l. “Fazer dos Mortos Gente de Hoje” Oliveira Martins na 1ª Pessoa por Carlos Jaca ………………… Tempo para sofrer Por entre os vivos que morrem Saudando os mortos a viver…. “Plenário das Sombras”. F. M. de Menezes Falcão Não se pode afirmar que a obra de Oliveira Martins tenha caído no esquecimento e até a sua pessoa. No entanto, hoje, parece quase oficializado o facto de que só no decorrer de centenários de nascimento ou morte de grandes personalidades da vida portuguesa, haja uma maior tomada de consciência para relembrar homens que em parte foram absorvidos pelo século que os viu nascer e que tiveram a admiração e respeito dos seus contemporâneos. Nos últimos decénios, julgo que a memória colectiva não terá sido muito pródiga na atenção votada (ou devotada) à trajectória humana, social, cultural e política de Oliveira Martins, o mesmo não se podendo dizer da memória familiar e, felizmente, de um ilustre sector passado e recente da vida intelectual portuguesa. E mais, até estrangeiro. Refiro-me a Georges Le Gentil e Miguel de Unamuno. Houve tempo em que Oliveira Martins era uma referência obrigatória, e justificada, nos compêndios escolares. Assim, tomei conhecimento com o grande escritor, relembrando-o agora numa breve abordagem visando, essencialmente, a sua dimensão de homem, historiador e político. Carlos Jaca 1 O Homem e a Vida Morri, “sem saudades do mundo” e só a profunda amizade que me liga ao Alberto Sampaio e ao Antero de Quental, ambos já presentes neste espaço de cultura, fez com que “regressasse” … E, já agora, aproveito para dizer que, também, me julgo com”direito à indignação” e não só pelo facto da minha obra ter sido excluída dos programas escolares. Reparem, há alguns meses (13/03/2004) o Vasco Graça Moura escrevia numa das revistas do jornal “Expresso” o seguinte: Uma catedrática minha amiga, dizia-me há dias ter encontrado um professor de Português que lhe falou de Oliveira Martins, “pensador do século XII” (doze). Não comento! É numa sociedade marcada pela instabilidade e sob o signo do sobressalto – as guerras civis reacendiam-se e colocavam o país a ferro e fogo, primeiro com o movimento popular conhecido pela revolta da “Maria da Fonte” e depois com a formação das Juntas Revolucionárias do Reino sob o comando de inspiração “setembrista” – que, em 30 de Abril de 1845, vim ao mundo em Lisboa na Travessa do Pombal, a S. Bento, hoje Rua da Imprensa Nacional. Conforme se encontra registado, recebi na pia baptismal da Igreja de S.ta Isabel o nome de meu avô materno, figura tutelar da família, Joaquim Pedro, Joaquim Pedro Ayres de Oliveira Martins, tendo como padrinhos Nossa Senhora e meu tio-avô materno Dr. Ayres Barbosa de Figueiredo. Originário de uma família da média burguesia urbana, com algumas raízes do lado materno na pequena aristocracia rural do sul do Tejo, eu era o terceiro de uma prole de nove filhos, dos quais apenas vingariam seis – Francisco Maria, o mais velho, Maria Bárbara, Maurício Cândido, Guilherme Augusto e Maria José. Meus pais eram Francisco Cândido Gonçalves Martins, oficial da Junta de Crédito Público e pequeno proprietário, e Maria Henriqueta de Morais Gomes de Oliveira, filha do Desembargador Joaquim Pedro Gomes de Oliveira, que duas vezes foi ministro de D. João VI e membro do Governo do Reino em 1820, até à Constituição das Cortes em 1821. Os primeiros anos de vida passei-os, juntamente com meus irmãos, entre Lisboa e o velho casarão da família materna, a Quinta dos “Castanhos”, em Vila Nogueira de Azeitão, onde viviam o meu tio morgado, Agostinho de Oliveira e o seu “clan” familiar. Também aí viviam as minhas tias, filhas do meu avô Desembargador, conhecidas em Azeitão pelas “Senhoras Conselheiras” e em casa das quais tomaria os primeiros contactos com os segredos da leitura e tabuada, ensino que Carlos Jaca 2 me foi ministrado por Frei Bernardino, um pobre e simples irmão arrábido, que ali vivia desde a extinção das Ordens Religiosas. Em Azeitão vivia-se o encontro entre a tradição e os ventos de mudança. Estes primeiros anos decorreram sem sobressalto e sob a influência dum meio familiar complexo, onde ao mesmo tempo se confrontavam as ideias marcadas pelo vago legitimismo apostólico de meu tio Agostinho, a memória liberal moderada de meu avô e a tradição pequeno-burguesa dos avós e tios paternos. Aos onze anos (1856) fiz provas finais da instrução primária com “perfeito aproveitamento”, matriculando-me em 31 de Outubro na Academia de Belas-Artes, onde havia sido admitido na aula de Desenho Histórico como aluno voluntário. De seguida, habilitei-me para o exame de Gramática Latina no qual obtive aprovação “unânime”, matriculando-me em 1857 na Secção Central do Liceu Nacional de Lisboa. Durante a frequência deste último estabelecimento de ensino granjeei sólidas amizades, que haviam de manter-se ao longo da minha breve existência, como foi o caso de Sousa Martins, que viria a ser um celebrizado médico, João Maria Edmond Plantier, cujo pai seria o editor das minhas primeiras obras e, ainda, João Calvet de Magalhães. No referido ano de 1957 abatera-se sobre Lisboa a catástrofe da epidemia da febre-amarela. Depois das guerras e da instabilidade era a doença, pavorosamente mortífera, que avançava e se apoderava da cidade. Em nossa casa quase todos foram atingidos pela enfermidade, em estado preocupante. Meu pai tentou, teimosamente, resistir à doença, mas o coração e os pulmões estavam já seriamente afectados. Perto do Natal, a 14 de Dezembro, meu pai morre, repetindo o verso do Salmo 31, invocado por Jesus no Calvário: “Pai nas tuas mãos encomendo o meu espírito”. Tinha quarenta e cinco anos e deixava minha mãe e seus filhos em situação de grave carência económica. Estavam, assim, destruídos os sonhos de me tornar engenheiro militar e de prosseguir o ensino regular. Se era verdade que fora obrigado a interromper os estudos regulares, o certo é que em todos os momentos que podia aproveitar dedicava-me à leitura, noite alta, apaixonado pela economia, Carlos Jaca 3 pela história e pela sociologia. Apesar de tudo nunca viria a abandonar, como autodidacta, os estudos técnicos, em paralelo com a minha paixão literária. A este propósito, não deixa de ser curiosa a opinião de um escritor do século passado – Manuel Mendes (1906-1969) quando, convictamente, considera ter sido a falta de recursos materiais que me defendeu de um dos piores perigos da nossa cultura, “pois até do mal se tiram vantagens”. Considera Manuel Mendes que, como já acontecera a Alexandre Herculano, eu, pouco ou nada teria ficado a dever ao ensino oficial… “nem um nem outro frequentaram a monástica Coimbra, e por isso não mamariam o leite grosso e indigesto da nossa cultura tradicional. Eis por que, talvez a ambos, foi dado também encarar e estudar os nossos problemas sociais, políticos e culturais, com uma visão mais livre e esclarecida, sem o peso de mil preconceitos e vícios de educação”. Sob este ponto de vista, parece-me que Manuel Mendes não tomou em linha de conta as honrosas excepções e… que não foram poucas. Para além de muitos outros, uma boa parte da “Geração de 70” passou por Coimbra, só que … mamaram por outra “teta”. Já agora, devo dizer que tinha, julgo, ideias bem definidas e sólidas sobre um ensino oficial antipedagógico e que soava a falso, e que nada tinha a ver com o que se passava além-Pirineus. Visando, particularmente, o ensino secundário, escrevia em 1873 na minha obra “Portugal e o Socialismo”: “A instrução secundária, constituída como está e engrenada no sistema geral dos estudos, produz estes três resultados: 1) Atrofiar as faculdades intelectuais das crianças pelo abuso do exercício da memória; 2) Materializar-lhes a inteligência e afastá-las do estudo pelo processo mecânico e exterior de ensinar buscando sempre as fórmulas, as datas, os nomes, as definições, em vez de procurar a razão de ser de tudo isso; substituindo à ciência a sua tecnologia, da mesma forma que na religião se substituía à ideia o símbolo frio e deificado; 3) Considerar o estudo, não como um fim mas como um meio; estudar não para aprender mas sim para fazer exame; resultando finalmente desta série a esterilização moral e intelectual das gerações”. Hoje por hoje, e a este propósito, não será de todo descabido aceitar que, “se non e vero e bene trovato”. Terminado o ano lectivo de 1857-58 fui obrigado a abandonar os estudos e a procurar meios de subsistência, ganhando para mim e para os meus o “pão que o diabo amassou”. Apesar de neto do Desembargador Joaquim Pedro Gomes de Oliveira a situação da minha família era modesta. Assim, aos quinze anos incompletos, começa para mim a dura experiência da vida, ao entrar para a casa comercial “Gruis & Companhia” como praticante de escritório. Carlos Jaca 4 Em breve, porém, me vi forçado a procurar colocação mais segura e vantajosa, o que consegui na firma “Ellicott, Abreu & C.