DO MITO À CONTEMPORANEIDADE: UM RÁPIDO PERCURSO LITERÁRIO NA TRANSFORMAÇÃO DO VAMPIRO EM PRÍNCIPE Maria do Rosário Silva Leite (UFPB/CNPQ) [email protected] Maria das Graças Alves Rodrigues (UFPB/PPGL) [email protected] Resumo O nosso objetivo neste estudo foi o de traçar um rápido percurso no processo de transformação e releitura do mito do vampiro. Sabe-se que inicialmente advindo das tradições orais, os mitos de outrora buscavam explicar o inexplicável, e a conceder ao ser humano respostas além de sua capacidade, deste modo foi entre 1721 e 1728, com doenças acometendo a população, que o mito do vampiro se propagou, assim fertilmente inspirado pelo movimento literário do romance gótico, iniciado por Horace Walpole, que sob a tutela de Bram Stoker, mais especificamente na figura de Drácula, que o mito do vampiro se imortalizou, contudo, não deixou de movimentar o imaginário humano, readquirindo forma pela escrita da autora Anne Rice. O monstro de outrora se tornou sedutor, e na atualidade virou príncipe encantado, foi nesta perspectiva que a saga Crepúsculo (2005) da autora Stephenie Meyer emergiu como uma febre mundial da cultura pop. Em quatro volumes denominados: Crepúsculo (2005), Lua Nova (2006), Eclipse (2007) e Amanhecer (2008), a autora reúne elemntos pertinentes em fórmulas anteriores contidas em mitos e contos de fada, como já assinalara em sua Morfologia do conto maravilhoso, o estruturalista Vladimir Propp, elementos estes, por sua vez envoltos pelo véu do imaginário vampírico, re-criando e re-contextualizando na contemporaneidade. Palavras-chave: Mito. Re-contextualização. Literatura contemporânea. Desde os primórdios, o imaginário humano desenvolveu narrativas, que a princípio tentavam explicar o inexplicável. De cunho sagrado, estas narrativas iniciais exprimiam uma orientação, um guia para as civilizações, conduzindo assim o ser humano a inteligenciar os fenômenos que ocorriam ao seu redor. A ação das forças da natureza, destes Entes Sobrenaturais, que de acordo com Mircea Eliade (2007, p. 11) seriam “uma história sagrada, que relata um acontecimento ocorrido num tempo primordial”, tornaríam-se, portanto, a mítica presente nas mais diversas civilizações. Deste modo, endossado por Karen Armstrong (2005, p. 9) “o mito trata do desconhecido; fala a respeito de algo o que inicialmente não temos palavras”. Partindo deste princípio, com o passar do tempo, esta “irrupção do sagrado no mundo” tornar-seia um elemento fundamental para a literatura. De situações aparentemente sem explicação, e movidos pela “curiosidade primária”, segundo denomina Edward Forster (2005), as civilizações foram criando histórias, estas narrativas por sua vez foram se espalhando, se modificando de região para região e se adequando aos moldes da cultura local, na qual era contada. Nesse sentido, adquirindo um caráter ficcional, a mitologia nos legou seres dos mais variados: deuses, heróis, monstros e criaturas fantásticas que emergem destas narrativas orais para habitar as narrativas escritas em todo o mundo, dentre estes, um dos mais pertinentes e recriados mitos, versa sobre o vampiro. Partindo de rituais realizados pelos povos primitivos, nos quais, o sangue era elemento sagrado, até divindades caracterizadas por um aspecto vampiresco, a exemplo, da deusa Kali, na Índia, do mito hebraico de Lilith e de escritos gregos, que evidenciam o protótipo de seres vampíricos, como, o lamai, o empusai e o mormolykiai, estas narrativas conjuntamente ao conceito de morto-vivo disseminado na Europa cristã, do século XII, irradiou-se pela Europa oriental e pelo ocidente. Nesta propagação, de acordo com J. Gordon Melton (2003) em sua enciclopédia dos