daniel sampaio
colaboração de eulália barros
6.a edição
Índice
1. Uma crise de olhares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2. Os meus avós . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3. Os avós de hoje . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
4. A transmissão transgeracional . . . . . . . . . . . . . . . .
5. Os avós e o ciclo da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
6. Os avós e o divórcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
7. Os avós e a sua razão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Conversas a tempo por causa dos «tempos»
— colaboração de Eulália Barros . . . . . . . . . . . . . .
Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Uma crise de olhares
Este livro partiu de duas ideias: em primeiro lugar, da
minha convicção de que cada vez mais olhamos sem ver e
ouvimos sem escutar. Depois, da minha crença de que o
futuro da família está na transmissão transgeracional da sua
história, tornada presente pelos testemunhos dos avós,
agora ainda mais importantes perante a crise dos pais e da
sua vida conjugal.
A sociedade actual não favorece a pesquisa nem a reflexão. Vivemos tão depressa que uma investigação sobre a
arqueologia da família parece condenada à partida. No
entanto, são os jovens que nos fazem perguntas sobre o passado e que procuram, junto dos avós e de outros familiares
mais velhos, as respostas que não estão logo ao seu alcance. Quando contactamos com uma criança que vive numa
instituição e que, por essa razão, desde há muito está privada de um meio familiar estável, somos surpreendidos pelas
perguntas acerca da sua família. Quando evitamos a resposta (por não termos dados ou por receio de traumatizar) as
perguntas não acabam. Podemos mesmo dizer que quanto
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Daniel Sampaio
maior é a dúvida sobre o passado, mais perguntas surgem a
questionar o presente.
Em muitas famílias é visível a passagem, de geração
para geração, de modelos de relacionamento interpessoal e
de vivências emocionais que constituem um padrão característico. Por exemplo, a forma de reagir à doença e à morte
e o modo como são capazes de responder aos acontecimentos de vida mais notáveis, constituem um marco significativo e distinto. Noutras, pelo contrário, o passado e as
recordações parecem não existir e tudo acontece como se
fosse a primeira vez. São estes indivíduos que se surpreendem, mais tarde, com a repetição de comportamentos já
existentes no passado e que seria da maior importância ter
conhecido, antes que a crise actual se estabelecesse.
A fragmentação de muitas famílias causada pelo crescente número de divórcios pode contribuir para o enfraquecimento da transmissão de valores e crenças através das
gerações. Em Portugal, em 2007, de 100 casamentos 48
acabaram em divórcio, mas a grande maioria das pessoas
envolvidas, sobretudo os homens, voltou a casar. As novas
famílias, reconstruídas a partir da ruptura, não têm à partida mais dificuldades, mas por certo lidam com realidades
complexas, uma das quais é a forma como se relacionam
com as memórias do passado. Uma das teses deste livro é
que os avós permitem a continuidade da família e são os
garantes dos valores familiares que asseguram o futuro.
Para melhor desenvolver esta ideia, entendi necessário
tentar compreender como eu próprio tinha recebido essa
minha herança: na verdade, como me tinha sido possível
crescer na família e como os valores que recebi organizaram
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A Razão dos Avós
a minha maneira de ser. Aprendi na formação em Terapia
Familiar que existe um conjunto de normas e regras, por
vezes invisíveis, que molda a nossa maneira de ser, ao
mesmo tempo que possibilita a autonomia e os novos projectos que devem caracterizar a idade adulta. Por outras
palavras, ensinaram-me que precisamos de ser únicos, diferentes dos nossos antepassados, mas que, ao mesmo tempo,
necessitamos de progredir a partir de um passado comum
que nos organiza como família.
Quando renegamos a nossa história pessoal, ela acaba
por nos aparecer mais tarde ou mais cedo sob diversas formas: ou disfarçada, em sonhos que nos inquietam e que se
repetem ao longo da vida; ou através de comportamentos,
de actos mal reflectidos junto de outros, que não são senão
respostas mais ou menos inconscientes a problemas não
resolvidos com os nossos antepassados. Por exemplo, sabe-se que muitas dificuldades conjugais são o reflexo de exigências para com o companheiro que são impossíveis de
satisfazer, porque radicam no deve-haver afectivo que nos
liga às figuras parentais: o membro do casal reivindica no
aqui e agora, mas de facto está a pedir solução para a «dívida» afectiva face aos seus progenitores que procurou ignorar na presente disputa. Em muitos casos, a clarificação ou
descoberta desses elos perdidos contribui para que o par
conjugal compreenda melhor como a situação actual tem
raízes longínquas, de modo a ficar mais livre para tomar
decisões sobre o seu futuro. A crise conjugal não se resolve, na maioria dos casos, com a decisão judicial sobre o
divórcio, pelo risco da projecção do conflito nos filhos, ou
pela possibilidade de os problemas se repetirem com novos
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Daniel Sampaio
relacionamentos afectivos: sem algum trabalho de reflexão
sobre a forma como os membros do casal se tornaram adultos e sobre a maneira como foram educados, o mais certo é
que tudo continue na mesma, apesar de parecer diferente
com novos protagonistas.
