DO MITO À CONTEMPORANEIDADE: UM RÁPIDO PERCURSO
LITERÁRIO NA TRANSFORMAÇÃO DO VAMPIRO EM PRÍNCIPE
Maria do Rosário Silva Leite (UFPB/CNPQ)
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Maria das Graças Alves Rodrigues (UFPB/PPGL)
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Resumo
O nosso objetivo neste estudo foi o de traçar um rápido percurso no processo de
transformação e releitura do mito do vampiro. Sabe-se que inicialmente advindo das
tradições orais, os mitos de outrora buscavam explicar o inexplicável, e a conceder ao
ser humano respostas além de sua capacidade, deste modo foi entre 1721 e 1728, com
doenças acometendo a população, que o mito do vampiro se propagou, assim
fertilmente inspirado pelo movimento literário do romance gótico, iniciado por Horace
Walpole, que sob a tutela de Bram Stoker, mais especificamente na figura de Drácula,
que o mito do vampiro se imortalizou, contudo, não deixou de movimentar o imaginário
humano, readquirindo forma pela escrita da autora Anne Rice. O monstro de outrora se
tornou sedutor, e na atualidade virou príncipe encantado, foi nesta perspectiva que a
saga Crepúsculo (2005) da autora Stephenie Meyer emergiu como uma febre mundial
da cultura pop. Em quatro volumes denominados: Crepúsculo (2005), Lua Nova (2006),
Eclipse (2007) e Amanhecer (2008), a autora reúne elemntos pertinentes em fórmulas
anteriores contidas em mitos e contos de fada, como já assinalara em sua Morfologia do
conto maravilhoso, o estruturalista Vladimir Propp, elementos estes, por sua vez
envoltos pelo véu do imaginário vampírico, re-criando e re-contextualizando na
contemporaneidade.
Palavras-chave: Mito. Re-contextualização. Literatura contemporânea.
Desde os primórdios, o imaginário humano desenvolveu narrativas, que a
princípio tentavam explicar o inexplicável. De cunho sagrado, estas narrativas iniciais
exprimiam uma orientação, um guia para as civilizações, conduzindo assim o ser
humano a inteligenciar os fenômenos que ocorriam ao seu redor. A ação das forças da
natureza, destes Entes Sobrenaturais, que de acordo com Mircea Eliade (2007, p. 11)
seriam “uma história sagrada, que relata um acontecimento ocorrido num tempo
primordial”, tornaríam-se, portanto, a mítica presente nas mais diversas civilizações.
Deste modo, endossado por Karen Armstrong (2005, p. 9) “o mito trata do
desconhecido; fala a respeito de algo o que inicialmente não temos palavras”. Partindo
deste princípio, com o passar do tempo, esta “irrupção do sagrado no mundo” tornar-seia um elemento fundamental para a literatura. De situações aparentemente sem
explicação, e movidos pela “curiosidade primária”, segundo denomina Edward Forster
(2005), as civilizações foram criando histórias, estas narrativas por sua vez foram se
espalhando, se modificando de região para região e se adequando aos moldes da cultura
local, na qual era contada.
Nesse sentido, adquirindo um caráter ficcional, a mitologia nos legou seres dos
mais variados: deuses, heróis, monstros e criaturas fantásticas que emergem destas
narrativas orais para habitar as narrativas escritas em todo o mundo, dentre estes, um
dos mais pertinentes e recriados mitos, versa sobre o vampiro. Partindo de rituais
realizados pelos povos primitivos, nos quais, o sangue era elemento sagrado, até
divindades caracterizadas por um aspecto vampiresco, a exemplo, da deusa Kali, na
Índia, do mito hebraico de Lilith e de escritos gregos, que evidenciam o protótipo de
seres vampíricos, como, o lamai, o empusai e o mormolykiai, estas narrativas
conjuntamente ao conceito de morto-vivo disseminado na Europa cristã, do século XII,
irradiou-se pela Europa oriental e pelo ocidente. Nesta propagação, de acordo com J.
