Pessoas amadas,
livres,libertadoras
EXPEDIENTE
Cáritas Brasileira
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Módulo F
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Diretoria
Presidente: Dom Luís Demétrio Valentini
Vice-Presidente: Anadete Gonçalves Reis
Diretora Secretária: Ir. Francisca Erbênia de Sousa
Diretor Tesoureiro: Pe. Evaldo Praça Ferreira
Coordenação Colegiada
Diretora executiva nacional: Maria Cristina dos Anjos da Conceição
Coordenador: Ademar Bertucci
Coordenador: Luiz Cláudio Mandela
Texto: Ivo Poletto
Revisão: Ida Boing Magalhães de Sousa
Comunicação:
Ricardo Piantino/Thays Puzzi/Fernanda Nalon
Secretariado Nacional
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Introdução
O semeador saiu a semear.
Parte das sementes caiu em terra fértil...
(Mt 13,1-9)
O que é mesmo “mística” e “espiritualidade”? A pergunta volta
sempre porque não dá mesmo para definir o que seja de uma vez por todas. É
como o caminho, na educação popular: é caminhando que se faz caminho. O
entendimento do que sejam e de quais as diferenças e relações entre mística
e espiritualidade vai ficando mais claro nas práticas de busca dessas
qualidades do ser humano.
Trata-se de qualidades do ser humano, mulher e homem. Sua vida
tem origem num “sopro divino”, num desejo de Deus de que a mulher e o
homem sejam “imagem” dele, criadores amorosos como ele. Todo ser
humano é espiritual; manifesta-se, relaciona-se espiritualmente. Mas suas
práticas mostram “espíritos diferentes”: convicções, motivações, valores
que levam a viver de modo diferente. Por ser livre como Deus, pode fazer
escolhas, e elas marcam o seu espírito: fazem que cada pessoa tenha “um
bom espírito”, ou que tenha “espírito de porco”, no dizer popular.
A parábola do semeador, criada por Jesus, pode nos ajudar na busca
do que sejam a mística e a espiritualidade. A semente é o convite, a boa
proposta de vida apresentada por Jesus; é ele próprio, que já nos diz: amemse uns aos outros como eu amei vocês. Mas ela cai em terrenos diferentes. Se
entendermos os terrenos como sendo as pessoas, os diferentes tipos de
terreno indicam diferentes tipos de espírito delas: algumas são como o
terreno pisado e duro das estradas; outras, como o terreno pedregoso;
outras, como um terreno infestado de espinhos; outras, enfim, como o
terreno fértil, que acolhe e faz germinar a semente; mesmo assim, algumas
fazem produzir pouco, outras um pouco mais, e em outras a semente se
multiplica ao máximo.
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Toda pessoa, antes do encontro com Jesus, ou com a gente, já tem
suas motivações, suas ideias e escolhas em relação a valores, seu modo de
viver e de conviver com as pessoas e com a terra; toda pessoa tem sua
“mística”, e a tem como fruto do que Deus semeou nela e do que ela própria
semeou em si; isto é, do interesse, da busca, maior ou menor, do que a
ajudaria a ser melhor. Essa semeadura, essa busca, realizada por meio de
diferentes práticas é o seu cuidado com seu espírito, o cuidado para ser um
terreno fértil, em que novas sementes podem germinar: é a sua
espiritualidade.
Voltemos à parábola. O semeador joga uma boa semente, que cai em
diferentes terrenos. Trata-se de uma boa proposta de vida, uma proposta de
ser e de ter um bom espírito: de ser e agir como Jesus. É uma excelente
proposta de espiritualidade, que pode ser acolhida ou não, que pode produzir
poucos ou muitos frutos. Em outras palavras, a semente, por melhor que seja,
depende dos cuidados que a gente teve com o espírito antes da semeadura
para que possa ser acolhida ou não, e para que possa germinar, multiplicandose em novas sementes. Nem Deus pode e quer substituir a liberdade, a ação
livre de cada pessoa na construção de si própria.
Por outro lado, o terreno é um espaço em que são jogadas muitas
sementes. Pode, então, ser entendido como a família, a comunidade, a
sociedade em que cada pessoa vive. A gente sabe que tanto a coletividade
pode ajudar ou atrapalhar o crescimento das qualidades de cada pessoa,
como as pessoas podem ajudar a coletividade a ter determinadas qualidades.
Por isso, vale a mesma dinâmica, na relação com o semeador e com a semente
jogada, agora, nesse “terreno coletivo”: a depender das escolhas, individuais
e coletivas, as sementes terão diferentes chances de germinar, multiplicar-se,
produzir frutos.
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Mesmo sendo difícil, como nadar contra a correnteza, é possível que
pessoas, no bom uso de sua liberdade, cuidem de si para terem fundamentos,
motivações e espírito aberto para boas sementes. Esse cuidado pode seguir
diferentes caminhos, diferentes tradições espirituais; cada um deles serve de
alimento ao espírito, às motivações profundas, à mística. A espiritualidade é
um conjunto de práticas que caracterizam cada um desses caminhos; cada
pessoa, ao vivenciá-las, introduz algo original, transformando-o em seu
caminho.
Até aqui, contudo, procurou-se compreender a ação humana na
construção de suas motivações, de sua mística, e de seu cuidado permanente
do seu espírito. Mas não se pode esquecer que Deus age na vida de suas filhas
e filhos mesmo quando eles não o acolhem ou não são fiéis à aliança feita com
ele. Ele fica chamando, fica criando oportunidades para que voltem ao
primeiro amor. Mesmo sendo como um/a prostituto/a, Deus continua
amando com toda paixão; ele é fiel, e quer, sempre, refazer a aliança. Por isso,
espiritualidade é também a ação amorosa de Deus em cada pessoa. E no caso
de haver acolhimento desse amor, é também a presença e ação de Deus na
pessoa amada e, da parte da pessoa, é o escutar o que Deus lhe sugere para
ser melhor, para agir com sua inspiração.
Este novo livro sobre espiritualidade e mística da Cáritas quer
aprofundar estes e outros pontos, muitos deles já presentes nos livros e
textos anteriores. O que importa, mesmo, é que seja mais um ponto de apoio,
um estímulo novo para a renovação da mística e o crescimento da
espiritualidade de cada agente da Cáritas. Este é o motivo para que cada
capítulo seja, ao mesmo tempo, um roteiro de um possível encontro de
diálogo e de prece e o aprofundamento de alguma dimensão da mística e da
espiritualidade da Cáritas.
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1. Ele nos amou primeiro
Partilhando a vida
Cada agente da Cáritas experimenta todo o tempo situações em que
alguma ou muitas pessoas estão em necessidade e sofrimento. E o mesmo
pode-se dizer da Mãe Terra, rasgada em propriedades privadas, cercada,
agredida, explorada para gerar mercadorias e riqueza. Ao mesmo tempo,
contudo, acontecem também situações em que as pessoas e comunidades se
sentem profundamente felizes por causa da experiência de que Deus as ama.
Por que não relembrar e colocar em comum alguma dessas situações?
Vale começar pelas descobertas do amor de Deus, do amor gratuito, situações
em que as pessoas declaram, encantadas: Deus me ou nos amou primeiro;
não foi por nossos méritos ou por nossos pedidos; ele nos acompanha, cuida
de nós.
Por que não lembrar também situações em que este amor gratuito de
Deus se manifesta em fenômenos acontecidos no meio ambiente, no espaço
da Terra, no bioma, no berço que foi dado a todos os seres vivos dessa parte
do Planeta para conviver e bem-viver?
Iluminando a vida com a Palavra
É ainda da vida de cada um/a da comunidade que se vai falar. Só que,
agora, a fala será provocada por uma reflexão de Jesus, que estava ligado à
realidade do seu tempo; a ligação com a realidade de hoje é feita por nós. A
comunidade de Mateus guardou, entre as Boas Notícias, esta que hoje
ilumina nossa reflexão:
Olhai os pássaros do céu: não semeiam, não colhem, nem guardam
em celeiros. No entanto, o vosso Pai celeste os alimenta. Será que vós não
valeis mais do que eles? Quem de vós pode, com sua preocupação,
acrescentar um só minuto à duração de sua vida? E por que ficar tão
preocupados com a roupa? Olhai como crescem os lírios do campo. Não
trabalham nem fiam. No entanto, eu vos digo, nem Salomão, em toda a sua
glória, jamais se vestiu como um dentre eles. Ora, se Deus veste assim a erva
do campo, que hoje está aí e amanhã é lançada ao forno, não fará ele muito
mais por vós, gente de pouca fé? ... Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e
a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo. (Mt 6,26-33)
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Desejando uma meditação criativa, seguem algumas provocações.
