayamonte, da vida do
contrabando que ela levava que dava “para não passar fome em casa e onde nunca
faltou nada, ao contrário da maioria da gente e da ´miséria franciscana´ que era Vila
Real e Ayamonte, naquele tempo”. Conta, com jocosidade, que a “avó passava “magra”
de Ayamonte pra Vila Real e voltava “gorda” com um “corpete que era uma cartucheira
onde se encaixavam fileiras de ovos e das saias e casacos onde vinha cozido, em bolsas,
o café, os “carros de linhas” e especiarias, para esquivar as “apalpadeiras” 106 e que a
103
Recolha oral feita dia 28 de Abril de 2013, em Vila Real de Santo António, em minha residência
Na relatório online Todos los Nombres – Memoria de las Fosas de la Guerra Civil en la Provincia de
Huelva, - http://www.todoslosnombres.org/php/verArchivo.php?id=1121, e na página 45, consultada
no dia 20 de Abril de 2013, consta registo das execuções sumárias, registadas no cemitério de
Ayamonte, e de pelo menos 16 pessoas levadas a cabo no dia 7 de Setembro de 1936. Segundo
populares ainda hoje vivos, teriam sido mais de 100 pessoas, que depois teriam sido distribuídas em
valas comuns, em Ayamonte e localidades próximas.
105
Sintomatologia característica do uso de rícino químico como contaminante dos reservatórios de água
potável, de uso comum na Guerra Civil espanhola. O nosso entrevistado usou uma curiosa expressão
para classificar o rícino dizendo que a disenteria e a morte dos animais domésticos “era por causa das
bolinhas”.
106
Agentes alfandegárias que, especificamente, apalpavam as mulheres para detectar mercadorias de
contrabando e que também, paralelamente, desempenhavam funções na saídas das fábricas
104
87
sua casa, mesmo junto à velha Igreja del Carmen, na parte mais alta de Ayamonte, era
lugar de “gente que vinha buscar coisas que encomendavam à minha avó” e “lugar de
acoito e de passagem de contrabandistas que iam até Lepe, Cartaya, Gibraleón e Huelva,
com outras coisas”. E nestas “coisas do contrabando”, dando o exemplo de como a avó,
num transporte de uma “pequena fortuna em ouro que era destinada a uma dos senhores
mais ricos da indústria conserveira vilarealense”, foi detida pela Guarda Fiscal, que
nunca revelando o destinatário da “carga” e afirmando sempre que o ouro era seu, foi
condenada a seis meses de prisão maior, tendo nesse período o nosso entrevistado,
“comido e bebido, melhor que nunca”, pois o referido “senhor” como sinal de
reconhecimento e gratidão pela lealdade demonstrada, se encarregara “religiosamente”
das necessidades da família.
“Na luta pela subsistência, os riscos assumidos pelo contrabandista eram quase
sempre proporcionais aos lucros dos “senhores” e donos de estabelecimentos que
consignavam mercadoria”107. E a pior parte, caso corresse mal, era sempre para o
contrabandista e não foram poucos que ainda deixaram a família mais faminta por irem
para a prisão, para ganharem meia dúzia de tostões, por “um par” de quilos de café ou
por duas dúzias de ovos”, termina assertivamente o popular Chico Calafate, sem
traumas pelo contrabando ter sido o “pão que a sua avó punha na mesa” e afirmando
que “a sua velha avó foi candongueira108, até quase ao dia da sua morte já em finais dos
anos 60.
Mais a norte no rio, José Afonso, dos sítio dos Bens, no concelho de Mértola,
numa entrevista contida na obra Memórias do Contrabando em Santana de Cambas de
conserveiras, para detectar se as operárias, na saída de turno, carregavam nas “partes intímas” restos
de pescado ou atum, para alimentar as suas miseráveis e numerosas famílias.
107
GUILLÉN, Antonio Rodriguez; “Contrabando na Serra de Aroche” in Cadernos Museu do Contrabando,
nº1 , p.35 refere que : “O contrabando foi um meio de vida para os pobres. Mas não deixou de ser a
acumulação de fortuna para os ricos”.
108
Termo vernáculo, muito usado em Vila Real de Santo António para definir Contrabandista
88
Luís Filipe Maçarico (2005), dá a conhecer uma visão bem mais árdua e dramática da
vida do contrabandista em terras alentejanas do Baixo Guadiana, e aquela que se
encontrava associada aos contrabandistas da “rebêra” 109.
José Afonso revela que “(…)trinta e seis anos andei ê no contrabando(…)” e
adiante que era “(…)uma rêbera malinha. Eram mais de mil tiros. Carabineros e Guarda
Fiscal, eram uns e outros”. Como exemplo da dureza do oficio do contrabandista por
estas paragens alentejanas, sobre a já mencionada necessidade de “largar cargas” para
evitar a detenção”, refere fazendo uma estranha comparação que “(…)aqui de roda do
monte, tem aí uns vinte calvários110…Pois! Cargas que eu perdi!”.
Fala, sem pejo, de um cenário bem mais agressivo em termos de perseguição à
actividade e que mais próximo à foz do Guadiana, felizmente, era menos comum, o da
morte de contrabandistas e de um constante “abrir fogo” por parte das autoridades tanto
portuguesas, quanto espanholas. “Na minha presença mataram o Raposo(…)Mataramno ali ao Moinho das Juntas! O guarda fez o tiro para ali e não matou mais porque não
calharam(…)Aí às Juntas ajuntava-se o Margão111 e o Chança (…)passei o açude por
baixo e vejo (…) um carabinero a correr por cima, volto para trás, por cima do açude e
se você visse os tiros, era só fogo, pá!”.
109
Termo vernáculo local, para definir a Ribeira do Chança e os afluentes que formavam a bacia desta.
Os calvários da região, assinalam a triste memória dos tempos do contrabando e o lugar onde
tombaram contrabandistas mortos pelos tiros da Guarda Fiscal ou dos carabineiros, ou outros que
pereceram afogados em açudes da Ribeira do Chança. O relato do sr. António Pinheiro (MAÇARICO;2005
p.42) ilustra como as famílias dos “infortunados” erigiam esses memoriais de forma a perpetuar a
lembrança daqueles que partiam tragicamente, neste duro “oficio” da subsistência que era o
contrabando.
111
“Margão” ou “Malagão” – afluente da Ribeira do Chança com curso regular de água durante todo o
ano. Assim se encontra descrito nas Memorias Paroquiais de 1758: “Mértola - Corte do Pinto : Neste tal
rio ou ribeyra de Chança entrão vários regattos ou barrancos que só correm enquanto chove. Entre
todos, os principais são três: he o primeiro, o barranco de Alcaydes, que prencepia dentro da serra e em
parte devide a serra da terra dos particulares, e entra em Chança no sitio aonde chamão as Varges
Largas. Corre o tal barranco de Norte para o Sul athé entrar na dicta ribeyra pella parte de Portugal. // O
segundo se chama Chumbeyro e tão bem corre do Norte pera o Sul, e vay meterce em Chança aonde
chamão o Moinho de Nossa Senhora, tão bem pella parte de Portugal. O terceyro se chama Malagão,
cujo entra na tal ribeyra pella parte de Castella, e corre de Nascente pera o Poente. Entre os três este tal
Malagão he o maior e corre a maior parte do anno.”
110
89
Dá em jeito final da sua entrevista, um retrato fiel da miséria que fazia parte da
existência e trabalho de um contrabandista “(…)Quilómetros! Com trinta quilos! Vinte
e tal léguas!...Então cheguei a trazer também cargas de ferro! Aqui compravam o ferro,
pois112! (…)Passei tantas! Cheguei a estar das cruzes para lá de oito dias sem comer,
nem beber. Mamávamos o café e o açúcar, chupávamos…então não podíamos ir ao
povo nem a parte nenhuma! Entrava e saia de noite!”. Finaliza, com um lacónico
comentário sobre aqueles tempos e aquela existência. “Era uma vida triste!”
Sobre o episódio da morte do contrabandista Raposo, aqui deixado por José
Afonso, quem melhor que o irmão do referido contrabandista morto a tiro para elucidar
sobre a natureza familiar do contrabando e o envolvimento de muitos elementos da
mesma família na actividade. José Teixeira Raposo, de À-dos-Fernandes, nas
proximidades da Mina de São Domingos, ilustra a difícil travessia da Ribeira do
Chança, no Inverno, quando o volume de água era elevado e a travessia só era possível a
nado e já perto da confluência entre o Chança e o Guadiana. Refere na sua entrevista,
em que se respalda das intervenções e memórias de um primo seu de nome Feliciano
Marcelino Teixeira que a “Espanha era para além, mas não saiam (os contrabandistas)
para além, tinham que sair aqui para a vila, para dar as curvas, para passar para lá ao pé
do rio…Andavam debaixo de chuva…Quando tinhas que passar a ribeira a banho,
passar agarrados a uma corda?” Ao que o Sr. Raposo, assente: “A banho! Oh quantas
vezes…!”
José Raposo conta, para ilustrar o risco assumido e que por vezes se tornava
inglório que: “ chegámos a andar quatro noites…quatro noites! Com uma carga às
costas e às vezes chegávamos além e perdíamos as cargas e não ganhávamos um tostão”
112
Cargas de ferro, trazidas para Portugal e para a zona de Santana de Cambas, de paragens tão
distantes como as minas de Las Herrerias, situadas a mais de trinta quilómetros. Foi também comum o
transporte de “ferro-velho” do nosso país para Espanha.
90
e no rocambolesco e irónico destino, de episódios onde parecia estar marcado o
insucesso e, essencialmente também, porque, por vezes, a deslealdade de uns, no intuito
de salvarem a face ou caírem nas graças das autoridades, correspondia o infortúnio de
outros. “Uma vez tínhamos as cargas agachadas ali no barranco, vínhamos além,
encontrámos dois que iam para lá, foram ter com a guarda fiscal que tava ali, deram
ameseio113, amarrei a carga e pús uma pedra, vieram, eles passaram por cima da pedra e
nunca viram a carga, eu fui buscá-la e a minha mão, que Deus tem, deitou-a dentro de
um alguidar e mesmo dentro do alguidar veio aqui a guarda, mesmo assim levou-a(…)”.
Sobre a face mais obscura dos comportamentos humanos entre contrabandistas retorque
que “ outros perdiam a carga e outros roubavam uns aos outros”.
Para o conceito negativo das autoridades, de José Raposo, não será alheio o facto
do episódio da morte do seu irmão às mãos da Guarda Fiscal, baleado com um tiro na
cabeça. O sr. Raposo “abre o livro” para amarguradamente denunciar “os crimes” da
força de ordem fronteiriça, do nosso país. Começa por dizer “foi um irmão meu, ali no
Moinho das Juntas, levou um tiro na cabeça. Foi um dos nossos guardas que eram
piores que os outros114! Mataram muitos! Então houve aí um, filho dum cabrão! Que
matou três” (repete que, no local onde seu irmão tombou, mataram três homens mas que
muitos morreram afogados). O cabrão ainda deu um tiro num homem de Moreanes.
Apanhavam a gente e ainda davam porrada! Alguns iam para a cadeia, estavam lá
meses, em Beja. Eu fui também. A Guarda levou-nos à frente dos cavalos até à
Mina…Fui para a tropa…fui para o pelotão desse sargento que nos prendeu...ficou mê
amigo” .
113
“deram ameseio”- denunciaram-nos à Guarda Fiscal. Os ameseantes ou amesantes era o termo
usado nestas paragens alentejanas do Baixo Guadiana, para definir os informadores ao serviço das
autoridades.
114
“outros” – os carabineiros espanhóis.
91
A confirmar a visceral relação de ódio aos agentes da Guarda Fiscal, o Sr.
Raposo dá o exemplo de como em tempos da Guerra Civil, a nossa força de segurança
“apanhavam os espanhóis (que fugiam da Guerra Civil) e levavam-nos para Sanlúcar e à
noite os guardas espanhóis descarregavam as balas e matavam-nos”.
Em fecho de entrevista, revela as mazelas que os contrabandistas carregaram até
ao fim dos seus dias pelas duríssimas condições que a sua actividade lhes impunha e
termina afirmando “ a gente era novo, mas estamos pagando agora. Então tem morrido
muitos por causa disso, apanharam reumático”.