vampiros teremos por volta de 1040, traços desta temática presentes em um documento, que se referia a um príncipe russo como Upir Lichy ou vampiro perverso, a aparição do termo Upir, que posteriormente se tornaria o termo “vampiro”. Deste modo, abordando direta ou indiretamente a configuração do vampiro, é com o advento da ficção gótica, que data de 1763, mais especificamente, com a publicação de O Castelo de Otranto, do escritor britânico Horace Walpole, que a motivação se daria a tantos outros na exploração do mundo gótico, bem como dos seres que habitam este gênero literário. Em decorrência disto, na Alemanha, no ano de 1748, nos escritos de Heinrich August Ossenfelder, teremos o primeiro poema da literatura moderna com temática vampírica, intitulado Der Vampir, outros autores como Goethe, também desenvolveram o tema, como observamos em A noiva de Corinto, e novamente a presença deste mito em 1819, sob o título The Vampyre, de Polidori, obra de cunho moderno baseada em uma trama iniciada por Byron, desencadeando, assim uma das primeiras vertentes interessadas no vampiro especificamente. Como podemos observar a partir destas narrativas, a imagem do vampiro começava a ser delineada, mas os traços marcantes só viriam sob a tutela de Bram Stoker, que imortalizou a imagem desta criatura notívaga, adquirindo popularidade e se instalando na cultura literária. O escritor irlandês utilizou de um personagem histórico, Vlad Dracul ou Vlad, o empalador, que ao contrário do que muitos afirmam, é admirado pelos romenos, devido aos seus esforços nada ortodoxos, contra o Império turco, na defesa da Romênia. Contudo, o personagem adquiriu ares sobrenaturais sob a pena de Stoker, que segundo Claude Lecouteux (p. 25, 2005) “o saber vampirológico é, por assim dizer, teorizado” transformando, deste modo, um fato histórico em um dos mitos mais populares da literatura. Assim, ao criar o conde Drácula, em 1897, Stoker atribuiu características específicas, como força descomunal, pele fria, perda de suas forças quando exposto ao sol, temor aos símbolos religiosos e, no que se refere a sua descrição, vê-se uma criatura estranha e temível, como podemos perceber na citação abaixo: Tive então a oportunidade de observá-lo e achei sua fisionomia muito marcante. Seu rosto era forte, muito forte aquilino, com um nariz fino e alto nas narinas peculiarmente arqueadas; a testa era alta e imponente, e o cabelo, embora parco ao redor das têmporas, crescia profusamente em, outros lugares. As sobrancelhas eram espessas, quase que se encontrando acima do nariz, e os pelos pareciam enrolar-se numa profusão própria. A boca, até quanto eu podia ver sob o pesado bigode, era fixa e de aparência cruel, com dentes brancos peculiarmente afiados. Estes se projetavam sobre os lábios, cuja aspereza marcante mostrava uma surpreendente vitalidade para um homem daquela idade. Quanto ao resto, as orelhas eram pálidas e a parte superior extremamente pontuda. O queixo era largo e forte, e as bochechas firmes, ainda que finas. O efeito geral era de uma palidez extraordinária. Eu já havia notado também as costas de suas mãos, apoiadas sobre os joelhos e iluminadas pelo fogo, e elas me pareceram um tanto brancas e finas. Mas, observando-as mais de perto, não pude deixar de notar que eram ásperas, largas, com dedos rechonchudos e curtos. E, por estranho que pareça, tinham pelos nos centros das palmas. As unhas eram longas e finas, aparadas até ficarem pontiagudas. Quando o conde se curvou sobre mim e suas mãos me tocaram, não pude reprimir um estremecimento. Pode ter sido pelo fato de seu hálito parecer rançoso; mas, de qualquer forma, fui acometido de uma náusea que mal conseguia