Educação e Exclusão na América Latina: Exclusão por condição socioeconômica Entrevista: José Marcelino Rezende Pinto Existe um consenso de que a desigualdade de condições socioeconômicas é um fator central para explicar diferenças na trajetória escolar de alunos e alunas. De que maneira a realidade socioeconômica dos alunos e alunos se expressa nos sistemas educacionais da América Latina? O acesso e permanência no sistema educacional tende a reproduzir as disparidades existentes no acesso e distribuição da renda, da terra e do trabalho. Sendo a desigualdade na distribuição de renda a característica mais marcante dos países da América Latina, não é de se estranhar que o mesmo ocorra com o acesso à educação. Dos 177 países listados pela ONU em seu Relatório do Desenvolvimento Humano (2006), os países da América Latina e Caribe (AL&C) só apresentam uma distribuição de renda melhor que alguns países do continente africano recém-saídos de guerras civis sangrentas. Por outro lado, dos 50 países com melhor IDH do mundo só três (Estados Unidos, Hong Kong e Singapura) apresentam um índice de Gini superior a 40. Na AL&C somente a Jamaica apresenta um valor abaixo de 40 e cerca de 80% de seus países apresentam índices superiores a 50. Da associação entre um baixo valor de renda per capita (o país com melhor renda per capita do continente ainda apresenta um valor que é a metade da média dos países da OCDE) e uma péssima distribuição de renda, resulta uma proporção sem precedentes de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza. Dados do mesmo Relatório do Desenvolvimento Humano indicam que na metade dos paises da região um quarto da população vive com menos de US$ 2 por dia, que é considerada a linha de pobreza pelo Banco Mundial. Esta proporção chega a inaceitáveis 4/5 da população em países como Haiti e Nicarágua. O resultado natural deste processo é o pequeno acesso à escola, em especial na educação infantil, para as crianças das famílias mais pobres, que seriam aquelas que mais se beneficiariam com esta escolarização. A mesma restrição de acesso para os mais pobres se apresenta na educação superior. No caso da educação obrigatória, o problema central não é tanto o acesso, mas sim a grande disparidade no padrão de qualidade entre as escolas freqüentadas pelas crianças das famílias mais pobres e aqueles freqüentadas pelas crianças da elite, as quais, em geral, estão matriculadas em escolas privadas, cujos valores das anuidades cobradas é de cerca de 4 a 5 vezes o valor anual gasto com os alunos da rede pública. Mesmo no sistema público há uma grande diferença nas condições de oferta de ensino (anos de experiência e nível de formação dos professores, presença de biblioteca e laboratórios nas escolas, etc) entre as escolas situadas nos bairros de classe média e aquelas situadas na periferia das cidades e, principalmente, na zona rural. O resultado deste processo é que a taxa de conclusão da escolaridade obrigatória é muito baixa nestas regiões e o grau de aprendizagem mesmo dos alunos que a concluem é claramente insatisfatório, seja qual for o critério de avaliação a ser utilizado. Quais são as conseqüências desse processo que tende a excluir ou dificultar sobremaneira a trajetória de alunos e alunas em condições socioeconômicas menos favoráveis? O resultado destes processos é que há uma tendência em se reproduzir os mecanismos de desigualdades no continente, nos qual as crianças vindas de condições socioeconômicas desfavoráveis tendem a ter maior dificuldade no acesso, permanência e conclusão da escolarização com aprendizagem efetiva e acabam tendo como única perspectiva as profissões com baixo nível de qualificação e remuneração, principalmente o sub-emprego, ou as alternativas econômicas oferecidas pela criminalidade (em especial o tráfico de drogas). O grave disso tudo é que, nesta situação, o sistema educacional tende a atuar como um fator que legitima as desigualdades sociais dos países da região. Alega-se que todos têm acesso ao sistema escolar e que são neutros e justos os mecanismos de acesso aos níveis superiores de ensino, considerados ambos – a escolaridade e o diploma universitário – como fatores que abrem portas, embora não necessariamente, para os empregos de melhor remuneração. Crê-se que a educação é determinante para a superação da situação de pobreza