Nem um laivo da “vaidade” e romantismo “de valentia”, expresso no relato do
Sr. Ildefonso Martins e nem um louvor a uma mínima virtude. O mundo do contrabando
era também o mundo da deslealdade, dos informadores, do “salve-se quem puder” e de
duríssimas limitações para aqueles que tantas agruras passavam, pagando um alto preço
pelo mísero sustento, seu e de suas famílias.
Da parte mais frágil de um Portugal profundo e de cariz patriarcal, as mulheres
eram também e essencialmente sujeitas às mais duras sevicias e ao desdobramento de
actividades, não só como amas de casa que tudo faziam no seu espaço doméstico e
ainda eram obrigadas pelas circunstâncias ao duro ofício do contrabando, carregando
pesadas cargas e sujeitas a mil perigos e com a agravante de que à restrição de penas de
prisão para contrabandistas femininas, correspondia um agravamento incomportável do
valor pecuniário das multas aplicadas. Das histórias da já falecida115 anciã Emília da
Conceição, conhecida popularmente como Emília Carrasco, rezam as crónicas que a
“sua vida foi uma lenda”.(…)de mil tarefas, de cozer o pão e atravessar ribeiras com
115
À data da entrevista, em 2004 e com 97 anos, onde já surda e incapaz de falar, foi louvada pela sua
vizinha Isabel Batista – filha da companheira contrabandista de Emilia, Maria Luísa - que deu o exemplo
de coragem desta mulher e por Miguel Bento que a classificou como “uma grande contrabandista”,
sendo comovente a exaltação a esta senhora da qual vizinhos afirmam que teve “uma vida lendária”
92
cargas” que com a sua “companheira de oficio” Maria Luísa, tantas vezes atravessou a
fronteira sem certezas e deixando a família e a pequena filha, então, Isabel Batista que
empresta hoje a memória e que diz “ elas iam em grupos, E a gente, pequenas, e depois
a minha mãe não chegava e a gente andava sempre espreitando, aflitas.”
Já a Dona Bárbara Luciana, de Montes Altos, refere que “ (…)os guardas
fechavam os olhinhos às mulheres. A gente abalava daqui, tinha que escolher as horas
que pudesse escapar dos guardas. Se os guardas iam para aquele lado, a gente ia para
este lado… Levava dois, três quilos de café. Nas ribeiras levávamos às costas e à
cabeça. Era uma vida muito triste!”. Em jeito de conclusão afirma que “ eles (os
guardas) respeitavam a gente, não tratavam as pessoas mal, apanhavam as coisas (…)
Tinham que fazer também a vida deles!”.
José Manuel Medeiros, de Bens, confirmando a ideia de sacrifício e de extremas
dificuldades sofridas pelas muitas mulheres, quer portuguesas quer espanholas, que se
dedicaram ao “oficio” de contrabandista, ilustra de forma dramática as formas que a
sobrevivência assumia, deixando um “ (…)elas (contrabandistas espanholas) vinham
aqui descalças, coitadas”.
Sobre o contrabando e as suas raízes, desde os primeiros tempos da Mina de São
Domingos e da sevícias por parte das forças de ordem vivida na própria pele, tanto das
autoridades portuguesas – as oficiais e a policia privada da Mina de São Domingos-,
quanto espanholas, dois contrabandistas da Corte do Gafo de Baixo, o Sr. Eurico Mestre
e o Sr. Francisco Constantino Pereira deixam seus testemunhos.
O Sr. Eurico, ilustra no seu relato a tipologia de contrabando, no séc. XIX e
ínicio do séc. XX, fazendo alusão aos seus bisavós que “(…) levavam para lá gado.
Primeiro era de cabras, iam para lá com gado!. Mais tarde levavam grão, farinha,
93
açucar, sabão, arroz, corda.(…) E de lá traziam sedas, bombazinas, enxadas, cravos para
as bestas, sacos de chumbo”.
O relato do Sr. Eurico, reforça a natureza brutal da intervenção das autoridades
dando a conhecer um particular modo de actuação dos carabineros espanhóis. “os
carabineiros chegavam a cheirar as costas dos portugueses: Cheiras a café! Onde está a
carga?” E afirma peremptoriamente “Eram muito brutos!”.
Enfatiza ainda à situação deplorável dos refugiados espanhóis da Guerra Civil no
país vizinho, revelando que “ às vezes vinham para aqui as espanholas, fugidas da
guerra, cansadinhas, cheias de piolhos, comiam saramagos amargos”, não sendo
igualmente “famosa” a vida das pessoas no nosso país, afirmando que na Corte Gafo, “a
gente aqui ficávamos comendo farelos!” e do recurso a frascos de sangue de cavalo para
suprir a fome que grassava, nesse difíceis tempos.
O Sr. Francisco Constantino Pereira também da Corte Gafo, é exemplo do
contrabandista de “carreira curta” em virtude do infortúnio e das agruras passadas. Já
sendo “velho” quando se iniciou na actividade “devia ter aí 27-28 anos”, conta como
abruptamente a carreira de contrabandista chegou ao fim. “Aquilo estava uma patrulha,
alguns sete ou oito lá no rio…Malagão. Eram seis guardas, todos em círculo, até por
acaso, quando íamos a baixar para o Malagão eu vi a lanterna e disse ao meu camarada
para não avançarmos, porque à frente quando demos por isso, estávamos todos metidos
no circulo deles. Dei uma porrada numa pedra da ribeira que ainda hoje me doí. Fui com
os carabineiros, estive ali…na Póvoa116…estive quatro dias preso numa casa…Depois
fomos para Huelva. Tive lá preso 27 dias. De lá então viemos para Portugal. Viemos ali
pela polícia de Vila Real de Santo António. E no outro dia fomos lá ao tribunal, depois
116
“Póvoa” - termo para definir Puebla de Gúzman, onde se encontrava a comandância da Guardia Civil.
94
vieram com a gente até Mértola entregar a tribunal. Depois daí nunca mais fui ao
contrabando.”.
Do outro lado da fronteira, a crueza dos relatos não se diferencia quanto às
dificuldades sofridas. Como traços comuns, as motivações que impeliam ao
contrabando (“la necesidad que habia era muchísima…mucha hambre”), a Guarda
Fiscal portuguesa entendida como muito mais benevolente que os Carabineros e o
louvor depois de tantos anos à solidariedade dos habitantes raianos portugueses, que
mesmo sujeitos à miséria e a todas as dificuldades foram inexcedíveis para os vizinhos
que sofriam as agruras da guerra fratricida de 1936-39.
O “solitário” Don Bartolomé117, da localidade de Paymogo na Sierra de Huelva,
começa o seu relato por ilustrar a natureza familiar da actividade “De pequeño iba com
mi abuelo(…)mi padre murió y me dedique al contrabando, contrabando de café, de
muchas cosas…llevaba artículos de España para Portugal, una carga de aqui para allá y
de allá para acá”. Quanto à natureza das mercadorias transaccionadas, Don Bartolomé
indica “pana(tecido)…coñac…de todas las marcas…” e dá ainda indicações sobre a
realidade cambial desses tempos “la peseta estaba a cuatro tostones”, o que facilitava
enormemente o comércio e se traduzia no lucro vital à subsistência, para os
contrabandistas do país vizinho. E, ainda, da singularidade dos produtos que tinham
procura em Portugal, casos dos “ sombreros de (…) torero, zapatos, pañuelos de todas
las calidades, ropas para mujeres, todos los perfumes…”Montenegro”, “Tabú” y
“Madera de Oriente”. Conta igualmente a realidade da miséria, aludindo que
“trabajando aqui (em Espanha) se ganaba 12 pesetas y un pan vália dieciseis.”.
Descrevendo as rotinas conta que passava a fronteira no Guadiana, recorrendo a uma
117
MAÇARICO, Luis Filipe; Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, Santana de Cambas, 2005
pp.58-59
95
barca que existia en Los Molinos (perto de Sanlúcar de Guadiana) e que chegava a ir
fazer entregas a Beja, onde chegou a estar preso. De volta, trazia o valorizadíssimo café
português proveniente de Angola, onde “costaba setenta y tal pesetas y de alta calidad”,
pelo que era um produto que ocupava o topo de preferências nos esquemas de
contrabando, tantos dos contrabandistas do nosso país, quer dos do país vizinho.
Rafael Maestre de Aroche118, localidade bem adentrada na região da Sierra de
Huelva, mas que a miúde usavam o caminho sul e a “rota do Chança” para a prática do
contrabando, revela no seu relato uma das mais comoventes histórias de heroísmo e
camaradagem de todas as recolhidas nesta investigação. A heróica resistência e lealdade
até à morte do seu “compañero” Vidal, que teve o infortúnio de ser detido pelos
carabineros nos campos de Monteblanco, com uma “carga” de café, é uma exaltação à
grandeza do espirito humano. Recorda com avassaladora emoção, que o levam às
lágrimas depois de tantos anos volvidos, que "había una enorme luna llena, escuchamos
el alto de los guardias y yo pude correr, Vidal fue encarcelado y recibió palizas para que
revelará mi nombre, pero siempre se mantuvo en silencio diciendo que no me conocía,
me salvó, pues querían ir a por mi, él moriría en la cárcel".
Famosas pelas epopeias levadas a cabo, as contrabandistas espanholas, em
coragem e sofrimento, ombreavam de igual para igual com os homens de ambos países.
Deve ser referido que a politica de represálias às contrabandistas espanholas por parte
dos agentes da Guardia Civil e Carabineros, era incomensuravelmente mais dura que a
praticada pelos agentes da Guarda Fiscal, estando prevista a prisão119. Muitas destas
mulheres que iniciavam-se no contrabando impelidas pelo facto de serem sustento único
118
Relato presente na edição online do jornal Huelva Información , no artigo Contrabandistas por la
Sierra, consultado em 28 de Março de 2013 e disponível em:
http://www.huelvainformacion.es/article/ocio/20279/contrabandistas/por/la/sierra.html
119
Em Portugal, as mulheres contrabandistas em caso de detenção “apenas” se sujeitavam a multas,
que pecuniariamente eram bastante gravosas.
96
da família, em virtude da prisão e morte de muitos dos seus maridos, nos períodos da
Guerra Civil e no pós-guerra. Rodriguéz Guillén no seu artigo Contrabando na Serra de
Aroche120, refere a recorrência de abusos de todo o tipo, a que as mulheres se
encontravam sujeitas121 e revela um dos retratos mais cruéis das contingências
agravadas a que as mulheres estavam sujeitas, com a referência à necessidade de, por
vezes, transportarem para o contrabando filhos de tenra idade, por não terem com quem
ficar .
A anciã Doña Josefa122, também conhecida por Pepa, residente em El Granado,
representa a face destemida de tantas outras mulheres contrabandistas do país vizinho
que além do sustentáculo dos seus lares, eram bravas mulheres que não regateavam
esforços em busca do sustento das suas famílias. No seu relato, descreve como as
jornadas de contrabando só até Portugal, levavam “dos horas de camino, mirando para
todos los lados. Unas veces salíamos muy bien, otras veces con cosa poca. No había
problema con la Guardia”. As condições da Ribeira do Chança eram determinantes para
a prática da actividade para as mulheres, revelando que quando a ribeira estava cheia
“No salia” e que por vezes aconteceu que, no regresso, encontrando-se a ribeira
impraticável, se albergava em Santana de Cambas na casa de uma família portuguesa
onde ficava “en família”. A amiga portuguesa Maria Júlia completa a estória de Doña
Pepa, revelando que esta depois de anos de contrabando e ganhando com o açúcar e café
que transportou ao longo de anos e com a venda dos “carrinhos de linha que cosia
120
GUILLÉN, Antonio Rodriguez; “Contrabando na Serra de Aroche” in Cadernos do Contrabando do
Museu de Santana de Cambas, vol. I, p.42
121
Rodriguéz Guillén, refere a natureza abusiva da chantagem às mulheres contrabandistas, praticada
quer por agentes portugueses, quer pelos carabineros. Refere que a troca de favores sexuais era uma
prática imposta às mulheres, de modo a evitar a prisão e o consequente agravamento da miséria das
suas familías. Esta ideia não obtem qualquer confirmação, nem é mencionada remotamente nas
dezenas de relatos, tanto de homens ou mulheres, pelo que esta tese defendida é altamente discutível e
impossível de confirmar, seja pelo número reduzido de intervenientes que chegaram aos dias de hoje,
ou por força da vergonha e constrangimento que impediram a franqueza dos relatos.