Como os pássaros e os lírios do campo, as pessoas não são “filhos/as
de ninguém”. Tudo e todos/as são amados com um cuidado paterno/materno
por Deus. Por isso, a gente pode confiar-se a ele, dedicando-se aos cuidados
das outras pessoas e dos outros seres vivos que, contra a vontade amorosa de
Deus, já não se encontram em boas condições de vida. Não se trata de
encostar-se nas cordas, acomodando-se; como lembra o apóstolo João, nisto
consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos
amou e enviou seu Filho... Nisto sabemos o que é o amor: Jesus deu a sua vida
por nós. Portanto, também nós devemos dar a vida pelos irmãos. (1Jo
4,10;3,16)
Deus ama primeiro, a cada pessoa, aos seres vivos todos e a tudo que
está ligado é ambiente favorável à vida, à beleza, ao amor. Por isso, a prática
humana do amor é resposta, é ser e agir como Deus; isso humaniza e diviniza,
ao mesmo tempo: é o mistério de Jesus, e o mistério humano. Ama-se a Deus
no amor aos irmãos: quem não ama ao irmão está nas trevas... e mente
quando diz que ama a Deus, a quem não vê. (1Jo 2,9; 4,20)
O mundo atual está cheio de sinais do amor de Deus e, ao mesmo
tempo, de sinais de que existem seres humanos que não amam como ele. Pelo
contrário: achando, egoisticamente, que amam a si mesmos buscando
riqueza sem descanso, junto com muitas pessoas sem lugar e oportunidades
de vida digna, o próprio Planeta Terra está sendo aquecido pelo tipo de
progresso e consumismo que domina o mundo.
Sabe-se que a produção de alimentos é suficiente para mais de nove
bilhões de pessoas. Por isso, a fome que atinge mais de um bilhão de pessoas
não é uma fatalidade, e muito menos “vontade de Deus”. Ela é vontade
humana, pois são seres humanos, dominados pelo espírito capitalista, os que
impedem sua distribuição. Mas o pior é que, para produzir esses alimentos
feitos mercadorias, fonte de enriquecimento de poucos, a Terra tem sido e
continua agredida de forma irresponsável, seja pelo desmatamento, seja pelo
uso de máquinas, seja pelo uso de agroquímicos que envenenam o solo.
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Por isso, a provocação de Jesus nos indica dois caminhos: o de que, pela
vontade e iniciativa de Deus, todos os seres vivos teriam um bem-viver na Terra; e o
de que, para ligar-se com esta vontade de Deus, os seres humanos precisam
abandonar o desvio em que entraram, e mudar sua relação com a Terra como forma
de amar aos irmãos e irmãs, isto é, a todos os seres vivos e os seres dos quais a vida
depende.
Renovando a aliança
O que esta meditação tem a ver com a Mística e Espiritualidade da Cáritas?
É bom trocar ideias sobre isso. Seguem algumas pistas, sem pretensão de fechar o
assunto.
Caritas – caridade é uma palavra que se refere ao amor de Deus, um amor
que revela Deus, já que ele é Amor. Ele toma a iniciativa, e o faz com gratuidade. A
sugestão que faz aos seres que criou à sua imagem e semelhança é que amem como
ele; esse amar como ele é o que foi denominado virtude da caridade – a força que
está no interior de cada pessoa e a leva a amar, a ser capaz de amar com gratuidade.
Por ser uma virtude, pode e deve ser alimentada. É um dom de Deus, uma
qualidade, uma marca divina que caracteriza o ser humano, e é tão maravilhosa
como a beleza dos pássaros e dos lírios do campo. Mas ela é, igualmente, uma
qualidade que se aperfeiçoa livremente, por escolha. É por isso que, na história, este
dom de Deus e esta resposta livre do ser humano tomam a forma de aliança.
Individualmente ou como povo, o ser humano topa a parada e se compromete a
amar como Deus, sendo “seu povo”.
Uma das marcas da mística de cada agente da Cáritas é saber-se amado por
Deus, vivendo a alegria de saber que ele tomou a dianteira, gratuitamente, apenas
porque gosta da gente. Por outro lado, é motivo de alegria também o fato de ser
membro do Povo de Deus, do povo que fez Aliança com ele.
Assim como são maravilhosos os pássaros e os lírios do campo porque Deus
cuida deles, que alegria saber que ele cuida com ainda maior cuidado amoroso de
cada pessoa e de todo o seu povo! É fundamental ficar encantado/a, contemplar e
agradecer por tanto amor. E sentir-se fortificado/a, confirmando a decisão de amar
como Deus ama.
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Como se trata de uma Aliança, entretanto, o agente Cáritas precisa de uma
espiritualidade que o leve a avaliar se, da sua parte, está havendo fidelidade; que o
leve a retomar o caminho, toda vez que seja necessário; que lhe possibilite ser
membro atuante da parte do povo de Deus em que está inserido; que busque,
individualmente e com sua comunidade, alimentar sua opção por meio da Leitura
Orante da Palavra, da vivência da Eucaristia e da oração ligada à vida.
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2. Um amor apaixonado
Partilhando a vida
Quem não conhece casais e mesmo pessoas amigas que sofreram ou sofrem
por causa da infidelidade? E de pessoas e/ou comunidades que se sentem
abandonadas por políticos que prometeram mundos e fundos antes de serem
eleitos?
É muito provável, também, que se conheçam situações em que houve
reconciliação por força da capacidade de perdoar que só um amor apaixonado tem.
Vale a pena recordar, lembrando também como isso repercutiu entre as pessoas.
As sociedades atuais, estruturalmente organizadas a partir do modo de ser
capitalista, são marcadas pelos contratos. Ninguém confia em ninguém, justamente
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porque as pessoas, para enriquecer, precisam concorrer com as demais. Quem
garante que não está a caminho algum tombo, alguma derrota? Até mesmo as
relações afetivas são marcadas por essa desconfiança: não estará em andamento
algum golpe do baú?
Nesse mundo que favorece a superficialidade, até mesmo as relações
religiosas são tentadas a assumir a forma comercial, em que o dinheiro garante a
atenção de Deus, garante até a felicidade, que viria da riqueza. São práticas religiosas
que se adaptaram ao modo de ser capitalista, e que, por isso, desenvolvem
espiritualidades individualistas e instrumentais. A fidelidade ou infidelidade não está
mais na aliança, no compromisso de vida para ser povo de Deus.
E no mundo bem próximo das relações da gente, em que se assenta e como se
valoriza a fidelidade? Pode-se dizer que a Cáritas é fiel à sua missão?
Iluminando a vida com a Palavra
Deus só tem uma palavra. Uma vez feito à sua imagem e semelhança, o ser
humano tornou-se responsável por sua liberdade, e Deus a respeita, mesmo quando é
usada para afastar-se e colocar-se contra ele. Uma vez assumida a aliança, ele é fiel a
ela, mesmo quando o povo se deixa atrair por ídolos, se afasta, é infiel; mesmo
quando, usando uma comparação, ele se prostitui. É isso que nos revela o profeta
Oséias, falando simbolicamente do seu amor à esposa que se prostituiu:
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Pois, agora, eu vou seduzi-la, levando-a para o deserto e falando-lhe ao
coração. Ali eu lhe devolvo os vinhedos, e transformo o Vale da Desgraça em Porta de
Esperança! Ali, então, me responderá como na juventude, quando escapou da terra do
Egito. Naquele dia – oráculo do Senhor -, ela passará a chamar-me “meu marido” e
não mais de “meu Baal”. Arrancarei dos seus lábios os nomes dos Baals, que nunca
mais hão de ser lembrados. Naquele dia, em favor deles, farei uma aliança com as
feras, com as aves do céu e as serpentes do chão: afastarei desta terra o arco, a espada
e a guerra, e todos poderão dormir em segurança. Eu me caso contigo para sempre,
casamos conforme a justiça e o direito, com amor e carinho. Caso-me contigo com
toda a felicidade e então conhecerás o Senhor... Naquele dia irei dizer ao Não-MeuPovo: “Tu és o meu povo!” e ele responderá: “Tu és o meu Deus”. (Os 2,16-22 e 26)
Que chuva abundante, esta Palavra! Que semente maravilhosa para o terreno
fértil! O silêncio é o melhor espaço para que ressoe esta mensagem de amor...
Sempre com o intuito de contribuir com a meditação, seguem alguns comentários.
Já comprometidos/as com a reeducação para relações de gênero que valorizam a
diversidade e a igualdade, sem discriminações nem subordinações, para a Cáritas a
pessoa que Deus leva ao deserto pode ser uma mulher, um homem, ou mesmo um
povo, que caiu na infidelidade. A mensagem essencial, aqui, é a fidelidade apaixonada
do amor de Deus com cada pessoa e com a humanidade. Não é porque uma pessoa ou
um povo tornou-se prostituto/a que Deus vai desprezar, deixar pra lá, esquecer. Sua
parte na aliança permanece fiel. Se por seu amor cada pessoa é como ele, ele não é
como as pessoas: a infidelidade não mora em seu coração; sua palavra não volta atrás.