Nesta perspectiva, parti para este livro com a ideia de
tentar perceber como foram os meus avós, com o pressuposto de que quem eu sou começou neles, porque foram
eles que educaram os meus pais e os tornaram pessoas
adultas. As informações de que à partida dispunha faziam-me crer na importância dos seus valores junto de meus
pais: sempre os ouvi descrever como grandes educadores e
como pessoas cheias de convicções, muito conscientes do
seu papel de pais e sempre disponíveis para indicar percursos aos seus descendentes. O único dos meus avós com
quem privei, a minha Avó materna, seria a pessoa mais
estudada, pelo facto de não só ter estado presente até aos
meus trinta anos, mas também porque dispunha de mais
fontes de informação para o meu trabalho.
Não me pareceu legítimo desenvolver muito a vida dos
meus pais por duas razões fundamentais: primeiro, porque
a curta distância temporal e sobretudo a proximidade afectiva nunca permitiriam uma análise com um mínimo de
objectividade; depois, porque não sou o único filho, nem
este livro pretende sequer aproximar-se de um romance
familiar, género que nem sequer é do meu agrado. Não
poderia, contudo, deixar de os descrever a espaços, porque
tenho consciência da forma exemplar como receberam e
ampliaram a herança das suas famílias de origem, tornando-a a instância estruturante da sua forma de educar.
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A Razão dos Avós
Estudei um pouco da história da família para tentar
demonstrar como as convicções fortes dos meus antepassados foram decisivas para a criação de princípios positivos
na educação dos seus descendentes. Muitos anos depois,
impressiona verificar como certos valores se tornaram
organizadores para as gerações seguintes, mesmo quando
estas os rejeitaram à partida; e importa reconhecer como os
mais novos progrediram com mais dificuldade quando
esses postulados fraquejaram por diversas razões. Não se
pode educar só pelo passado, porque as circunstâncias
mudam e a repetição acrítica não é boa conselheira, mas
instruir sem olhar para trás é como plantar à superfície sem
cuidar das raízes.
Espero demonstrar com este livro que, ao contrário da
voz corrente, os avós são os grandes educadores da actualidade. Presentes em muitos momentos decisivos da vida das
crianças e adolescentes, desempenham um importante
papel de ajuda aos pais, mas são também os reservatórios
da família, que asseguram a continuidade da história da
família ao longo das gerações. Sempre que descuramos a
sua voz, arriscamo-nos a não conseguir transformações significativas.
No meio da actual discussão sobre a parentalidade, essa
competência para ser pai e mãe que tanto mobiliza o debate educativo, os avós são os grandes esquecidos. Apresentados como reformados, ultrapassados ou doentes, são
referidos como seres dispensáveis para a família, ou mostrados como alguém que deseduca, porque satisfaz todas as
vontades dos netos, enchendo-os de perigosas gratificações. E, no entanto, os pais cada vez recorrem mais aos
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Daniel Sampaio
avós, quer como suporte afectivo, quer como ajuda financeira em muitas situações do quotidiano familiar: são os
avós que auxiliam para a compra da casa, tomam conta das
crianças para os pais saírem ou funcionam como apaziguadores em muitas crises familiares, sobretudo na adolescência, como veremos mais adiante. E que dizer do verdadeiro
gosto de muitos netos, que trocam saídas com os amigos
por tardes a conversar com os avós, para grande surpresa
dos pais?
Foi assim comigo há muitos anos, continua a ser assim
em muitos casos. É por isso que começo este livro a apresentar os meus avós. Vençam a crise de olhares e observem
com atenção.
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Os meus avós
«Precisa de estudar mais a gramática indicada»
Maria Ema Ferreira
Esta foi a única vez que a minha Avó se zangou comigo. Quando lhe dei o caderno de Português para assinar,
olhou-me com atenção, escreveu o nome com a sua letra
antiga e bem desenhada e disse, mais ou menos assim:
«Querido Dani, espero que isto nunca mais se repita. Estás
em minha casa e gosto muito disso, mas tudo tem de correr
bem, sobretudo com os estudos, que são a tua obrigação.
Não te esqueças que prometeste ser um bom aluno, nem de
outra forma poderia ser, se queres continuar por cá, como
me parece. E agora podes ir brincar para o pátio, porque
me parece que já fizeste os trabalhos do liceu.»
O tom era sereno, o olhar firme. Depressa voltou aos
seus bordados e eu fui jogar à bola com os vizinhos, nas
traseiras do apartamento de Campo de Ourique. Mas não
esqueci o incidente: vejo ainda agora o caderno do Liceu
Normal de Pedro Nunes, verde com letras pretas, reconheço a letra e a assinatura da minha professora de Português
e Francês, Maria Ema Ferreira. Tenho dez anos acabados
de fazer e estou no 1.º ano do liceu (no 5.º ano, como se
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Daniel Sampaio
diria agora). Os meus pais, eternos defensores do ensino
público e laico, não queriam que eu saísse da primária
para um colégio privado e religioso, como era habitual
para os meninos da classe média. Em Sintra, onde vivíamos, a oferta escolar era diminuta nos anos 50: não havia
ensino público liceal e os colégios privados, embora prestigiados, não agradavam às convicções dos meus pais. Tal
como tinha acontecido com o meu irmão, sete anos mais
velho, a decisão de passar três anos na casa de Lisboa da
minha Avó não levantava grandes questões para a nossa
família.
