FAVELA TEM PATRIMÔNIO!
Camila Maria dos Santos Moraes
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
[email protected]
Pavão, Pavãozinho e Cantagalo são três favelas localizadas na Zona Sul do Rio
de Janeiro, entre os bairros de Copacabana, Ipanema e Lagoa. No ano de 2008 tiveram
início nestas favelas as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), um
programa do governo federal brasileiro, lançado em 2007, que reuniu em conjunto de
obras de infra-estrutura, e projetos para o desenvolvimento econômico e social em todas
as regiões do país. Na cidade do Rio de Janeiro o PAC se concentrou nas favelas. Além
das obras, o PAC tinha de 3% a 10% de seus recursos destinados para a chamada “obra
social do PAC” ou o “PAC social”, ou seja, projetos sociais implementados em cada
uma das favelas que recebeu o programa.
No caso das favelas do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, o PAC social teve como
principal objetivo a criação do Museu de Favela e o desenvolvimento turístico das
comunidades, e para atingir estas metas realizou uma série de cursos de curta duração
do PAC como, por exemplo, cursos de línguas, inglês e espanhol, informática, formação
de garçons e dois cursos voltados especificamente para o projeto do Museu e para o
desenvolvimento turístico: “Nova Museologia” e “Turismologia”.
Todo este processo tem como pano de fundo uma mudança das políticas
públicas referentes às favelas do Rio de Janeiro, que já sofreram tantas ameaças de
remoções em tempos anteriores, em especial aquelas localizadas nas encostas. Hoje
passam a ser consideradas como atrações turísticas e algumas começam a fundar e
estruturar os seus respectivos museus para apresentar “o patrimônio da favela” ou a
favela como patrimônio para os turistas.
Neste sentido cabe pensar sobre o conceito / ideia de museus comunitários, em
especial quando estes se localizam em favelas. Para isso recorro aqui de início a FreireMedeiros em seu artigo “Favela como patrimônio da cidade? Reflexões e polêmicas
acerca de dois museus”, publicado em 2006. A autora analisa os casos do Museu da
Maré e do Museu a Céu Aberto da Providência, ambos em favelas no Rio de Janeiro, e
destaca “uma dupla requalificação”, ou seja, a requalificação da favela e do patrimônio.
(…) da favela, que busca ser vista como parte historicamente relevante da
cidade, assumindo uma visibilidade distinta daquela que a associa à
violência; e a da própria noção de patrimônio, que se distancia de suas
definições mais cingidas, tem revistas suas instâncias de validação e passa a
qualificativo de um território geográfico e simbólico ainda amplamente
estigmatizado. (FREIRE-MEDEIROS, 2006, p. 04)
O Museu a Céu Aberto do Morro da Providência foi idealizado pela arquiteta e
urbanista Lu Petersen, para o Projeto Favela-Bairro1 como parte da revitalização da área
portuária que, além do museu, incluía a Cidade do Samba e a Vila Olímpica da
Gamboa. Foram realizados investimentos “redes de água e esgoto, praças e creche,
como acontece em outras favelas, mas também para viabilizar um 'roteiro
turístico'”.(FREIRE-MEDEIROS, 2006, p.04)
A visitação ao museu seria focada em seus aspectos históricos, como a escadaria
construída pelos escravos, igrejas do início do século XX, e a casa de Dodô da Portela,
porta-estandarte da escola de samba Vizinha Faladeira, fundada na Providência, que
funcionaria como museu. Além de três mirantes com vista para Pão de Açúcar,
Corcovado e Baía de Guanabara, unindo assim, o patrimônio ao turismo. (FREIREMEDEIROS, 2006). Já o Museu da Maré não foi uma iniciativa do poder público; sua
origem está em uma iniciativa do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
(CEASM), uma organização não-governamental localizada no complexo de favelas que
há 12 anos realiza ações de cultura e educação para os moradores. Para o CEASM o
Museu da Maré é um convite à construção de “um novo tempo". (FREIREMEDEIROS, 2006, p.09)
Assim a possibilidade de reafirmação da favela pela patrimonialização aparece e
pode ser “uma chave de interpretação sobre as favelas, problematizando o argumento
1
O Favela-Bairro foi um programa criado pela prefeitura do Rio de Janeiro para promover a integração
urbanística e social das favelas a partir de obras de urbanização, estavam previstas no projeto obras de
infra-estrutura de saneamento, sistema viário, iluminação, equipamentos educacionais, sociais e
culturais, de geração de trabalho e renda. Esta iniciativa tinha como objetivo transformar a “favela”
em “bairro”.
que as coloca como a 'anti-cidade', como o avesso perverso da lógica urbana”.