Não basta fazer o normal na relação com a pessoa infiel. O amor de Deus se
manifesta apaixonado: ele a seduz, a leva ao deserto e fala ao seu coração. Quer estar
a sós com ela e com o tempo necessário para que perceba os sinais de sua paixão, para
que, seduzida, ouça suas palavras com o coração. Deus quer de volta para a aliança a
pessoa inteira, com sua liberdade e razão, mas principalmente com sua “inteligência
cordial”, como insiste Leonardo Boff em seus escritos. Ele a quer num novo ou
renovado casamento, que seja para sempre, assentado na justiça e no direito, com
amor e carinho.
É grande o risco de projetar em Deus algum ídolo, algum Baal. Ele deseja
apaixonadamente ser redescoberto como “marido” amoroso, ou como “esposa”
amorosa, superando sua redução a qualquer tipo de ídolo. Em vez de um poder
estranho que promete resolver os problemas no lugar da pessoa, ele prefere ser
reconhecido com Amor, que tudo faz para retomar o caminho em conjunto, formando
um casal. A força que liberta das ilusões dos ídolos é a relação apaixonada, que fala ao
coração.
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Pensando nos tempos atuais, tão diferentes dos vividos por Oséias, quanto
amor apaixonado será necessário para que as pessoas possam libertar-se das
tentações idolátricas! Quanto amor de Deus e quanto amor das pessoas que retomam
e vivem com fidelidade a aliança com ele. Em vez de condenações e de falas dirigidas
apenas à razão, gestos que seduzem, que atraem ao deserto, que falam ao coração
para que a pessoa e/ou o povo perceba, à distância, as ilusões e falsas promessas dos
ídolos; para que se afaste deles e tope novo casamento.
Parece que o profeta fala às pessoas e povos de hoje, que se sentem sem
segurança no presente, e sem segurança em relação ao futuro; uma insegurança
causada seja pela situação social insustentável, gerada pela imposição do
consumismo capitalista, seja pelas mudanças climáticas, geradas pelas relações
predatórias com a Terra e pela emissão irresponsável de gases que causam
aquecimento na atmosfera. Em sua paixão amorosa, Deus anuncia que faz aliança até
com as feras, com as aves e com as serpentes para que sejam extirpados todos os tipos
de armas, todas as guerras, para que todas as pessoas possam dormir em segurança.
Fazem parte da aliança, para Deus, não apenas os seres humanos, mas todos os seres
vivos; só haverá paz entre os seres humanos quando houver mudanças nas relações
com os demais seres vivos e com toda a Terra.
O conhecimento do Senhor passa pelas relações amorosas, e Deus está
empenhado no resgate e retomada delas: nem mesmo a prostituição com ídolos
impede que Deus deseje casar-se novamente e com felicidade. Ele o quer e o faz. E é
isso que torna possível que Deus diga ao “Não-Meu-Povo”: “tu és o meu povo!” E que
o povo responda: “Tu és o meu Deus!”
Renovando a aliança
A mística dos agentes da Cáritas tem este fundamento: o saber que faz parte
do “povo da aliança”, e que Deus é absolutamente fiel na sua relação com seu povo.
Deus quer cada pessoa, cada comunidade, bairro, cidade, região, povo, como
participante da aliança proposta por ele. Sua fidelidade, sua renovada proposta de
casamento tem como base o compromisso com a justiça e direito, com o amor e o
carinho. De que mais precisa a humanidade para ser feliz?
Ao “entrar” na Cáritas assume-se um compromisso com Deus e com o
próximo: lutar pela justiça e o direito, com amor e carinho. Trata-se de ir ao encontro
das pessoas que continuam fiéis à aliança libertadora com Deus, bem como das que
cederam às tentações dos ídolos de hoje e que precisam ser seduzidos para retomar o
caminho de felicidade para a humanidade.
É o compromisso de Jesus: proclamar a todos/as o ano da graça do Senhor. O
“ano de graça” é o tempo em que o “Não-Meu-Povo”, seduzido e voltando a participar
da aliança, diz: “Tu és meu Deus!”; então Deus também diz: “Tu és meu povo!”
Falando em linguagem popular: quando o povo “está de bem” com Deus, está muito
bem consigo mesmo.
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Por isso tudo, todo esforço para planejar bem as ações, para avaliar
permanentemente, monitorando o processo implementado, bem como
reconhecendo, celebrando e comunicando os bons frutos, é mais do que uma
disciplina ou uma exigência institucional: é exercício de espiritualidade. Trata-se do
cuidado para ser fiel à aliança, ao compromisso assumido de viver e colocar em prática
o amor libertador. Também a pedagogia, isto é, o modo como se chega junto às
pessoas, o tempo destinado, as palavras escolhidas, os gestos, a segurança e a paixão
com que se busca seduzi-las para uma renovada aliança, faz parte dos exercícios da
espiritualidade dos agentes da Cáritas.
Espiritualidade é muito mais do que tempos e formas de oração. Eles são
importantes, como as refeições o são para a saúde. Mas como a saúde se mantém e
melhora com tudo que se faz ou se deixa de fazer, com os cuidados com a mente, o
humor, com a motivação, com os tempos livres, com o lazer, com a contemplação do
belo e do sublime, a espiritualidade é constituída por todas as práticas que cuidam e
alimentam o espírito de cada pessoa, da equipe, da comunidade...
3. Amor extremo: ele decidiu ser um dos pobres
Partilhando a vida
De todas as manifestações da vida, o convite de hoje é para lembrar as
pessoas que doam sua vida em favor dos/a outros/as. Pode-se começar lendo o que
está na Agenda Latino-americana Mundial no dia de hoje.
É sempre importante trazer para o meio da gente também o exemplo de
pessoas conhecidas que dedicaram a vida aos pobres, à sua libertação. Muitas delas
foram até o extremo: doaram sua vida, tornaram-se testemunhas, mártires; outras
são sinais, testemunhas da dedicação diária, muitas vezes heróica. Quem se deseja
lembrar, hoje, de maneira especial?
Mas não é só quem chega como “discípulo/a e missionário/a” que
testemunha o amor libertador. É do meio dos pobres que emerge o maior número, e
provavelmente, os mais eficazes libertadores do próprio povo. Quantos/as deles
tiveram sua vida cortada antes do tempo? De quem vale lembrar, hoje, com carinho?
E por que ficar só no passado? De fato, é muito importante estar atentos/as às
pessoas que estão dando sua vida pelos outros/as, com grande amor, gratuidade e
criatividade. São luzes que iluminam os caminhos, faróis que sinalizam criticamente
como superar as tentações do mundo de hoje, fermento que transforma vidas e
estruturas sociopolíticas. Quais irmãos e irmãs se farão presentes por meio de nossa
lembrança?
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Iluminando a vida com a Palavra
O que revela mais e melhor o amor de Jesus Cristo pela humanidade? É
provável que a maioria responda logo: sua fidelidade à missão até a condenação e
morte na cruz. É claro que este é um momento forte, uma prova de que ele viveu o que
sugeriu como ideal: ninguém dá maior prova de amor do que aquele que dá a sua vida
pelos amigos.
Mas este e todos os gestos e sinais de Jesus fazem parte do mistério da
própria vida de Jesus. É no seu todo que ele revela o amor de Deus pela humanidade.
Sua existência se deve a uma decisão extrema do amor de Deus: fazer-se um de nós,
deixando a divindade, para ser o caminho, a verdade e a vida para todas as pessoas
que desejam viver em aliança com Deus.
E aí que entra a primeira questão, o primeiro desafio para abrir a porta da
compreensão deste mistério: por que Deus, ao decidir ser um de nós, se fez um dos
pobres da terra? Seria um acaso ou uma escolha? Pelo que se encontra nos
Evangelhos, trata-se de uma escolha: nascer numa família simples de uma região
pouco valorizada.
O Cântico de Maria, que brotou do coração ao ser saudada pela prima Isabel,
serve certamente de pista para ir aprofundando a meditação deste mistério: ela se
percebe parte da história de salvação e louva o Senhor por ter escolhido o caminho da
libertação dos humilhados:
A minha alma engrandece ao Senhor, e meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque ele olhou para a humildade de sua serva.
Todas as gerações, de agora em diante, me chamarão feliz, porque o Todo-Poderoso
fez em mim coisas grandiosas.
O seu nome é Santo, e sua misericórdia se estende de geração em geração sobre
aqueles que o temem.
Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os que têm planos orgulhosos no coração.
Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos e mandou embora os ricos de mãos vazias.