122
MAÇARICO, Luis Filipe, Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, p.63
97
debaixo da roupa”, acumulou o suficiente para iniciar o seu próprio próspero negócio na
localidade espanhola, tendo uma das “casas”, melhor apetrechadas da região e que
fornecia os contrabandista, porque “ela nasceu para ser comerciante”. Um dos raros
casos de como, o contrabandista (e uma mulher!) construiu a vida, ascendendo a pulso
nessa cruel estratificação profissional, de solitária a comerciante.
98
2.3 Os “comerciantes”
Deve entender-se também a figura do comerciante como elemento fundamental
do ciclo e estrutura do contrabando. Além do referido abastecedor e patrão do Sr.
Ildefonso Martins, o Sr. António Feio, de Mértola, ou dos senhores Vargas ou Capa,
donos em Vila Real de Santo António de estabelecimentos que abasteciam amplamente
de bens, um grande número de contrabandistas do Baixo Guadiana, assume, ainda,
importância transcendente do ponto de vista humano, casos particulares como o do já
falecido Sr. João Carrasco, comerciante de mercearia e bebidas durante quase cinco
décadas, em Santana de Cambas, que, pelo exemplo do elevado carácter e humanismo
revelados para com os refugiados espanhóis durante a Guerra Civil no país vizinho, tem
uma merecidíssima placa evocativa de homenagem nesta localidade, conferida pela
associação republicana do país vizinho Foro por la Memoria de Huelva ou da própria
Junta de Andaluzia pela ajuda prestada aos refugiados, não obstante, os enormes riscos
que decidiu assumir, tendo sempre os valores da justiça e defesa da vida humana como
principal bandeira.
Em entrevista dada em 2003, as memórias do já então centenário Sr. Carrasco (e
já falecido entretanto) vão ao encontro do que os relatos dos intervenientes até agora
mencionados, repetem à exaustão. Começa por referir sobre a vida na região que “era
uma vida de miséria quase total. Aqui era a agricultura e era a mina de São Domingos
que ocupava toda esta gente, que mourejava aí ao rigor do campo. E o contrabando –
afinal de contas era umas das bases em que aqui se vivia. A região sempre foi agreste e
muito desprotegida. Era uma zona muito habitada. Os chefes de família que
trabalhavam no campo ou na mina viviam de um salário exíguo, que mal lhes dava para
99
comer. Viviam com dificuldades, pois.” E refere em sua defesa e da sua actividade, para
justificar as opções tomadas em favor das pessoas que “muitas vezes quem suportava
toda esta crise era o pequeno comércio.” E, com veemência, reforça a ideia que ainda
tantos lhe reconhecem, enquanto humanista e homem que abraçou ao longo de toda a
vida, valores socialistas indisputáveis: “(…) além de toda a miséria que grassava aqui
com abundância, eu sempre fui um defensor dos que viviam mal e dos que viviam na
miséria, por conseguinte, dispensei-lhes todo o meu auxílio, aquele que pude”, e dando
o exemplo do preço que pagou, sendo “(…) multado algumas sete vezes pela Guarda
Republicana…e isto porquê? Porque favorecia os mais desfavorecidos, porque estava
sempre ao lado deles, defendia-os. E para mim era uma causa que eu julgava de todo
defender para minimizar a miséria que grassava aqui na região”. Resgatando a memória
da Guerra Civil e procurando que a memória seja sempre o legado para que nunca sejam
esquecidos os tempos que não se devem repetir, afirmou “ os alentejanos não conhecem
o que se passou na fronteira (…)Foi uma miséria constante e os que vinham de lá
famintos aqui à procura de uma migalha de pão e eu aqui recolhi muitos foragidos de
além, que eram contra o Francisco Franco. Havia aqui um palheiro, uma habitaçãozinha
qualquer, que era da minha sogra, e eu arranjei-lhes ali cama e tudo e dava-lhes de
comer e muitas vezes ali o servia”. Assumindo sem reservas a fraternidade
internacionalista, colocou-se tantas vezes em risco, a sua filha Maria Júlia Raposo, num
relato também de 2003, recorda com orgulho o enorme carácter do seu pai contando o
seguinte episódio “ um guarda-fiscal que era uma pessoa muito bem formada, muitas
vezes eu ouvi ele dizer para o meu pai: João, tu qualquer dia és escudilhado, porque os
gajos vão-te à biqueira e lixam-te a ti e vão sofrer os teus. E o meu pai defendia-se:
Então mas as pessoas vêm e eu não vou negar-lhes abrigo, não vou fechar-lhes a porta,
100
não vou mandá-los para trás. Porque eu, se vivesse na situação deles, também gostava
que me acolhessem…”.
No polo oposto, mas na mesma actividade de comerciante se encontra, o famoso
“Marrocos” de nome Manuel Afonso Palma, que de forma menos altruísta, se tornou
lendário por ser o maior comerciante e organizador de esquemas de contrabando na
região da Mina de São Domingos123.
O irmão deste, de nome José Afonso Palma deixa-nos o relato de como, o
comerciante “Marrocos” pagava também a maioria de vezes para que a prática
transgressora pudesse vigorar sem dissabores. A necessidade de corrupção das
autoridades é constante no relato, destacando-se uma prática inusitada conhecida como
despacho e inclusive institucionalizada pelos comandos superiores da Guarda Fiscal,
nos anos 30, onde se davam internamente instruções, aos praças da mesma, para
acompanhar os contrabandistas à fronteira de modo a facilitar a circulação dos
mesmos124. Refere o Sr. José Palma, que o pior era do outro lado da fronteira “ (…)pois
via-me ali negro com os carabineiros(…)Ia-lhe a vender a eles (…) às vezes ainda
despachava uns quilinhos, uma coisa qualquer para eles ficarem contentes senão ainda
era pior(…)porque depois o pessoal tinha falta de se ir governar além…e era pior.”. Mas
em jeito de fecho, refere a propósito desta cultura de corrupção e favores que “eu tinha
muita confiança com eles, eles comigo tinha sempre muita confiança, sempre. Eu ia
além (Espanha) de qualquer forma, viam-me…nada, nada, a mim tampouco125”.
123
MAÇARICO, Luis Filipe, Memoria do Contrabando em Santana de Cambas, 2005, pp.41-45. Os relatos
do Sr. António Pinheiro e o Sr. Francisco Neto, (pp.41-45), referem o “Marrocos” (assim chamado pelo
sítio próximo à Mina de São Domingos de onde era originário) como “o rei da zona” e afirmando-se os
referidos contrabandistas como “trabalhadores” por conta do comerciante.
124
Idem, ibidem, p.69
125
Idem, ibidem, p.41
101
Nas dimensões do contrabando houve, pois, comerciantes que entraram para a
posteridade pelo que lucraram com as perdas, mas com o ganho das vidas salvas e pelo
sofrimento de tantos, minorado, ou outros que ganharam ainda a notoriedade não só
pela acumulação de lucro, mas pelo número de caminheiros e freteiros a seu cargo. João
Carrasco ou o “Marrocos”, duas faces da mesma moeda. Pelo meio a miséria atroz que
impelia ao contrabando, os indivíduos íntegros no oficio de contrabandistas ou a vileza
dos amesados, um limbo permanente entre brutalidade e corrupção nas forças de ordem,
em ambos os lados da fronteira. “Era uma vida muito triste!”
102
2.4 As forças de segurança – os “Guardas” e os “Carabineros”.
Como o desenvolvimento do trabalho tem vindo a revelar, a Guarda Fiscal e os
carabineiros espanhóis, representavam a face oposta da actividade do contrabando, sem
contudo muitas vezes ser clara ou linear, a análise do papel e participação dos agentes.
Dos “sanguinários” que ansiavam pelo “honroso” acto para a folha de serviço, que
sendo um “castigo” fosse “salvo-conduto” para os desejos de reunião familiar do agente
deslocado da sua área de proveniência, como é expresso no relato do Sr. António
Pinheiro126, de Moreanes que conta, a terrível história como um dos agentes da Guarda
Fiscal destacado em Santana de Cambas, originário do Algarve, em concreto de Salir,
“que estava lá todos os dias com a gente nos copos. Todos os dias, todos” e que repetia
“eu tenho que matar um homem para ir daqui embora”. O Sr. Pinheiro “pensava que era
brincadeira”, até que a dura realidade dos factos o fez ver que o dito agente da GF,
falava demasiado a sério. Diz o Sr. Pinheiro sobre a natureza do dito agente “ matou o
João Raposo porque ele quis. Para aí uns três tiros, para me matar também a mim.
Quando a gente ia, passa perto da gente…deu um tiro ao camarada, matou-o logo!”. O
Sr. Pinheiro reitera que estes “comportamentos” eram de maior propensão nos agentes
vindos “de fora”, pois à “morte de um homem” correspondia esse “castigo”, que os
pudesse reunir com a mulher e filhos, que se encontravam longe.
Ao longo desta pesquisa, em concreto neste capítulo, onde se consubstanciam os
relatos dos intervenientes que apoiam a realidade existente à altura, temos tido a
oportunidade de verificar as principais diferenças entre a Guarda Fiscal e o Cuerpo de
Carabineros. Na série de artigos do início dos anos 50 (em concreto de 1952), que a
126
MAÇARICO, Luis Filipe ; Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, p.42
103
jornalista Manuela de Azevedo, no extinto Diário de Lisboa, dedicou à fronteira do
Guadiana com o titulo “Altos serros abaixai-vos, Deixai ver o Guadiana”, são apontados
alguns factores que eram determinantes para a compreensão revelada, em regra geral,
pela nossa força de segurança fronteiriça para a miséria e contingência de vida dos
contrabandistas, por oposição, à ferocidade e brutalidade dos Carabineros. As
contingências politicas e sociais resultantes do pós-Guerra Civil, da fronteira como
espaço de fuga de simpatizantes da República espanhola e populações, dos massacres e
ajustes de contas perpetrados pelos Ultras, corpos militares e paramilitares do regime
franquista, deram o armamento e poderes ampliados enquanto força repressiva aos
carabineros. A Guarda Fiscal, tendo uma limitação imposta pelos comandos superiores
e pela política de economia do Estado, que comprometia os agentes no pagamento de
armamento usado e no completo detalhe das operações realizadas, por força, peso
burocrático e económico da manutenção do armamento e até dos disparos, era
claramente mais equilibrada na hora de actuar. Outra das razões para a cumplicidade
entre guardas e contrabandistas no nosso país, prendia-se com uma curiosa relação que
se estabelecia, em regra, nas tabernas e num conhecimento mútuo, que permitia de igual
modo estabelecer entendimentos quanto a despachos127, que permitiam rendimentos
adicionais aos agentes que, igualmente, viviam com grandes dificuldades por força do
exíguo salário auferido.
A natureza de uns e outros foi inclusive determinante para a evidente fixação em
definitivo dos agentes e da sua vida familiar, nas áreas de fronteira. Se muitos dos
nossos agentes continuaram pela região e aí se radicaram, constituindo e criando as suas
famílias junto às zonas fronteiriças, os carabineros espanhóis que prestaram serviço no
127
Mercadorias ou valores monetários, pagos em “esquema de corrupção” pelos contrabandistas aos
agentes da Guarda, para garantir segurança e liberdade, nos transportes de cargas.
104
Baixo Guadiana, em regra, após o seu período de comissão ou até de aposentadoria, não
continuaram na região e permaneceram lembrados, apenas, pelos piores motivos.
Outro dos particulares destaques desta complexa relação, entre agentes da
Guarda Fiscal e os contrabandistas, prendia-se com a relação familiar existente entre
ambos. Não são incomuns os casos de guardas que tinham irmãos ou familiares
envolvidos no contrabando e em inúmeras ocasiões, contrabandistas na juventude foram
agentes da Guarda Fiscal, em idade adulta. Manuel Bernardo Pereira128, antigo agente
da Guarda Fiscal, natural da Mina de São Domingos, onde residia à altura da entrevista
em 2004, é exemplo desta relação familiar sui generis. Afirma sem renegar os seus
familiares, que “o meu pai foi contrabandista e foi mineiro. O meu irmão foi
contrabandista…”. Após esta nota descreve, então, as actividades e composição da força
à qual pertencia, e no concreto para a zona de Mértola, referindo que quanto à origem
dos agentes “ havia mais nortenhos. Mas depois já em 1966 a coisa estava mais ou
menos equilibrada. Eu nasci na década de 40. Lembro-me perfeitamente das quadrilhas.