(FREIRE-MEDEIROS, 2006, p. 09 )
A autora coloca ainda em seu artigo que os museus são lugares de classificação,
na medida em que “cabe aos museus selecionar determinados objetos, descrevê-los,
nomeá-los, bem como criar e impor uma 'ordem racional' para sua exibição.” (FREIREMEDEIROS, 2006, p.12).
Trabalho neste artigo com a mais recente definição de museu adotada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e acompanhada pelo
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM): “O museu é uma instituição com
personalidade jurídica própria ou vinculada a outra instituição com personalidade
jurídica, aberta ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.”
(Departamento de Museus e Centros Culturais - IPHAN/MinC2)
Mario Chagas, à época diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais
– IPHAN/MinC, foi um grande apoiador do Museu de Favela em 2008; e para a
estruturação e organização deste Museu no Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, ofereceu
um curso sobre a Nova Museologia pelo Programa de Aceleração do Crescimento.
Neste curso Chagas (2008) apresentou o conceito de Museus de Território, que
podem ser de três tipos, a saber: Museus Comunitários ou Ecomuseus; Parques
Naturais; e Cidades Monumentos.
Os Museus Comunitários ou Ecomuseus são aqueles baseados na musealização
de um território, “ênfase dada às relações culturais e sociais homem / território; valoriza
processos naturais e culturais e não os objetos enquanto produtos da cultura; baseado no
tempo social; pode conter exposições tradicionais, baseadas em objetos.” (CHAGAS,
2008)
A partir desta definição foi proposta a criação do Museu de Favela como um
museu territorial do tipo comunitário. Diante disso, é mister entendermos o que se
propõe que sejam esses museus.
Durante o PAC, o MUF se classificava em seus materiais de divulgação e em
seus eventos como um Museu de Território; após o PAC, o MUF passou a se classificar
2
BRASIL. Definição de Museu. Instituto Brasileiro de Museus. Disponível em:
http://www.ibram.gov.br/ Acessado em: 30/03/2011
como um Museu Comunitário. Em termos de definição conceitual, as duas
classificações, como veremos aqui, não diferem muito; na verdade classificam, em
períodos diferentes da história, museus com os mesmos objetivos. No entanto, o uso dos
termos “território” e depois “comunitário” pela a diretoria do MUF teve um significado
peculiar ao caso e que merece ser compreendido.
Para entendermos melhor ambas as classificações busquei referências utilizadas
por Mario Chagas no curso de Nova Museologia oferecido para aqueles que vieram a
compor a primeira diretoria do Museu, na medida em que este estudo busca analisar o
ponto de vista deste grupo formado por algumas das lideranças comunitárias do Pavão,
Pavãozinho e Cantagalo. Neste sentido, uma importante referência para Mario Chagas é
Hugues Varine.
Chagas (2009) explica, em entrevista ao Museu de Periferia em Curitiba, que
Hugues Varine apresenta três categorias de museus: o Museu Coleção, o Museu
Espetáculo, e o Museu Comunitário. O Museu Coleção é uma herança que vem do
século XVIII, que valoriza o acervo, os objetos que compõem as exposições do museu;
a linguagem universal, que se expressa na organização da exposição, ordem de exibição
dos objetos e nas placas descritivas; as edificações, o próprio edifício que abriga o
museu tradicional; e, por último a atenção ao público; estas são as principais
características dos museus clássicos ou tradicionais. O Museu Espetáculo data do final
do século XX, valoriza as grandes exposições, a comunicação, e é focado na
conservação, sem proposição de transformação social. Neste mesmo período começam a
se destacar os Museus Comunitários, que se consolidam com os Ecomuseus, que se
caracterizam pela valorização das pessoas “que produzem acervos, que conservam
acervos e que transformam também esses acervos”. (CHAGAS, 2009)
As experiências de museus comunitários valorizam as pessoas, valorizam as
comunidades, valorizam o desenvolvimento local sustentável. Têm um outro
foco. Os acervos são importantes, mas eles são um pretexto para o