Acolheu Israel, seu servo, lembrando de sua misericórdia, conforme prometera a
nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre. (Lc 1,47-55)
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Ela percebeu que Deus, que se fazia um de nós em seu útero, sempre se
colocou do lado dos empobrecidos; tomou o partido dos pobres, e de duas formas:
dispersando os orgulhosos, derrubando os poderosos e mandando embora os ricos
de mãos vazias; e elevando os humildes, enchendo de bens os famintos. Em outras
palavras: assim como em sua vida, Deus faz coisas grandiosas na vida dos
empobrecidos.
Jesus, depois de enfrentar as propostas tentadoras de seguir pelos caminhos
do poder e dos poderosos, apresentadas pelo “tentador”1, o diabo, deixou claro que
pobres/empobrecidos são os primeiros destinatários de suas Boas Notícias e o Reino
é algo próprio deles: “felizes os pobres porque é deles o Reino dos Céus”.(Mt 5,
É importante lembrar que a missão de Jesus - o anúncio e construção do Reino
- implica mudanças profundas na vida da humanidade, tão profundas que façam a
humanidade ser “o povo de Deus”. Mudanças a serem realizadas na história, pois se
não fosse assim, por que Deus teria decidido ser um de nós? Às vezes, parece que há
pessoas que se colocam na direção contrária à de Deus – mesmo que seja em nome
dele. Afinal, se Deus se faz um de nós, e dá sua vida pela humanidade, não se justifica
que se queira sair daqui, ir para fora do mundo, para ir ao encontro com Deus. A
prática e a palavra de Jesus indicam claramente que se ama a Deus amando o próximo.
Todo tipo de louvor, sacrifício e oração, se não estiver ligado ao amor ao próximo, não
agrada a Deus; é inútil, então.
Jesus é um mistério que revela o valor divino do humano. Um mistério que
tem como porta de entrada sua vida concreta, histórica, no meio de um povo, num
tempo determinado. E esta vida revela: ele, de fato, amou a humanidade, nas pessoas
muito concretas com quem conviveu, e “amou-as até o fim” (Jo 13,1), com amor
extremo. Jogou-se, doou-se totalmente, ao ponto de – mais mistério – lavar os pés dos
discípulos e discípulas e fazer-se presente sacramentalmente, “em memória dele” (Lc
22,19), entre os comensais do pão e vinho consagrados.2
Cf. Lc 4,1-13
É interessante que o “amor até o fim”, referido pelo evangelho de João, está, de fato, ligado ao gesto surpreendente do lava-pés,
já que a instituição da eucaristia nem é referida por ele. Ele apenas faz memória de que isso ocorreu “durante a ceia”. Pode-se
dizer que a eucaristia sem o lava-pés não celebra a memória desejada e o legado de Jesus? Cf Jo 13,20.
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Renovando a aliança
Esta meditação está ligada e ilumina pelo menos dois grandes desafios
enfrentados pelos agentes militantes da Cáritas e pastorais sociais. O primeiro
tem a ver com a transformação que deve ocorrer em sua vida para “amar como
Jesus amou”, indo “até o fim”. É complicado dizer isso, mas é a vida concreta
destas pessoas que revela a presença de Jesus em cada uma em diferentes
realidades do mundo de hoje. Ele mesmo disse: “quem vos recebe, é a mim
que está recebendo; e quem me recebe, está recebendo aquele que me
enviou” (Mt 12,40).
É fundamental, então, ir fundo na contemplação da vida de Jesus. Não
apenas no “conhecimento”, mesmo sendo absolutamente necessário. A
contemplação possibilita a memória da vida de Jesus e sua interiorização no
coração do discípulo e da discípula. Esse é o caminho para ir fazendo que a vida
concreta seja iluminada e, mais ainda, mergulhada no mistério que é Jesus. É
isso que tornará possível perceber e cantar as maravilhas que Deus faz na vida
das pessoas, como fez em Maria. É um caminho sem limites: seja para viver a
alegria de saber que “quem me ama guardará minhas palavras, e meu Pai o/a
amará, e nós viremos e faremos nele/a a nossa morada” (Jo 14,23); seja
porque, para Jesus, cada pessoa pode “ser perfeito como o Pai é perfeito” (...).
O segundo desafio está na responsabilidade de ler bem os sinais do
tempo atual para ser fiel ao seguimento de Jesus e revelá-lo por meio da
prática. Não basta boa vontade. Faz parte desse seguimento a busca das
melhores mediações, sociológicas, antropológicas etc., como esforço
necessário para fazer o melhor possível em cada tempo e em cada lugar. Ao
buscar o possível, será indispensável estar atentos/as às melhores formas de
agir que ajudem as pessoas e a história da humanidade a caminhar no rumo de
sua libertação. E para isso, é fundamental abrir-se para os passos dados por
outros grupos sociais, bem como por outros povos, pois sua prática pode
sugerir formas de ação mais eficazes.
16
Nessa abertura para as práticas dos outros/as é bom fazer como Jesus:
reconhecer a “fé” já presente em suas ações, em sua teimosa esperança. Jesus
surpreendia ao descobrir fé e amor onde os demais, mesmo discípulos/as, só
viam estrangeiros/as, cobrador de imposto curioso, mulher, samaritano/a
pecador/a e infiel. Ele não tinha preconceitos. Pôde, por isso, dizer aos
discípulos/as, quando lhe perguntaram se ele queria que voltassem para
proibir os que não eram do “seu” grupo e faziam a mesma coisa que eles/as:
“se eles/as fazem as mesmas coisas é porque já são movidos/as pelo Pai; e não
estão contra nós” (...).
O exemplo de Doroty Stang é valioso. Ela não estava apenas no interior do Pará,
junto com o povo abandonado e ameaçado pela grilagem de terras. Ela estava lá
também porque havia percebido que, no tempo atual, era necessário e possível
construir um novo modo de se relacionar com a floresta amazônica, produzindo
boas condições de vida sem destruí-la. Combinando as duas dimensões de sua
presença, pode-se concluir que ela amou aquele seu povo até o extremo.
4. Amados/as pela Terra que Deus ama
Partilhando a vida
Ao falar que a Terra ama os seres vivos, de que cada um/a se lembra? Como a
maioria das pessoas vive em cidades, o exercício de lembrar de que formas a Terra
ama é muito educativo; e necessário, para que não se caia no mau uso de achar que
“chuva atrapalha”. Por isso, é bom ir a detalhes e não achar que se perde tempo ao
redescobrir e contemplar o amor da Terra.
Por outro lado, vale também a pergunta: e os seres humanos correspondem a
este amor? Num primeiro exercício, é bom evitar a lembrança de práticas que revelam
a falta de amor, e do desamor, quando não, do uso irresponsável e predador da Terra.
É importante fazer memória das práticas de amor verdadeiro, que acontecem perto
ou longe; hoje em dia, praticamente tudo está muito próximo, seja por meio da TV,
seja especialmente pela Internet.
Quais os povos que mais amam a Terra? Como expressam esse amor? E as
pessoas que vivem nas cidades, que gestos de amor à Terra conseguem manifestar? E
se, dentre todas as pessoas e comunidades, forem examinadas as comunidades
religiosas, e especialmente as comunidades cristãs, como elas expressam seu amor
pela Terra?
Tendo presente que a Terra ama com total gratuidade, vale perguntar-se
como as pessoas especialistas em gratuidade, que são as crianças, estão amando a
Terra? Quais mediações são oferecidas a elas para que se descubram, com
encantamento, amadas pela Terra? E que mediações existem para que elas, em
resposta, a amem?
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Iluminando a vida com a Palavra
De onde terá vindo inspiração para que São Francisco cantasse a Terra com estas
palavras?
“Sejas louvado pela irmã terra,
Mãe que sustenta e nos governa,
Produz frutos, nos dá o pão,
Com flores e ervas sorri o chão”
(S. Francisco de Assis – Cântico das Criaturas)
Da parte de Jesus, temos sua declaração de amor pelos lírios do campo, mais
belos que as vestimentas de Salomão, e pelos pássaros, mantidos pelo Pai sem que
plantem e colham. Temos sua capacidade de falar com autoridade por meio de
parábolas muitas vezes inspiradas nos movimentos geradores de vida da Terra: a
dinâmica da semente, que precisa morrer para que germine mais vida; a semente que
cai em diferentes terrenos, podendo não germinar, germinar sem frutificar ou
germinar com diferente frutificação; a presença do joio em meio ao trigo; a grandeza
do pequeno grão de mostarda; o tesouro, descoberto num terreno; os espinheiros e
as árvores frutíferas; a figueira; o comer espigas de trigo em dia de sábado; a força do
fermento; a vinha e o que convida os desocupados a trabalhar em diferentes horas do
dia e paga a todos/as igualmente; a luz; as trevas; a vinha e os empregados
gananciosos, que matam para apropriar-se dela; a videira e seus ramos, e o Pai
agricultor; o óleo e as lamparinas; o vinho, para a festa de casamento em Cana, e o que
é novo, que não se dá bem com “odres velhos”; o ramo de oliveira; a ovelha, o pastor;
o ser humano, capaz de admirar e amar, de servir, de ser luz...