disfarçar. (STOKER, 2009, p. 31) Como se vê, a imagem proposta por Stoker se caracteriza na construção de um ser estranho, uma criatura que provoca repulsa e desagrado, o seu vampiro representa uma ligação direta com o demoníaco e está marcadamente associado às crenças e superstições que envolviam a prevenção a seres interligados ao sobrenatural. Mesmo aparecendo em outro fragmento do romance, com uma aparência mais jovem, o Drácula de Stoker conserva os mesmos traços de horror citados anteriormente. Ele fitava um homem alto e magro, com nariz adunco, bigode negro e barba pontuda, o qual também observava a linda garota. Ele a olhava com tanta atenção que não nos viu, e deste modo pude observá-lo bem. Seu rosto não era agradável. Era duro, cruel e lascivo, e seus grandes dentes brancos, que pareciam mais brancos ainda porque seus lábios pareciam muito vermelhos, como os de um animal [...] “Creio que seja o Conde, mas ele está mais jovem”. (STOKER, 2009, p. 150) Além disso, podemos observar que o relacionamento do personagem Drácula com sua amada reencarnada Mina, se dá de modo violento, o que se destaca é a rudeza em suas ações. Notei, então, que nosso quarto estava saturado da mesma névoa branca que já vira antes [...] senti um vago terror que me assaltara antes, com o mesmo pressentimento de alguma ameaça. Virei-me para acordar Jonathan. Notei, porém, que seu sono era tão profundo que até tive a impressão de que fora ele e não eu quem tomara a poção para adormecer. Mesmo assim, tentei e insisti, mas não consegui despertá-lo. Isso me deixou terrivelmente apavorada, e logo comecei a olhar em torno sem saber o que fazer. Foi nesse preciso instante que meu coração ficou paralisado; ao lado da cama, como se tivesse surgido de dentro daquela névoa ou talvez quando a própria névoa se transformou naquele indivíduo, já que toda ela se desvaneceu, estava de pé um homem alto e esguio, todo de preto. Eu já o conhecia através da descrição de outros. O rosto lívido e estereotipado, nariz alto e aquilino, sobre o qual a incidência do luar difuso formava um contorno esbranquiçado; os lábios vermelhos entreabertos, deixando à mostra seus brancos e aguçados dentes [...] No curto intervalo que se seguiu, ele falou num murmúrio mordaz e cortante, apontando para Jonathan: Silêncio! Se abrir a boca, esfacelarei a cabeça dele diante dos seus olhos. (STOKER, 2009, p. 247) Da mesma forma a narrativa segue para o momento em que Mina e Drácula ainda no mesmo ambiente, ao lado de Jonathan adormecido, vem nos apresentar o beijo vampiro, tido como algo repulsivo pela personagem, que destaca mais uma vez a característica demoníaca contida naquela criatura, algo bem diferente do que nos é apresentado pela sétima arte. Eu estava gelada e completamente aturdida para fazer ou dizer alguma coisa. Com um riso satânico, ele colocou uma das mãos sobre meu ombro, agarrando-o com força, e com a outra desimpediu minha garganta [...] Ele baixou seus lábios impregnados de mau hálito sobre minha garganta![...] Senti minhas forças se esvaírem, e agora já me sentia semi-inconsciente. Quanto tempo durou o martírio eu realmente não posso precisar. Para mim, porém, pareceu-me transcorrer uma eternidade até ele me libertar de sua asquerosa, aterradora e mal cheirosa boca [...] ‘Você ajudou a perseguir-me; agora terá de obedecer ao meu chamado. Quando eu mentalmente disser: ‘Venha’, você atravessará terras e mares para satisfazer meu comando. E para que assim seja tome isto!’