10 Eu gostava de falar com o senhor Bonifácio, que era sapateiro. Ele ganhava a vida naquela oficina, que era tão minúscula que só lá cabia ele. Os clientes não entravam, ficavam na rua, e espreitavam pela janela, que estava sempre aberta. Por cima da janela havia uma tabuleta que tinha o desenho de um sapato brilhante, muito sorridente. Por baixo do sapato estava escrito: A enfermaria, perdão, a cheirava a cola e a graxa, oficina e tinha calçado espalhado pelo chão, eleiras amontoado nas prat e em cima da estreita banca de trabalho. Para grande e grata surpresa da bota, quem assim falava era o sargento que a levara para a guerra e a tinha perdido em circunstâncias que só a guerra consegue explicar. Para grande e grata surpresa da Era mesmo a sua bota, porque lhe assentava como uma bota, quem assim falava era o sargento que a levara luva e porque reconheceu logo a sua cara, a sua voz e o seu para a guerra e a tinha perdido em circunstâncias que só peso. Reencontrara, na hora certa, o dono e o par. Pouco lhe a guerra consegue explicar. faltava agora para se sentir feliz. Era mesmo a sua bota, porque lhe assentava como uma luva e porque reconheceu logo a sua cara, a sua voz e o seu peso. Reencontrara, na hora certa, o dono e o par. Pouco lhe faltava agora para se sentir feliz. Nessa madrugada, ouviu-se na rádio uma voz grave que anunciava solenemente: “Foi assinado há duas horas um acordo Nessa madrugada, ouviu-se na rádio uma voz grave que anunciava de paz entre as duas potências em confronto”. Era o fim da solenemente: “Foi assinado há duas horas um acordo de paz entre as guerra. duas potências em confronto”. Era o fim da guerra. O sargento chorou de alegria olhando para a foto da O sargento chorou de alegria olhando para a foto da mulher mulher e do filho e a bota da tropa, com o seu par, usou o e do filho e a bota da tropa, com o seu par, usou o atacador atacador para disfarçar uma traiçoeira lágrima de alegria. para disfarçar uma traiçoeira lágrima de alegria. 30 31 recomeço O riso feminino comoveu-o. As palavras, então, ainda mais: – Vou imortalizá-lo! Uma escultura a partir do sapato mais viajado desta terra. – Podes dizer isso, sim, não é um sapato qualquer. – Pois, pois, mas atiraste-o para o lixo – ralhou a voz, com um toque de meiguice. – Qual foi a tua ideia, diz-me lá? – Queria apagar o passado, sei lá, como se pudesse recomeçar a vida a partir do nada. Agora já percebi. Tudo o que passei, tudo o que vivi, tudo o que este sapato significa, é tudo parte de mim. Faz lá essa coisa que queres, reabilita-o! E o sapato deixou. Foi ensebado, escovado, viu o atacador ser envernizado para resistir aos olhos do futuro que o esperava, e deixou-se aconchegar num molde de gesso, protegido numa moldura de acrílico. Assim, transformado num objeto de arte, renasceu. Continuou a pensar, claro, era assim que ocupava os dias, mas o mais importante é que passou a fazer parte da história que continha a sua estória. 42 43