ª”, dedicada ao comércio dos vinhos da Madeira, onde em pouco tempo obtive a total confiança e estima dos patrões. Chamavam-me por amizade e simpatia, o “Oliveirinha”. De qualquer maneira, o mundo dos negócios, do deve e do haver, dos balancetes, do caixa e do razão, era para mim apenas um meio de angariar o sustento. Apesar de todo o meu empenho no trabalho que me estava destinado, progredindo na prática comercial, arranjava meios de, e não obstante a minha débil saúde, fazer noitadas de autodidáctico estudo, embrenhando-me na literatura, na filosofia e na história. Através de obras adquiridas com o pouco que conseguia amealhar e das muitas que os meus amigos me iam emprestando, tomava contacto com um mundo intelectual em profunda transformação. Era o fim do romantismo, e um conjunto de novas aspirações, de novos ideais, de novos problemas, de desafios diferentes colocavam-se à Europa, que se ia industrializando a um ritmo cada vez mais rápido e avassalador. Antes, porém, de me lançar nesse mar vasto e revolto das ideias novas encontrei um Mestre, cuja obra e cujo exemplo me animam nos primeiros passos da formação intelectual. Tratava-se de Alexandre Herculano, cuja obra histórica, poética e romanesca me prende e influencia profundamente. A obra histórica do Mestre atrai-me particularmente, torna-se para mim o caminho que me permitirá a compreensão dos clássicos e da História, levando-me a Carlyle, a Guizot, a Tierry e a Michelet, ou a Momsen… Mas, a pouco e pouco, ver-me-ia crítico da perspectiva de Herculano, sem perder o fascínio pela personalidade e pela força do exilado de Vale de Lobos. Com dezassete anos, posso afirmar que já estava possuído duma maturidade invulgar, construída na dureza da vida e na luta contra a adversidade. Com meu irmão Francisco sustentava a casa e a família, o que exigia um esforço muito grande, sobretudo a quem dava os primeiros passos numa profissão insuficientemente remunerada e com perspectivas pouco realizadoras para um jovem que, como eu, sentia o apelo das Letras. Por esta altura, conheci uma jovem de ascendência inglesa com mais alguns anos do que eu – Vitória de Mascarenhas Barbosa – por quem me apaixonei. O amor é correspondido e ambos pensámos no casamento, apesar de ter menos de vinte anos e dos meus enormes encargos familiares. Durante o namoro procurei criar condições que me permitissem constituir família e não deixar desamparados minha mãe e irmãos. Com todas as dificuldades consegui-lo-ia no início de 1865 e, assim, com dezanove anos, na Igreja de Santa Maria de Belém, caso-me em 10 de Fevereiro com Vitória, que me acompanhará constantemente até aos últimos momentos da minha existência. Profundamente religiosa, vivíamos em perfeito entendimento e recíproca tolerância, nunca me opus à prática das suas devoções, nem ela procurou intervir nas minhas ideias. Carlos Jaca 5 Foi neste período que dei início à minha produção intelectual, trazendo a público “Febo Moniz”, romance histórico de intenção política, em torno da então candente questão do Iberismo, a que aderira, e ainda o opúsculo “Teófilo Braga e o Cancioneiro e o Romanceiro Português”, para além da colaboração dispersa no “Jornal do Comércio” e na “Revolução de Setembro”. O “Febo Moniz” (1867) romance histórico marcado pela influência de Herculano, não é bem recebido. Reconheço ser frágil literariamente, tendo pouca originalidade formal, a mensagem não é clara. Assim, mais tarde, considerei esse romance dos meus vinte anos como uma obra relativamente menor, não o tendo incluído depois no elenco das minhas obras, retirando-o do mercado. Não se prolongou por muito tempo a situação de relativa estabilidade que conseguira alcançar. Tendo falecido, entretanto, um dos sócios da casa onde me empregara, esta entra em liquidação obrigando-me a procurar novo modo de vida. A situação é ultrapassada quando, pouco depois, me é oferecida colocação em Espanha – o lugar de Administrador das Minas de Santa Eufémia, perdidas nas faldas da Serra Morena, na província de Córdova. O convite formulado devo-o a Henry Ellicott. Sabidas as minhas aptidões profissionais e os meus conhecimentos de engenharia, adquiridos pelo autodidactismo, bem como a situação de desemprego em que me encontrava, compreende-se a escolha e a aceitação da responsabilidade. É neste período que antecede a minha partida para as minas de Santa Eufémia que entro para o “Cenáculo”, famoso grupo onde pontificavam Antero de Quental e José Fontana; embora ausente do País, fui um dos doze signatários do programa das Conferências do Casino, datado de 16 de Maio de 1871. Da mesma época, por influência de Antero e José Fontana, é a minha adesão ao socialismo. As minhas relações de amizade com Antero datam de 1870, fins de Fevereiro, ou princípios de Março. Quanto a essa profunda amizade não irei alongar-me, porquanto já o Alberto Sampaio e o próprio Antero a deixaram bem vincada nos respectivos depoimentos ao suplemento Cultura do “Diário do Minho”. Quando, primeiro, o conheci, já o período da extravagância juvenil havia passado. Era um rapaz sedutor, como nunca encontrei outro. Em volta dele, os amigos ouviam-no fascinados pela sua palavra quente, mas sem ênfase, pela sua facilidade de improvisador, pela sua “vis” cáustica, em que o azedume, porém, se substituía pela ironia e pela “charge” até, nessas intermináveis palestras, quando as noites passavam rápidas, como instantes. Deviam ser alguma coisa semelhante aos diálogos dos atenienses, fora as ceias e as Aspásias. Eram banquetes de inteligência pura. Tive sólidas amizades. Fazia parte do grupo famoso dos “Vencidos da Vida”, e sabe-se como os homens desse grupo cultivavam entre si e fina flor da Amizade. Antero foi querido por Carlos Jaca 6 toda a “Geração de 70”. Fui, porventura, o seu melhor amigo, mas ele pagava-me na mesma “moeda”. Apesar das diferenças existentes, que se foram atenuando com o evoluir do tempo e do pensamento, seríamos, desde o momento em que nos conhecemos até à separação (motivada pelo seu suicídio), dois íntimos companheiros de lutas e angústias. De origens geográficas, de formação didácticas e de temperamentos diferentes, ambos percorremos caminhos totalmente diversos, que lentamente foram coincidindo. Porém, a amizade que Antero me dedicava, nunca o impediu de dizer-me aquilo que se lhe afigurava ser a verdade a respeito das minhas obras literárias. E, eu, nunca me abespinhei com a circunstância do meu querido amigo me criticar, apontando-me erros que deveria corrigir. Eram duas amizades indestrutíveis que o tempo teve o condão de fortalecer e aprofundar, num mundo de intrigas e malentendidos, de inveja e de ambições. Antes de partir para as minas de Santa Eufémia, onde me fixei a partir de 3 de Agosto, os amigos tentaram afastar-me da ideia, considerando-a uma perigosa aventura, não só pela minha debilitada saúde e de Vitória, mas também pela crise aberta pelo derradeiro e desastrado golpe do Marechal Saldanha, a “saldanhada”. Considerava-se, ainda, a instabilidade ibérica e até a esperança, dos meus amigos do “Cenáculo”, numa rápida instauração republicana… Todos os argumentos foram utilizados, mas não podia trocar a luta política incerta, por uma ocupação que me exigia o sacrifício do afastamento. As pesadas obrigações familiares motivaram essencialmente a escolha, que não deixou de ter sido difícil e dura. Enquanto estive em Espanha, funcionário de uma empresa mineira, entendi ser meu dever estudar a engenharia, porque além da vontade, possuía “também um espírito ansioso de acção útil”… O dia passava-o ocupado com os trabalhos burocráticos ou técnicos da mina, as noites dedicava-as à leitura, ao estudo e à reflexão. O que não pudera aprender nas escolas oficiais, aprendi ali, como autodidacta ávido do saber. Ainda assim, encontrei tempo para, conjuntamente, com a minha esposa, dedicar-me à missão de ensinar a ler os filhos dos mineiros e até os próprios mineiros analfabetos. Carlos Jaca 7 Quotidianamente contactava com cerca de quatrocentos mineiros cujos problemas e angústias procurava partilhar e resolver. Estava ali em presença da classe operária, não de um ente mítico, abstracto ou idealizado das obras dos utópicos, mas de uma realidade palpável, complexa e heterogénea. Esse convívio obriga-me a aprofundar ainda mais a minha reflexão sobre o socialismo, o que vai levar a interessar-me cada vez menos pelas discussões intermináveis do regime político-monárquico ou republicano. As condições materiais do operariado e as injustiças de que é vítima, enquanto classe, preocupam-me profundamente. Educado na dura escola da vida, através de uma aprendizagem, por vezes, dolorosa, não esqueci a lição aprendida, e isto levou-me à compreensão humana da vida do operário, quando as reivindicações dos trabalhadores não passavam de utopias. Foi o relacionamento, o calor humano com os humildes que me proporcionou a amizade profunda dos mineiros de Santa Eufémia. Essa amizade manifestou-se, de modo muito significativo, no dia em que deixei a administração das minas. Os operários tiveram grande desgosto, nesse dia ninguém foi ao trabalho: “Um enorme cortejo formado pelas crianças, mulheres e homens precedia, pelas veredas da Serra Morena, os seus protectores, durante o percurso que