desenvolvimento comunitário. Os espaços, os edifícios onde os museus se
instalam podem ser importantes, mas, continuam sendo pretexto para o
desenvolvimento comunitário. Todos esses elementos: as coleções, os
acervos, o patrimônio, o local, tudo passa a ser uma estratégia a favor do
desenvolvimento social daquela comunidade. (CHAGAS, 2009)
Segundo Brulon (2008), foi George Henri Rivière o responsável por pensar o
Museu Comunitário ou Ecomuseu como resultado de uma proposta de abertura dos
museus e de popularização da cultura. Muito próximo de Marcel Mauss, Rivière foi
motivado pelas suas ideias quanto à forma de pensar os museus. Sua atuação no ICOM
(International Concil of Museums – Conselho Internacional de Museus) de 1948 a 1965
permite compreender mais claramente a concepção de uma “Museologia mais
democrática e inclusiva”. (BRULON, 2008, p.04)
Suas concepções acompanharam um momento propício na França, na década de
1970, quando se disseminava uma corrente ideológica que tentava englobar o museu nas
ideias que provinham da Ecologia. “Inicialmente o termo 'ecomuseu' nasce da reflexão
acerca dos parques naturais, que tentavam unir, numa só corrente de pensamento, a
Museologia às questões ambientais.” (BRULON, 2008, p. 40)
Mas vale destacar que a lógica de preservação do Ecomuseu é diferenciada;
tratando-se em primeira instância da comunidade, as ocupações sucessivas do território,
como suas várias partes, são abordadas sob o olhar da população local. O objeto dos
museus comunitários é a relação entre os seres humanos e destes com sua memória. Se
o Museu Comunitário introduz um pensamento ambiental, este meio ambiente é, antes
de tudo, social. O meio ambiente é considerado como o patrimônio de uma comunidade
sendo valorizada sua função identitária, diferente do parque, que visa uma conservação
da natureza separada do homem. (BRULON, 2008)
O Museu Comunitário ou Ecomuseu, por sua vez, “contribui para redefinir o
patrimônio, mas este patrimônio permanece pensado enquanto patrimônio de uma
comunidade, como fato e propriedade de um grupo social específico.” (BRULON,
2008: 81)
Enquanto o parque abre um processo de patrimonialização da natureza, sendo
um meio natural onde a paisagem é considerada menos por sua simples
qualidade estética do que como envoltório de um ecossistema; o Ecomuseu
amplia consideravelmente o que se denomina patrimônio, para integrar os
bens intangíveis, e ainda a memória. O patrimônio ambiental como hoje o
percebemos, não é o meio ambiente tal como o concebe exclusivamente o
parque natural (um patrimônio natural) ou o Ecomuseu (um patrimônio social
e simbólico). Graças à evolução dos conceitos de patrimônio e de meio
ambiente possibilitada pelo entendimento dos novos modelos teóricos de
museus, podemos entender o patrimônio em sua integralidade e o meio
ambiente como o meio social, assim como é natural, em que o ser humano
está inserido e com o qual se relaciona – o meio ambiente integral.
(BRULON, 2008, p.81)
Neste sentido, esses novos museus se voltam para três elementos primordiais: a
identidade local, a perspectiva ecológica e a participação da população, “significando
uma tentativa de aproximar a Museologia da Sociologia, criando o que alguns
chamaram de uma sociologia dos museus.” (BRULON, 2008, p. 29)
É importante explicar que, apesar de sua institucionalização ter acontecido
apenas em 1984, os museus comunitários existem desde o século XIX, com casos
expressivos no século XX, durante o pós-guerra. Muitos museus locais ou regionais
foram criados a partir do reconhecimento de depósitos arqueológicos em determinadas
províncias durante o pós-guerra e se tornaram fatores culturais ativos em pequenas
comunidades, voltando-se para a história local e para o estímulo intelectual. (BRULON,
2008)
A participação da comunidade é fundamental nestes museus comunitários. No
entanto há outras características apresentadas por Hugues Varine, em seu artigo “O
Museu Comunitário é herético?” (2005), em que o autor coloca diferenciações
fundamentais entre os museus tradicionais e os museus comunitários.