Tive lá o meu irmão. Havia dos comandos, directrizes para apanhar cargas. Tenho o
orgulho de dizer que nunca apanhei cargas de contrabando. Figuro numa apreensão que
nunca fiz. Eu estava de serviço no cruzamento dos Sapos129. E então vi passar uns, e
apanharam depois uma égua e dois machos. Veio-se a saber que eram da Corte Sines130.
Depois teve que se levantar auto de notícia. Como eu estava de serviço, eu tive que
figurar na apreensão”. A relação demasiado próxima com os contrabandistas valeu-lhe
dissabores com os comandos, dando como exemplo: “eu estava de serviço no Pomarão
e às vezes tinha dissabores com os comandos por me dar bem com os contrabandistas.
Entre os contrabandistas havia rivalidades. Por vezes havia amesados. Numa altura há
128
MAÇARICO, Luis Filipe; Memorias do Contrabando em Santana de Cambas, p.71
Sapos –localidade na freguesia de Santana de Cambas, e próxima à Mina de São Domingos.
130
Outra localidade situada nas proximidades à Mina de São Domingos
129
105
um grupo que passa no Poço das Mós e saltam-lhe os guardas…o ti Zé Afonso131 viu-se
tão apertado que disse «Eh compadre Pereira sou eu!». Os guardas pensaram “Será que
o Pereira estará feito com eles?”
Em geral, numa análise mais ampla sobre os diversos e mais comuns tipos de
actuação dos agentes da Guarda Fiscal, patentes nos relatos orais da obra Memórias do
Contrabando em Santana de Cambas, destacam-se os poucos que preferiam não actuar
e que ficavam sujeitos à alçada disciplinar com despromoções, transferências e
punições. Aqueles que pareciam ter gozo na retenção de cargas e de como este tipo de
intervenção, os poderia compensar. Outros que se destacavam pela especial apetência,
em prender contrabandistas. E o último (e já mencionado) tipo, o dos agentes
“assassinos” em geral, homens deslocados dos seus locais de origem, sem
conhecimentos ou comprometimentos com envolvidos no contrabando e que matavam
por lhes facilitar “o regresso a casa”.
Outra vida dentro da Guarda Fiscal, foi a do Sr. Mário Batista132 de 80 anos e
que prestou serviço em Alcoutim. Entrou “bem novo”, pois “era isso ou a ir para a
lavoura, que naquela altura era muito difícil”. Conta como o “salário era curto, mas
todos os meses picava o ponto” e, mais tarde, teve direito à almejada reforma. Ao
serviço durante mais de 30 anos, quase sempre na zona de Alcoutim tendo apenas dois
breves interregnos, quando inicialmente prestou serviço, em Faro e depois em Lagos,
tendo também sido nesta localidade, onde primeiramente foi destacado para a função de
tripulante de lancha, e a posteriori, tendo sido destacado para patrão da lancha da
Guarda Fiscal, que controlava as actividades no Guadiana, da foz até ao Pomarão.
Recorda os difíceis tempos da Guerra Civil espanhola e do Estado Novo, para referir
131
132
Do qual já abordámos o relato no capítulo dos “Freteiros”.
In Jornal do Baixo Guadiana, nº151, Dezembro de 2012, p.13
106
“que as fronteiras estavam cerradas a ferro e fogo e nesse tempo era muito difícil tanto
para os civis como para os militares.”.
O Sr. Mário Batista, refere que a função que principalmente lhes estava
destacada, desde a fundação da Guarda Fiscal em 1885 (ainda enquanto corporação
paramilitar), era a do controlo fronteiriço e fundamentalmente o combate à fraude e
evasão fiscal que o contrabando representava.
Fazendo alusão às tipologias de contrabando que tanto já aqui foram descritas,
faz uso de um assinalável sentido de humor para justificar que ao longo de 30 anos
jamais tenha feito uma apreensão e que não tenha detectado em flagrante, qualquer
contrabando ou actividade de contrabandistas. Refere que “a lancha se calhar fazia
muito barulho e eles escondiam-se, nas margens do rio e dos ribeiros e safavam-se à
apreensão.”.
De uma vida de controlo e combate ao contrabando, destaca-se uma ideia em
que “não considerava um contrabandista um inimigo”, revelando que conhecia a grande
maioria tanto os dos montes, quanto os da vila (Alcoutim)” e relembra a engenhosidade
dos contrabandistas, que inclusive chegavam a recorrer a crianças para controlar os
movimentos da guarda e, em concreto, para espiar as conversas entre agentes junto aos
postos. Na lógica de uma relação de respeito mútuo existente, revela a compreensão
para aqueles que desenvolveram actividade enquanto contrabandistas e que contribuiu,
sem descurar as suas próprias responsabilidades, para que ainda hoje os tenha como
amigos, fica bem patente no seu depoimento onde afirma que “eles tinham que
sobreviver e sempre fui amigo de todos(…)cada um tinha a sua missão eu a minha, eles
a deles”.
107
Quanto aos carabineros, quase nada restou da memória própria. Presos na
encruzilhada histórica da sua brutalidade, do papel desempenhado no Franquismo e do
carácter desumano e atroz das suas intervenções. Talvez a vergonha ou o peso na
consciência sejam determinantes para a quase inexistência de fontes onde os mesmos,
em discurso directo, falem sobre esses tempos. Sabemos ao certo e pelos inúmeros
relatos de contrabandistas e população da raia do Baixo Guadiana, que, em regra,
praticamente nenhum dos agentes desta força de ordem, se radicou na região, ficando a
sombra da sua presença, marcada, por exemplo, pelos calvários junto ao Chança que
marcam lugares de tragédia, ou pelo relato do Sr. Ildefonso Martins e a estória do
infortunado António Anica. A memória dos carabineros tanto no nosso país, quanto em
Espanha é, essencialmente, a memória das balas que fizeram tombar tantos infelizes,
que pelo contrabando e misera subsistência, ou por motivos políticos, pagaram o mais
alto preço.
108
3. A estrutura de vigilância das forças de ordem – os Postos do
Baixo Guadiana.
O corpo da Guarda Fiscal, desde a sua criação oficial com o decreto nº4 de 17 de
Setembro de 1885, na sequência da reorganização resultante do relatório da Reforma
Aduaneira desse mesmo ano, em substituição da anteriormente existente Guarda de
Alfândegas, constituiu-se como força responsável em todo o país pela fiscalização
visando o controlo da actividade mercantil, logicamente do contrabando, da devida
arrecadação das receitas públicas a esta associados, quer nos espaços interiores do país,
mas essencialmente no espaço de fronteiras, quer as costas de mar, quer as fronteiras
secas e fluviais. Com a estruturação de cariz militar deste corpo, efectivada no ano
seguinte, deu-se a criação de quatro batalhões nacionais – Lisboa, Porto, Coimbra e
Évora- e a oficialização da Guarda Fiscal, como força de ordem de estrutura militar,
possuindo nas suas fileiras mais de 4.200 homens na força terrestre (chegando durante o
século XX aos 8.600 homens), além dos efectivos destacados pela Marinha Real ao
serviço da Guarda Fiscal, para o serviço marítimo de vigilância de costas, feito pelas
canhoneiras “Tejo”, “Faro”, “Guadiana” e “Açor”.
A Guarda Fiscal relativamente ao serviço terrestre (que nos interessa em particular, pois
era a categoria de serviço em que os agentes responsáveis pelo controlo da fronteira do
Baixo Guadiana se enquadravam), distribuía os efectivos, descentralizando a partir dos
locais de Batalhão Nacional fazendo parte (no que respeita ao Baixo Guadiana) do
Batalhão nº 2 sediado em Évora, depois em Companhias segundo os distritos (Faro ou
Beja), numa escala mais local em Secções, onde se procedia à coordenação de
actividades e efectivos de uma região específica, açabarcando a actividade de diversos
109
postos (Vila Real de Santo António, Alcoutim e Mina de São Domingos), como
estrutura de base os Postos que, de forma mais ampla, enquadravam os efectivos em
termos de desenvolvimento da actividade em função à especificidade territorial onde se
localizavam, podendo destrinçar-se depois, segundo tipologias, em postos fiscais, postos
de controlo de passageiros, postos com missão de serviço especial, postos de serviço
marítimo, ou ainda, a delegação de efectivos em outros órgãos que necessitassem da
presença de elementos da Guarda Fiscal.
No Baixo Guadiana, além das secções responsáveis pela coordenação, encontravam-se a
quase totalidade de tipologia de postos, acima discriminados. A construção dos postos,
na região, remonta ao período da criação desta força de ordem após 1885 e estender-seà por quase uma década. A sua distribuição foi assim efectivada: como dependentes da
Mina de São Domingos - Corte da Azinha, Corte do Pinto, Santana de Cambas,
Malpique e Pomarão- enquanto postos fiscais; sob a jurisdição de Alcoutim e ao longo
do Guadiana desde Mértola, localizavam-se os postos de Mértola, Vaqueira, Bombeira,
Barranco dos Lombardos, Pinheirinho, Penha de Águia, Barranco do Carrascal,
Barranco da Ameixoeira, Porto das Mós, Rocha Vermelha, Posto da Mesquita,
Canavial, Barranco do Álamo, Vascão, Enxoval, Premedeiros, Lourinhã, Alcoutim,
Alcaçarinho, Abrigo 2º, Grandacinha, Pontal, Laranjeiras, Guerreiros, Barranco dos
Pereiras e Foz do Odeleite. Para jusante, Vila Real de Santo António controlava Freixo,
Amoreira, Vinharias, Almada do Ouro, Abrigo 1º, Azinhal, Ponta do Cinturão, Corte e
Junqueira133.
Destaca-se ainda nestes primeiros anos da Guarda Fiscal, as funções desempenhadas na
vigilância do rio entre Mértola e Vila Real de Santo António, pela lancha a vapor
Guadiana, como “parte especial de esquadrilha” na vigilância costeira ao sotavento
133
In Boletim da Guarda Fiscal, 1894, pp. 457-458
110
algarvio134. Após a Guerra Civil espanhola e, durante o segundo e terceiro quartel do
século passado, a lancha Marezia pilotada pelo sr. Mário Batista garantiu estas
importantes funções no espaço fluvial.
Por oposição a este grande número de postos no nosso país, a estrutura de vigilância dos
carabineiros diferenciava-se pelo reduzido número de postos, todavia os existentes
albergavam um grande número de efectivos. Neste espaço do Baixo Guadiana até ao
Pomarão, onde o Chança começa a definir a fronteira entre países, encontravam-se tão
somente três casas cuartel , a de Cañaveral, a de Puerto de la Laja e a de Cumbres de
Sán Blas. Este sistema baseava-se na residência dos efectivos e suas famílias em amplos
casarões, onde se encontrava a guarnição e havendo inclusive blocos anexos também de
grandes dimensões onde se localizavam cavalariças, oficinas e paióis.
No relativo à análise da arquitectura dos postos situados ao longo do Baixo Guadiana,
predominantemente nos concelhos de Alcoutim e Castro Marim (com nuances evidentes
em Vila Real de Santo António, ou nos postos inseridos já na circunscrição da área da
Mina de São Domingos), tendo áreas superficiais diversas dependentes da tipologia de
posto ou da importância dos mesmos, um traço comum os vincula, que é a construção
em típica arquitectura rural que se enquadra nas tipologias do Património Rural
construído no Baixo Guadiana135. Em regra, junto ao Guadiana, os postos da Guarda
Fiscal localizavam-se na proximidade dos aglomerados, ou mesmo em posição isolada
em relação aos mesmos, correspondendo sempre um projecto tipo, com pequenas
variantes, que se organizavam em dois edifícios próximos: o edifício principal de duas
águas e a cozinha dissociada com uma água apenas. O caso particular do Posto do
Pontal, apresenta ainda uma tipologia que denuncia uma evolução desta tipologia
134
135
In Boletim da Guarda Fiscal ,1891, p.48.
In Rural Med – Património Rural Construido do Baixo Guadiana, 2004, p.205.
111
inicial, era composto por um edifício único, com a cozinha integrada e um corredor
central, bem como um espaço exterior com cavalariças, pois os agentes que cumpriam
serviço eram em maior número e, muitas vezes, as missões de vigilância requeriam o
uso de montadas, pelas longas distâncias percorridas.