separa Santa Eufémia da estação de Almaden, causando assombro tão imponente manifestação”. Acredito que, com a minha saída, todo o pessoal das minas de Santa Eufémia perdia um amigo verdadeiro. Durante a minha estadia em Santa Eufémia, colaborei nos vários jornais que os amigos vão lançando, “Pensamento Social”, “Democracia”, “República Federal” e publiquei sucessivamente, “Camões, os Lusíadas e a Renascença”, “A Teoria do Socialismo” e “Portugal e o Socialismo”. A experiência migratória fora um recurso momentâneo, do qual procurei libertar-me logo que surgisse uma hipótese de regresso definitivo à pátria. A ocasião desejada surgiu logo em 1874, quando Henry Ellicott e o Barão Kessler me convidaram para dirigir, com eles, a construção do caminho-de-ferro do Porto à Póvoa de Varzim. Daí a fixação de residência na cidade do Porto, primeiro na Boavista e depois na célebre “Casa da Pedra” nas Águas Férreas, muito frequentada e celebrada pelos meus amigos. Entre 1874 e 1876 decorrem as obras da via férrea, que me ocupam inteiramente o tempo. Há problemas técnicos a solucionar, torna-se indispensável acompanhar, fiscalizar, corrigir e garantir minuciosos estudos de terrenos e trajectos. Não apenas estudava e acompanhava a concepção técnica, mas também ia ao terreno, percorrendo toda a extensão da linha em construção, para que tudo decorresse da melhor maneira. Carlos Jaca 8 Em 1876 assumi a direcção da linha de caminho-de-ferro, lugar que desempenhei durante doze anos, até 1888. Neste lugar comecei por criar uma caixa de Socorros Mútuos para o pessoal, procurando, deste modo, pôr em prática muito daquilo que defendia teoricamente. Terminadas as tarefas eminentemente técnicas iria, agora, iniciar-se um novo período da minha vida. Neste retiro de Águas Férreas realizaria o maior e o melhor da minha obra. De 1877 a 1888 escrevi mais de uma dezena de volumes, além da colaboração assídua em jornais. À publicação de obras novas tinha que juntar a tarefa das reedições, pois algumas em breve se esgotavam, dada a curiosidade e o interesse que os meus escritos, provavelmente, despertavam. Da minha actividade como historiador e da minha participação na política activa falarei a seu tempo, acautelando, desde já, que, por motivos óbvios, qualquer dessas actividades não poderá ser alvo de grandes especulações, especialmente a primeira, a de historiador. Para além dos assuntos literários, estudava economia e finanças, procurando compreender o País nos seus problemas e nas suas energias disponíveis. Assim, em 1878, participei no concurso aberto pela Academia Real das Ciências sobre a concepção do melhor sistema de circulação fiduciária. Elaborei uma memória de duzentas páginas, acompanhada de inúmeros anexos e notas, quadros e justificações. O resultado não poderia ter sido mais brilhante – fui eleito sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, e recebi a medalha de ouro, distinções conferidas por decisão do júri do concurso a que apresentara a memória “Circulação Fiduciária”. A obra tem sólida fundamentação, debruçando-me sobre “a moeda”, “as crises de emissão” e “as organizações bancárias”. No essencial a “Circulação Fiduciária” é um libelo acusatório contra o livre-cambismo e contra uma economia especulativa de “pés de barro”. O princípio do sistema deveria estar na separação do comércio e do serviço bancário, limitando o primeiro ao foro da liberdade individual ou da responsabilidade do direito comum… o banco central deveria ser o regulador do crédito e da circulação, o que permitiria acabar com os defeitos perversos de especulação e promover a organização do sistema financeiro. No ano seguinte iniciei a Biblioteca de Ciências Sociais, esclarecendo no prospecto que a anunciava, destinar-se “a vulgarizar entre nós conhecimentos essenciais à vida de uma nação, destina-se não só ao público em geral, mas também ao ensino secundário, que é o alicerce indispensável da sólida ilustração de um povo. […] Alheia a todo e qualquer ponto de vista partidário”, o seu objectivo primacial consistia em “generalizar entre as classes médias portuguesas uma ordem de conhecimentos que, sem ofensa dos nossos brios, se pode dizer ignorarem”. A colecção dividir-se-ia em quatro grandes partes: a “Pré-História”, a “História”, a “Civilização Peninsular” e as “Sociedades Contemporâneas”. As manhãs e os serões eram inteiramente dedicados ao estudo e à elaboração das obras que me comprometi a entregar periodicamente à Casa Bertrand. Às seis horas da manhã já estava à Carlos Jaca 9 banca de trabalho, escrevendo quase sempre de pé, sentando-me só para fazer consultas e leituras. Este primeiro período vai ininterruptamente até ao meio-dia, altura que fazia uma pausa, para tomar uma refeição, depois da qual me dirigia para a sede da Companhia dos Caminhos-de-Ferro do Porto à Póvoa de Varzim situada perto de minha casa. Ao serão tinha, por vezes, visitantes. Antero e Lobo de Moura são convivas assíduos. Entretanto, surge por iniciativa da imprensa portuense o lançamento das bases da fundação da Sociedade de Geografia Comercial do Porto, por ocasião do tricentenário de Camões (Junho de 1880). Fundada na redacção do “Jornal das Viagens”, a iniciativa apontava para uma afirmação económica das províncias do Norte, procurando fomentar os estudos e a união de esforços a realizar nesse sentido. Fui convidado para presidir à nova Sociedade, se bem que na altura da decisão me encontrasse acidentalmente em Lisboa a tratar de assuntos ligados ao caminho-de-ferro do Porto à Póvoa, de que então era director. Aceitei a incumbência e iniciei funções na sessão de 11 de Julho, na qual foram reafirmados os objectivos a prosseguir pela nova agremiação. Para além de criar escolas de geografia comercial que preparassem futuros empresários, o problema da industrialização preocupava-me. Na Sociedade de Geografia Comercial do Porto empenhei-me na elaboração dum extenso e fundamentado relatório sobre a situação industrial no Norte de Portugal onde se sustentam teses proteccionistas e se defende a necessidade de um arranque industrializador, condição essencial para o melhor aproveitamento dos recursos e das riquezas. Efectivamente, em 1881, apresentei ao Governo o “Relatório da Comissão de Inquérito Industrial”, relatório esse que me obrigou e aos meus companheiros da Comissão a um enorme esforço, porquanto tratava-se de um trabalho de grande envergadura. Pois tudo isto foi feito sem qualquer remuneração pecuniária, porque largamente me considerava pago por se me ter proporcionado o ensejo de estudar e mostrar ao governo a situação precária das nossas indústrias, apresentando os alvitres a seguir para a remediar. Tudo isso, repito, foi feito desinteressadamente. Colaborei no inquérito, posso dizê-lo com um certo orgulho desculpável, com dedicação e amor. Nada pretendia, porque não me ocupava da política, nem era fabricante: nada queria para mim, desejava apenas ser, de algum modo, útil à minha infeliz terra. A satisfação de um dever cumprido era a única retribuição condigna de trabalhos da natureza desses. Assim, não admira que me tivesse magoado de me terem acusado de receber gorda remuneração por tal trabalho. Doeu-me, e nem a mim só, quando se disse terem-nos pago não sei quantas libras ao dia, a nós que não recebemos um ceitil. Em 1883 e 84 prestei boa parte da minha atenção ao Museu Industrial e Comercial do Porto, para cuja directoria fui nomeado por António Augusto de Aguiar, trabalhando para a sua instalação. Elaborei, ainda, um plano de conjunto sobre a criação de outros museus do mesmo tipo, Carlos Jaca 10 encarados como núcleos de estudo e de difusão de progresso e de inovação. Devo dizer que exerci o cargo gratuitamente, como, aliás, aconteceu com muitas outras tarefas públicas por mim desempenhadas. Agosto de 1887 é um mês agitado. Os ecos da questão bancária ainda se faziam sentir, ao mesmo tempo que rebenta a questão dos tabacos para a qual iriam estar frente a frente três posições possíveis para a sua solução política. No seio do Governo rebentava, assim, mais uma fonte de discórdia entre o Presidente do Ministério, José Luciano de Castro e o titular da pasta da Fazenda, Mariano de Carvalho. Nesse mesmo ano de 87 sou eleito deputado pelo Porto, tendo, no ano anterior, recusado o Ministério da Agricultura por razões que, para já, aqui e agora, não interessa divulgar. Corria o ano de 1888 quando deixo o Porto e instalo-me com “armas e bagagens” em Lisboa, no 1º andar da casa onde morava o Ramalho Ortigão, ao Bairro Alto, na Rua dos Caetanos, e assumi a direcção de “O Repórter” onde substituí Manuel Pinheiro Chagas. Aí passei a escrever diariamente um comentário sobre questões políticas, económicas ou pedagógicas. Eça, Ramalho, Fialho de Almeida, António Cândido, Guerra Junqueiro, Luís Magalhães, Maria Amália Vaz de Carvalho, Lobo d’Ávila, Conde de Ficalho e outros, eram os fundistas concedendo uma qualidade acentuada ao Jornal. Juntando-se-lhes os nomes de Antero, Jaime Magalhães Lima, Alberto Sampaio e Rocha Peixoto constatava-se que tinha comigo a elite