Gordon Melton (2003) em sua enciclopédia dos vampiros teremos por volta de 1040,
traços desta temática presentes em um documento, que se referia a um príncipe russo
como Upir Lichy ou vampiro perverso, a aparição do termo Upir, que posteriormente se
tornaria o termo “vampiro”. Deste modo, abordando direta ou indiretamente a
configuração do vampiro, é com o advento da ficção gótica, que data de 1763, mais
especificamente, com a publicação de O Castelo de Otranto, do escritor britânico
Horace Walpole, que a motivação se daria a tantos outros na exploração do mundo
gótico, bem como dos seres que habitam este gênero literário. Em decorrência disto, na
Alemanha, no ano de 1748, nos escritos de Heinrich August Ossenfelder, teremos o
primeiro poema da literatura moderna com temática vampírica, intitulado Der Vampir,
outros autores como Goethe, também desenvolveram o tema, como observamos em A
noiva de Corinto, e novamente a presença deste mito em 1819, sob o título The
Vampyre, de Polidori, obra de cunho moderno baseada em uma trama iniciada por
Byron, desencadeando, assim uma das primeiras vertentes interessadas no vampiro
especificamente.
Como podemos observar a partir destas narrativas, a imagem do vampiro
começava a ser delineada, mas os traços marcantes só viriam sob a tutela de Bram
Stoker, que imortalizou a imagem desta criatura notívaga, adquirindo popularidade e se
instalando na cultura literária. O escritor irlandês utilizou de um personagem histórico,
Vlad Dracul ou Vlad, o empalador, que ao contrário do que muitos afirmam, é admirado
pelos romenos, devido aos seus esforços nada ortodoxos, contra o Império turco, na
defesa da Romênia. Contudo, o personagem adquiriu ares sobrenaturais sob a pena de
Stoker, que segundo Claude Lecouteux (p. 25, 2005) “o saber vampirológico é, por
assim dizer, teorizado” transformando, deste modo, um fato histórico em um dos mitos
mais populares da literatura.
Assim, ao criar o conde Drácula, em 1897, Stoker atribuiu características
específicas, como força descomunal, pele fria, perda de suas forças quando exposto ao
sol, temor aos símbolos religiosos e, no que se refere a sua descrição, vê-se uma criatura
estranha e temível, como podemos perceber na citação abaixo:
Tive então a oportunidade de observá-lo e achei sua fisionomia muito
marcante. Seu rosto era forte, muito forte aquilino, com um nariz fino e
alto nas narinas peculiarmente arqueadas; a testa era alta e imponente, e
o cabelo, embora parco ao redor das têmporas, crescia profusamente
em, outros lugares. As sobrancelhas eram espessas, quase que se
encontrando acima do nariz, e os pelos pareciam enrolar-se numa
profusão própria. A boca, até quanto eu podia ver sob o pesado bigode,
era fixa e de aparência cruel, com dentes brancos peculiarmente afiados.
Estes se projetavam sobre os lábios, cuja aspereza marcante mostrava
uma surpreendente vitalidade para um homem daquela idade. Quanto ao
resto, as orelhas eram pálidas e a parte superior extremamente pontuda.
O queixo era largo e forte, e as bochechas firmes, ainda que finas. O
efeito geral era de uma palidez extraordinária. Eu já havia notado
também as costas de suas mãos, apoiadas sobre os joelhos e iluminadas
pelo fogo, e elas me pareceram um tanto brancas e finas. Mas,
observando-as mais de perto, não pude deixar de notar que eram
ásperas, largas, com dedos rechonchudos e curtos. E, por estranho que
pareça, tinham pelos nos centros das palmas. As unhas eram longas e
finas, aparadas até ficarem pontiagudas. Quando o conde se curvou
sobre mim e suas mãos me tocaram, não pude reprimir um
estremecimento. Pode ter sido pelo fato de seu hálito parecer rançoso;
mas, de qualquer forma, fui acometido de uma náusea que mal
conseguia disfarçar. (STOKER, 2009, p. 31)
Como se vê, a imagem proposta por Stoker se caracteriza na construção de um
ser estranho, uma criatura que provoca repulsa e desagrado, o seu vampiro representa
uma ligação direta com o demoníaco e está marcadamente associado às crenças e
superstições que envolviam a prevenção a seres interligados ao sobrenatural. Mesmo
aparecendo em outro fragmento do romance, com uma aparência mais jovem, o Drácula
de Stoker conserva os mesmos traços de horror citados anteriormente.