Nos movimentos da Terra há sinais do Reino. Sempre em acordo com o amor
do Pai, ela provê alimento e beleza para suas criaturas. E quanto mais para os filhos e
filhas, que não devem preocupar-se demais com o que irão comer ou vestir... de modo
especial os que vão tomando consciência da presença de Deus em toda esta longa e
maravilhosa história da vida.
Nessa direção, vale retomar, e com a sensibilidade e inteligência do coração, o
começo do evangelho da comunidade de João:
No princípio era a Palavra. E a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era
Deus... Tudo foi feito por meio ela, e sem ela nada foi feito de tudo o que existe. Nela
estava a vida, e a vida era a luz dos homens e mulheres. E a luz brilha nas trevas, e as
trevas não conseguiram dominá-la... E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós...
(Jo 1,1-14)
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Tudo que a Terra faz conta com a presença da Palavra. A Palavra, que é Deus e
se fez carne e veio morar entre nós, está presente na Criação desde o início. Como
insistiu Teillard de Chardin, há a presença de Cristo na evolução terrestre, que chegou
ao ser humano. A história da Terra e a história humana são, ao mesmo tempo,
naturais, sociais e teológicas. Por isso, para Deus, a história deve chegar a bom termo,
a um “ômega” de plenitude, a uma nova Jerusalém, ao Reino de Deus. A encarnação
tem a ver com a relação de Deus com a liberdade humana: ele se fez um de nós para,
como amigo, pedagogo e mestre, ser, com sua vida e com sua palavra, sugestão de
caminho, de verdade e de vida. Deus ama o ser humano livre. Por isso, apresenta-se
diretamente como oportunidade, como convite, como estímulo, nunca como
obrigação forçada, como imposição: “amem-se uns aos outros como eu amei a
vocês”; quem quiser andar comigo tome sua cruz e siga-me; e tendo amado os seus,
até o extremo os amou...
Até mesmo para ter força e coragem para olhar criticamente a resposta dos
seres humanos, como se fará no próximo capítulo, vale a pena, agora, mergulhar,
sentir-se parte, curtir, o mistério em que a Terra, todas as criaturas, e particularmente
as pessoas estão envolvidas. Dar-se conta do amor criador de Deus e do amor
materno da Terra, que se deixa engravidar pela energia divina e gera novas e
surpreendentes formas de vida. E dançar, cantando com os poetas e salmistas o Salmo
104(103): Em coro a Deus louvemos: eterno é seu amor!... Por nós fez maravilhas:
eterno é seu amor!
Renovando a aliança
Na aliança de Deus com os seres humanos, com os/as que topam ser seu
povo, entram também todas as criaturas, de modo especial as que são portadores de
vida; entra toda a Terra, com sua energia materna criadora e renovadora da vida. O ser
humano é capaz de cuidar e de criar, como Deus, de quem é imagem e semelhança, de
quem é filho e filha.
Esta meditação sobre o amor da Terra tem muito a ver com o trabalho da
Cáritas e pastorais sociais. O que buscam com as pessoas é uma libertação integral,
que inclui uma relação de cuidado e de cooperação com a Terra. E isso exige uma
reeducação, de modo especial das pessoas criadas com educação assentada sobre as
culturas europeias, que têm tudo a ver com a modernidade e com sua subordinação
ao capitalismo. Nesses culturas, o centro de tudo está na razão, na capacidade
humana de explicar as coisas e de fabricar instrumentos e máquinas capazes de
modificá-las. Os mais afoitos, tão encantados com o poder de luz da razão que se
chamam de “iluministas”, chegam a dizer que não se precisa mais de Deus nem de
visões religiosas. A Terra passa a ser “natureza”, um conjunto de coisas a serem
dominadas e transformadas pelo engenho humano, gerando riquezas. Foi suficiente
introduzir e tornar lei a prática da propriedade para que a relação com a Terra
passasse a ser um dos instrumentos essenciais do progresso capitalista. O
proprietário pode fazer o que quiser com as coisas que extrai da parte da natureza
controlada por ele; tudo vira mercadoria, coisa ou produto industrial que se vende no
mercado.
19
Na verdade, então, esta meditação sobre o amor da Terra tem a ver com a
capacidade de libertar-se da dominação da visão capitalista, que está muito mais
arraigada em cada pessoa do que se pode imaginar. É aquela presença do opressor no
oprimido, analisada pelo mestre Paulo Freire.
Outra atitude fundamental é a abertura para a riqueza das culturas indígenas
e afro-americanas. Mesmo forçadas a conviver com a cultura dominante, e sendo
relativamente atingidas por ela, estas culturas resistiram e sobreviveram com muitos
valores necessários para renovar a relação com a Terra. Partem da prática de ser parte
da Terra, e não seres separados, que a dominam, dividem, agridem, rasgam, retiram
dela tudo que consideram fonte de riqueza. A Terra é um ser vivo e cheio de espíritos,
com quem o ser humano e o povo como um todo precisam viver em paz. Qualquer
intervenção na mãe Terra precisa de uma licença, de uma aceitação por parte dela:
para fisgar um peixe, para matar um animal ou pássaro, para cortar uma árvore, para
preparar uma roça... Qualquer ação agressiva pode provocar respostas agressivas, um
tipo de castigo pela falta de cuidado...
Mais uma dimensão que tem a ver com vivência de uma espiritualidade que
englobe a relação com a Terra: o compromisso de em todas as frentes de trabalho, no
campo e na cidade, buscar não apenas o respeito ao meio ambiente, mas a
implementação criativa de cuidados que melhorem as condições de vida. Isso tem a
ver com o que se faz ou deixa de fazer em relação aos córregos, suas águas e suas
beiras, em relação às áreas livres - praças, ruas, áreas de lazer, jardins das casas,
calçadas... Quantas árvores são plantadas, e que tipo delas? E flores? E hortaliças?
Na verdade, a resposta humana ao amor da Terra, amada por Deus, se dá no
tipo de agricultura e, em termos mais gerais, no tipo de desenvolvimento que se
implementa. Ele é planejado e implementado em conjunto com as energias da Terra?
Ou isso não é levado em conta? É um desenvolvimento definido eticamente,
priorizando a qualidade da vida humana e das demais formas de vida? Tudo deveria
ser definido a partir do princípio: só aplicar “conhecimentos prudentes para uma vida
decente”...
20
5. O grito da Terra: o parto ameaçado
Partilhando a vida
Quem vive há muito tempo perto do mar anda assustado: por que o mar está
avançando sobre a casa da gente?
No Centro-Oeste, os moradores mais antigos desabafam: já não se tem o
começo das chuvas em setembro; faz dois anos, agora, que praticamente estão
começando em novembro. Qual o motivo disso?
E nos lugares e regiões em que está virando moda a temperatura ultrapassar
os 40 graus centígrados, a queixa: quem pode viver numa quentura dessas?
Pode-se partilhar o que está acontecendo com a vida: das pessoas, dos outros
seres vivos, do Planeta. Que mudanças estão acontecendo? Como estão sendo
sentidas? As pessoas estão sabendo dos estudos que concluíram que o Planeta está
aquecendo, e que, dessa vez, ele se deve às ações humanas?
Iluminando a vida com a Palavra
Vamos entrar em mais um mistério, a ser vivido na mística da Cáritas e
pastorais sociais: a Criação participa da redenção, como nos ajuda a compreender
Paulo em sua Carta aos Romanos:
Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a
glória que há de ser revelada em nós.
De fato, toda a criação espera ansiosamente a revelação dos filhos e filhas de
Deus; pois a criação foi sujeita ao que é vão e ilusório, não por seu querer, mas por
dependência daquele que a sujeitou. Também a própria criação espera ser libertada
da escravidão da corrupção, em vista da liberdade que é a glória dos filhos e filhas de
Deus. Com efeito, sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como
que em dores de parto, e não somente ela, mas também nós, que temos as primícias
do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a condição filial, a redenção de
nosso corpo. Pois é na esperança que fomos salvos... (Rom 8,18-24)
A pessoa se dá conta de seus limites, de suas imperfeições, e deseja que os
limites sejam superados. Muito do que falta a cada pessoa se deve a ela própria, às
suas escolhas, à falta de cuidado e cultivo de sua personalidade e de seu espírito. Mas
há muita coisa que entrou nela pela porta da educação, da convivência, dos hábitos,
dos exemplos das outras pessoas, das leis que regulam a vida social, dos meios de
comunicação. Aquele/a que topa a parada com Jesus, que se torna morada dele,
deseja superar, libertar-se do que ainda está corrompido nele/a, seja por falhas suas,
seja por influência de outras pessoas. Deseja que se manifeste nele/a a filiação divina,
a condição divina.