A primeira diferença é baseada no patrimônio, pois considera que museu é a
“casa” do patrimônio. Em um museu tradicional o patrimônio é composto por objetos
que fazem ou farão parte da coleção do museu, cuja importância científica, artística ou
cultural justifica que sejam considerados no programa museológico ou cultural. Nestes
casos, não importa se o objeto tem ou não um vínculo com a população do território
onde se situa o museu. Na realidade, “o patrimônio desse museu é definido pelo
museólogo de acordo com seu saber científico, seu gosto estético e seus interesses
culturais, considerando-se naturalmente missões confiadas ao museu pelos parceiros
exteriores (Estado, associação, mecenas etc.)” (VARINE, 2005, p. 02)
No Museu Comunitário, Ecomuseu, ou museu territorial, o patrimônio é aquele
reconhecido como tal pela comunidade. “É o capital cultural coletivo da comunidade,
ele é vivo, evolutivo, em permanente criação.” (VARINE, 2005, p.02)
Os responsáveis pelo museu utilizarão esse capital para atividades inscritas
na dimensão cultural do desenvolvimento do território e da comunidade. A
conservação é uma responsabilidade e uma tarefa coletiva da comunidade, os
profissionais do museu sendo essencialmente apoio técnico e científico.
(VARINE, 2005, p. 03)
A segunda diferenciação é a partir das coleções, pois os Museus Comunitários,
em princípio, não constituiriam coleções permanentes, pois o patrimônio do território e
de seus habitantes constituiria o equivalente a uma coleção. E exemplifica seu anseio
com o caso de John Kinard, que criou o Anacostia Neighborhood Museum, um Museu
de Vizinhança, que “não foi organizado em torno de uma coleção, ao contrário,
privilegiou as exposições temáticas ligadas às preocupações essenciais da comunidade
afro-americana do bairro de Anacostia” (VARINE, 2005, p.02).
A terceira diferenciação é feita a partir da relação território e comunidade,
central no Museu Comunitário. No museu tradicional este só é responsável pela sua
coleção e seu público. Mesmo se a coleção é mais ou menos representativa de um dado
território, no caso de um museu de sítio, departamental ou de parque natural, o essencial
da atividade museal está nas coleções; já o público, pode ou não ser do território,
portanto, são apenas “consumidores e de forma alguma constituem uma população, um
conjunto de atores, partes integrantes do museu sob todos seus aspectos.” (VARINE,
2005, p. 04)
Já um Museu Comunitário para ser representativo, sem uma coleção, ele deve
“emanar do território e de sua população”; assim, seu trabalho se dá no dia-a-dia,
associado a cada instante a um habitante ou grupo de habitantes; é o chamado processo
ecomuseal, que é essencialmente cooperativo. Por isso, a composição do público das
exposições também não é importante, pois a atividade pública do museu corresponde ao
seu processo. “Nestes museus pode haver públicos identificáveis como os turistas, por
exemplo, mas eles serão apenas um produto derivado da atividade principal, pois tal
museu não tem visitantes, mas habitantes. ” (VARINE, 2005, p.04)
É importante ainda entendermos que o Museu Comunitário está voltado
fundamentalmente para o local, para o presente e o futuro de um território, enquanto o
museu tradicional é global, voltado para a preservação dos bens culturais, naturais
selecionados por razões em geral científicas, ou seja, o formato do museu tradicional é
similar em todo o mundo; já o Museu Comunitário assume as características da sua
comunidade; por ser “vivo” é mutável, correspondendo a uma expressão local.
(VARINE, 2005)
A quarta diferenciação é feita analisando as exposições, um ponto crucial de
distinção entre museus tradicionais e museus comunitários. As práticas contemporâneas
dos museus tradicionais são cada vez mais sofisticadas, utilizam-se de efeitos
audiovisuais e novas tecnologias, o que para Varine, afasta o visitante da realidade,
apostando em uma maior interatividade tecnológica. Nos Museus comunitários, quando
há exposições, estas são mais simples e lúdicas como no caso do Museu da Maré e sua
casa de palafita com objetos dos moradores. (VARINE, 2005)
Os museus comunitários não possuem o mesmo aparato e financiamento que os
museus tradicionais; além disso, eles se dirigem às mesmas pessoas que os criaram, e
que supervisionaram sua instalação. Assim, suas exposições se voltam à simplicidade.