intelectual do País. No entanto, continuei a manter intensa actividade nas comissões parlamentares, privilegiando a defesa da indústria nacional e dos direitos dos trabalhadores. Ao findar o ano de 1888 aceitei a Administração da Régie dos Tabacos. A situação desastrosa da empresa teria levado o próprio Rei, e depois o Governo, a indicar o meu nome para resolver tão grave situação, com o argumento de que eu tinha sido um dos defensores mais acérrimos da situação que veio a ser adoptada. Perante a notícia, os ataques não se fizeram esperar: os Regeneradores e os Republicanos vieram com a argumentação de sempre, a que juntaram o vencimento de 75.000 réis mensais, qualificado como principesco; outros jornais diziam que se tratava de obra do Mariano de Carvalho (Ministro da Fazenda) para me comprometer, “acabando com a fama das suas (minhas) capacidades”. A campanha veio, porém, a ser diluída pelos factos, porquanto a minha administração se viria a revelar bem positiva: procurei aliar os interesses do Estado com os dos operários, que era o que sempre tivera em vista. Carlos Jaca 11 Era este o primeiro serviço público que eu prestava recebendo retribuição. Se aceitei este lugar em tais condições foi porque me pesava ter consumido tão grande parte das minhas forças, e não ver garantido o meu futuro e, portanto, o dos meus. Começava já a sentir-me cansado e a pensar que má sorte me esperava se a doença me vencesse. Em 1890 representei o Governo em conferências internacionais: Conferência Internacional de Berlim e Conferência de Propriedade Industrial (Madrid), e, na ressaca do “Ultimatum”, impugnei na imprensa os termos do tratado anglo-luso de 20 de Agosto, em escrito que viria a reunir no ano seguinte, em “Portugal em África” (1891). Neste mesmo ano, em 24 de Fevereiro, realizei uma conferência no Ateneu de Madrid, integrada no quarto centenário do descobrimento da América. Essa conferência foi proferida em língua castelhana, com o título “Navigaciones y Descubrimientos de los Portugueses anteriores al viaje de Colón”. No dia seguinte, o jornal espanhol “La Epoca” dava relato do acolhimento que o público me fizera: “A concorrência era a das noites de gala no Ateneu: as letras como as artes, a política e ciência, estavam brilhantemente representadas. Para onde quer que se olhasse via-se um homem ilustre. Já antes de se apresentar, o conferencista fora ovacionado (…). Mas, ao apresentar-se, a ovação foi doutro género, ressoou tão larga e forte salva de palmas que parecia não ter fim”. Todo o mundo oficial e particular me recebeu festivamente, considerando-me mais do que na minha própria terra. A Real Academia de História fez-me seu sócio – honra tanto mais significativa quanto é certo só ter sido concedida a dois estrangeiros: Momsen e César Cantu. Reconhecido, o Ateneu de Madrid elegeu-me sócio, e o Governo espanhol agraciou-me com a Grã-Cruz do Mérito Naval… Só em Portugal não tive nunca uma simples portaria de louvor! Emílio Castelar, Canovas del Castillo e Sanchez Moguel consideraram a minha presença na capital espanhola como algo de extraordinariamente importante no estreitamento das relações ibéricas, o que os levou a lançar a entusiástica ideia de uma Liga Ibérica que teria no embaixador português Conde de Casal Ribeiro também um defensor. Entretanto, a Régie dos Tabacos é extinta e substituída pela solução do monopólio, por virtude das enormes dívidas contraídas pelo Governo em relação a Henry Burnay e pelas inúmeras pressões exercidas para que a solução “socializante” fosse revogada. Nomeado para a comissão liquidatária rejeitei a indicação, com o argumento de que não desejaria perder o lugar de deputado. Tratava-se, porém, dum pretexto visto que, essencialmente, o que eu desejava manifestar era o meu desacordo pela solução adoptada. A indústria é entregue em monopólio ao banqueiro Burnay. Obrigado de novo a ganhar, na incerteza do dia de amanhã, e com o suor do rosto, o pão diário, mais de uma vez me passou pela cabeça emigrar – porque a filosofia é excelente, mas antes disso é mister viver. E viver para mim, 12 Carlos Jaca que não tinha riqueza, nem ofício, nem profissão definida, era um problema, querendo, como queria, conservar-me limpo e … conservei! O Historiador Se hoje ser juiz em causa alheia é o “cabo dos trabalhos”, também não é muito confortável sê-lo em causa própria. Já referi, anteriormente, que o faria de forma muito breve, não entrando pela via das grandes considerações e tentando ser o mais isento possível. Naturalmente não deixará de ser algo subjectiva uma análise, breve que seja, nestas condições, porém, convenhamos que passado mais de um século, essa apreciação terá, forçosa e honestamente de ser mais fria. De qualquer modo poderão dispor, hoje, de diversos autores de reconhecido mérito ainda que apenas em relação a aspectos parcelares da minha obra; tal é o caso de António José Saraiva, como antes já tinha sido o de António Sérgio. Existem, ainda, inúmeras biografias, com diversas dimensões e ópticas, onde naturalmente a perspectiva crítica surge apenas traçada ou esboçada. Nestes termos a bibliografia disponível é rica. O certo é que continuo, ainda, a ser tema de debates e de polémicas, por vezes tão acesas que as pessoas se esquecem que pertenci a uma geração que atingiu a sua maturidade há mais de cem anos. Diga-se, porém, em abono da verdade, que hoje já se assiste a uma discussão mais serena do que aquela que se desenvolveu quando ainda estavam abertas as feridas da oposição republicanismo- monarquismo. Por ser justo recordo aqui especialmente a elevação intelectual e cívica de António Sérgio, que desde o primeiro momento que estudou a minha pessoa o fez com verdadeiro espírito crítico (algumas vezes severo), abandonando a predominância dos temas que tinham menos a ver com a minha obra e comigo do que com a intriga de grupo ou de capela… Apesar de ser meu sobrinho-neto, Guilherme d’Oliveira Martins, o que foi Ministro, num ensaio biográfico que elaborou, recusou-se a seguir qualquer tipo de panegirismo ou de justificação sistemática para os meus erros e incoerências. Esses existiram e não podem ser escamoteados, como também não é possível cair na conclusão doentia daqueles que, por facilidade preferem optar por ver só negrume e treva no meu pessimismo. E mais: onde alguns vêem negrume e treva pode ver-se o apontar veemente de caminhos que não têm sido seguidos, e que foram (e são-no, hoje) sucessivamente adiados. Carlos Jaca 13 Se o meu sobrinho-neto tivesse traçado uma hagiografia ou um retrato intocável não quadrariam, porém, com a minha obra, a minha vida, a minha personalidade e a minha existência… Eu seria o primeiro a recusá-los – a honestidade sempre esteve na “massa do sangue” da nossa família. Como historiador pretendi apresentar um tipo de história ao alcance das massas populares, procurando explicar as grandes mutações e lutas sociais do presente em termos históricos. Este novo estilo de história acabaria, inevitavelmente, por suscitar larga polémica, porquanto uns a rotularam de “história artística, outros de história explicativa, outros ainda de história sem valor histórico”. Com o “Helenismo e a Civilização Cristã”, obra de interesse filosófico profundo, publicada em 1878 e dedicada a Antero de Quental, fiz a minha estreia como historiador. Precisamente na introdução desenvolvi o meu conceito de história – como ciência obedecia a leis, mas havia factos que estavam fora do império dessas leis. E se as excepções são mais numerosas na história do que em qualquer outra ciência positiva, isso resulta do “lugar superior, por mais complexo, que a história ocupa na hierarquia das ciências”. A história caracteriza-se pela multiplicidade dos casos fortuitos e assim à sua linguagem não bastavam a precisão e a clareza; “é mister sentir e adivinhar”. O historiador não reproduzirá a vida nem a sociedade, se não lhe for possível “combinar no seu espírito o raciocínio que descreve, a intuição que vê, e a alma que sente”. Este processo que, por vezes, traz algum realce às minhas deduções não deixa de ser, no entanto, reconheço, um dos defeitos das minhas obras históricas. Com o “Helenismo” procurei explanar uma determinada visão do processo evolutivo das sociedades humanas, relacionando-o com os fenómenos religiosos e com a procura de um sentido racionalizador desse processo. Entre 1879 e 1885, publiquei as obras que me consagrariam como historiador: “História da Civilização Ibérica”, “História de Portugal”, “O Brasil e as Colónias Portuguesas”, “Portugal Contemporâneo” e “História da República Romana”. Já referi que à publicação de novas obras tinha de aliar a tarefa das reedições, pois algumas facilmente se esgotavam. A “História da Civilização Ibérica” é, como o “Helenismo”, uma dissertação ou ensaio, ou mais propriamente, um misto dos dois processos, o ensaio e a narrativa. Carlos Jaca 14 A “História da Civilização Ibérica” é para mim o estudo do sistema de instituições e de ideias da sociedade peninsular e a exposição da sua vida colectiva orgânica e moral. Sobre a “História da Civilização Ibérica”, permitam-me recorrer às palavras do grande Miguel Unamuno, gravadas no seu livro “Por tierras de Portugal y de España”: “A sua “História da Civilização Ibérica” deveria ser um breviário de todo o espanhol e de todo o português culto, e não devia haver tão pouco um hispano-americano, dos que tão frequentemente buscamos na nossa história e nossa casta os antecedentes das suas, que não conhecesse esse livro admirável”. A “História da Civilização Ibérica” é uma obra especial de entusiasmo e de crença nos ideais peninsulares, na solidariedade dos povos ibéricos e nas suas virtualidades. Do mesmo ano, Outubro de 1879, é a “História de Portugal”. Em preâmbulo faço a seguinte advertência: “para caracterizar o que há de particular na história portuguesa … resta fazer viver os seus homens e representar de um modo real a cena em que se agitam: tal é o programa deste livro, cujas dificuldades de execução excedem em muito as do anterior. Agora carece-se de faro especial da intuição histórica e dum estilo que traduza a animação própria das coisas vivas. Toda a longanimidade (generosidade) do leitor será pois necessária para desculpar as imperfeições da obra”. Embora, antecipadamente, tivesse pedido desculpa para as eventuais imperfeições, considero hoje, que, de facto, como obra histórica a “História de Portugal” tem erros, devidos à falta de documentação, sempre demorada, e por isso mesmo incompatível com a rapidez, o calor da improvisação; resultantes outros de algumas ousadas generalizações, partindo às vezes de um facto secundário, que exaltava até ao característico de uma época. Daí a minha concordância com António Sérgio (aliás, meu admirador e compilador devotado dos meus “Dispersos”), quando afirma que a “História de Portugal” “não foi escrita com o critério a que se chamava histórico. A verdade é que Oliveira Martins, prosador inspirado como poucos foram, só é um mestre perfeitamente claro, com rigor de análise e seriação de ideias nos seus escritos de economia pura; quando entra, porém, na concreta história, sente-se-lhe a riqueza e a pujança da sensibilidade e da fantasia mas não há sequência, nem rigor, nem forma no senso crítico”. Não fui um historiador no sentido rigoroso da palavra? Admito. Em contrapartida há quem considere a “História de Portugal” uma admirável obra de arte, cheia de movimento dramático, estuante de vigor e de vida, e que nenhum escritor português possuiu, em tão alto grau, a faculdade de descrever interiores de alma. De facto, parece haver unanimidade quando se diz que fui um excelente evocador, um extraordinário historiador-artista, e que até terei sido pioneiro no campo da biografia histórica. A expansão marítima e colonial portuguesa serviu-me de assunto ao “O Brasil e as Colónias Portuguesas”, obra também integrada na Biblioteca da Bertrand e dada à estampa no início de 1880. Carlos Jaca 15 Nesta obra onde se encontra um longo excerto da Carta de Pêro Vaz de Caminha, debruceime sobre a colonização da África e das Américas austrais. Conforme salienta o Professor George Le Gentil fui o primeiro em Portugal a descobrir a importância dos algarismos, das estatísticas. Com efeito partiu de mim toda a sistematização da ciência portuguesa da colonização: a diversidade de categorias das colónias e dos métodos, o estudo estatístico, movimento de importação e exportação, das receitas das alfândegas, a história dos estatutos das companhias e da legislação comercial, os orçamentos navais, etc. Nesta obra, ao optimismo sobre as potencialidades do Brasil, contrapus uma funda reserva relativamente ao futuro da acção colonizadora portuguesa em África. Esta apenas poderia tornar-se eficaz se exercida por um país e por uma economia com capacidade industrial, com aptidões para a criação de riqueza e para um melhor aproveitamento dos recursos, o que infelizmente não era o caso… Os acontecimentos da década seguinte, o conflito com a Inglaterra e o incidente do Mapa Cor-de-Rosa vieram confirmar as minhas preocupações. O período do liberalismo foi a matéria do “Portugal Contemporâneo”. Na advertência à primeira edição, vinda a lume em 1881, fazia questão em afirmar: “o Portugal Contemporâneo sem ser miguelista nem liberal, nem cartista nem setembrista, nem regenerador nem histórico, nem monárquico nem republicano, de certo não satisfaz à opinião pública de nenhum grupo, ao sistema de nenhuma doutrina; mas por isso servirá melhor à História, se o autor pôde desempenhar-se da tarefa concebida”. Quando saiu, a obra sofreu, porém, críticas severas de quase todos os lados. Uns consideraram-na miguelista por ser demasiado condescendente para com o rei absoluto, outros acusaram o quase esquecimento da importância e do significado da Carta Constitucional de 1826, outros ainda criticaram a insuficiente contundência contra o regime monárquico-parlamentar. Enfim, houve críticas para todos os paladares e de quase todos os grupos ou capelas. Ao longo de cerca de setecentas páginas retratei não só a evolução política e social portuguesa durante quase cinquenta anos, mas também as variadas causas e manifestações de uma fragilidade congénita da sociedade e de uma desorganização confrangedora dos poderes políticos… Tendo ao meu dispor maior e mais acessível abundância de documentos, esta obra foi sob o ponto de vista histórico, mais informada, mais recheada de factos. Efectivamente, para escrever o “Portugal Contemporâneo” utilizei fontes das mais diversas origens, desde obras impressas até aos relatos das sessões parlamentares, imprensa da época, correspondências oficiais ou diplomáticas e ainda testemunhos orais. Porém, conhecendo o cenário, directa e indirectamente as pessoas, presenciando alguns acontecimentos e baseado, em grande parte, nos jornais partidários, nos violentos panfletos e nos manifestos facciosos da época, admito ter sido mais de uma vez severo ou me terei equivocado em Carlos Jaca 16 algumas circunstâncias. Aliás, este pressuposto foi considerado, por mim próprio, na advertência: “Andam vivos os monumentos da história actual, e mais de uma vez, de certo, muitos deles poderão corrigir as afirmações, as opiniões formuladas. Oxalá o façam todos – oxalá possam rasgar uma a uma as páginas tristes que pululam nesta obra! Oxalá, com as suas rectificações, forcem o autor a moderar a melancolia dominante no seu livro”. A “História da República Romana”, último volume publicado pela Biblioteca de Ciências Sociais (1885), porventura a obra onde melhor me revelo desenvolvendo um estilo a um tempo plástico e dramático, apresenta uma sequência de retratos, descrições e narrações, que frequentemente comento, interpreto, explico e comparo. Tratava-se de uma história extensa, desde a lenda dos Reis, o Senado, o Tribunado da Plebe e da igualdade política, até às conquistas, guerras púnicas, guerras civis e cesarismo, havendo quem considere esta obra uma peça da cultura europeia. O meu ingresso na prática política teria forçosamente de provocar um abrandamento, ou até uma supressão nos meus trabalhos históricos. Assim, “Os Filhos de D. João I”, publicado, inicialmente, em 1889 e 1890, na “Revista Portugal”, fundada e dirigida por Eça de Queirós, saem a lume no ano seguinte, em edição ampliada, corrigida e documentada. Após ter exposto a minha teoria histórica e ensaiado uma interpretação crítica da história grega, romana, ibérica e portuguesa, propunha-me demonstrar que a intervenção da personalidade tinha sido na História de Portugal acentuado factor de progresso e de modelação social. Efectivamente, fazer psicologia histórica foi característica principal da minha última fase de historiador. A “Vida de Nun’Álvares”, na sua composição, segue o plano de “Os Filhos e D. João I”. Relato as convulsões políticas do interregno, destacando a figura do Santo Condestável, descrevo a nova sociedade portuguesa depois da subida ao trono do Mestre de Aviz e procurei reconstruir todo o viver de D. Nuno, desde o seu recolhimento abstencionista nas suas terras, até à sua profissão monástica no Convento do Carmo. Propunha-me ainda, se dispusesse de “saúde, de vida, de inteligência e de sossego de ânimo, bastantes”, escrever três livros: A figura trágica de D. João II, o grande Afonso de Albuquerque e D. Sebastião. Carlos Jaca 17 O Político Já nos últimos anos da minha vida, fiz uma rotação em sentido conservador, decidindo entrar na política activa dentro dos quadros das agremiações partidárias do regime monárquico, ou mais propriamente, no Partido Progressista, um dos grandes partidos que asseguravam o regime entre 1851 e 1907. Mantivera-me até então alheio à política constitucional e a toda a política directa, pois na qualidade de republicano-socialista, era essa a referência da época, a minha acção fora meramente doutrinária. No entanto, também não deixei de considerar ser o Partido Progressista o melhor situado para veicular as minhas ideias e desenvolver uma dinâmica de execução e realização do meu programa. Por outro lado, tratava-se de um partido de tradição e carácter democrático nacional. E