Ele fitava um homem alto e magro, com nariz adunco, bigode negro e
barba pontuda, o qual também observava a linda garota. Ele a olhava
com tanta atenção que não nos viu, e deste modo pude observá-lo bem.
Seu rosto não era agradável. Era duro, cruel e lascivo, e seus grandes
dentes brancos, que pareciam mais brancos ainda porque seus lábios
pareciam muito vermelhos, como os de um animal [...] “Creio que seja
o Conde, mas ele está mais jovem”. (STOKER, 2009, p. 150)
Além disso, podemos observar que o relacionamento do personagem Drácula
com sua amada reencarnada Mina, se dá de modo violento, o que se destaca é a rudeza
em suas ações.
Notei, então, que nosso quarto estava saturado da mesma névoa branca
que já vira antes [...] senti um vago terror que me assaltara antes, com o
mesmo pressentimento de alguma ameaça. Virei-me para acordar
Jonathan. Notei, porém, que seu sono era tão profundo que até tive a
impressão de que fora ele e não eu quem tomara a poção para
adormecer. Mesmo assim, tentei e insisti, mas não consegui despertá-lo.
Isso me deixou terrivelmente apavorada, e logo comecei a olhar em
torno sem saber o que fazer. Foi nesse preciso instante que meu coração
ficou paralisado; ao lado da cama, como se tivesse surgido de dentro
daquela névoa ou talvez quando a própria névoa se transformou naquele
indivíduo, já que toda ela se desvaneceu, estava de pé um homem alto e
esguio, todo de preto. Eu já o conhecia através da descrição de outros. O
rosto lívido e estereotipado, nariz alto e aquilino, sobre o qual a
incidência do luar difuso formava um contorno esbranquiçado; os lábios
vermelhos entreabertos, deixando à mostra seus brancos e aguçados
dentes [...] No curto intervalo que se seguiu, ele falou num murmúrio
mordaz e cortante, apontando para Jonathan: Silêncio! Se abrir a boca,
esfacelarei a cabeça dele diante dos seus olhos. (STOKER, 2009, p.
247)
Da mesma forma a narrativa segue para o momento em que Mina e Drácula
ainda no mesmo ambiente, ao lado de Jonathan adormecido, vem nos apresentar o beijo
vampiro, tido como algo repulsivo pela personagem, que destaca mais uma vez a
característica demoníaca contida naquela criatura, algo bem diferente do que nos é
apresentado pela sétima arte.
Eu estava gelada e completamente aturdida para fazer ou dizer alguma
coisa. Com um riso satânico, ele colocou uma das mãos sobre meu
ombro, agarrando-o com força, e com a outra desimpediu minha
garganta [...] Ele baixou seus lábios impregnados de mau hálito sobre
minha garganta![...] Senti minhas forças se esvaírem, e agora já me
sentia semi-inconsciente. Quanto tempo durou o martírio eu realmente
não posso precisar. Para mim, porém, pareceu-me transcorrer uma
eternidade até ele me libertar de sua asquerosa, aterradora e mal
cheirosa boca [...] ‘Você ajudou a perseguir-me; agora terá de obedecer
ao meu chamado. Quando eu mentalmente disser: ‘Venha’, você
atravessará terras e mares para satisfazer meu comando. E para que
assim seja tome isto!’. E abrindo a gola da camisa, com suas afiadas
unhas abriu uma veia em seu peito. Logo que o sangue começou a
escorrer, tomou uma de minhas mãos e, fazendo dela uma concha, com
a outra obrigou-me a dobrar o pescoço até comprimir minha boca sobre
a ferida ensangüentada, forçando-me com tamanha violência que eu, ou
morria sufocada, ou teria de engolir seu asqueroso... (STOKER, 2009,
p. 247-248)
Nesse sentido, percebemos que o romance de Stoker conservou as tradições
advindas das narrativas míticas, bem como o seu arsenal folclórico e religioso, nos
legando, portanto, elementos de um assassino noturno e sugador de sangue, essa
imagem do vampiro stokiano firma e abona elementos base para a constituição do que
permeou a escrita acerca deste tema.