A solução arquitectónica dos postos do Guadiana, primou pela simplicidade rústica e
pela concordância com a envolvente rural e enquadramento paisagístico da região,
privilegiou sobretudo o utilitarismo por oposição ao conforto (que, diga-se, mesmo nas
habitações particulares não era a prioridade, quer pelos parcos recursos das “gentes”,
quer pelos extensos agregados familiares que nesses tempos eram uma constante).
Partindo da composição padrão dos postos em termos de pessoal, que se constituía por
um comandante de posto (um graduado ou, como acontecia recorrentemente nesta
região, um cabo) e a guarnição constituída até cinco soldados em regra136. O posto no
relativo às divisões que o compunham, era formado por uma caserna onde estavam as
camas destinadas aos soldados, um gabinete e um quarto individual reservado ao
comandante de posto e ainda uma divisão destinada a ser arrecadação. A fachada do
edifício, era composta por uma porta central simples em madeira, e duas janelas
batentes simples com caixilhos de madeira formando cruz, dois vidros quadrados em
cada batente, colocados em posição paralela à mesma distância da porta para ambos
lados. As portas e janelas eram contornadas por emolduramentos em relevo, que eram
pintados com a cor verde regulamentar, contrastando com o branco caiado das paredes.
Em alguns casos, encontrava-se em relevo o logo da GF e o mastro da bandeira
encontrava-se inserido superiormente em relação ao eixo de simetria da fachada, em
posição inclinada e obliqua à face da parede.
136
In Rural Med – Património Rural Construido do Baixo Guadiana, ed. Odiana, 2004, p.205. - relatos
sobre os postos da Guarda Fiscal e sobre o posto das Laranjeiras de Carlos Francisco do Monte do Cerro
dos Balurcos, n.1939 e Manuel Afonso, Monção do Minho, n.1927
112
Os telhados eram os típicos telhados da região com estrutura de sustentação em vigas de
madeira e forros interiores com alinhamento em canas, preenchimento de argila e
esparto, com recurso a telha rústica para isolamento, das referidas variantes dos
edifícios que compunham o esquema tipo dos postos. No exterior, no espaço localizado
diante da fachada, pontuava um terraço, onde geralmente os integrantes do posto,
efectuavam a vigilância, tendo excelente panorâmica do rio.
É de referir que a localização dos postos, surgiu da necessidade de controlo e vigilância,
especificamente em locais onde se processavam desembarques e embarques de pessoas
e bens, e que hoje, ainda que pareça descontextualizado o local de sua inserção,
desempenharam de forma assinalável as funções para o qual foram criados.
Alguns após a cessação de actividade137 e posterior abandono, que foi acontecendo nos
anos 70 e 80 do séc.XX , foram vendidos pelo Estado a privados que os reabilitaram
como casas de habitação – sobretudo aqueles adjacentes à rede viária. Outros
encontram-se à venda, outros, ainda, sucumbiram ao abandono e passo inexorável do
tempo, sendo ruínas que já quase não deixam entender a força do seu passado.
137
Não obstante, a extinção oficial da GF e integração de quadros na Brigada Fiscal da GNR, que viria a
consumar-se só em 1993, o fim de actividade nos postos da região do Baixo Guadiana e abandono dos
mesmos, iniciou-se em finais da década de 70 e dealbar dos 80, conjugando-se a mudança do paradigma
diplomático e económico entre Portugal e Espanha, bem como o declínio do Guadiana como via
navegável, a desertificação humana do Nordeste Algarvio e raia do Baixo Alentejo, além da obsoleta
estrutura da GF já incapaz de dar resposta aos novos “contrabandistas” integrantes de redes altamente
organizadas e lucrativas. Sobra como posto activo remanescente, na foz do Guadiana, junto ao molhe da
localidade situado no caminho da praia da cidade pombalina, o Subdestacamento de Controlo Costeiro
da BF-GNR.
113
4. O Contrabando como expressão artística de Memória e
Identidade. Legado de um passado, que se projecta no futuro.
a) O Contrabando nos genéros literários em prosa.
Este capítulo fechando esta investigação, abordará a não menos relevante faceta do
contrabando enquanto temática de expressão artística, nas mais diversas dimensões. Do
cinema aos géneros literários mais diversos, quer de cariz erudito ou popular, passando
pela estatuária inserida em mobiliário urbano que ganha relevo como ex libris de
particular importância e, ainda, enquanto elemento de musealização como condição de
defesa e salvaguarda, a partir da construção de Identidade e transmissão da Memória,
como contexto de um património imaterial que se impõe defender e que pode e deve
projectar, a cultura do contrabando enquanto mais-valia a regiões deprimidas e
desertificadas.
Inicialmente, no particular da expressão literária, existem menções em grandes
obras de clássicos da literatura romântica no nosso país. Camilo Castelo Branco nas
suas Mémórias do Cárcere (1861) relata a situação particular de um dos presos, detido
na Cadeia da Relação do Porto, que estando a cumprir pena pela falsificação de papel
selado, revela que um “ sócio tinha uma quinta, que de (há) muito servia de escala para
contrabandos desembarcados na costa”. Aliás, Camilo será prodigo ao longo da sua
obra em aludir a contrabandistas e a actividade do contrabando, como nas Aventuras de
Bazilio Fernandes Enxertado (1863), onde expressa os proveitos lucrativos da
actividade, lançando a polémica afirmação do contrabando como actividade de alta
rentabilidade e como o enriquecimento de muitas famílias do Porto, se forjou de forma
114
ilícita. Nesta obra, Camilo espelha no diálogo entre um despachante de alfândega de
nome Manuel José Borges e o merceeiro Enxertado, a forma como o primeiro “roubara
a fazenda nacional contrabandeando” e o segundo em tempos do “Cerco do Porto” em
1832, “metera 300 pipas de vinho sem pagar direitos” e “contrabandeando há 25 anos
com felicidade de burro”. Camilo criticava assim, de forma original, os esquemas de
corrupção institucionais e de modo subtil, ilustrava a participação da burguesia
portuense em esquemas de enriquecimento ilícitos.
Percursor de uma analise antropológica às “gentes” do nosso país já em pleno
séc.XX, mas sempre fazendo uso de um esplendoroso domínio estilístico na sua escrita,
Raul Brandão na sua obra de referencia Os Pescadores, relativamente a Olhão, expressa
de forma explicita a particularidade da cidade cubista e da suas gentes, afirmando que
“o grande negócio de Olhão foi sempre o contrabando”, revelando que a faina, em
mares e portos de Marrocos e com passagem de regresso por Gibraltar, era o fulcro para
a actividade ilícita, que garantia sobrevivência e até desafogo, para as agruras da vida do
mar. Descreve fazendo um louvor claro aos contrabandistas que “não é contrabandista
quem quer; é preciso ter inteligência e astúcia, arrojo, o alerta de um chefe selvagem e a
imaginação de um poeta” e refere como exemplo maior, a saga do famoso “Mendinho”,
“mestre reputado” de uma goleta que fazia a rota de Gibraltar e que, por força de um
temporal, se abrigou em Marrocos, regressando a Olhão com o navio destruído, mas
com uma profusa carga de contrabando nos seus porões “que descarregou nas barbas do
fisco compungido”. Falou ainda da natureza solidária entre filhos de Olhão, em
particular para com os contrabandistas, referindo que “toda a gente em Olhão, ricos ou
pobres, protegia os contrabandistas e entrava no negócio” e da eficaz forma de
funcionamento do contrabando, até aproveitando as particulares características
habitacionais da localidade, referindo que “nunca em terra se apreendeu uma peça de
115
fazenda. Passava-se de soteia para soteia – para o que basta estender os braços- e corria,
se fosse preciso, a vila toda, porque nessas ocasiões até inimigos rancorosos se
julgavam no dever de esconder o contrabando e todas as casas tinham uma guardadeira
ou falso entre duas paredes” 138, ao descrever o fim da sua visita a Olhão e a sua saída
por barco desta que “ a brancura imaculada dos terraços com o céu todo de ouro em
cima” o faz desejar “ter um barco para contrabando nos mercados de Gibraltar e de
Marrocos” de modo a dar azo aos seus “velhos instintos de pirata” 139.
Especificamente sobre a temática do contrabando, o romance Maria Mim de 1939,
escrito por Nuno de Montemor, pseudónimo do Padre Joaquim Augusto Álvares de
Almeida, natural de Quadrazais em plena serra da Malcata, no concelho do Sabugal,
região de contrabandistas por excelência, é um retrato de uma realidade pungente que
reflecte a violência da perseguição das autoridades aos contrabandistas e a coragem e
grande dignidade dos mesmos, perante uma atroz existência de miséria. O enredo parte
de um idílio entre um oficial do exército, que é em simultâneo artista-pintor, e uma
mulher contrabandista do povo, desse confronto social interclassista onde se acaba por
reflectir, essencialmente, a questão da subsistência como factor que impele homens e
mulheres ao contrabando, destaca-se ainda do ponto de vista estilístico, pelo uso da gíria
dos contrabandistas, numa curiosa transformação da oralidade em escrita.
A lógica do uso da gíria e da conversão da oralidade e do trejeito linguístico das
“gentes”, ocorre também numa obra de referência, que diz respeito à região em estudo
neste trabalho, que aborda as dimensões da sobrevivência em Vila Real de Santo
António e, logicamente, dos contrabandistas. A obra é Fronteiriços de António Vicente
Campinas, publicada em 1952, que é um retrato tocante e emocional, da realidade da
138
139
Cf. Raul Brandão, Os Pescadores, Lisboa, 1957, p.162-163
Ibidem,p.163
116
então industriosa localidade algarvia e dos seus pescadores, operários fabris e, claro, dos
seus contrabandistas. O enredo onde o Guadiana é o rio de vida e de morte, onde se
conjugam esperanças e a dura realidade que é lugar onde a fatalidade ou a audácia
impelem o homem comum à busca do seu sustento no contrabando e os riscos a ele
associados. A estória de Manuel Patacho, personagem incontornável do livro que morre
na sua primeira incursão na candonga140 é reveladora de como as ironias do destino e a
fatalidade se conjugam para a perdição do personagem. Pescador humilde que vive da
faina feita na sua canoa e recorrendo à arte de palangre 141, vê um temporal no rio
destruir-lhe as ferramentas de trabalho, de encontro ao cais onde se encontravam.
Revoltado com o destino, decide ir a uma taberna onde bebendo a sua desgraça e “mais
da sua conta”, se envolve num altercado com o proprietário que lhe recusa fiado e é
preso. Após ser libertado, o único caminho que lhe resta é o do contrabando e na
primeira ocasião que enceta a travessia é baleado pela Guarda e morto. Os fronteiriços
de Vila Real de Santo António, revoltam-se com a morte do seu camarada e a revolta na
manifestação de pesar é violentamente reprimida pelas autoridades, sem contudo se
apagar o fogo da mesma e o regresso de muitos, logo nesse mesmo dia, à sobrevivência
do contrabando. Vicente Campinas condensa no pensamento de um outro personagem,
o contrabandista Ti Currito, aquilo que era a fronteira e a dura vida destas “gentes”, ao
afirmar este “a felicidade deve estar muito perto e muito longe dos fronteiriços (…) Os
fronteiriços saberão unir os seus esforços no sentido de romper as barreiras que os
separam da felicidade?”.
Todo o livro é, pois, esse misto de denúncia das injustiças sociais e do espirito
indomável do povo sofrido, clamando ele por verdadeira justiça, lutando contra o seu
140
Termo usado para definir o contrabando.
Tipo de arte de pesca à linha constituído por uma linha principal, forte e comprida, de onde
dependem outras linhas secundárias mais curtas e em grande número, a intervalos regulares, onde cada
uma termina num anzol.
141
117
destino e do exemplo de bravura e valentia dos contrabandistas, em busca do seu
sustento.
Um dos vultos maiores do género de conto, Miguel Torga, aborda no conto “ A
Fronteira” da obra “Novos Contos da Montanha”142, a temática do contrabando
ilustrando as dimensões heróicas e trágicas do mesmo, patentes através do seguinte
excerto : “quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala de uma lei que
Fronteira não pode compreender, o coração da aldeia estremece, mas não hesita. Desde
que o mundo é mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a terra
permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite escurece, continua a faina. A
vida está acima das desgraças e dos códigos. De mais, diante da fatalidade a que a
povoação está condenada, a própria guarda acaba por descrer da sua missão hirta e fria
na escuridão das horas. E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros –
guardas e contrabandistas –, fala-se honradamente da melhor maneira de ganhar o pão:
se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro.”