mais, para mim o Partido Progressista era o herdeiro do “Setembrismo” democrático, o partido de Passos Manuel e de Sá da Bandeira. Acresce ainda, que na liderança desse partido pontificava o “velho” Anselmo José Braancamp, homem com uma longa vida política, constituindo um vivo exemplo de isenção, patriotismo, coerência e firmeza moral. A sua respeitabilidade não poderá ter deixado de exercer notável influência na minha decisão, sendo pois pela mão de Braancamp que entrei no Partido Progressista. Fui apresentado ao Partido, onde grassava uma crise que se arrastava desde 1885, justificando a minha entrada na prática política pela crise profunda vivida pelo País, que exigia um empenhamento cívico em prol de reformas autênticas do revigoramento da economia e da resolução do problema social. O facto de ter descido ao terreno para tentar aplicar o meu ideário político, levantar-me-ia uma série de críticas e ataques, com particular veemência do lado dos republicanos, que me acusaram com todas as letras de “trânsfuga”. Porém, não era apenas a hostilidade dos republicanos que se manifestava, era também a frieza dos progressistas. Nem todos, claro. Outros consideraram, ainda, que a minha atitude tinha sido inoportuna, sobretudo pelo momento escolhido. Assim não pensava o Antero, quando confidenciou a seu primo, Sebastião de Arruda: “O Oliveira Martins é o único homem político superior que temos, pois reúne a um elevado carácter um saber vasto e não só teórico mas técnico, e um poder de trabalho incomparável. Quando um homem dá um passo, como ele deu, o dever da gente séria ainda quando o não aprove, é não o estorvar na sua tentativa, reconhecendo a pureza das suas intenções. Os republicanos, porém, cobriram-no de insultos e imputações as mais baixas…” Carlos Jaca 18 As variadas reacções à minha atitude, porém, não me incomodaria. Quanto à indiferença e à frieza dos monárquicos, considerei-as como manifestações de resistência ao movimento rumo à Igualdade e à Justiça, do mesmo modo que quanto à excitação republicana não era mais do que uma tremenda incapacidade da parte do jacobinismo positivista para compreender as necessidades das transformações estruturais da economia e da sociedade. O certo é que a minha adesão ao Partido Progressista constituiu uma autêntica bomba nos meios político-literários. No início do ano de 1885, pouco antes de entrar no Partido, coligi e publiquei um volume de artigos dispersos, “Política e Economia Nacional”, em cujo prefácio lancei os fundamentos da “Vida Nova” e fundei o jornal “A Província” destinado a ser o órgão desse movimento político. Tratava-se de um programa ambicioso e profundo. Em síntese, a “Vida Nova” propunha-se reformar o País, reencontrando o projecto regenerador de 1820 e de 1834. No ponto a que as coisas tinham chegado não havia remédio possível fora de uma vida nova, em que, pondo de parte interesses e rivalidades pessoais e partidários, esquecendo as questiúnculas mesquinhas de conventículos políticos, nos dispuséssemos sinceramente a meter as mãos à obra reformadora da nossa sociedade; a dissipar por sua vez a ilusão cruel de que explorando por todos os modos o Estado nos não explorássemos a nós mesmos. E mais, conforme confidenciei ao meu amigo Luís de Magalhães, “uma nação em marcha para uma crise grave, não se salva com ideias formuladas em livros: salva-se, sim, mas com ideias realizadas em actos.” Subitamente, quando menos se esperava, Braancamp adoece gravemente e morre a 13 de Novembro, abrindo, assim, mais um período de querelas e de jogos no seio dos Progressistas. Procedendo-se à eleição no dia 10 do mês seguinte é eleito para a liderança do partido, José Luciano de Castro, uma das mais manhosas “raposas” que actuou na política portuguesa no fim da monarquia liberal. Político hábil e inteligente, mas demasiado habituado aos equilíbrios e aos arranjos circunstanciais, mais do que às mudanças profundas… No início de 1886 o governo regenerador vê-se a braços com dificuldades. Há descontentamento, designadamente por causa das leis tributárias de Hintze Ribeiro, enquanto o conflito entre o concelho de Guimarães e Braga está ao rubro, por via dos pesados encargos lançados pela sede do distrito. Em Fevereiro, Fontes Pereira de Melo solicita o adiamento da sessão parlamentar, adiamento esse que o rei, D. Luís, recusa. O Governo não tem outra alternativa senão pedir a demissão abrindo, na lógica rotativa, caminho à nomeação de José Luciano de Castro. Neste cenário contava, logicamente, que me fosse confiada uma das pastas, ou melhor a Fazenda, em consequência de acordo anterior com o chefe do partido. Aconteceu, porém, que a pasta da Fazenda foi entregue a Mariano de Carvalho, um dos maiorais do partido. Carlos Jaca 19 O Presidente do Conselho indigitado ainda me pôs a hipótese das Obras Públicas. Não hesitei e declinei o convite, consciente do melindre da situação, porquanto sentia as más vontades crescentes a meu respeito dentro do próprio partido. Complicações de ordem política levaram José Luciano de Castro a propor-me a pasta da Agricultura que ulteriormente seria criada e cuja gerência me seria entregue mais tarde. Então, fechei-me nas Águas Férreas, rodeado de relatórios e estudos sobre o problema agrícola, preparando-me para o que desse e viesse. Em Março sou nomeado para presidir à comissão encarregada de elaborar um inquérito agrícola nacional. Estaria deste modo em preparação o novo Ministério. Entretanto, fui eleito deputado por Viana do Castelo o que, teoricamente, reforçava a minha condição de ministeriável. Porém, o Conde de Casal Ribeiro é designado para presidir à comissão de análise dos resultados do inquérito, cabendo-me a mim a coordenação da zona norte. A solução vai tendo entraves. O Ministério da Agricultura continuava em “lista de espera”. Perante as delongas, pus o lugar à disposição e respondi: Quem quiser que faça o inquérito, eu não o faço!” José Luciano de Castro insiste que o ministério está para breve, voltando a questão a Conselho de Ministros. Percebendo que a minha subida ao poder era motivada por uma imposição e não por vontade livre do partido, decidi não aceitar o convite, ficando sem efeito o decreto já lavrado, para criação do referido ministério. O boicote da dupla Emídio Navarro (Obras Públicas) – Mariano de Carvalho (Fazenda) era mais do que óbvio. Um grupo de progressistas da “capela” de Mariano e Navarro enviaram, mesmo, um abaixo assinado a José Luciano contra a minha entrada no Governo. O Primeiro-Ministro colocou a questão da manutenção ou não do convite que me fora formulado. Todos votaram favoravelmente, à excepção de Emídio Navarro e Mariano de Carvalho. Nestas circunstâncias não havia outra hipótese e, assim, decidi-me pela recusa de entrar no executivo, fundamentando-a em carta que enviei (2/7/1886) ao presidente do Conselho. A intriga e chantagem venciam. Emídio Navarro e Mariano de Carvalho viam em mim um rival e faziam-me má imprensa em Lisboa. Era, com efeito, um “vespeiro”, onde a minha lealdade não sabia manobrar. No fundo, fui iludido e atraiçoado pela manha e velhacaria dos politiqueiros. Após o jogo da “cabala” com a constituição do governo de José Luciano, o meu interesse pela vida partidária diminuiu e as intrigas em torno da eleição para a Câmara do Porto só agravaram esse estado de espírito. Porém, em Março de 1887, há de novo eleições gerais. Os adversários tentaram torpedear a minha candidatura, sofrendo mais uma vez a oposição tenaz de Emídio Navarro e Mariano de Carvalho. Aguardados os resultados do círculo nº 24 (Porto), as melhores previsões foram ultrapassadas, tendo sido eleito sem dificuldades por número considerável de votos. O operariado 20 Carlos Jaca votara maciçamente e o eleitorado tradicional progressista também acorrera à chamada. Esta vitória também significava que as “raposas” jamais perdoariam, porquanto eu continuaria a lutar contra os interesses negocistas e contra a politiquice mesquinha e soez. Quando se falou do meu nome para a pasta da Agricultura e Emídio Navarro me encarregou do inquérito rural, estudei a questão agrícola portuguesa, relacionando-a essencialmente com o programa de acção contido na “Política e Economia Nacional” e com as grandes linhas do meu pensamento expressas em diversas ocasiões. Assim, na sessão de 27 de Abril de 1887, recém-eleito deputado pelo Porto, tomei a palavra para apresentar o “Projecto de Lei de Fomento Rural”, no qual, ao longo de 284 artigos, distribuídos por nove títulos, apresentei as traves-mestras de uma reforma estrutural de que o País necessitava absolutamente. Numa intervenção despida de quaisquer rodeios retóricos e centrado na análise do estado das classes trabalhadoras rurais” e da corrente emigratória, pus diante da Câmara um diagnóstico sobre a situação “em que se encontra o País (…), que parece contrastar de um modo gravíssimo com aquele que se afigura a muitas pessoas, que não olham além do perímetro da capital”. O mal era estrutural, logo carecia de ser resolvido através de medidas de fundo que atingissem as verdadeiras