Sua interação se dá com as pessoas que fazem parte do museu, daquele território. No
MUF, por exemplo, a interação é com os artistas, os guias locais, os músicos,
dançarinos e moradores. (VARINE, 2005)
E por último, Varine diferencia-os com base na organização. Isto porque o
museu tradicional é uma instituição que nasce de uma decisão político-administrativa,
sua maturação se faz com trabalhos científicos e técnicos, com projetos de campanhas
de comunicação e estudos orçamentários. Já o Museu Comunitário, na sua forma mais
inovadora, não segue um procedimento, mas sim, um processo. Seu objetivo não é a
instituição nem uma inauguração, mas sim sua co-construção na comunidade e sobre
seu território pelos membros da comunidade. Por isso, não existe modelo organizacional
próprio do Museu Comunitário. (VARINE, 2005)
Por terem um formato tão variado, estes museus comunitários podem se
assemelhar a um Ecomuseu, rompendo com a ideia de um museu clássico. “Ao invés de
edifício, ele trabalha com a ideia de território. Ao invés de coleção, trabalha com a ideia
de patrimônio, e ao invés de público, trabalha com a ideia de comunidade ou de
sociedade local. Esse é o modelo do Ecomuseu a favor do desenvolvimento local.”
(CHAGAS, 2009).
Chagas diferencia ainda os Ecomuseus dos Museus de Território, na medida em
que os primeiros têm território delimitado, como por exemplo, o Ecomuseu da Ilha
Grande (Angra dos Reis, RJ), que está na Vila Dois Rios em torno das ruínas do antigo
presídio. Se fosse um Museu de Território “ocuparia” toda a Vila de Dois Rios ou toda a
Ilha Grande. “São museus que se instalam nas comunidades sustentados pelas
comunidades locais. Ao invés de ter um espaço definido eles ocupam um território, se
espalham pelo território, criam percursos e caminhos.” (CHAGAS, 2009).
É importante notar que os museus comunitários no Brasil se configuram de
formas diversas, tão diversas quanto as comunidades pode-se dizer. O Museu
Comunitário representa o desejo à memória e os projetos de um grupo da comunidade e,
portanto, se o museu for pensado por outro grupo da mesma comunidade pode se
configurar de uma forma completamente diferente, assim como um Museu Comunitário
pode ser muito diferente de outro Museu Comunitário.
Deste modo, o Museu de Favela, ao se propor um Museu Comunitário pretende
refletir sua comunidade; exemplo disso é estrutura do MUF, uma estrutura de
organização não-governamental. Minha hipótese é que esta estrutura tenha sido pensada
como tal porque a estrutura de ONG é conhecida e reconhecida pelos moradores locais.
(…) o primeiro Museu Comunitário territorial de favela do mundo, num
desafio de construção política e estratégica que vem adquirindo crescente
visibilidade. Nesse museu vivo a céu aberto o acervo são 20 mil moradores e
seus modos de vida, narrativos de parte importante e desconhecida da própria
história da Cidade do Rio. (MUSEU DE FAVELA, 2009 (b), p. 03)
Entre os promotores do Museu de Favela este é sempre citado como uma
referência de Museu Comunitário, que tem como estratégia o “enfrentamento da
exclusão social e violência urbana, o desenvolvimento cultural com inserção turística e
pela evidência de resultados de ações voluntárias e perseverantes de seus sóciosfundadores”.
A expansão cultural na/da favela deve ser como um sopro de despertar. Deve
ultrapassar os limites do território e alcançar a cidade à qual pertence, numa
celebração itinerante que divulgue o acervo e os valores do MUSEU DE
FAVELA, em outras favelas, em outras cidades, em outros países. Favela é
Cidade. Cultura de Favela é parte da Cultura da Cidade. (MUSEU DE
FAVELA, 2009 (b), p. 02)
Em um dos projetos do museu consta que a ideia de organização de um Museu a
Céu Aberto na favela partiu de duas lideranças locais: um “artista-grafitti”, Acme, e de
uma “jornalista-memorialista”, Rita, que queriam contar a história, a “saga” e as
memórias do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo.
Segundo o jornal de apresentação do MUF (2009), o museu foi formado com a
integração de moradores das comunidades do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo e trabalha
pela realização de um “plano cívico comum”. Traz uma visão de futuro “transformadora
das condições de vida na favela”, através da valorização da memória cultural coletiva e
do desenvolvimento territorial e turístico.
Assim, segundo informações encontradas no site e no jornal do MUF (2009),
surgiu a visão de futuro que se tornou o macro-objetivo do MUF:
Transformar o morro em um Monumento Turístico Carioca da História de
Formação de Favelas, das Origens Culturais do Samba, da Cultura do
Migrante Nordestino, da Cultura Negra, de Artes Visuais e de Danças – Um
grande roteiro de visitação turística nacional e internacional da Cidade do Rio
de Janeiro (MUSEU DE FAVELA, 2009 (a), p. 02).