21
Paulo nos convida a escutarmos atentamente a criação, usando todas as
ferramentas que possam ajudar-nos. Ouvir o que tem a dizer aos seus filhos e filhas.
Em seu tempo, Paulo disse aos cristãos romanos que ela estava gemendo em dores de
parto, esperando ansiosamente que os filhos e filhas se manifestassem, libertandose, pois ela participaria do mesmo processo. Estava necessitada de liberdade não por
vontade própria, mas por causa dos/as que a haviam submetido ao que é vão e
ilusório.
Escutando a Terra, hoje, o que ela nos diz? Segundo as conclusões dos dois mil
e quinhentos cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre as Mudanças
Climáticas), da ONU, ela nos diz: “estou mais do que precisada da manifestação
pública de vocês, homens e mulheres que amam a vida; se, com o exemplo e a pressão
de vocês, a humanidade não mudar rapidamente seu modo de produzir, consumir e
de dançar pela música imposta pelo capital financeiro, eu não conseguirei mais
manter a atmosfera em equilíbrio favorável à vida”. O grito, desde o tempo do
apóstolo Paulo, é sempre pela vida, vem da dor de parto; mas, agora, a própria
gravidez está ameaçada; e não pelo desejo ou envelhecimento natural da Terra; a
ameaça, que causa febre, temperatura média cada ano mais alta, na atmosfera e nos
mares, vem das ações humanas.
Deus, na obra da criação com a Terra, foi vendo que tudo era muito bom. E ele
não abandona sua criação; pelo contrário, se está escravizada, ele está com ela, e quer
que seus filhos e filhas se organizem e façam tudo que são capazes para que ela
recupere a sua liberdade e possa gerar nova vida. Seu convite vai na direção de deixar
os poderosos de lado, ou de organizar-se para derrotá-los, proclamando a glória de
Deus por meio das ações libertadoras de filhas e filhos dele.
Não teria sido esta consciência teológica que levou São Francismo a assumir a
criação como irmã? E a dedicar a ela amor igual ao destinado aos irmãos/ãs
empobrecidos? Se isso foi importante tanto tempo atrás, muito mais o é nos dias
atuais. De fato, tendo presente as informações atuais sobre o aquecimento global do
Planeta, lutar pela vida digna dos irmãs/ãs humanos empobrecidos significa, mais do
que nunca, lutar para que a Terra recupere sua capacidade de prover a vida.
Renovando a aliança
Não há mais dúvidas: o seres humanos que dominam econômica e
politicamente o planeta romperam a aliança com Deus e com a vida na Terra. A busca
de progresso sem fim, de poder para impor um enriquecimento por meio do
consumismo, levou a uma emissão de gases que causam aquecimento em
quantidades cada vez maiores à capacidade da Terra de processá-los. O resultado é o
que se está percebendo: aumento da temperatura na superfície terrestre e nos
oceanos, derretimento das geleiras polares, diminuição rápida dos gelos e neves nas
altas montanhas, diminuição e ameaça de morte das algas marinhas, elevação
progressiva do nível dos oceanos... Isso está provocando, e tende a agravar, mudanças
climáticas em todo o planeta.
Todas as pessoas e países que se deixaram envolver pelas tentações do
consumismo terminaram colaborando com esse processo. Pode-se dizer que, de
alguma forma, deixaram-se envolver e participaram do culto a um ídolo – a riqueza, o
dinheiro, o capital – que exigiu a oferta do sacrifício dos trabalhadores e da própria
mãe da vida, a Terra.
Por isso, dois grandes desafios, de caráter político, por um lado, mas
igualmente de caráter espiritual, se apresentam aos que amam a Deus no amor à
humanidade e à Terra: 1) reconhecer que participaram, de forma ativa ou pela
omissão, dos descaminhos que produziram a situação atual no planeta, e tomar a
decisão de mudar, com criatividade e seriedade; 2) empenhar-se na mobilização da
consciência e da vontade política da humanidade para, num mesmo movimento,
denunciar e combater as práticas que teimam em continuar contaminando e
provocando aquecimento do planeta, e valorizar e participar da criação de iniciativas
alternativas nos campos das relações econômicas, políticas, culturais e espirituais,
freando tudo que agride a Terra e avançando na construção de uma nova civilização.
A conversão pode e deve começar em casa, no ambiente próximo. Evitar a
cobertura do chão com cimento; plantar árvores, cultivar jardins e hortas; construir
depósitos/cisternas para colher a água da chuva; diminuir ao máximo o uso da água
tratada; filtrar toda água usada que seja possível; instalar aquecedores solares,
deixando de gastar energia elétrica com chuveiros; produzir energia elétrica a partir
do sol e dos ventos, instalando placas fotovoltaicas... são algumas das práticas que
podem ser assumidas como responsabilidade pessoal, familiar, comunitária. Junto
com elas, é importante consumir alimentos naturais, sem muitas embalagens, cuidar
do lixo, separando o material reciclável, transformando em adubo o que é orgânico;
cuidar das nascentes, córregos e rios, evitando de jogar neles esgoto e exigindo
tratamento para todo o esgoto; diminuir o uso de carro individual, preferindo o
transporte coletivo e exigindo que ele tenha boa qualidade e seja de massa...
Todas essas ações têm a ver com o enfrentamento do problema do
aquecimento. Mas elas não são suficientes. O estrago é tão grande que são
necessárias mudanças mais profundas e globais. São os povos mais ricos, por
exemplo, que devem mudar mais. Na verdade, eles terão que entender e desejar que,
em vez de crescimento econômico, haja diminuição no consumo de bens; precisarão
diminuir seu consumo de energia, de alimentos... Acima de tudo, deverão diminuir o
desperdício, as coisas inúteis, que os donos do tal mercado desejam que sejam
consumidas para manterem seus lucros crescentes.
Quem e como serão exigidas essas mudanças? Só mesmo uma mobilização
mundial, com participação consciente e livre de um número crescente de cidadãos e
cidadãs, será sujeito coletivo de salvação da vida na Terra.
23
As religiões, com suas teologias da criação, podem e devem contribuir nesta
empreitada. O cristianismo, em particular, já que sua teologia da criação está ligada ao
mistério da encarnação e redenção, como se viu acima, pode levar uma mensagem
forte em favor das mudanças que obrigatoriamente deverão ser feitas.
É por isso que a Cáritas e pastorais sociais têm tudo a ver com a prática de
“escutar a Terra” e com o compromisso de mobilizar as pessoas, desde o local até o
âmbito mundial, para frear a emissão de gases de efeito estufa e para construir um
mundo diferente, uma outra civilização. Na verdade, uma civilização capaz de
reconhecer e valorizar as diferentes culturas, religiões, desde que comprometidas
com a vida na Terra.
6. Uma espiritualidade para a mudança
Partilhando a vida
Diante do que se percebe e das notícias mundiais e dos dados da ciência, que
anunciam, com grande certeza que a Terra já não dá conta de processar os gases de
efeito estufa emitidos pelos seres humanos na atmosfera, surge a pergunta, um tanto
angustiada: o que fazer?
Como ponto de partida, pode-se começar por colocar em comum o que cada
pessoa percebeu que é preciso ser feito e o que está colocando em prática. Podem
surgir boas notícias. Ou será que ainda não se começou a mudar?
Além do que cada um está fazendo, vale colocar em comum as notícias que se
têm de práticas de outras pessoas conhecidas. O que estão fazendo de novo? Como
estão se sentindo ao dar passos na direção do novo?
É importante, ainda, colocar no círculo notícias que dão conta de mudanças
em andamento em outras regiões do país e do mundo. E lembrar, também, práticas
como a D. Luiz Cappio – os dois tempos de jejum, com o objetivo de chamar a atenção
para a loucura de fazer, hoje, obras como a transposição do rio S. Francisco. Não se
pode fazer de conta que não se sabe o que se fez com a água doce no planeta, e
continuar agredindo o pouco que resta.