raízes da situação que, a meu ver, consistiam na defeituosa distribuição populacional, na alta percentagem de terrenos incultos e nas deficiências da distribuição do crédito. O “Projecto de Lei de Fomento Rural” seria o meu plano de governo, se tivesse sido governo. António Sérgio, normalmente parco em elogios a homens e a livros chamou-lhe “uma maravilha” A despeito das qualidades e vantagens que Alberto Sampaio apresentava no meu programa, sabe-se qual foi o destino desse projecto de lei. A Câmara dos Deputados não chegou sequer a discuti-lo. A Câmara sepultou o projecto nas páginas do “Diário das Cortes” e… passou adiante! A burguesia monárquica confirmava assim as razões do cepticismo que se havia generalizado na sociedade portuguesa. Então, compreendi que não seria como deputado, ido da província, que poderia interferir de um modo construtivo nos negócios do Estado. No meu íntimo havia, ainda, alguma esperança nas possibilidades de levar a cabo o meu vasto plano, parte do qual era expressão o “Projecto de Lei de Fomento Rural”. Por isso, e como já disse, resolvi deixar o Porto e a minha posição à frente do caminho-de-ferro na Póvoa, instalandome em Lisboa, cidade onde nasci, e passando a dirigir “O Repórter” para orientar a política do partido em época particularmente grave para o País. Efectivamente, o ambiente da vida portuguesa ia-se complicando. Carlos Jaca 21 Em 19 de Outubro do ano seguinte à minha fixação em Lisboa morre D. Luís. Nesse mesmo dia fui chamado ao Paço pelo novo Rei, D. Carlos, a fim de considerar a hipótese de ser nomeado Ministro da Fazenda, em virtude da fragilidade do governo de José Luciano de Castro. Depois de reflectir, aceitei a proposta na condição de se inverter o sentido da política africana e que António Enes fosse convidado para a Secretaria da Marinha e Ultramar, já que ambos coincidíamos quanto à questão colonial. Acontece que António Enes recusa o lugar argumentando que não lhe davam condições mínimas, nomeadamente para evitar o conflito com os britânicos. Solidarizei-me com o meu amigo, pedindo apenas que me fosse concedida uma audiência para explicar a D. Carlos a atitude tomada e… aconteceu o que, infelizmente, prevíamos. Em 11 de Janeiro de 1890, a Inglaterra impõe o “Ultimatum”, golpe profundo para a monarquia, de que a Revolução de 31 de Janeiro de 1891 viria a ser a primeira reacção. O ano de 91 não terminaria sem que uma trágica ocorrência viesse causar-me um profundo abatimento – o suicídio de Antero. Já não bastava a incompreensão política, o agravamento da doença, a depressão psíquica, o pessimismo… Os dias que se seguiram foram de luto pesado em nossa casa, tendo recebido dezenas de mensagens de condolências. É que o Antero era e continuaria a ser sempre considerado da família. Todos os amigos sabiam que era fraternal e intenso o afecto que nos ligava e que agora era brutalmente interrompido. Muito tempo depois, ainda não me habituara à realidade do Antero não estar vivo e de não regressar um dia qualquer. Toda esta inquietação me vai empurrar para uma intervenção política, que iria acelerar o fim dos meus dias. O “Ultimatum” de 11 de Janeiro derrubara o Ministério progressista de José Luciano de Castro. Outros se sucederam, porém manifestaram-se impotentes para enfrentar e, muito menos, resolver a grave crise. A braços com vultuosos défices orçamentais e de balança de pagamentos, os sucessivos Governos foram tomando medidas que não eram mais do que simples paliativos. A última depressão cíclica do século XIX verifica-se entre 1890-1892, surgindo inicialmente em Inglaterra, onde a falência da casa bancária “Baring & Brothers”, com a qual mantínhamos estreitas relações, atinge muitos interesses portugueses. E é precisamente em relação com estes acontecimentos que se manifesta a mais violenta crise financeira do século, implicando um longo ciclo depressivo que persistiu quase toda a década de 1890. Os sinais deste desastre financeiro acumulam-se rapidamente, porquanto multiplicavam-se as dificuldades dos bancos, que o Governo procura eliminar com financiamento através de empréstimos, tornando-se patente as más aplicações de capitais. Surge a corrida aos bancos e em Maio de 1891 decreta-se a inconvertibilidade temporária das notas bancárias, pouco depois tornada definitiva. A crise de 1891 teve repercussões económicas importantes, originando uma acentuada 22 Carlos Jaca contracção dos negócios, o encerramento de estabelecimentos, desemprego e a emigração de muitos portugueses, que procuram assim a resolução da sua situação difícil. O descalabro financeiro assustava todos os Portugueses, o ouro fugia do País em abundância e os cupões (título de juro que faz parte de uma acção ou obrigação e que se corta na ocasião do pagamento) da dívida externa eram o espectro que amedrontava os Ministérios. Em fins de 1891 tudo levava a crer que o problema do cupão de Janeiro de 1892 provocaria a bancarrota e com ela a subversão total da nacionalidade. A situação era dramática, e não era qualquer um que se atreveria a encarar a crise e a tentar deter a bancarrota iminente, empresa melindrosa por antecipadamente se ter a noção da necessidade de medidas drásticas que pesariam acima de tudo sobre o contribuinte. É precisamente nesta conjuntura que alguns políticos mais representativos, e até o próprio Rei, me consideraram o homem capaz desse trabalho ciclópico. Foi neste contexto que entendi a entrada para o Governo ser um dever imperioso da minha consciência de português, tanto mais que em Outubro havia tomado compromisso verbal mas solene com o Dr. José Dias Ferreira de só fazer parte de um Gabinete presidido por ele e constituído por indivíduos sem responsabilidades nos actos por que tantos eram acusados na Câmara dos Deputados. Assim em conjuntura muito adversa, a 17 de Janeiro, aceitei a nomeação para a pasta da Fazenda propondo-me equacionar os problemas e actuar com decisão, a fim de levar a efeito qualquer coisa séria e não só de fachada. Algo inexperiente em política, mas de boa fé, afinal viria a ligar-me, pela minha palavra, com um homem, (autêntica “rábula”, como o classificou António Sérgio) afastado do Poder havia anos e que alguns dos meus amigos tinham previsto nunca aceitaria a tutela de um político elevado pela primeira vez aos conselhos da coroa, embora me reconhecessem capacidade de “limpar a casa”. De facto, Dias Ferreira, político rodado e conhecedor dos meandros altos e baixos da Arcada e de S. Bento, havia forçosamente de impor a sua vontade e, eu, não possuía, minado pela doença de que havia de falecer dois anos mais tarde, a energia serena para implantar a ditadura financeira como 36 anos depois, outro lente coimbrão havia de fazer. Durante os quatro meses que exerci o cargo o meu trabalho foi exaustivo, arquitectando um plano para actuar em 3 fases: tomar medidas de ocasião para acudir aos apuros imediatos; proceder à substituição dessas medidas violentas por outras mais suaves e equitativas; levar a cabo reformas profundas, ou seja, uma actuação de longo prazo para estabilizar a situação económica e financeira. Infelizmente, não consegui ir além da primeira fase, e apenas tive tempo para tomar as inevitáveis “medidas antipáticas”: corte de vencimentos, supressão de verbas orçamentais, aumento dos impostos mais manejáveis, diminuição dos juros da dívida pública, início de Carlos Jaca 23 negociações para um convénio com os credores internacionais, lançamento de um novo empréstimo e adopção de medidas proteccionistas, à sombra da nova pauta aduaneira, em cuja elaboração participei com João Franco. Como diria mais tarde na Câmara dos Deputados, “o convénio e o empréstimo não eram mais do que o prólogo indispensável para posteriormente (…) proceder à reconstituição do organismo financeiro e económico português.” Porém, cedo se fizeram sentir obstruções e impasses. A intriga tratava de desprestigiar o Ministério (a baixíssima intriga tão nacional) e uma parte do Ministério, por seu turno, de me desprestigiar. Quando quis demitir alguns funcionários, esbarrei na oposição dos meus colegas. Dias Ferreira queria alijar quem lhe fazia sombra, não escrupulizando, para tal, em questão de fórmulas e processos; e como o Rei, por bom princípio, só ouvia os chefes dos governos, vi-me isolado – com os políticos, os burocratas e os argentários contra mim, num Portugal que, aliás, não desejava, não entendia, não suportava naquele momento uma política de fundo e autêntica. “Devia ter saído logo”, afirmaram alguns; se o houvesse feito acusar-me-iam de abandonar a empresa, de não resistir à “guerra” até à última, etc., etc.. Empenhado na resolução do problema da dívida pública a credores estrangeiros, velho cancro “fontista”, quando uma solução de emergência se entrevia já, uma tramóia do Chefe do Governo, Dias Ferreira, deitou tudo por terra, impelindo-me à demissão. Foi, de facto, a questão candente do pagamento do cupão da dívida externa que constituiu a casca de laranja que fez tombar o Ministério da Fazenda. Perante as exigências dos credores externos, na