Foi em meio a tantas ideias que o MUF constituiu-se enquanto ONG com
estatuto, diretoria, sócios fundadores e um Conselho Comunitário aberto para a
participação de todos os projetos e trabalhos realizados na comunidade.
No jornal de apresentação do Museu de Favela (2009) encontrei também o
depoimento da diretora do MUF Rita de Cássia, que conta por que o MUF foi formado:
O Rio de Janeiro oferece ao turista beleza natural e pontos turísticos
reconhecidos internacionalmente, mas em meio a este cenário estão as
favelas, consideradas por muitos como guetos, associados só a violência e a
miséria. Contudo aos olhos de seus moradores, as favelas são locais com uma
riqueza histórica e cultural a ser descoberta por aqueles que nunca se
permitiram conhecê-la de perto. É pensando nisto que as comunidades do
Cantagalo, Pavão e Pavãozinho têm a meta de se tornar um dos principais
destinos de visitação turística do Rio, aproveitando que estão entre os bairros
de Ipanema e Copacabana, muito valorizados economicamente e onde se
hospedam grande parte dos turistas que freqüentam o Rio de Janeiro
(MUSEU DE FAVELA, 2009 (a), p.04).
O Museu de Favela (MUF) à época de sua fundação foi apresentado pela sua
diretoria como o primeiro “museu territorial integral do Brasil” (MUSEU DE FAVELA,
2009). Instalado no complexo de favelas do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, o MUF
pretende ao mesmo tempo voltar-se “para dentro” e “para fora”, ou seja, desenvolver
um trabalho de mobilização da comunidade (para dentro) e ao mesmo tempo tornar-se
uma atração turística (para fora).
Como já vimos, em um primeiro momento, que foi durante as obras do PAC, a
diretoria do MUF apresenta o museu como do tipo territorial, a partir da definição
apresentada no material didático sobre a Nova Museologia elaborado e utilizado por
Mario Chagas em curso oferecido pelo PAC na comunidade. Isto porque o MUF foi
fundado e institucionalizado com apoio do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) em
fevereiro de 2008, integrando ainda o Projeto Pontos de Memória, que tem como
objetivo “reconstruir a memória social e coletiva de comunidades, a partir do cidadão,
de suas origens, suas histórias e seus valores. A meta, segundo Nascimento Júnior
(DeMu/IPHAN), é implantar museus em regiões metropolitanas caracterizadas pelo alto
índice de violência”. (SOTTILI, 2009)
No ano de 2010, com a finalização do PAC, a diretoria do MUF começou a se
programar para sua saída da Base de Inserção Social e Urbana do PAC, onde estava
abrigada desde a sua fundação. Solicitaram espaço no CIEP e em diversos pontos da
comunidade e receberam respostas negativas. Foi um momento difícil para a ONG, que,
como vimos, passou por um processo diferenciado de fundação, ou melhor, não passou
pelo processo, conforme definido por Varine (2005), que destaca para esse tipo de
museu a não existência de um procedimento padrão, mas sim de um processo de
construção na comunidade. No entanto, como o MUF foi criado com amplo apoio do
Estado e teve inclusive uma inauguração, reside aqui uma diferença em relação aos
museus comunitários com a qual o MUF teve que lidar.
Neste momento a diretoria percebeu que estava sendo muito atrelada ao PAC, e
os moradores perguntavam por que eles estavam pedindo um espaço na comunidade se
eles “eram do governo”. O adensamento da favela também apareceu como outro grande
problema, em termos de espaço, comum às favelas em encostas da Zona Sul do Rio de
Janeiro. No caso do Pavão e Pavãozinho ainda pior, pois já chegaram às partes mais
altas do morro, e no alto as condições são precárias. Uma das localidades no alto do
Pavãozinho é denominada Vietnã, e eles explicam que o nome foi dado porque as
pessoas de lá andam com roupas rasgadas, parece que “vieram da guerra”. O Vietnã é
uma das áreas mais pobres e precárias a favela; em entrevista com a já referida diretora
do MUF, a Rita, ela relata que até conhecer o Vietnã ela não sabia que existia miséria na
comunidade dela, que “existia gente passado fome lá em cima”. Ao que parece, nestas
favelas, quanto mais para o alto mais pobre.