Outro dos grandes autores contemporâneos nacionais, Fernando Namora, no
romance “A Noite e a Madrugada”143, ficciona na obra, a realidade do contrabando
produzida aquando da sua residência de 1946 a 1951, na vila alentejana de Pavia e
aborda a sobrevivência das “gentes” da Beira Baixa e da região de Seixial, na fronteira
da região de Idanha-a-Nova com Valverde del Fresno na província de Cáceres, nas
Hurdes144 Espanholas. O romance retrata não só a realidade do contrabando, mas as
142
TORGA, Miguel; “A Fronteira” in Novos Contos da Montanha, Public. Visão/Dom Quixote, Lisboa,
2003
143
NAMORA, Fernando; A Noite e a Madrugada, Ed. Inquérito Lda, Lisboa 1950.
144
Las Hurdes – região serrana a fronteira entre as comunidades autonómicas espanholas da
Extremadura e de Castela, que fazem fronteira com a região da Beira Baixa. É uma região de parcos
recursos e extrema pobreza ainda hoje, e onde em pleno séc.XX algumas fontes historiográficas do país
vizinho, deram conta de relatos de existência extrema de pobreza. Um dos retratos sociológicos e
antropológicos da região, mais pungente, é o famoso documentário de 1933, chamado Las Hurdes,
Tierra sin Pan (As Hurdes, Terra sem Pão) do emblemático realizador Luis de Buñuel, autor entre outros
118
condições miseráveis dos trabalhadores rurais da região e a clivagem social entre as
classes abastadas e os trabalhadores, sem descurar a visão da sua actividade enquanto
médico, que em todas as suas obras costumava abordar. O romance foi, depois, levado
ao cinema já em 1985, numa produção portuguesa com o mesmo nome, realizada por
Artur Ramos e com guião de Carlos Coutinho145.
Fenando Namora, retrata ainda de forma sublime, na obra Minas de San
Francisco146 de 1946, a natureza específica do contrabando do volfrâmio durante a II
Guerra Mundial, traduzindo na ficção a realidade em terras das Minas da Panasqueira e
da particularidade do lucrativo contrabando que, paradigmaticamente, se traduziu num
massivo abandono dos campos por força do lucro que pequenas quantidades do minério,
usado na indústria de guerra, representaram.
Dentro dos autores que no Algarve se debruçaram sobre o contrabando, o livro
Fronteiras do farense António Assis Esperança de 1963147, descreve como as redes e os
caminhos do contrabando foram usados, de modo a permitir que muitos portugueses
dessem o salto em busca de outra sorte nas mais diversas paragens da Europa, não
obstante o forte controlo da máquina repressiva da ditadura salazarista
da obra cinematográfica surrealista, de referência- Un Chien Andalou- com a parceria entre este e
Salvador Dalí.
145
Banco de dados da UBICinema-Cinema Português. Ficha sinóptica do filme “A Noite e a Madrugada”
consultada em 25 de Julho de 2013, no endereço: http://www.cinemaportugues.ubi.pt/bd/info/2409
146
NAMORA, Fernando; Minas de San Francisco; Lisboa, 2003
147
António Assis Esperança (Faro, 1892 - Lisboa, 1975), unido por fraterna amizade a Ferreira de Castro,
Julião Quintinha, Jaime Brasil e Alexandre Vieira, animadores do jornal A Batalha, foi um intrépido
defensor da classe operária. Novelista e dramaturgo, expoente do neo-realismo, publicou: os romances
Vertigem (1919), Viver! (1921), Ressurgir(1928), Gente de Bem (1939), Servidão (1947), galardoado com
o prémio Ricardo Malheiros, Trinta Dinheiros (1958), Pão Incerto (1964); as colectâneas de novelas
Funâmbulos (1925) e O Dilúvio (1932); as peças de teatro Náufragos (1921) e Noite de Natal (1923).
Escritor de escassas virtualidades estilísticas, mas aberto à problemática social, encarava a literatura
como instrumento de combate. Daí a sua pertinente crítica de costumes e comportamentos ditos
burgueses. Para Franco Nogueira, se lhe « escasseia sobretudo talento verbal», por sua vez não
« são poucas nem pequenas as suas faculdades de observação, de análise, de anotação psicológica »,
possuindo « em grau elevado a percepção dos aspectos dramáticos, dos acontecimentos e das figuras ».
Ver: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo Instituto da Biblioteca Nacional e
do livro, vol. III, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, p. 439-440.
119
Ainda no género do conto, Veríssimo Serrão na sua obra Contrabando/Contos148,
aborda a dura realidade do contrabando em Torre de Moncorvo, obra que reflecte
também um traço comum a todas as outras já mencionadas, onde a aventurosa
actividade do contrabando ilustrada pelas vivências de enorme dificuldade, serve
igualmente de suporte a tantos episódios de heroísmo e coragem por parte dos
contrabandistas e a um vínculo solidário e de respeito que os diversos autores,
provenientes em maioria de meios sociais mais favorecidos, votam à coragem dos
homens e mulheres contrabandistas.
Para concluir este capítulo, menção ainda a três obras sobre o contrabando e a
realidade fronteiriça que assumem destaque e que são: Volfrâmio de Aquilino Ribeiro,
publicado inicialmente em 1943149, onde o autor descreve o mesmo panorama abordado
por Namora nas Minas de San Francisco e da avassaladora transformação da realidade
por força da extracção das “pedras negras que rendiam oiro (o volfrâmio)”, e retratando
também a profunda realidade do atraso social e cultural, das regiões rurais portuguesas.
O romance regionalista O Lobo Guerrilheiro de Bento Gonçalves da Cruz,
publicado em 1990150, pelo autor nascido no Barroso e filho de lavradores, retrata a vida
de André Lobo que pratica o contrabando na juventude, vindo a integrar posteriormente,
a Guarda Fiscal, até que se apaixona por uma bela guerrilheira anti-franquista. No livro
premiado com o Prémio “Diário de Noticias” em 1991, o autor conjuga as tradições
agrárias, as paixões proibidas, as contradições do caciquismo local e violência exercida
contra as classes sociais mais desfavorecidas, contextualizando de forma sólida as
vicissitudes das terras barrosãs e dos difíceis tempos aí vividos.
148
SERRÃO, Veríssimo; Contrabando/Contos, Torre de Moncorvo, 1995.
RIBEIRO, Aquilino; Volfrâmio; ed. Circulo de Leitores, 1983.
150
Análise à obra por: GONÇALVES, Bela Cândida de Azevedo Pereira; Regionalismo/Universalismo em
Bento da Cruz - Tese de Mestrado em Estudos literários, Culturais e Interartes –FLUP, 2009
149
120
Para finalizar alusão, ainda, à colectânea de contos intitulado Fronteiras de
Manuel Tiago151, pseudónimo de Álvaro Cunhal e publicado em 1998, onde pontuam
contos sobre a fronteira e o contrabando e tendo um denominador comum que o autor
faz questão de vincar: que a ficção nunca superará a dureza da realidade. O autor afirma
que, “o essencial dos acontecimentos narrados, o fio de cada história de saltos
clandestinos de fronteira, bem como esquemas, situações, dificuldades incluindo as
mais duras, e mesmo grande parte dos incidentes, correspondem a experiências de
homens e mulheres que as viveram na vida real”.
151
TIAGO, Manuel (pseud. Álvaro Cunhal); Fronteiras – Contos; Atalaia-Seixal, 1998
121
b) O Contrabando na Poesia
A poesia popular, forjada no referencial cultural quotidiano e identitário dos seus
autores, e a de cariz erudito associada a uma visão idílica da actividade, abordada por
escritores que se encontram deslocados do espaço físico e das vivências associadas ao
contrabando, servem de suporte a nossa análise neste particular, todavia vincula-se a
poesia como reflexo da vida, que é também o reflexo do contrabando.
Assim, o contrabando na poesia é abordado, por autores eruditos da poesia
europeia, caso do nome maior da poesia e dramaturgia romântica espanhola, José
Zorrilla152. Na sua obra maior Cantos del Trovador de 1841, encontra-se o poema El
Contrabandista que canta heroicamente a imagem do contrabandista “bandolero” a
cavalo, que sendo de origem andaluza, desenvolve a sua actividade na fronteira
pirenaica da Catalunha com o Languedoc francês.
Em Espanha, a cultura de reverência às figuras contraventoras, dos bandoleiros e
contrabandistas é tema para diversa produção poética. A exaltação no cancioneiro
romanesco Romances de Andalucia , usado na literatura de cordel em voga no século
XIX e princípios do XX, louva a figura incontornável do “bandolero” e contrabandista
de cavalos dos fins do séc.XVIII, Diego Corrientes. Este contrabandista de Utrera, na
província de Sevilha, já referido na introdução do trabalho, ficou famoso quer pela
audácia e pelas sistemáticas humilhações e afrontas feitas ao governador de Sevilha, que
152
Fonte wikipédia – consultada em 27 de Julho de 2013
http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Zorrilla :
Resenha biográfica: José Zorrilla y Moral (Valladolid, 21 de Fevereiro de 1817 — Madrid, 23 de Janeiro
de 1893) foi um poeta e dramaturgo romântico espanhol. Suas poesias líricas surgem em 1837 e
principalmente em 1841 com a publicação de "Os Cantos do Trovador". Contudo, sua reputação se
definiu em proporções mais extraordinárias nos versos inspirados em lendas e motivos de tradições
nacionais. Esccreveu: "Rosa de Alexandria", "Álbum de um Louco", "O Punhal do Godo", "D.João
Tenório", "O Sapateiro e o Rei", "Recordações de Viagem"
122
se repercutiu na sua atroz execução nesta cidade, após a sua captura em Portugal, o que
reforçou a sua lenda junto do povo que via nele um herói, muito mais que um vilão. E
no mote do poema, essa quadra que fica : “Ese tal Diego Corrientes /robaba con fantasia
/a los ricos les robaba /y a los pobres socorría.”
Em português, destacam-se alguns autores de cariz erudito, com destaque para o
tropicalista e nome grande do modernismo literário brasileiro, autor do Manifesto
Antropófago e do livro de referência Pau Brasil, Oswald de Andrade153, encerra a obra
aludindo ao contrabando, onde enfatiza as saudades sentidas após uma viagem a Paris:
“Os alfandegueiros de Santos/ Examinaram minhas malas/ Minhas roupas / Mas se
esqueceram de ver / Que eu trazia no coração /Uma saudade feliz/ De Paris.”
Dos nomes maiores da poesia erudita que se consolida na institucionalização do
fado promovida pelo Estado Novo nos anos 50, quando esta forma de expressão musical
de cariz popular começa a integrar poetas provenientes de círculos intelectuais da
cultura erudita, casos de David Mourão-Ferreira ou Pedro Homem de Mello, que
escreveria a seguinte quadra no seu poema 37 e que viria a ser cantado por Amália
Rodrigues: “Vim morrer a Gondarém / Pátria de Contrabandistas/ A farda dos
bandoleiros / Não consinto que ma vistas”.
Azinhal Abelho154, ilustre poeta, encenador e cineasta português, na sua obra
Arraianos de 1955, refere numa quadra “ Contrabandista Valente!/ Que corres campinas
153
Fonte wikipédia – consultada em 27 de Julho de 2013 :
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade
Resenha Biográfica: José Oswald de Sousa Andrade (São Paulo, 11 de Janeiro de 1890 — São Paulo, 22
de Outubro de 1954) foi um escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro. Foi um dos promotores da
Semana de Arte Moderna que ocorreu 1922 em São Paulo, tornando-se um dos grandes nomes do
modernismo literário brasileiro.