impossibilidade de se lhes liquidar os juros devidos, estabeleceram-se negociações com a comissão de credores. A Câmara dos Deputados havia dado luz verde para a negociação sem limitações nem exigências que, aliás, a situação não as permitia. Dei as instruções convenientes ao nosso representante em Paris, António Serpa Pimentel. Dias Ferreira discordou do processo e mostrando-se renitente, passou a tratar directamente com Serpa Pimentel, sobrepondo-se ao meu Ministério. Traumatizado pelos insultos recebidos a propósito das minhas medidas drásticas e agora pelo enxovalho do Presidente, terminava a minha breve, amarga e incompreendida passagem pelas cadeiras do Poder, demitindo-me a 27 de Maio. No próprio dia em que deixei o Terreiro do Paço escrevi ao meu amigo Eça: “José Maria do meu coração! Emergi da cloaca ministerial! Parto amanhã no “Magdalena” para Inglaterra, onde tomarei algumas semanas de ar…” Assim foi. Carlos Jaca 24 A viagem a Inglaterra, cujas impressões relatei na “Inglaterra de hoje”, foi uma oportunidade para tentar espairecer os dissabores duma vida política praticamente terminada… No regresso, passei por Paris onde abracei Eça de Queirós e… pela última vez. Os filhos do meu amigo referiam-se a mim como o “oncle philosophe”. Eleito deputado ainda ausente de Portugal, em 1893, voltei à Câmara dos Deputados esclarecendo ponto por ponto, a trama de que tinha sido vítima, desfazendo uma por uma as acusações que me haviam sido feitas e tinham por base, já o referi, a forma como conduzi o convénio com os credores externos. Longe de acusar, como muitos teriam feito, preocupei-me unicamente em defender-me e demonstrar a honestidade dos meus actos enquanto Ministro, quando podia ter assumido a posição de severo acusador remetendo-me, posteriormente, a um silêncio não isento de desdém. As contas estavam saldadas! Mas o regime definhava progressivamente, incapaz de resolver os seus próprios problemas. Se eu tivesse vivido em época de maior estabilidade, quando ódios e paixões não campeassem bravamente; se as questões de interesse público se encontrassem à frente de todas as outras, relegando-se para um lugar remoto, ou até banindo-se por completo, as de interesse meramente partidário, se o Liberalismo português não fosse oco e retórico ou simplesmente demolidor, por certo a minha actuação política ter-se-ia feito sentir não apenas em extensão, mas também em profundidade. Porém, o ambiente corrupto do tempo, carregado de electricidade dos ódios latentes e das ambições desmesuradas, não se mostrava propício à prática de nobres ideais. Era fatal: a minha obra tinha de cair e perder-se, mal chegando sequer a esboçar-se. Eleito, entretanto, vice-presidente da Junta de Crédito Público entreguei-me de novo à minha obra histórica, publicando então a “Vida de Nun’Álvares” e reunindo materiais para o “Príncipe Perfeito”. Nesse ano de 93 já ia sentindo que a minha vida não iria longe. As forças começavam a minguar-me, precisando de ser auxiliado nos meus labores intelectuais. A leitura facilmente me cansava, e já não podia, como antes, fazer os meus extractos dos livros que ia lendo e que interessavam aos meus trabalhos de historiador. O ano acabava e eu também estava perto do fim. A febre da tuberculose estava a minar-me. Todavia, não descansava, o inveterado vício do trabalho não me largava. Já entrado o ano de 1894 convidaram-me a tomar parte nas festas henriquinas. Escrevi então o discurso, que por motivos de saúde não me foi possível ir dizer ao Porto, sobre o Infante D. Henrique e que se encontra no final do 2º volume de “Portugal nos Mares”. A morte rondava-me e eu rondava a ideia de não morrer sem escrever “O Príncipe Perfeito”, para o qual andava juntando o máximo de elementos. A 16 de Março, tive, porém, a primeira e grave advertência (uma pleurisia) de que a tuberculose não perdoaria. Carlos Jaca 25 Dez dias depois da crise, que me levou a fazer testamento, segui para Cascais, em procura de lenitivos, mas acompanhado de vastos apontamentos para a elaboração do trabalho sobre D. João II. Uma vez desaparecida a febre e a partir das poucas forças recuperadas, era minha ideia que não me desobrigaria decentemente de escrever “O Príncipe Perfeito”, sem ir directamente a Espanha, para estudar, “in loco”, o teatro onde se dera a Batalha de Toro, episódio de relevo no livro que me propunha escrever. A este propósito, devo dizer, que muitas vezes me desloquei aos lugares onde se deram os acontecimentos históricos que pretendia evocar, para não os descrever de cor. Dentro deste escrupoloso critério, visitei Aljubarrota e Valverde e, para além do campo de batalha de Toro e adjacências, propunha-me ir inspeccionar, directamente, Alvor, no Algarve, onde, em 1495 (talvez envenenado) morreu D. João II, o “Homem”, no dizer de Isabel a Católica. Iludido sobre o rejuvenescimento das minhas forças, requeri autorização para fazer a viagem de estudo a qual me foi concedida, com relutância, já que o médico pressentia piores dias. A 5 de Junho, segui para Espanha, feliz com a ideia de que o meu “Príncipe Perfeito” iria receber com essa viagem, uma melhoria magnífica. As “Cartas Peninsulares” foram geradas nessa ida a Espanha e viriam a ser publicadas, postumamente, pelo meu irmão médico, o Guilherme. Em 23 de Junho estava de volta, regressando muito pior, a viagem a Espanha agravou os meus padecimentos, tinha sido um esforço quase sobre-humano. Sousa Martins, o médico que desveladamente me tratava, amigos desde crianças, vendo o organismo a reagir mal aos tratamentos, aconselha a partida urgente para Brancanes, junto de Setúbal e à minha “Arrábida”. Para Brancanes, onde cheguei a 7 de Julho, levei comigo numa pequena mala, cuidadosamente coligido e ordenado, o material todo que consegui reunir para a obra tão desejada, só que… as melhoras eram fictícias e tanto assim que as “Cartas Peninsulares” e o único capítulo de “O Príncipe Perfeito”, que deixaria escrito e a que dei o título “ Batalha de Toro”, já não saíram do meu punho, mas sim ditados a Vitória, minha mulher. Nos começos de Agosto volto para Lisboa. Já não havia dúvidas, o próprio Sousa Martins terá dito aos meus familiares e amigos: “O Joaquim Pedro está perdido”! Entretanto, por influência, ou não, de minha mulher e de outros familiares, o Núncio Apostólico, Monsenhor Jacobini, dirigiu-se-me por carta, manifestando-me o seu apreço pelo retrato místico de Nun’Álvares, desejando-me o restabelecimento e “lembrando-me” as verdades da fé… Apesar de fazer nisso grande sacrifício, peguei na pena e respondi ao Núncio traçando o meu estado de espírito agnóstico e de descrença, mas admitindo que o ideal cristão me conduzia, tendo colhido grande bem das excelências e belezas do cristianismo. Carlos Jaca 26 Monsenhor Jacobini escreveu-me novamente: “a fé não se impõe, nem se ordena […]. Vejo que há uma diferença entre o nosso modo de pensar, mas este não impede nem a nossa amizade, nem que eu admire a superioridade do seu espírito, nem me há-de proibir […] a pedir a Deus com todas as forças do meu coração e com lágrimas que lhe conceda a graça da fé e salve o seu espírito.” Meditei nas palavras do Núncio. Afinal, eu tinha vivido como o Antero, sempre uma relação contraditória com a transcendência. Vinha-me à mente a frase de Tertuliano já citada em 1878 no “Helenismo e a Civilização Cristã”: “Credo, quia absurdum”! Fé e razão chocam-se e completam-se. Dezassete dias me durou a lenta agonia, o calvário doloroso. Os pulmões desfaziam-se a pedaços, a respiração dificílima e a inalação artificial do oxigénio transformava-me o peito numa viva chama e as noites tão angustiosas que a permanência no leito era já impossível. A 29 de Agosto, ao alvorecer, despedi-me dos meus familiares mais queridos, pedindo que me lembrassem aos amigos. Morria desiludido dos homens, mas não descrente da amizade, deixava o mundo serenamente, sem saudade e com tristeza. Sim, disse-o: “morro triste não levo saudades do mundo”… Tudo terminou pelas seis horas da manhã. Morria com a mesma idade do meu querido amigo, do meu”irmão” Antero, tinha 49 anos. … “E muitos homens de verdadeiro mérito foram perdidos ou desaproveitados, dos quais uns buscaram no estrangeiro ambiente próprio para o seu espírito e outros estiolaram-se aqui no País, pela ignorância, desapreço ou hostilidade dos dominadores.” (António Sérgio – Ensaios – Tomo V) Carlos Jaca 27 Bibliografia consultada. Almeida, Vieira de - «Oliveira Martins» - Revista Ocidental, Abril, 1945. Calafate, Pedro - «Oliveira Martins». Introdução e selecção de textos de Pedro Calafate. Editorial Verbo. Lisboa / S. Paulo, 1990. Dória, A. Álvaro – Oliveira Martins, «O Historiador». Guimarães, 1984. Figueiredo, Fidelino de - «História de um vencido da vida». Parceria António Maria Pereira. Lisboa, 1930. Jaca, Carlos - «Centenário da morte de Oliveira Martins» (1894-1994). Revista «História» n.º 6, Março, 1995. Magalhães, Luís de - «Perfis». J. P. Oliveira Martins. Parceria António Maria Pereira. Lisboa, 1930. 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