em que vive grande parte da população da América Latina. Por outro lado, a situação de pobreza limita as possibilidades de se ter êxito na trajetória escolar. Qual é, de fato, a relação entre educação e pobreza? Que políticas públicas deveriam ser implementadas para superar os limites impostos pelas condições socioeconômicas dos estudantes em suas trajetórias escolares? Creio que aqui estamos diante do paradoxo sobre o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? Ou seja: é a maior escolaridade que permite que as pessoas tenham maiores rendas ou o fato de ter uma renda maior é que permite avançar mais na escolaridade? Para aqueles que acreditam na tese da Teoria do Capital Humano de que existe uma correlação entre escolarização e produtividade e entre essa e salário, não há dúvida que mais anos de estudo implicam em maior renda. A questão, contudo, é mais complexa, no meu entendimento. Não há uma relação direta entre produtividade e salários, os quais dependem de fatores como o grau de organização dos trabalhadores, o desenvolvimento de um eventual Estado de Bem Estar Social etc. Não é produtividade o fato de um executivo no Brasil ganhar o mesmo que um executivo no Japão enquanto um trabalhador de linha de produção ganha cerca de cinco vezes menos. São fatores de natureza política, associados à história de cada país. Assim, se é inegável que a ampliação da escolaridade da população de um país através de uma escola de qualidade tem um impacto evidente na produtividade dos trabalhadores e no potencial de riqueza social a ser produzida, a educação, por si só, não garante esse aumento da riqueza social e menos ainda uma melhor distribuição da riqueza. Se são evidentes os impactos positivos de uma educação de qualidade sobre a economia de um país, é inegável que se, simultaneamente, não acontecerem políticas estruturais que envolvam a distribuição de ativos (como a reforma agrária, o crédito a baixo custo), fortalecimento dos sindicatos com o controle sobre os lucros gerados no âmbito das grandes corporações, a maior escolaridade dos trabalhadores é tão somente um mecanismo para aumentar estes mesmo lucros (através de maior extração de mais valia relativa). Há algum caso concreto que gostaria de destacar? Creio que Cuba e os países do chamado “socialismo real” são um bom exemplo de que mais educação, por si só, não é um fator produtor de riqueza. O Brasil também é um exemplo interessante: nos últimos 30 anos, o país apresentou um aumento significativo no acesso e permanência na escola, mas a distribuição de renda praticamente não se alterou neste período e ainda é uma das piores do mundo. Um estudo realizado em 2006 por Katarina Tomasevski, relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Educação entre 1998 e 2004, aponta que ainda se cobra inscrições, mensalidades ou outras taxas em diversos países da América Latina e que na Colômbia não existe uma legislação que afirme a gratuidade do ensino obrigatório. Quais são as conseqüências da não-gratuidade em muitos países do continente? As conseqüências são claras: para uma família que vive na pobreza ou na indigência, tão somente a renda sacrificada por seus filhos quando vão à escola, sem nem considerar as taxas escolares “voluntárias” – os custos dos uniformes escolares (muitas vezes obrigatórios), ou o material escolar que muitas vezes não é assegurado de forma gratuita – são motivos objetivos para não matricular seus filhos ou para retirá-los da escola. Em sentido oposto, políticas de transferência de renda às famílias pobres associada à freqüência escolar das crianças (como o “Bolsa-escola” no Brasil) mostram-se extremamente eficazes em garantir o acesso e a permanência destas crianças. Há estudos apontando também que estas crianças que, muitas vezes, eram vistas como um ônus pelas famílias, passam a ser valorizadas, valorizando-se de mesma forma a sua escolarização. Sabemos que nas famílias pobres das zonas rurais, uma criança era vista muitas vezes como um braço a mais na lavoura, visão obviamente equivocada uma vez que o jovem que deixa a escola e vai trabalhar tem grande chance de ser o adulto desempregado de amanhã. Ao se valorizar economicamente a freqüência da criança à escola, esta visão tende a ter sua legitimidade questionada. Existe algum tipo de legislação nacional, regional ou internacional