. E abrindo a gola da camisa, com suas afiadas unhas abriu uma veia em seu peito. Logo que o sangue começou a escorrer, tomou uma de minhas mãos e, fazendo dela uma concha, com a outra obrigou-me a dobrar o pescoço até comprimir minha boca sobre a ferida ensangüentada, forçando-me com tamanha violência que eu, ou morria sufocada, ou teria de engolir seu asqueroso... (STOKER, 2009, p. 247-248) Nesse sentido, percebemos que o romance de Stoker conservou as tradições advindas das narrativas míticas, bem como o seu arsenal folclórico e religioso, nos legando, portanto, elementos de um assassino noturno e sugador de sangue, essa imagem do vampiro stokiano firma e abona elementos base para a constituição do que permeou a escrita acerca deste tema. É notório, que a fase pós Stoker levou a criatura notívaga a adormecer literariamente, emergindo na sétima arte com uma variedade de opções na abordagem do mito do vampiro. Mas seu sono não duraria muito e, o mito do vampiro ressurgiria, mais vivo do que nunca, agora sob a pena da autora Anne Rice, que em 1976, nos legou personagens vampirescos dotados de uma beleza sedutora e diríamos fatal. Do monstro de outrora, Rice nos lega o vampiro sedutor e envolvente, de beleza extraordinária, que difere do stokiano, seus vampiros não mais estão sujeitos as superstições, nem aos artigos religiosos, precisam apenas proteger-se do sol, conforme apresenta a narrativa de Rice (1992, p. 29), “Absurdo, meu amigo, puro absurdo. Posso olhar o que quiser. E gosto bastante de olhar para crucifixos, em particular”. Estes imortais renovados marcam sua presença na literatura, com a publicação de Entrevista com o vampiro (1976), neste romance Anne Rice nos apresenta Louis, um vampiro com alma, que sofre e se aproxima mais da humanidade, tentando se eximir da carga monstruosa intrínseca a sua natureza e Lestat, seu criador e o seu oposto, um vampiro que segue seus mais puros instintos. Estes impulsos, por sua vez são descritos de modo sedutor, aproximando a sensação da paixão e da conexão entre o vampiro e o seu mortal doador, diferindo por sua vez, do beijo imortal descrito por Stoker, como supracitado. - Fique quieto. Agora vou sugá-lo até a verdadeira fronteira da morte. [...] Queria lutar, mas apertou-me com tal força que dominou inteiramente o meu corpo. [...] – Lembro-me que o movimento de seus lábios arrepiou todos os cabelos de meu corpo, enviando uma corrente de sensações através de meu corpo que não pareceu muito diferente do prazer da paixão... Pareceu meditar, os dedos da mão ligeiramente recurvados sob o queixo, o polegar parecendo acariciá-lo. [...] Apertou seu pulso sangrento contra minha boca [...] – Louis, beba. [...] Bebi sugando o sangue vindo dos furos, experimentando pela primeira vez, desde a infância, o prazer especial de sugar algum alimento. [...] – Enquanto bebia o sangue, não via nada a não ser aquela luz. E, em seguida, em seguida...um som. [...] O som foi se tornando cada vez mais forte até me dar a impressão de não estar apenas atingindo minha audição, mas todos os meus sentidos [...] Abri meus olhos e me contive ao notar que tentava segurar seu pulso, agarrá-lo, querendo fazê-lo voltar à minha boca de qualquer modo. (RICE, 1992, p. 25-26) Em Entrevista com o vampiro, a autora descreve a figura do vampiro de modo diferente daquele introduzido e que se perpetuou durante o século XIX, em Lestat temos segundo Rice: “um homem alto de pele delicada, cabelos louros e movimentos graciosos, quase felinos” (1992, p. 20) ou na passagem “o vampiro Lestat era extraordinário. Não me parecia mais humano do que um anjo bíblico” (1992, p. 23). Percebemos, assim, que a caracterização do vampiro em Rice se reveste de sensualidade, divinização e extrema comoção, esta última mais especificamente, no caso de Louis, o qual destacamos, como um vampiro humanizado e tomado até mesmo na sua vida imortal, pelo