154
Nota Biográfica de Azinhal Abelho, pela C.M. Borba – consultada em 1 de Agosto de 2013 em :
http://www.cmborba.pt/pt/conteudos/noticias/Autarquia%20de%20Borba%20adquiriu%20espolio%20de%20Azinhal
%20Abelho.htm
123
e vais / Com guardas à tua frente / De pistola e punhais!” . Do mesmo autor, figura em
Santana de Cambas e no Museu do Contrabando, um painel com o Poema da Guarda
Fiscal, de 1943, que assim reza: “Dão-lhe uma farda/ e uma espingarda/ e um
regulamento/Que tem que ver e saber/ Com toda a gente que saia/ ou entre na raia / O
regulamento é militar / E permite-lhe tudo/ até matar/ Os que obedecem as leis/ que
guardam mercadorias/ Dos direitos do Fisco/ E é isto/ Aqueles homens/ são obrigados a
tudo/ Um produto sonegado/ um metro de seda ou veludo/ Aqui extraviado nesta raia
seca/ Entre dois países iguais/ Quase de irmão para irmão/ Não, não vejo razão/ Nos
Guarda Fiscais // Correm loucamente/ Atrás de contrabandistas/ Carregados de café/ Do
café do Império Português/ Quando se dá a batida / Ficam satisfeitos // Se fazem
prisões/ que apresentam orgulhosos/ como motivos de serviço/ E andam nesta luta
esgotante/ de matar, prender e correr/ Ao longo da fronteira/ É a sua maneira/ de viver/
Quando são velhos e reformados/ Apresentam medalhas/ Dos tais serviços prestados/ Se
os põem fora/ Por qualquer serviço ou castigo/ Não têm outro refúgio/ nem abrigo/ E
vão eles ao caminho/ como os outros mais/ Furtando-se às vistas/ dos outros GuardasFiscais/ Agora são/ Contrabandistas.”
No relativo, a recolhas de poesia popular que serviam de versos que o canto
tradicional alentejano musicava, a recolha levada a cabo por Manuel Joaquim
Delgado155, nesse mesmo ano, integrava uma recolha feita na Mina de São Domingos
que assim rezava: “Os rapazes de hoje em dia / Já não sabem ser fadistas / Deixam-se
apanhar da guarda /Som ruins contrabandistas// Contrabando deve andar / Muito bem
acautelado / Saem fora do caminho / P´ra não serem apanhados // P´ra não serem
155
Professor, percursor musicólogo, compilador e anotador de canto repentista contido na publicação
“Subsidio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo”, ed. Álvaro Pinto (Revista de Portugal), Lisboa,
1955.
124
apanhados / Não se apanha aqui ninguém/ Destas rosas que aqui estão/ Qual é a tua,
meu bem?”.
Os repentistas e autores de quadras são, no Alentejo, prolíficos na produção de
obra poética que louva o contrabando e o desafio audacioso às condições de vida das
comunidades. José-Augusto de Carvalho, de Viana do Alentejo, poeta alentejano que se
destaca pela obra produzida, integra na sua Antologia da Princesa da Poesia de 2012, o
maravilhoso poema Rimance do Lua Nova que canta: “ Lua Nova era o meu nome / de
registo de campanha/ quando resistia à fome / lá para a raia de Espanha. // Clandestino
até no lar,/ nem à mulher concedia/ saber qual o meu andar /ou ao certo o que fazia. //
Aos trabalhos da lavoura/ me entregara de menino./Outra sorte melhor fora,/ mas tive
esta por destino.// Neste saber várias artes,/ saltava de galho em galho./ Em qualquer de
tantas partes,/ tinha agasalho e trabalho.// De empreitada, ali ceifava;/ mais além, era a
cortiça;/ nos tempos mortos, parava / e dava o corpo à preguiça.// Sempre com
desembaraço,/ a minha jorna suava./ Nunca neguei o meu braço/ à tarefa que
acertava.//Ah, mas num dia azarado,/e quem os não tem na vida?,/ fiquei incapacitado/
para a minha dura lida.// Esperto entre tantas liças,/ eu já conhecera mundo…/Sabia até
que a cortiça/ boia e nunca vai ao fundo!...// Sob a manta de maltês/ andava de monte
em monte/ rasgava, de quando em vez,/ as trevas deste horizonte. // Passava a salto o
Guadiana,/ entrava em terras de Espanha…/ A Guarda Fiscal se dana / e grita: ninguém
o apanha?// Ia e vinha, sempre a pé,/ a noite me protegia…/ Cada carga de café / boa
féria me rendia…// Lua Nova, a minha alcunha,/ deu rimance popular./ Até eu fui
testemunha/ de tanto o ouvir cantar…// Lua Nova é uma lenda,/ o Alentejo é um
destino;/ não há aqui quem se renda,/ às claras ou clandestino.// Apanhá-lo quem se
atreve?/ Quem consegue tal façanha?/ Em Portugal é pé leve/ e pé leve é em Espanha!//
Aquém ou além Guadiana,/ desmonta qualquer ardil:/ a Guarda Fiscal engana, / engana
125
a Guardia Civil…// Entre limpas e montados,/ astuto também engana/ o ardis sempre
aprontados/ p'la Guarda Republicana.// Lua Nova, morto ou vivo,/ hoje é já a lenda viva
/ que serve de lenitivo/ à vida sempre cativa.//”
126
c) O Contrabando – Outras expressões na cultura
Faremos neste particular uma breve resenha sobre algumas das mais destacadas
expressões do contrabando enquanto temática no âmbito cultural.
Assim, destacamos a ópera Carmen de George Bizet, estreada em Paris em 1875, e obra
inspirada na novela de Prosper Merimée, e dos encantos de sedução da cigana de
Sevilha que dá o nome à ópera. No enredo, plena de figuras contraventoras e de agentes
da lei que enfeitiçados, pela cigana, que enveredam pela marginalidade, caso de Don
José, cabo do exército que se “tresmalha” por força do feitiço e outras personagens que
ilustram a temática do contrabando, caso de Remendado, contrabandista e namorado da
amiga inseparável de Carmen, Fresquita ou Dancaire, servo de Remendado e ajudante
deste no contrabando. O Comandante Zuñiga ou o ajudante Morales, representam as
faces das forças da ordem, que punindo a ilicitude e os contraventores, terminam
sucumbindo aos encantos e magia da protagonista.
No campo musical, entre uma miríade de modas populares, cantos alentejanos e
expressões folclóricas que têm o contrabando como tema, destaca-se ainda nas últimas
décadas, a expressão da temática na canção ligeira portuguesa, na copla156 e no pop
espanhol.
A famosa composição de Paco Bandeira, A Minha Cidade (Ó Elvas) imortalizouse na cultura popular portuguesa com o seu refrão “Ó Elvas, ó Elvas / Badajoz à vista./
Sou contrabandista/ De amor e saudade / Transporto no peito / A minha cidade”.
156
Género musical espanhol que associa a musicalidade e instrumentos de raiz popular, à lírica poética
de cariz popular e até erudita. A linguagem das coplas é coloquial e directa, e faz-se recurso por vezes,
ao sentido duplo para conseguir efeito cómico ou lascivo.
127
Em Espanha, o já falecido cantor de copla, Carlos Cano, é interprete de uma das
mais famosas coplas de sempre no país vizinho, intitulada Maria La Portuguesa,
composição que aborda uma história de amor entre um pescador espanhol e uma mulher
portuguesa de Castro Marim, com o contrabando e o rio Guadiana como contexto e
cenário. Uma das estrofes reza assim, “Dicen que fue el “te quiero” de un marinero /
razón de su padecer, que una noche en los barcos / de contrabando pal langostino se fue.
/ Y en las sombras del río un disparo sonó / y de aquel sufrimiento nació el lamento de
esta canción”.
O contrabando é ainda tema na cultura pop espanhola e num dos maiores artistas
espanhoís das últimas décadas, Joaquin Sabina, com a sua composição Contrabando de
2007. A canção deste poeta urbano que, como em outras composições suas, utiliza o
tema do contrabando e a sua carga simbólica para descrever o espaço onde algumas
relações humanas, são unicamente possíveis. Diz o tema: “Ando buscando una pasión
de contrabando / sigo esperando en el mercado de ocasión una opinión de quita y pon /
una razón para ir tirando, una canción capaz de hacer de tripas corazón”.
No campo da cinematografia, o contrabando tem sido também tema recorrente em
longas-metragens, destacando-se além das já mencionadas versões de romances caso de
“A Noite e a Madrugada”, trazida ao cinema em 1985, numa produção portuguesa
realizada por Artur Ramos e com guião de Carlos Coutinho.
Os anos 40 e a produtora Tobis, abordaram ainda o contrabando no filme Lobos da
Serra de 1942 do realizador Jorge Brum do Canto. O enredo do filme reflecte um grupo
de contrabandistas que, fugindo à vigilância da Guarda Fiscal, desce a um povoado,
para tentar a vida calma na paisagem da terra minhota. As vicissitudes da vida deste
128
grupo dentro do povoado e a tragédia em que culmina a história, reflectem as agruras do
contrabando e da difícil vivência no espaço de fronteira.
No país vizinho, destacam-se nos últimos anos, o filme Furtivos de José Luis
Borau, de 1975, que retrata a vida de um caçador furtivo dominado por uma mãe de
forte carácter, nos anos negros do franquismo e retratando a vida, na Espanha profunda.
Outra longa-metragem, Tasio, realizada por Montxo Armendáriz em 1984, é um retrato
intimista que espelha a realidade dos que nada têm e a sua luta pela sobrevivência nos
agrestes meios rurais. En Teo el Pelirrojo, realizado por Paco Lucio em 1986, é
reflectido um drama rural, decorrido no periodo da pós-guerra Guerra Civil espanhola, e
tendo como enredo o contraste entre as personagens com relevo para o furtivo que vive
do tráfico, da caça, da pesca e do carvão, e um guarda-mato como figura das forças de
ordem. O drama Pasos Largos de Rafael Moreno Alba, de 1986, baseia-se na história
do último bandoleiro andaluz, abatido pela Guardia Civil en 1934, na serra de Ronda. É
um retrato pungente, da vida miserável do personagem, passada entre a caça furtiva e
episódios de extrema violência.
No referente ao contrabando contemporâneo das mafias e grupos organizados, o
filme Inferno do realizador português Joaquim Leitão, de 2002, é um thriller que se
baseia na acção dos corpos de operações especiais das forças de ordem e da
complexidade de factores que abordam a actividade policial, o tráfico de droga e a
prostituição, tendo fronteira lusa - espanhola como cenário.
Relativamente a documentários e curtas-metragens, destacamos aqui a edição do
documentário promovido pela Associação Odiana, sobre o Contrabando no Baixo
Guadiana, apoiado num trabalho de investigação promovido pelo programa Tursos,
inserido no Interreg IIIA de 2004 e desenvolvido entre 2007 e 2011. Também de 2007,
129
outro documentário sobre a realidade do contrabando é Los Refugiados de Barrancos,
produzido e realizado pela Asociación Cultural Mórrimer, Llerena, e que foi financiado
pelo Gabinete de Iniciativas Transfronterizas (GIT), de Badajoz. O premiado
documentário Mulheres da Raia de Diana Gonçalves, do ano de 2009, é sublime na
resgate da realidade onde se cruza o espaço físico da fronteira luso-espanhola e da
natureza emocional dos relatos, na primeira pessoa, das antigas contrabandistas, que
lutavam contra o destino e na busca do sustento de suas famílias, esquivando o arbítrio e
brutalidade das forças da lei, da pobreza endémica e da iliteracia
Outros projectos menores, mas com uma não menor importância, são também de
destacar, e em concreto, a recolha audiovisual de relatos levada a cabo pela Junta de
Freguesia de Santana de Cambas e do Museu do Contrabando da localidade, inserido na
temática dos Cadernos do Contrabando.
130
d) Abordagem museológica da temática do Contrabando
Tanto em Portugal quanto em Espanha, além do já muitas vezes mencionado
Museu do Contrabando de Santana de Cambas, existe um grande número de museus e
centros de interpretação dedicados à temática do contrabando, que desenvolvem
activamente trabalho, não só pelo espaço físico e proposta museológica, mas por a
promoção de conferências, publicações e apoio a projectos com enfoque na temática.
Destacamos assim alguns dos principais museus:
Em Portugal:
-Espaço Memória e Fronteira / Museu do Contrabando e da Emigração
Clandestina em Melgaço.
-Museu do Contrabando em Quadrazais – Sabugal.
-Museu do Café, em Campo Maior . Neste destaca-se a particularidade de abordagem
ao papel desempenhado pelas autoridades que protelaram o papel das grandes famílias
do negócio do café, caso da familía Nabeiro, que com acordo tácito do Estado
organizaram grupos de contrabandistas “mochileiros” que introduziam grandes
quantidades de café, na Espanha do pós-guerra.
-Museu do Pão em Seia, onde estão expostos elementos relativos à apreensão de
produtos contrabandeados, em concreto de trigo.
-Museu de Vilar de Perdizes em Vilar de Perdizes – Montalegre, um pequeno museu
etnográfico com algumas alusões relativas ao contrabando.
131
-Museu do Rio em Alcoutim, com réplicas de embarcações que navegavam o
Guadiana, entre as quais as da Guarda Fiscal.