Diante desta situação e da necessidade de mobilização na comunidade para
reconhecimento do MUF, foi realizado o Festival das Lajes, uma proposta de
valorização das lajes e de um uso diferente daquele do “piso do próximo andar”, como
eles dizem. Neste festival, algumas lajes foram selecionadas e abertas ao público com
atividades como exposições, apresentações de corais e grupos de dança parceiros do
museu. O Festival apresentou ainda o potencial turístico das lajes, que são uma grande
atração na visita dos turistas às favelas, pois da laje se tem uma vista melhor da
paisagem da favela e seu entorno, uma vista mais livre, mostrando assim para os
moradores o problema do adensamento e demonstrando um “novo” sentido econômico
para as lajes. Como vimos, após este evento o MUF conseguiu um espaço provisório
para sua sede no segundo andar onde havia uma creche comunitária desativada pela
falta de recurso. O MUF então se comprometeu a realizar melhorias no espaço em troca
de ocupação pelo museu durante dois anos.
No entanto a ocupação do andar que era da creche pelo museu causou outro
problema, pois alguns moradores acharam que a creche tinha parado de funcionar para
dar lugar ao museu. Diante disso, somado à visão de que eram algo do PAC ou do
governo, o MUF produziu placas com textos explicativos sobre o museu e colocou perto
da Igrejinha e em outros locais considerados estratégicos pela diretoria. Nestas placas
pela primeira vez li Museu Comunitário, ou simplesmente ONG Museu de Favela, não
mais Museu Territorial Integral como aparecia em seus primeiros materiais de
divulgação.
Entendo que acionar o termo ONG também foi uma estratégia da diretoria, na
medida em que, como já vimos, a instituição ONG é mais familiar para os moradores do
que a instituição museu. Para os moradores as ONG’s fazem algum tipo de projeto
social que reverte em benefícios para a comunidade, e no caso do Pavão, Pavãozinho e
Cantagalo, as ONG’s são bem aceitas pelos moradores. Já o museu ainda é uma
instituição estranha para os moradores em geral.
Como se pode ver, estes novos museus, inclusive pela sua diversidade de
manifestações, processos de fundação e sua diversidade de formatos. No caso do Museu
de Favela – mesmo não tendo passado por um processo de criação independente, mas
sim motivada pelo Estado, através do Departamento de Museus do IPHAN e da
empresa que comandava as obras sociais do PAC, a Kal – o MUF, como Museu
Comunitário e ONG, mantém sua sustentabilidade financeira através de projetos
elaborados em resposta a editais públicos de instituições financiadoras públicas ou
privadas. Deste modo, não funciona como os museus tradicionais, que contam com
funcionários públicos e verbas regulares para manutenção. E, apesar de ter sido criado
com forte amparo do Estado, esse amparo foi apenas na criação, institucionalização e
maturação do processo. Hoje o museu encontra-se em funcionamento independente e de
fato nos moldes de um Museu Comunitário, como se propõe a ser.
Assim é que, percebemos um processo diferenciado da criação deste Museu
Comunitário, o qual inicialmente aparecia mais como Museu de Território do que como
Museu Comunitário, embora sua organização fosse similar à deste tipo de museu. A
diretoria acabou optando por uma constituição como “ONG comunitária”, estrutura
conhecida e familiar para a própria comunidade, reforçando por um lado, a ideia de
ONG e por outro lado, a simbólica concepção do termo comunitário. E assim é que o
MUF é uma ONG.
Em Movimentos sociais: dilemas e desafios das ações patrimoniais, Ferraz
(2008), explica que nos anos 90 e principalmente nos anos 2000, disseminam-se no país
as ONG’s, cujas ações buscam, de maneira geral, atuar não apenas em brechas criadas
pela negligência do Estado, mas também em parcerias com este, o que convencionou-se
chamar de terceiro setor. Em vez do protesto característico dos movimentos sociais, as
ações dessas ONG's se voltam para operacionalização de demandas focadas em ações
estratégicas, com captação de recursos junto ao Estado ou a entidades internacionais.