É notório, que a fase pós Stoker levou a criatura notívaga a adormecer
literariamente, emergindo na sétima arte com uma variedade de opções na abordagem
do mito do vampiro. Mas seu sono não duraria muito e, o mito do vampiro ressurgiria,
mais vivo do que nunca, agora sob a pena da autora Anne Rice, que em 1976, nos legou
personagens vampirescos dotados de uma beleza sedutora e diríamos fatal. Do monstro
de outrora, Rice nos lega o vampiro sedutor e envolvente, de beleza extraordinária, que
difere do stokiano, seus vampiros não mais estão sujeitos as superstições, nem aos
artigos religiosos, precisam apenas proteger-se do sol, conforme apresenta a narrativa de
Rice (1992, p. 29), “Absurdo, meu amigo, puro absurdo. Posso olhar o que quiser. E
gosto bastante de olhar para crucifixos, em particular”.
Estes imortais renovados marcam sua presença na literatura, com a publicação
de Entrevista com o vampiro (1976), neste romance Anne Rice nos apresenta Louis, um
vampiro com alma, que sofre e se aproxima mais da humanidade, tentando se eximir da
carga monstruosa intrínseca a sua natureza e Lestat, seu criador e o seu oposto, um
vampiro que segue seus mais puros instintos. Estes impulsos, por sua vez são descritos
de modo sedutor, aproximando a sensação da paixão e da conexão entre o vampiro e o
seu mortal doador, diferindo por sua vez, do beijo imortal descrito por Stoker, como
supracitado.
- Fique quieto. Agora vou sugá-lo até a verdadeira fronteira da morte.
[...] Queria lutar, mas apertou-me com tal força que dominou
inteiramente o meu corpo. [...] – Lembro-me que o movimento de seus
lábios arrepiou todos os cabelos de meu corpo, enviando uma corrente
de sensações através de meu corpo que não pareceu muito diferente do
prazer da paixão... Pareceu meditar, os dedos da mão ligeiramente
recurvados sob o queixo, o polegar parecendo acariciá-lo. [...] Apertou
seu pulso sangrento contra minha boca [...] – Louis, beba. [...] Bebi
sugando o sangue vindo dos furos, experimentando pela primeira vez,
desde a infância, o prazer especial de sugar algum alimento. [...] –
Enquanto bebia o sangue, não via nada a não ser aquela luz. E, em
seguida, em seguida...um som. [...] O som foi se tornando cada vez mais
forte até me dar a impressão de não estar apenas atingindo minha
audição, mas todos os meus sentidos [...] Abri meus olhos e me contive
ao notar que tentava segurar seu pulso, agarrá-lo, querendo fazê-lo
voltar à minha boca de qualquer modo. (RICE, 1992, p. 25-26)
Em Entrevista com o vampiro, a autora descreve a figura do vampiro de modo
diferente daquele introduzido e que se perpetuou durante o século XIX, em Lestat temos
segundo Rice: “um homem alto de pele delicada, cabelos louros e movimentos
graciosos, quase felinos” (1992, p. 20) ou na passagem “o vampiro Lestat era
extraordinário. Não me parecia mais humano do que um anjo bíblico” (1992, p. 23).