24
Iluminando a vida com a Palavra
Seria errado dizer que o cristianismo é uma religião de conversão? João
Batista, o precursor, vai nessa direção: “convertei-vos, pois o Reino dos Céus está
próximo”... produzi fruto que mostre vossa conversão (Mt 3,2 e 8), lembra Mateus
como o principal de sua missão. Para Mateus, também Jesus começou com esta
mensagem: daí em diante, Jesus começou a anunciar: convertei-vos, pois o Reino dos
Céus está próximo (Mt 4,17). O Evangelho de Marcos inicia lembrando que assim veio
João, batizando no deserto e pregando um batismo de conversão, para o perdão dos
pecados (Mc 1,4). E Jesus, segundo Marcos, começa na Galiléia, proclamando a Boa
Nova de Deus: completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos
e crede na Boa Nova (1,15). No evangelho da comunidade de Lucas, depois de lembrar
o nascimento, infância e adolescência de Jesus, João é destacado desta forma: víboras
que sois, quem vos ensinou a querer fugir da ira que está por chegar? Produzi frutos
que mostrem vossa conversão... Toda árvore que não der bom fruto será cortada e
jogada ao fogo (Lc 3,7-9). João lembra o Batista de outra forma: eu sou a voz de quem
grita no deserto: endireitai o caminho para o Senhor (Jo 1,23).
Tempos nada fáceis, pelo visto: João vivia no deserto e desafiava as pessoas a
converterem-se, a endireitar o caminho, a fazer uma conversão que se manifestasse
em práticas. Jesus, ao iniciar sua missão pública, é tentado duramente, e por um longo
tempo, no deserto. Não era fácil dizer não ao que parecia ser o caminho indicado até
mesmo pelas autoridades religiosas. Era preciso ter firmeza e coragem para retomar a
missão dos profetas: eles anunciam boas novas de Deus, sem preocupar-se se
agradam ou não a todas as pessoas, e comprometem a própria vida com sua missão.
Pelo que aconteceu a João e a Jesus, parece que havia poderosos e falsos profetas que
não toleraram o convite à conversão, à mudança de vida, e menos ainda que os
empobrecidos/as ouvissem sua mensagem e os seguissem.
O que aconteceria, hoje, se alguém, ou, melhor ainda, se uma igreja cristã,
seguindo o exemplo do profeta Jonas, e de João Batista e de Jesus, passasse a
profetizar assim: dentro de quarenta anos o aumento da temperatura da Terra,
provocado pela vossa emissão de gases, como o dióxido de carbono, levará à morte
bilhões de seres humanos e muitas espécies de seres vivos; convertei-vos, mudai de
vida enquanto é tempo, porque o Reino de Deus está próximo! 3
3
Jonas, 3,2,10
25
De certa maneira, esta profecia está sendo anunciada, só que na linguagem
da ciência, nos relatórios do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas
(IPCC). Seu 4º Relatório, publicado em fevereiro de 2007, deixa claro que os dados
disponíveis levam às seguintes conclusões: a Terra está aquecendo e num ritmo que
ameaça a vida nela; este aquecimento é provocado pela ação humana, de modo
especial pela emissão de dióxido de carbono, liberado pela queima de combustíveis
fósseis e pela queima de florestas. Mesmo assim, existem pessoas e grupos que estão
tentando desmoralizá-la; falsos profetas, bem pagos e amigos dos senhores do
mundo, apressam-se a dizer que são exageros, que nada disso é responsabilidade
humana.
No mundo das religiões e das igrejas, qual tem sido a acolhida desta profecia?
Não deveria ser uma oportunidade para perceber em que elas próprias deveriam
converter-se, mudar de caminho? Afinal, não estarão bastante envolvidas, sob o
pretexto de realismo, que esconde acomodação ou convicção ideológica, com o
progresso capitalista e neoliberal? Quantas delas anunciam, e com a certeza que
nasce da esperança, que outro mundo é necessário e possível? Quantas delas confiam
mais na Palavra do Senhor do que nas palavras dos senhores do mercado? Quantas
delas confiam na força dos pobres para libertar o mundo na perspectiva do Reino,
como Jesus?
Por isso, para que o convite para a mudança tenha autoridade, é preciso que
se comece a ter coragem de mudar, de converter-se, de produzir frutos que mostram
a veracidade da conversão na própria vida dos cristãos/ãs e na comunidade eclesial
socialmente organizada. Só pode dizer convertei-vos! quem demonstrar que age
como pessoa e instituição convertida.
Por isso, a luz da Palavra ajuda, hoje, a revelar o que existe de verdadeira
mudança, bem como a ver se essas mudanças correspondem à necessidade do tempo
atual. Não se pode esquecer que Jesus provocou a fé dos discípulos/as aos dizer: em
verdade vos digo: quem crê em mim fará as obras que eu faço, e fará maiores do que
estas. (Jo 14,12) Não adianta nada, então, ficar limitando o olhar ao que Jesus fez em
seu tempo, tentando justificar-se na prática de não enfrentar os desafios e
potencialidades do tempo atual. As ações e a palavra de Jesus são um claro sinal de
que se deve amar as pessoas e a humanidade atuando em cada tempo e lugar, e são,
por isso, uma luz que ajuda a perceber o que se pode e deve fazer no tempo de hoje.
Maiores ou menores do que as obras de Jesus, cabe aos seguidores/as de Jesus de
hoje decidir o que fazer para dar continuidade à sua missão.
De fato, Jesus viveu num tempo distante do aquecimento global causado pela
emissão de gases de efeito estufa, e das mudanças climáticas provocadas por ele. Por
isso, cabe aos seus seguidores/as, como pessoas e como igrejas, a responsabilidade
de decidir o que fazer, o que anunciar, em que provocar conversão e mudanças. Já que
os conhecimentos científicos estão à disposição, cabe-lhes dar sentido de profecia a
eles, ou cabe-lhes assumir seus conteúdos como parte de sua profecia, anunciando,
em nome do Senhor, o que acontecerá se não houver uma conversão geral das
pessoas e uma transformação das estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais.
Na verdade, cabe-lhes alimentar no coração das pessoas a coragem de
mudar. O que parece impossível ao ser humano, é perfeitamente possível para Deus;
com a força do Espírito de Deus nas pessoas, é possível, sim, retomar os valores e o
modo de ser, de pensar, de sentir e de agir que agrada a ele. Por isso, como São Paulo,
as pessoas e comunidades cristãs precisam alimentar a busca do Espírito que liberta:
... e não somente ela – a criação, que sofre em dores de parto -, mas também nós, que
temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a condição
filial, a redenção de nosso corpo. Pois é na esperança que fomos salvos. Ora, aquilo
que se tem diante dos olhos não é objeto de esperança: como pode alguém esperar o
que está vendo? Mas, se esperamos o que não vemos, é porque o aguardamos com
perseverança. (Rom 8, 23-25)
Renovando a aliança
A virtude da esperança é a energia que leva à conversão. Os agentes da Cáritas
são movidos pela virtude da Caridade: o amor que permanecerá mesmo quando a fé e
a esperança passarem. Mas agora, no século em que se devem enfrentar as mudanças
climáticas provocadas pelo que a humanidade fez nas décadas e séculos anteriores, a
esperança é absolutamente necessária. Até mesmo para ter coragem de, nos dias de
hoje, amar como Jesus amou.
Como não cair na tentação de desculpar-se em nome da prática dos outros?
Como não desculpar-se de agir de um modo novo e restaurador do equilíbrio da Terra
em nome de que os que devem mudar são os que causaram o desastre? Em termos
positivos, como assumir um tipo de desenvolvimento que, ao mesmo tempo, seja
denúncia do agir dos que implementaram um progresso predador e um anúncio
prático de que é possível ser e agir de um modo diferente?
As mudanças que devem ser assumidas, e com urgência, são difíceis; exigem
consciência crítica e vontade de recuperar, com a Terra, as condições que favorecem a
vida. Imagine-se, por exemplo, as mudanças que devem ser feitas no sistema de
transporte, que não mais poderá basear-se no carro individual... Imagine-se o que
significa cuidar da água doce, deixando os desperdícios, evitando poluições...
Imagine-se as mudanças na agropecuária, que deverá caminhar para ser o mais
natural possível, feita em cooperação com a Terra, que precisa ser recuperada para
isso... Imagine-se o que significa mudar os hábitos alimentares, voltando-se ao que é
produzido no local, evitando transportes de longa distância... Imagine-se como será
difícil superar todo o sistema comercial que está por baixo do modo capitalista
neoliberal de ser, de agir, de pensar, de consumir...
27
Todas as pessoas vão precisar de um “espírito de coragem para mudar”. Por
isso, a Cáritas precisa alimentar em seus agentes esse espírito, para ser, a partir da
prática, fonte que provoca e alimenta a coragem de mudar em todas as pessoas que
puder. Já se sabe que a espiritualidade é constituída por práticas que alimentam
determinadas dimensões do espírito humano, sempre escutando o Espírito e
animando, nos seguidores/as de Jesus, a prática do amor libertador. O tempo de hoje
está exigindo esta dimensão: a coragem de mudar. Ela depende do exercício da
consciência crítica da situação, mas depende igualmente da esperança que faz as
pessoas doarem sua vida pelas mudanças necessárias com alegria, confiadas na
“palavra verdadeira do Senhor”.