pesar da perda de seu irmão e a aparente culpa advinda do mesmo e, que durante a maior parte da narrativa vivencia um embate consigo mesmo e com sua natureza vampírica. - Quero morrer – comecei a murmurar. – Isto é insuportável. Quero morrer. Você tem o poder de me matar. Deixe-me morrer. Recusava-me a olhar para ele, a ser encantado pela doce beleza de seu rosto. Ele repetia o meu nome carinhosamente, rindo. [...] – Quero morrer, mate-me. Mate-me – disse ao vampiro. – Agora sou culpado de assassinato. Não posso viver. Zombou de mim com a impaciência de alguém que escuta mentiras óbvias. (RICE, p. 24, 1992) Além disso, a cumplicidade que se dá durante a transformação, também se torna outro ponto de destaque na narrativa riceana. Louis deve compactuar do assassinato de um ser humano, comprovando, assim a sua fidelidade ao seu criador, mas como observamos a seguir, o vampiro em fase de transformação enfatiza em sua fala a característica que o destaca como uma reformulação na imagem do vampiro do século XIX: Eu devia observar e aprovar, isto é, ser cúmplice da morte de um ser humano, como prova de meu compromisso e parte de minha transformação, sem dúvida alguma esta foi a parte mais difícil. [...] Parte de minha transformação, como disse. Lestat não permitiria que fosse de outro modo. Depois, precisamos nos livrar do corpo do capataz. Quase vomitei. Ainda fraco e febril, tinha pouca energia, e o fato de manusear o cadáver com tais propósitos me dava náuseas. Lestat ria, dizendo-me calorosamente que. Quando me tornasse vampiro, me sentiria tão diferente que também riria. Enganou-se. Nunca ri da morte, apesar da freqüência com que eu mesmo a tenha causado. (RICE, 2009, p. 23) Movido pelo sentimento de repulsa em matar e sua consciência oscilando entre o desejo por sangue e a dor em machucar um ser humano, como na citação abaixo, esta releitura feita por Anne Rice abre caminho para outra transformação deste mito, que agora permeia os contos de fada: Mas o que é esta nossa natureza? Se posso viver com o sangue dos animais, porque não posso me ater a eles, em lugar de correr o mundo espalhando a dor e a morte entre criaturas humanas? – Isto o faz feliz? – perguntou- Perambulou pela noite, alimentando-se de ratos. (RICE, 2009, p. 82) Outrossim, de uma criatura da noite sedenta por sangue, caracterizada como monstro para uma nova geração dotada de sensualidade e contenção dos instintos, em 2005, uma revitalização do mito do vampiro se daria pela escrita da autora Stephenie Meyer. A saga Crepúsculo surge introduzindo elementos característicos das estórias de fadas, dentre eles destacamos o príncipe encantado, representado na figura de Edward Cullen, um vampiro vegetariano, pois se alimenta apenas de sangue de animais e que se enamora da mortal Bella Swan, na chuvosa cidade de Forks, Washington. Nesta narrativa contemporânea nos deparamos com o resgate ao ideal cavalheiresco, incorporado pelas narrativas feéricas, recriadas pela Disney e enfatizando os dotes que constituem o príncipe encantado. Retornando aos primórdios dos contos de fada percebemos a ligação com a mítica e o folclore orais, de contos inicialmente destinados aos adultos ou aos jovens da corte francesa, os contos de fada foram sendo adaptados, segundo nos afirma Bruno Bettelheim (2007, p. 12) “ao longo dos séculos (quando não de milênios) durante os quais os contos de fadas, ao serem recontados, foram se tornando cada vez mais refinados”, nos legando a imagem do príncipe garboso, forte e de moral incorrupta, como podemos observar no conto Pele de Asno, de Perrault (2005, p. 207) “a ele não se comparava o belo Céfalo: seu ar era real, seu semblante marcial, propício a