Percebemos, assim, que a caracterização do vampiro em Rice se reveste de
sensualidade, divinização e extrema comoção, esta última mais especificamente, no
caso de Louis, o qual destacamos, como um vampiro humanizado e tomado até mesmo
na sua vida imortal, pelo pesar da perda de seu irmão e a aparente culpa advinda do
mesmo e, que durante a maior parte da narrativa vivencia um embate consigo mesmo e
com sua natureza vampírica.
- Quero morrer – comecei a murmurar. – Isto é insuportável.
Quero morrer. Você tem o poder de me matar. Deixe-me
morrer. Recusava-me a olhar para ele, a ser encantado pela doce
beleza de seu rosto. Ele repetia o meu nome carinhosamente,
rindo. [...] – Quero morrer, mate-me. Mate-me – disse ao
vampiro. – Agora sou culpado de assassinato. Não posso viver.
Zombou de mim com a impaciência de alguém que escuta
mentiras óbvias. (RICE, p. 24, 1992)
Além disso, a cumplicidade que se dá durante a transformação, também se torna
outro ponto de destaque na narrativa riceana. Louis deve compactuar do assassinato de
um ser humano, comprovando, assim a sua fidelidade ao seu criador, mas como
observamos a seguir, o vampiro em fase de transformação enfatiza em sua fala a
característica que o destaca como uma reformulação na imagem do vampiro do século
XIX:
Eu devia observar e aprovar, isto é, ser cúmplice da morte de
um ser humano, como prova de meu compromisso e parte de
minha transformação, sem dúvida alguma esta foi a parte mais
difícil. [...] Parte de minha transformação, como disse. Lestat
não permitiria que fosse de outro modo. Depois, precisamos nos
livrar do corpo do capataz. Quase vomitei. Ainda fraco e febril,
tinha pouca energia, e o fato de manusear o cadáver com tais
propósitos me dava náuseas. Lestat ria, dizendo-me
calorosamente que. Quando me tornasse vampiro, me sentiria
tão diferente que também riria. Enganou-se. Nunca ri da morte,
apesar da freqüência com que eu mesmo a tenha causado.
(RICE, 2009, p. 23)
Movido pelo sentimento de repulsa em matar e sua consciência oscilando entre o
desejo por sangue e a dor em machucar um ser humano, como na citação abaixo, esta
releitura feita por Anne Rice abre caminho para outra transformação deste mito, que
agora permeia os contos de fada:
Mas o que é esta nossa natureza? Se posso viver com o sangue
dos animais, porque não posso me ater a eles, em lugar de
correr o mundo espalhando a dor e a morte entre criaturas
humanas? – Isto o faz feliz? – perguntou- Perambulou pela
noite, alimentando-se de ratos. (RICE, 2009, p. 82)
Outrossim, de uma criatura da noite sedenta por sangue, caracterizada como
monstro para uma nova geração dotada de sensualidade e contenção dos instintos, em
2005, uma revitalização do mito do vampiro se daria pela escrita da autora Stephenie
Meyer. A saga Crepúsculo surge introduzindo elementos característicos das estórias de
fadas, dentre eles destacamos o príncipe encantado, representado na figura de Edward
Cullen, um vampiro vegetariano, pois se alimenta apenas de sangue de animais e que se
enamora da mortal Bella Swan, na chuvosa cidade de Forks, Washington.