7. Proclamar Boas Notícias aos Pobres
Partilhando a vida
Como vivem os pobres em sua cidade, região, bioma? E no mundo, como está
a vida dos pobres? Quem é responsável pela continuidade e aumento da pobreza?
Que tipo de boas notícias os pobres recebem? Quem as dá? Já sabem, por exemplo,
que não há motivos para que haja pessoas passando fome? E que, por isso, a pobreza
tem a ver com a falta de reconhecimento e garantia dos direitos de cada uma e de
todas as pessoas?
Que boas notícias os pobres proclamam? Como? Precisamos estar atentos
para perceber em que e como Deus continua escondendo “estas coisas” aos sábios e
orgulhosos, e revelando-as aos pequeninos4. Quais são “essas coisas” – que deveriam
levar-nos a explodir em oração de louvor ao Pai, como fez Jesus - no mundo de hoje?
Estão entre elas, por exemplo, os feitos políticos dos povos latino-americanos mais
empobrecidos, como os bolivianos e equatorianos? Estão as conquistas dos
moradores/as de rua? E dos catadores/as de materiais recicláveis? E das mulheres? E
dos negros/as? E dos lavradores camponeses, com sua teimosa defesa das sementes,
da água, da terra democratizada e a serviço da vida?
Quantos pobres só recebem más notícias? Quem as dá?
As igrejas – e nelas, as equipes de Cáritas - têm contribuído para que os pobres sejam,
e saibam que são, bem-aventurados porque deles é o reino dos céus?
4 Cf. Lc 10,21.
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Quantos pobres só recebem más notícias? Quem as dá?
As igrejas – e nelas, as equipes de Cáritas - têm contribuído para que os pobres sejam,
e saibam que são, bem-aventurados porque deles é o reino dos céus?
Iluminando a vida com a Palavra
A outra pessoa – e a Terra em que ela vive –, e em particular a pessoa
empobrecida, que sofre necessidades, é o lugar de encontro com Deus:
Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “vinde, benditos de meu Pai!
Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois
eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; eu
era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu, e me vestistes; doente, e cuidastes
de mim; na prisão, e fostes visitar-me”. Então os justos perguntarão: “Senhor, quando
foi que te vimos com fome e te demos de comer? Com sede, e te demos de beber?
Quando foi que te vimos forasteiro, e te recebemos em casa, sem roupa, e te vestimos?
Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Então o Rei responderá:
“em verdade vos digo: todas as vezes que fizestes isso a um desses mais pequenos, que
são meus irmãos/ãs, foi a mim que o fizestes! (Mt 25,34-40)
É muito grande a família de Jesus! Ao ser alertado que sua mãe e irmãos/ãs
estavam por perto e desejavam falar com ele, já havia dito: 'quem é minha mãe, e
quem são meus irmãos/ãs?' E, estendendo a mão para os discípulos/as, acrescentou:
'eis minha mãe e meus irmãos/ãs. Pois todo aquele/la que faz a vontade do meu Pai,
que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe'. (Mt 12,48-50) Em
outras palavras, aqui já está um motivo de alegria e de louvor: desde que façam a
vontade do Pai, todas e todos os agentes da Cáritas são, para Jesus, irmãos, irmãs,
mãe, pai. Fazem parte da sua família. E as maravilhas geradas por suas práticas de
amor fazem que sejam da família daqueles “pequeninos” a quem Deus revelou o que
escondeu aos sábios e orgulhosos.
Não basta, então, fazer uma 'opção pelos pobres”; é preciso ser da família do
pobre Jesus; é preciso não querer ser um 'messias poderoso', que liberta a partir de
seu poder; é preciso realizar em cada hoje da vida 'o ano da graça do Senhor”, sabendo
que o Reino é, ao mesmo tempo, dom do Pai e construção dos empobrecidos.
Por outro lado, como é bom louvar o Senhor por tudo que acontece na vida
das pessoas que seguem a Jesus como seus discípulos e discípulas!
Só que a família de Jesus é surpreendentemente imensa: todas e todos os
'mais pequenos” são seus irmãos, e irmãos e irmãs com quem ele se identifica, de tal
forma que tudo que é feito ou deixa de ser feito em favor deles e delas é ao próprio
Jesus que se faz ou deixa de fazer. Em outras palavras, quem crê que Jesus é o salvador,
o libertador integral das pessoas e da humanidade, está diante de um imenso desafio
e de uma magnífica oportunidade: pode encontrar-se com ele, ser carinhoso, amá-lo
por meio do encontro com as pessoas que o 'mundo' coloca, deixa e abandona em
situação de 'mais pequenos'; mas pode igualmente não encontrar-se com ele por não
reconhecê-lo presente nessas pessoas.
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Deve ter sido por ter compreendido bem esta palavra, e por ter percebido que
esta foi a vida prática de Jesus, que o apóstolo João anunciou às suas comunidades:
'nós amamos porque ele nos amou primeiro. Se alguém disser: 'amo a Deus”, mas
odeia seu irmão/ã, é mentiroso; pois quem não ama seu irmão/irmã, a quem vê, não
poderá amar a Deus, a quem não vê. Este é o mandamento que dele recebemos: quem
ama a Deus, ame também seu irmão/ã. (1Jo 4,19-21)
Atenção ao alerta: não poderá amar a Deus, se não amar ao irmão/ã. E irmão e irmã de
Jesus são todas as pessoas que se encontram em situação de “mais pequenas”. Por
isso, o amor, que necessariamente é pessoal e social, não é opcional: algo que se pode
assumir ou não, fazer ou deixar de fazer. Como expressa o Documento de Aparecida,
'para a Igreja, o Serviço da Caridade... é expressão irrenunciável da sua própria
essência'.5
Para que a comunidade dos seguidores/as de Jesus seja verdadeiro fermento
que leveda e transforma a realidade junto com todos e todas que formam a 'massa”
torna-se necessário que a prática do amor aos empobrecidos perpasse toda a vida,
todos os gestos, todas as celebrações. É o que proclamou o apóstolo Tiago: 'imaginai o
seguinte: na vossa reunião entram duas pessoas, uma com anel de ouro no dedo e
bem vestida, e outra, pobre, com a roupa surrada. Ao que está bem vestido, dais
atenção, dizendo-lhe: 'vem sentar-te aqui, à vontade'. Mas ao pobre dizeis: 'fica aí, de
pé, ou 'senta-te aqui no chão, aos meus pés'. Não será isso um caso de discriminação
entre vós? Será que não julgastes com critérios que não convém?
Escutai, meus caríssimos irmãos/ãs: não escolheu Deus os pobres aos olhos
do mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o
amam? Mas vós desprezais o pobre! Acaso não são os ricos que vos oprimem e vos
arrastam aos tribunais? Não são eles que falam mal do nome sublime invocado sobre
vós? (Tg 2,2-7)
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5 DA, 399.
Renovando a aliança
O compromisso da Cáritas está expresso em seu próprio nome: cabe-lhe ser
amor, em resposta ao amor primeiro de Deus. Cabe-lhe praticar a misericórdia e a
compaixão na sua relação com os diferentes tipos de 'pequenos”, de excluídos pelo
mundo de hoje.
É importante, então, examinar a prática para ver até que ponto ela revela que
se age com coração de pobre, com o amor cordial dos pobres. E até que ponto o
coração dos agentes de Cáritas sentem o que os outros/as sentem, comprometendo
sua própria vida por eles/as.
Por outro lado, será necessário retomar sempre o compromisso de fermentar
a sociedade humana com a certeza de que a paz, que é fruto do desenvolvimento
humano e social, deve ser construída com a participação dos empobrecidos/as. Não
se avança na direção do Reino com medidas e ações assistencialistas. Os excluídos/as
devem ser protagonistas de sua própria libertação; mas é preciso que haja pessoas
que levam esta boa notícia a eles/elas, e que os/as animem a assumir sua missão na
história. É preciso libertar a força de Jesus presente nos que têm fome, passam sede,
estão presos, nus e sem auto-estima; só então redescobrirão que são pessoas, com
todos os direitos que as fazem humanas; com o direito à cidadania, que as fazem
lutadoras sociais e políticas para exigir a realização universal dos direitos; com o
direito à soberania, que as fazem ter poder e responsabilidade em relação aos que são
eleitos para realizar, junto com a cidadania, as política públicas que garantem os
direitos de cada uma e de todas as pessoas.
A aliança, quando bem compreendida, inclui os compromissos da Cáritas em
favor da construção de mediações organizativas que possibilitem aos excluídos/as
serem protagonistas na construção de um 'outro mundo', que deverá ter outra
economia, outra política, outra cultura, outra espiritualidade, outra relação com a
Terra – em fim, outra civilização. Faz parte desse compromisso, portanto, a
colaboração no trabalho de organização da Rede de Assembleias Populares...
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Pessoas amadas, livres, libertadoras