Em Espanha:
-Museo del Contrabando y de las Regiones Fronterizas em Sallent de Gállego,
provincia de Huesca.
-Zumalakarregi Museoa em Ormaiztegi, Guipúzcoa, no País Vasco.
-Museo Etnográfico “González Santana” alusivo em exclusivo ao contrabando e
localizado em Olivença, província de Badajoz.
-Museo del Bandolero “Serranía de Ronda” em Ronda, província de Málaga.
Espanha, e o destaque ao papel dos “bandoleros” enquanto contrabandistas.
-Museo Casa de la Aduana em Puerto de la Cruz, Tenerife, nas Ilhas Canárias.
Em ambos países encontram-se ainda centros de recepção, informação e interpretação,
destacam-se o Albergue de Montaña de Bangueses de Arriba em Verea, Orense, na
Galiza onde se expõem as rotas do contrabando entre as localidades de Bangueses e de
Madalena, em Trás-os-Montes. Do mesmo modo, o Centro de interpretação do
Contrabando em Quirás, Vinhais, que é um antigo posto da Guarda Fiscal na aldeia de
Quirás, votivo à memória daquela que foi principal actividade da freguesia. Ainda, o
Centro de Interpretación e a rota do contrabando, em Cidadela, Orense, também na
Galiza. E, para finalizar, o Centro de Interpretación de las Fronteras em Oliva de la
Frontera, provincia de Badajoz, que funciona como museu dedicado a mostrar o passado
fronteiriço entre os dois países.
132
e) O Contrabando – a Escultórica e sua inserção em meio urbano.
Para finalizar, destaque ainda à Escultórica com a temática do contrabando, que
pontua em algumas localidades.
Em Espanha, Oliva de la Frontera, na província de Badajoz, apresenta no seu
centro urbano, o Monumento ao Contrabando em bronze, dedicado às várias gerações
de contrabandistas de ambas as margens do Ardila e que complementa toda uma
estrutura dedicada ao contrabando, que passa pelo museu local, o Centro de
Intepretación de Fronteras e ainda pelos roteiros do contrabando, que atraem turistas e
representam uma clara mais-valia para a economia local.
Em Portugal, o caso de Alcoutim é paradigmático, com o projecto consubstanciado
em 2008, com a colocação de estatuária dedicada ao contrabando na zona ribeirinha da
vila do Aleo. A obra escultórica ficou a cargo dos artistas Pedro Félix e Teresa Paulino.
Duas das estátuas esculpidas em mármore num conjunto total de três (a terceira é
dedicada aos pescadores do Guadiana, outra das actividades destacadas da história e
vida da localidade), são alusivas à figura do Contrabandista e à figura do Guarda Fiscal.
São elementos de referência na paisagem urbana de Alcoutim e ex libris da localidade,
para o visitante.
133
Conclusão
A investigação agora concluída, intitulada o Contrabando no Baixo Guadiana –
A Raia, as “Gentes” e as Dimensões da Sobrevivência - enquadra-se enquanto trabalho
relativo à unidade curricular de Seminário, na conclusão do plano curricular de estudos
da Licenciatura de Património Cultural, da Universidade do Algarve.
Sugerido o tema, em sequência de conversas informais surgidas ao longo do
último ano, com alguns amigos que contam hoje com mais de sete décadas de vida e da
leitura que fiz ainda enquanto jovem do romance Fronteiriços de António Vicente
Campinas, sobre o tema do contrabando na região donde sou originário e de onde a vida
e memória ancestral de minha família se perde no tempo, não poderia ter mais
significado num contributo e homenagem à História local e como subsidio a um futuro
estudo mais aprofundado sobre a temática.
Ao longo de muitos meses, fui confrontado no desenvolvimento da pesquisa
com um dos problemas mais significativos, no estudo e análise de uma actividade que
pela sua natureza transgressora, pela dissipação da memória dos intervenientes, e por
uma amargura que o tempo não apaga, resultante da extrema dificuldade e dramatismo
que esses tempos e vida do contrabando, significaram para as pessoas.
Se na análise quantitativa de fontes historiográficas, o trabalho tantas vezes
evoluiu sem sobressaltos, alicerçando-se em documentos que abordam a perspectiva da
evolução histórica associada ao foro administrativo e político entre estados, ao
enquadramento jurídico-legal da actividade económica e ao aprofundamento de análise
de dinâmicas económicas e sociais já estudadas por diversos autores, a análise
134
qualitativa do contrabando enquanto fulcro de memória e identidade, associada à
subjectividade individual do relato oral e à dissipação do facto relatado ocorrido há mais
de cinco décadas, confronta-nos com um universo contraditório dai resultante, que
obriga a investigação a avanços e recuos, e procura de reiterada confirmação da recolha
feita. As experiências de vida, sendo facto não são cientificamente lineares, e a emoção
desempenha um papel no cumprimento do velho adágio de “quem conta um conto,
acrescenta um ponto”. Muitas vezes, como foi caso do Sr. Ildefonso Martins de
Balurcos de Baixo, a concordância do relato obtido em entrevista, com outras entrevista
já dadas ao longo dos anos em publicações diversas, permitem aquilatar sobre a
coerência do relato, que se consolida indisputavelmente, como facto. Esta coerência
torna-se extensiva, ao avaliar que a dureza da vida do contrabando, dará pouco azo a
fantasia.
As análises e trabalhos já existentes, confrontam-se com esta problemática e o
tempo tenderá a agravar de modo irreversível a perda de elementos para estudo, pois o
período áureo do contrabando no Baixo Guadiana ocorreu há mais de cinquenta anos e
os sobreviventes são cada vez menos.
Sem qualquer pretensão, a pesquisa agora concluída pretende abrir uma janela
para que instituições públicas e privadas, associadas à área geográfica em causa, se
sensibilizem para a necessária continuidade do trabalho que já desenvolvem, ou para um
incremento significativo do apoio ao desenvolvimento do estudo sobre o contrabando,
como mais-valia para a construção e salvaguarda da memória como referencial
identitário e potencial elemento de criação e fruição cultural, que possa aportar a
economias locais vetadas a duras circunstâncias de interioridade, eterna mas crescente
periferia, e ainda associadas ao envelhecimento populacional e à desertificação humana
quase inevitável.
135
Fazendo uso das palavras do nosso saudoso professor António Rosa Mendes, na
sua obra O que é o Património Cultural?, a temática do Contrabando – aquilo que foi e
aquilo que pode vir a ser- para a região do Baixo Guadiana e as suas instituições terá
que ser sempre o exemplo dado do deus bifacetado romano Jano Bifronte, esta é a ideia
condensada pelo professor, nas sábias palavras que encerram o livro:
“A visão do passado não é um fim em si, é sempre um meio que se exerce em
função do futuro, um meio para uma melhor inteligência do presente que no futuro se
projecta; a visão do passado fornece, no presente, como um radiar de promessas, a
inspiração, o estímulo, o acicate de novas energias criadoras e de novas experiências
vitais no futuro.
Assim o património cultural.”
136
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142
Apêndices Fotográficos e Documentais
Apêndice 1 - Gravura fac simile do original de Castro Marim e do Rio Guadiana
no sentido Norte-Sul ( junto às naus encontra-se a inscrição Arenilha relativa a
Santo António de Arenilha), séc. XVI
Apêndice 2 - Representação figurativa de Santo António de Arenilha, no séc. XVI,
da autoria do pintor Luís Mansinho
143
Apêndice 3 - Forte de São Sebastião de Castro Marim – parte da estrutura
defensiva edificada como parte do Muro Peninsular, depois da restauração da
independência em 1640.
Apêndice 4 - Gravura com o Levantamento Topográfico de Monte Gordo e foz do
Guadiana, datado de 1774
144
Apêndice 5 - Edifício da Alfândega, datado fundação de Vila Real de Santo
António. O edifício representa eixo da fachada da quadra pombalina, posicionada
na “marginal frente rio” da cidade pombalina. Funcionou durante o séc. XIX e XX
como secção da Guarda Fiscal.
Apêndice 6 - Fotografia do porto de Vila Real de Santo António, na segunda
metade do séc.XIX e alvor do período áureo de navegação do ciclo do minério, que
ilustra o enorme tráfego de embarcações no Guadiana
145
Apêndice 7 - Estruturas de duas das grandes minas da região, A Mina de São
Domingos e as Minas de Las Herrerias, em Espanha.
146
Apêndice 8 - Remanescente de estruturas de carregamento de minério para
embarcações, de dois dos grandes portos de transporte de minério no Guadiana,
Pomarão e Puerto de La Laja
147
Apêndice 9 - Evolução das embarcações de vigilância e controlo fronteiriço
marítimo e fluvial, em serviço entre a foz do Guadiana e o Pomarão – Canhoneira
Guadiana; Lancha a vapor Guadiana e lancha do tipo P (Marezia)
Canhoneira Rio Minho (embarcação gémea à Guadiana que prestou serviço no Rio
Guadiana)
Lancha a Vapor Guadiana
Lanchas tipo P
148
Apêndice 10 - Forças da Ordem – 1 -Guardas Fiscais no terraço do posto da Ponta
do Cinturão – anos 50; 2- Efectivo da Guarda Fiscal (o meu avô materno, João
Marçalo Horta)-anos 50; 3- Carabinero Espanhol – anos 40 e 4- Efectivos da
Guardia Civil – anos 50.
1
3
2
4
149
Apêndice 11 - Auto de noticia de apreensão de uma carga de açucar de
contrabando nos anos 40; e fotografia de apreensão inserida numa acção de
divulgação do trabalho da Guarda Fiscal, no Batalhão Territorial nº2 de Évora,
onde se pode constatar o curioso trajo usado pelo “mochileiro”.
150
Apêndice 12 - Infra-estrutura das Forças de Ordem –
Vigilância e Casas Cuartel.
Guaritas, Postos de
Guarda Fiscal (Portugal)
Guarita em Alcoutim
Ruina do antigo posto das Laranjeiras
Posto reabilitado para habitação particular junto à Ponte internacional do
Guadiana
Carabineros de Espãna
Casa Cuartel Cañaveral (Bloco Habitacional e anexo das Cavalariças)
151
Apêndice 13 - Planta de edifício-tipo dos postos da Guarda Fiscal (Posto das
Laranjeiras)
Posto da Guarda Fiscal - Laranjeiras
Planta, alçado e cortes escala 1:200
Disposto por esta ordem : Alçado Principal e Corte Longitudinal (sobre a
esquerda) e Cortes Transversais (sobre a direita)
Legenda da Planta
1 caserna
2 gabinete do comandante
3 arrecadação
4 cozinha
152
Apêndice 14 - O comércio legal – 1- foto de “venda” (taberna) tradicional onde se
vendia de tudo e se trocavam senhas de racionamento; 2 – Boletim de senhas de
racionamento de bens (anos 50); 3 – Filas para o racionamento durante a II
Guerra Mundial (foto em Lisboa)
1
2
3
153
Apêndice 15 - Os contrabandistas, em primeira pessoa
Sr. Ildefonso Martins , de Balurcos de Baixo, o “Caminheiro”
154
Sr. José Afonso, dos Bens, “36 anos no contrabando”
155
Sr. José Raposo, contrabandista e irmão de um dos muitos mortos pelas balas
da lei, nos tempos dessa “vida triste” que era o contrabando
156
Maria Júlia Carrasco, filha do comerciante altruísta João Carrasco e “uma vida de
vivências juntos aos contrabandistas”
157
Apêndice 16 - Alguns produtos de contrabando.
Calçado espanhol
Café e Moinho para preparação de pó
(Solas de borracha)
Gasosa espanhola “Vicasti”,
Calçado tipo “alpergata”
isqueiros e tabaco
158
Apêndice 17 - Diversos
Gravura de Cássio Mello
“A arte Xavéga”
As “faces” do contrabando
Painel do Museu do Contrabando
Santana de Cambas
Uniforme Guarda Fiscal
A “Mochila” de contrabandista
159
Painel “Poema do Guarda Fiscal”
Poema de Azinhal Abelho
Escultórica de Alcoutim
“O Guarda Fiscal”
Pintura a óleo
“Contrabandistas –Senhores da Noite”
Escultórica de Alcoutim
“ O Contrabandista”
160
Divulgação de actividades e programas relacionados com o contrabando
O Contrabando na toponímia
Lisboa – Freguesia dos Prazeres
161
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