Ferraz destaca ainda que “embora as ONG’s possam ser distinguidas dos
movimentos sociais, na prática as diferenças entre ambos nem sempre podem ser
rigidamente estabelecidas” (FERRAZ, 2008, p.101)
Enquanto as ONG’s sempre são parceiras do Estado e se voltam para a
operacionalização de uma determinada causa, pontuando determinados
aspectos da luta por maior igualdade, os movimentos sociais podem ser
contrários ao governo e, na maioria das vezes, defendem uma causa em seus
diversos aspectos. (FERRAZ, 2008, p.101)
Neste sentido, podemos ver que o MUF como uma ONG que operacionaliza a
causa da memória e patrimônio da favela, e que é parceira do Estado, apesar dos anseios
de seus diretores de se afastar do Estado e se aproximar mais dos movimentos sociais,
indo na direção da ideia de que as ONG’s estão atreladas “em suas matrizes e
significados a lutas populares contra a dominação e a fixação de parâmetros de
comportamento socialmente estabelecidos”.(FERRAZ, 2008, p.101)
Varine (1987) vê na iniciativa comunitária o meio de sair da relação de
dominação. Esta rapidamente passou a ser a ideologia adotada por quase todos os
Museus Comunitários e Ecomuseus no mundo.
Neste sentido a ONG como gestora do Museu Comunitário MUF foi pautada
pela familiaridade e entendimento pela comunidade, mas também pela possibilidade de
operacionalização de suas lutas.
Varine (1987) destaca ainda que a Nova Museologia, inserida em um processo
de “descolonização dos museus”, se deu a partir da disseminação de novos conceitos.
Esta descolonização ocorre inspirada também pela descolonização africana e por uma
“agitação intelectual” que leva ao surgimento de novas ideias. E lembra que até a
década de 1960 somente pessoas de países desenvolvidos “falavam” dos países
africanos. E a partir de então começou-se a reconhecer os intelectuais destes países.
É nesta lógica que os museus comunitários estão se expandindo no Brasil e no
caso do Rio de Janeiro, nas favelas; é desejo de seus moradores falarem deles mesmos.
Isto foi muito bem expressado através do Museu da Maré, do trabalho do CEASM, do
Museu de Favela e mais recentemente no filme “Cinco vezes favela: agora por nós
mesmos”. O que significa este título? Nada mais do que a voz ativa dos moradores de
favela em resposta a um filme da década de 1950, que não foi produzido por moradores
de favelas como este em 2010. O que mudou? Neste período as ideias de
descolonização se espalharam pelo mundo.
Para Gonçalves (2009), a palavra patrimônio transformou-se em um “grito de
guerra”, isto porque, hoje, praticamente para tudo pode ser reivindicado o status de
patrimônio.
Em geral, trata-se de reivindicações identitárias, fundadas na memória
coletiva ou numa narrativa histórica, mas, evidentemente, envolvendo
interesses de ordem simbólica, social e econômica. (GONÇALVES, 2009, p.
01)
Para o antropólogo, o mesmo movimento chega aos museus que também
começam a se multiplicar. A definição do que é patrimônio deixa de ser exclusividade
do Estado e “organizações não governamentais, movimentos sociais, empresas, grupos
sociais e indivíduos assumem iniciativas no sentido de reivindicar, estabelecer e mesmo
contestar patrimônios culturais ou naturais” (GONÇALVES, 2009, p. 06).
Como pudemos ver neste trabalho esta reivindicação pelo patrimônio feita por
ONG's, foi o caso observado na ONG Museu de favela, nas favelas do Pavão,
Pavãozinho e Cantagalo.
Referências
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no museu contemporâneo. 2008. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação
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Janeiro, 2008.
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Mário de Andrade. Chapecó: Arcos editora universitária, 2006.
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de trabalho social e reurbanização do complexo Pavão, Pavãozinho e Cantagalo. PAC –
RIO. 2008.
FERRAZ, JDF. “Movimentos Sociais: Dilemas e Desafios das Ações Patrimoniais”. In:
ABREU, Regina e DODEBEI, Vera. (Org.). E o Patrimônio? Rio de Janeiro: ContraCapa, 2008
FREIRE-MEDEIROS, B. “Favela como Patrimônio da Cidade?” Reflexões e polêmicas
acerca de dois museus. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 38. 2006.
MENEZES, P. Interseções entre novos sentidos de patrimônio, turismo e políticas
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2008. Dissertação ( Mestrado em Ciências Humanas) – Instituto Universitário de
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Janeiro, 2009.
______.” Sobre nós”. Disponível em: http://www.museudefavela.com.br .Acessado em:
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Disponível em: http://www.abremc.com.br/artigos1.asp?id=9 Acessado em: 30/03/2011
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FAVELA TEM PATRIMÔNIO! Camila Maria dos Santos Moraes