Nesta narrativa contemporânea nos deparamos com o resgate ao ideal
cavalheiresco, incorporado pelas narrativas feéricas, recriadas pela Disney e enfatizando
os dotes que constituem o príncipe encantado. Retornando aos primórdios dos contos de
fada percebemos a ligação com a mítica e o folclore orais, de contos inicialmente
destinados aos adultos ou aos jovens da corte francesa, os contos de fada foram sendo
adaptados, segundo nos afirma Bruno Bettelheim (2007, p. 12) “ao longo dos séculos
(quando não de milênios) durante os quais os contos de fadas, ao serem recontados,
foram se tornando cada vez mais refinados”, nos legando a imagem do príncipe
garboso, forte e de moral incorrupta, como podemos observar no conto Pele de Asno, de
Perrault (2005, p. 207) “a ele não se comparava o belo Céfalo: seu ar era real, seu
semblante marcial, propício a fazer tremer os mais altivos batalhões”, ou mais a diante
Perrault (2005, p. 208-209) pontua que, ao deparar-se com a bela princesa a arrumar-se
em seu quarto por “três vezes no calor do abrasamento que o extasia, quis ele forçar a
porta, mas crendo ver uma divindade, três vezes pelo respeito seu braço foi detido”.
Deste modo, em meio a este surgimento cavalheiresco, o príncipe de outrora deu
adeus ao cavalo branco e as roupas pomposas, dando lugar a carros velozes,
motocicletas e jaquetas de couro. O príncipe torna-se vampiro, ou mais acertadamente
diríamos que o vampiro se torna príncipe removendo e introduzindo novos caracteres a
este ser sobrenatural. A respeito da caracterização dos vampiros de Meyer, estes se
aproximam dos de Rice no tocante a beleza, seus vampiros são deslumbrantes,
verdadeiros modelos de capa de revista e que devem se proteger dos raios solares, não
porque serão reduzidos a cinzas, mas porque brilham, como se seus corpos estivessem
cobertos por pequenos diamantes:
Fiquei olhando porque seus rostos, tão diferentes, tão parecidos.
Eram completa, arrasadoramente e inumanamente lindos. Eram
rostos que não se esperava ver a não ser talvez nas páginas
reluzentes de uma revista de moda. (MEYER, 2008, p. 22)
[...]
Na luz do sol, Edward era chocante. Eu não conseguia me
acostumar com aquilo, embora o tivesse olhado a tarde toda.
Sua pele, branca apesar do rubor fraco da viagem de caça da
véspera, literalmente faiscava, como se milhares de diamantes
pequenininhos estivessem incrustados na superfície. Ele se
deitou completamente imóvel na relva, a camisa aberta no peito
incandescente e escultural, os braços nus cintilando. (MEYER,
2008, p. 192)
Outra característica que se destaca, remete a não influência de elementos
religiosos sobre estes seres. Na atualidade, o vampiro com olhos “de uma cor
completamente diferente: um ocre estranho, mais escuro do que caramelo, mas com o
mesmo tom dourado” (MEYER, 2008, p. 42), possui as características mais notáveis,
nada que nos faça lembrar o vampiro criado por Stoker. Edward possui um senso de
moral e lealdade, habilidades e contenção emocional, além de uma beleza inumana que
o tornam um príncipe encantado envolto pelo véu vampírico. Temos, então, o vampiro
“bom moço”, “Sempre um cavalheiro”, (MEYER, 2008, p. 266) é segundo Abigail
Myers (2010, p. 128) um herói byroniano:
É definido no Oxford Dictionary of Literary Terms como
‘fortemente desafiador, mas um autocomiserador que vive às
margens, orgulhosamente enojado das normas sociais, mas
sofrendo por algum pecado secreto’. É inteligente, apaixonado e
normalmente acima da média em tudo (incluindo a aparência; é
ao mesmo tempo, atormentado, imprevisível e ridiculariza a
autoridade alheia.
Nesse sentido, concordamos parcialmente com a assertiva, pois, a caracterização
e atitudes da personagem diferem um pouco do herói byroniano, digamos que este
vampiro, com ar de James Dean, é perigoso por ser um morto-vivo, que
consequentemente abateu seres humanos nos primeiros anos após sua transformação,
considera-se amaldiçoado, mas, no entanto, sua conduta cavalheiresca sob o duplo do
perigoso/protetor, que teme pela alma de sua amada e deseja ferozmente o seu sangue,
nos conduz ao protótipo de uma nova geração de vampiros, que dita um modelo
comportamental mais comedido, pois estes convivem a luz do dia com os mortais.