A minha Avó Sarah (escrevia com h no fim por razões
da sua ascendência judaica, como se verá) era mãe da
minha mãe. Passava as férias grandes em Sintra, numa
casa construída pelo seu sogro, Marcelino Augusto
Branco, cedida em parte aos meus pais após o casamento.
Depois da morte do meu avô materno, em 1941, tinha alugado um pequeno apartamento em Campo de Ourique,
onde recebia com frequência as duas filhas (a minha mãe
Fernanda e a minha tia Regina) e os três netos (o meu
irmão Jorge, o meu primo Filipe e eu). Passei lá três anos,
dos 10 aos 13, como já tinha acontecido com o Jorge: a
ideia era crescermos um pouco para sermos capazes de
suportar a ida e volta de Sintra para Lisboa, em comboios
sempre atrasados e pouco frequentes. Embora não fosse
fácil viver separado dos pais (só nos víamos ao fim-de-semana ou em visitas ocasionais de minha mãe), a minha
Avó era uma pessoa tão afectuosa e coerente na educação
que a experiência de viver consigo foi marcante. Relato o
episódio do caderno de Português, não só porque foi
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Daniel Sampaio
determinante para que de imediato eu percebesse quem
mandava, mas também para compreender desde logo o
entendido como obrigatório: ser bom estudante.
Não se pense, contudo, que só o estudo interessava à
minha Avó: tinha grande preocupação com os meus colegas, que recebia com gosto, pedindo à Assunção — uma
empregada/governanta que a acompanhou até ao fim dos
seus dias — para não se esquecer de «preparar o lanche
para os meninos». Sentava-se ao pé de nós e perguntava
pela vida do liceu, sem se intrometer na nossa intimidade,
apenas com a preocupação de que eu não vivesse isolado:
vindo de Sintra, afirmava, corria maior risco de não fazer
amigos (a minha Avó, que era do tempo do Rei D. Carlos e
que recordava a Rainha D. Amélia a passear na Pena,
achava que Sintra se tinha tornado muito desinteressante).
Distinguia, no entanto, colegas e conhecidos dos verdadeiros amigos: quando propus fazer um lanche com quase
toda a turma, lembrou-me que «os amigos são como os diamantes, preciosos mas raros», e eu depressa risquei mais
de metade dos nomes. Verifico agora, cinquenta anos
depois, como tinha toda a razão.
Sempre me intrigou por que razão nunca gritava,
mesmo quando se notava que alguma coisa a tinha irritado: olhava apenas um pouco de lado, às vezes sorria com
meia cara e dava a sua opinião sem medo. Com persistência, levava os outros a concordar consigo, pois para nós
(sobretudo os netos) era muito difícil discordar dela. Não
tinha grandes estudos, mas, como era típico das senhoras
da classe média-alta de então, falava bem francês e inglês,
interessava-se por música e pela leitura dos clássicos:
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A Razão dos Avós
estou certo de que foi uma das principais responsáveis pelo
meu amor pelos livros.
Durante muito tempo não me interessei pelas suas origens. Queria recordá-la no presente, como se os anos não
tivessem passado e eu ainda estivesse em Campo de
Ourique. Ou nos jantares de Natal, por si presididos na
casa de Sintra: a Avó Sarah a sorrir, a perguntar que tal
estava o peru, a olhar para os netos com ternura quando
desembrulhávamos os presentes, ou ainda quando nos derrotava no jogo do Cluedo ou nas cartas do King (achava
que os adultos nunca deveriam proteger as crianças e fazer
batota, nós que aprendêssemos a jogar cada vez melhor).
Lembro-me da minha Avó quase todos os dias, recordo-me dos seus comentários em muitos momentos, mas foi a
tão discutida questão da autoridade que me despertou
curiosidade pelo seu passado. E fui saber, consultando
sobretudo o livro do seu primo Alfredo Bensaúde Vida de
José Bensaúde (1), que segui de perto neste capítulo.
Sarah Bensliman Bensaúde nasceu na ilha de S. Miguel,
Açores, em 1880. Para conhecermos a sua infância teremos de a situar no contexto da época.
As famílias judaicas dos Açores eram naturais das
cidades costeiras de Marrocos e falavam, além do árabe
marroquino, o ladino (espanhol arcaico). Usavam nomes
hebraicos, porque não descendiam de judeus peninsulares
baptizados contra vontade, que conservavam os nomes
(1) Alfredo Bensaúde, Vida de José Bensaúde. Porto, Litografia Nacional, 1936
(edição fora do comércio).
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