fazer tremer os mais altivos batalhões”, ou mais a diante Perrault (2005, p. 208-209) pontua que, ao deparar-se com a bela princesa a arrumar-se em seu quarto por “três vezes no calor do abrasamento que o extasia, quis ele forçar a porta, mas crendo ver uma divindade, três vezes pelo respeito seu braço foi detido”. Deste modo, em meio a este surgimento cavalheiresco, o príncipe de outrora deu adeus ao cavalo branco e as roupas pomposas, dando lugar a carros velozes, motocicletas e jaquetas de couro. O príncipe torna-se vampiro, ou mais acertadamente diríamos que o vampiro se torna príncipe removendo e introduzindo novos caracteres a este ser sobrenatural. A respeito da caracterização dos vampiros de Meyer, estes se aproximam dos de Rice no tocante a beleza, seus vampiros são deslumbrantes, verdadeiros modelos de capa de revista e que devem se proteger dos raios solares, não porque serão reduzidos a cinzas, mas porque brilham, como se seus corpos estivessem cobertos por pequenos diamantes: Fiquei olhando porque seus rostos, tão diferentes, tão parecidos. Eram completa, arrasadoramente e inumanamente lindos. Eram rostos que não se esperava ver a não ser talvez nas páginas reluzentes de uma revista de moda. (MEYER, 2008, p. 22) [...] Na luz do sol, Edward era chocante. Eu não conseguia me acostumar com aquilo, embora o tivesse olhado a tarde toda. Sua pele, branca apesar do rubor fraco da viagem de caça da véspera, literalmente faiscava, como se milhares de diamantes pequenininhos estivessem incrustados na superfície. Ele se deitou completamente imóvel na relva, a camisa aberta no peito incandescente e escultural, os braços nus cintilando. (MEYER, 2008, p. 192) Outra característica que se destaca, remete a não influência de elementos religiosos sobre estes seres. Na atualidade, o vampiro com olhos “de uma cor completamente diferente: um ocre estranho, mais escuro do que caramelo, mas com o mesmo tom dourado” (MEYER, 2008, p. 42), possui as características mais notáveis, nada que nos faça lembrar o vampiro criado por Stoker. Edward possui um senso de moral e lealdade, habilidades e contenção emocional, além de uma beleza inumana que o tornam um príncipe encantado envolto pelo véu vampírico. Temos, então, o vampiro “bom moço”, “Sempre um cavalheiro”, (MEYER, 2008, p. 266) é segundo Abigail Myers (2010, p. 128) um herói byroniano: É definido no Oxford Dictionary of Literary Terms como ‘fortemente desafiador, mas um autocomiserador que vive às margens, orgulhosamente enojado das normas sociais, mas sofrendo por algum pecado secreto’. É inteligente, apaixonado e normalmente acima da média em tudo (incluindo a aparência; é ao mesmo tempo, atormentado, imprevisível e ridiculariza a autoridade alheia. Nesse sentido, concordamos parcialmente com a assertiva, pois, a caracterização e atitudes da personagem diferem um pouco do herói byroniano, digamos que este vampiro, com ar de James Dean, é perigoso por ser um morto-vivo, que consequentemente abateu seres humanos nos primeiros anos após sua transformação, considera-se amaldiçoado, mas, no entanto, sua conduta cavalheiresca sob o duplo do perigoso/protetor, que teme pela alma de sua amada e deseja ferozmente o seu sangue, nos conduz ao protótipo de uma nova geração de vampiros, que dita um modelo comportamental mais comedido, pois estes convivem a luz do dia com os mortais. - Regras de vampiros não bastam para você? Quer se preocupar com as regras humanas também? [...] “Não matarás” é comumente aceito pela maioria das crenças. E eu matei muita gente, Bella. - Só os maus. Ele deu de ombros. - Talvez isso conte, talvez não. Mas você não matou ninguém... [...] - Tudo bem. Mas não estamos