- Regras de vampiros não bastam para você? Quer se preocupar
com as regras humanas também? [...]
“Não matarás” é comumente aceito pela maioria das crenças. E
eu matei muita gente, Bella.
- Só os maus.
Ele deu de ombros.
- Talvez isso conte, talvez não. Mas você não matou ninguém...
[...]
- Tudo bem. Mas não estamos brigando para cometer
assassinato – lembrei a ele.
-Aqui se aplica o mesmo princípio... A única diferença é que
esta é uma área que sou tão imaculado quanto você. Não posso
deixar uma regra intacta?
- Uma?
- Você sabe que roubei, menti, cobicei... Minha virtude é tudo o
que me resta. – ele deu um sorriso torto.
- Eu minto o tempo todo.
- Sim, mas você é uma mentirosa tão ruim que não conta. [...]
mas o que você cobiçou? – perguntei, em dúvida. – Você tem
tudo.
- Eu cobicei você. [...] – Pode cobiçar o que já é seu – informei
a ele. – Além disso, pensei que minha virtude o preocupava.
- E preocupa. [...] – Então é assim. Você só vai dormir comigo
quando estivermos casados. [...] só quero que seja oficial... Que
você me pertença e a mais ninguém. (MEYER, 2009, p. 325326)
Destacando a respeitabilidade às regras e normas sociais como um verdadeiro
príncipe dos contos de fada, apto a salvar a mocinha, que no romance é um verdadeiro
imã para problemas, a mantêm sob sua proteção como um anjo da guarda, “Ele riu
depois começou a cantarolar a mesma cantiga desconhecida. A voz de um arcanjo,
suave em meu ouvido. (MEYER, 2008, p. 227), chegando a preservar a virtude de sua
amada até o casamento.
Edward traçara limites muito cuidadosos para nossa relação
física, com a intenção de me manter viva. Embora respeitasse a
necessidade de preservar uma distância segura entre minha pele
e seus dentes afiados, cobertos de veneno, eu tendia a me
esquecer de questões banais como essa quando ele me beijava.
(MEYER, 2008, p. 21)
- Isabella Swan? – Ele me olhou através dos cílios
incrivelmente longos, os olhos dourados suaves mas, de certo
modo, ainda em brasa. – Prometo amá-la para sempre... a cada
dia da eternidade. Quer se casar comigo? [...] Sim. – Obrigado –
disse Edward simplesmente. Ele pegou minha mão esquerda e
beijou a ponta de cada um dos dedos antes de beijar a aliança
que então era minha. (MEYER, 2009, p. 329)
Endossando a imagem do príncipe em Edward Cullen, é notório que a estrutura
da saga se encaixa em algumas das funções destacadas por Vladimir Propp, em sua
morfologia do conto maravilhoso, a exemplo da “partida”, no qual a protagonista
(Bella) vai morar com o pai em Forks, local em que conhece Edward, ou a “proibição” e
a “transgressão”, nas quais o nosso príncipe-vampiro transgride a proibição de
relacionar-se com uma humana, ou o “combate”, no qual Edward a defende do vilão, o
casamento com base na forma do happy end, segundo Meyer (2009, p. 567) “para
sempre, para sempre e para sempre – ele murmurou. – Isso soa perfeito para mim. E
assim, alegremente, continuamos aquela parte pequena e perfeita de nossa eternidade”.
Portanto, destacamos dentro do legado de Meyer a re-criação do mito do
vampiro, agora um ser cavalheiresco, o herói perfeito, atraente e misterioso, que dirige
um carro esporte, protege a mocinha das intempéries da vida humana e de si mesmo.
Temos na contemporaneidade o vampiro- príncipe desprovido da caracterização do
horror desenvolvida por Stoker, este surge como novo herói da contemporaneidade.
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STOKER, Bram. Drácula. Tradução Sandra Guerreiro. 2. ed. São Paulo: Madras, 2009.
Download

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