brigando para cometer assassinato – lembrei a ele. -Aqui se aplica o mesmo princípio... A única diferença é que esta é uma área que sou tão imaculado quanto você. Não posso deixar uma regra intacta? - Uma? - Você sabe que roubei, menti, cobicei... Minha virtude é tudo o que me resta. – ele deu um sorriso torto. - Eu minto o tempo todo. - Sim, mas você é uma mentirosa tão ruim que não conta. [...] mas o que você cobiçou? – perguntei, em dúvida. – Você tem tudo. - Eu cobicei você. [...] – Pode cobiçar o que já é seu – informei a ele. – Além disso, pensei que minha virtude o preocupava. - E preocupa. [...] – Então é assim. Você só vai dormir comigo quando estivermos casados. [...] só quero que seja oficial... Que você me pertença e a mais ninguém. (MEYER, 2009, p. 325326) Destacando a respeitabilidade às regras e normas sociais como um verdadeiro príncipe dos contos de fada, apto a salvar a mocinha, que no romance é um verdadeiro imã para problemas, a mantêm sob sua proteção como um anjo da guarda, “Ele riu depois começou a cantarolar a mesma cantiga desconhecida. A voz de um arcanjo, suave em meu ouvido. (MEYER, 2008, p. 227), chegando a preservar a virtude de sua amada até o casamento. Edward traçara limites muito cuidadosos para nossa relação física, com a intenção de me manter viva. Embora respeitasse a necessidade de preservar uma distância segura entre minha pele e seus dentes afiados, cobertos de veneno, eu tendia a me esquecer de questões banais como essa quando ele me beijava. (MEYER, 2008, p. 21) - Isabella Swan? – Ele me olhou através dos cílios incrivelmente longos, os olhos dourados suaves mas, de certo modo, ainda em brasa. – Prometo amá-la para sempre... a cada dia da eternidade. Quer se casar comigo? [...] Sim. – Obrigado – disse Edward simplesmente. Ele pegou minha mão esquerda e beijou a ponta de cada um dos dedos antes de beijar a aliança que então era minha. (MEYER, 2009, p. 329) Endossando a imagem do príncipe em Edward Cullen, é notório que a estrutura da saga se encaixa em algumas das funções destacadas por Vladimir Propp, em sua morfologia do conto maravilhoso, a exemplo da “partida”, no qual a protagonista (Bella) vai morar com o pai em Forks, local em que conhece Edward, ou a “proibição” e a “transgressão”, nas quais o nosso príncipe-vampiro transgride a proibição de relacionar-se com uma humana, ou o “combate”, no qual Edward a defende do vilão, o casamento com base na forma do happy end, segundo Meyer (2009, p. 567) “para sempre, para sempre e para sempre – ele murmurou. – Isso soa perfeito para mim. E assim, alegremente, continuamos aquela parte pequena e perfeita de nossa eternidade”. Portanto, destacamos dentro do legado de Meyer a re-criação do mito do vampiro, agora um ser cavalheiresco, o herói perfeito, atraente e misterioso, que dirige um carro esporte, protege a mocinha das intempéries da vida humana e de si mesmo. Temos na contemporaneidade o vampiro- príncipe desprovido da caracterização do horror desenvolvida por Stoker, este surge como novo herói da contemporaneidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução Arlene Caetano. 21. ed . São Paulo: Paz e Terra, 2007. FORSTER, Edward M.. Aspectos do romance. Tradução Sergio Alcides. 4. ed. São Paulo: Globo, 2005. HOUSEL, Rebecca. Crepúsculo e a filosofia: vampiros, vegetarianos e a busca pela imortalidade. Tradução Ana Verbena. São Paulo: Madras, 2010. LECOUTEX, Claude. História dos vampiros: autópsia de um mito. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: UNESP, 2005. MELTON, John Gordon. Enciclopédia dos vampiros. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2008. 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