que busque enfrentar a problemática da exclusão por condição socioeconômica? Se sim, como fazer para que estas leis sejam mais efetivas? Do ponto de vista internacional, existem tentativas, seja de taxar o capital especulativo, seja de perdoar a dívida externa dos países mais pobres, ou de eventualmente transformar o pagamento de parte da dívida externa dos países pobres em investimentos em educação. Nos países da região, também se percebe a ocorrência de políticas compensatórias (na linha do imposto de renda negativo, com transferência de recursos públicos para famílias mais pobres). O grande problema destas políticas é que elas se assemelham ao ato de “enxugar gelo”, um trabalho de Sísifo. Isto ocorre porque a própria lógica do desenvolvimento do capitalismo em todo o mundo, em especial na sua vertente neoliberal e com a incorporação da China no mercado mundial como grande fornecedor de bens de consumo a baixo custo, tende a gerar, dia após dia, mais exclusão ou mais inclusão perversa. Um exemplo deste processo no Brasil: não obstante, nas últimas décadas, milhares de famílias tenham sido assentadas em decorrência dos programas de reforma agrária, o estímulo dado pelo governo ao agro-negócio no setor de soja e, mais recentemente, de cana de açúcar para produzir etanol, faz com que milhares de famílias tenham que vender suas propriedades agrícolas, pois não possuem escala de produção para concorrer com os novos latifúndios que tomam conta do país, contribuindo para a concentração da propriedade fundiária e para o desmatamento das regiões de fronteira agrícola. Para tornar mais efetivas as políticas que buscam reduzir a pobreza e as desigualdades socioeconômicas, é fundamental um maior controle do mercado por parte do Estado e um maior controle do Estado por parte da sociedade. Na América Latina, registramos um número crescente de países adotando iniciativas que incluem provas estandardizadas usadas em premiações para escolas com melhor desempenho, para os professores dos alunos que se saem bem nas ditas provas e também nas políticas de seleção de alunos. Quais são as principais conseqüências de iniciativas como estas, sabendo que existem escolas que concentram alunos em condições socioeconômicas mais vantajosas e que tendem a obter melhores resultados neste tipo de prova? Os efeitos destas políticas já são conhecidos: aumento das desigualdades; abandono por parte dos professores mais qualificados e com mais experiência das escolas onde estudam as crianças de famílias mais pobres; o abandono destas escolas também por parte daquelas famílias que possuem um pouco mais de capital econômico e cultural. A experiência chilena em larga escala do sistema de Voucher mostra quão danosa é esta lógica de premiar os “bons”, que tem como corolário natural punir os “maus”. Quem são os “maus”? As crianças que tiram baixas notas nos testes, ou seja, as crianças das famílias pobres. Transforma-se a escola em um tribunal e alega-se que seria injusto pagar o mesmo para um professor que dá uma boa aula e para outro que dá uma aula ruim; ou deixar alunos que não se esforçam atrapalhar os alunos que se esforçam. Ora, injusta é a existência de professores que não ensinam (e eles existem sim, porque o baixo salário afasta da escola pública profissionais de qualidade na quantidade que ela necessita). Injusta é uma escola que não consegue fazer com que a maioria das crianças e jovens que passam por ela aprendam. Como a experiência dos EUA e da Europa mostram, as políticas de focalização são ineficazes. Deve-se visar uma escola de qualidade para todos. Que recomendações você faria aos Estados latino-americanos para superarem a exclusão educacional provocada pelas condições socioeconômicas? Reformas estruturais associadas a políticas compensatórias de curto e médio prazo, enquanto as primeiras não produzirem seus resultados. Talvez a política de maior impacto na distribuição de renda e trabalho e de menor custo do ponto de vista do financiamento público ainda seja a reforma agrária. É evidente que, na atual fase do capitalismo, uma política de reforma agrária não pode estar centrada apenas na formação de pequenos camponeses proprietários, de pequenos capitalistas, mas sim centrada em um padrão de uso e ocupação do solo tendo como referência as experiências exitosas de economia solidária e de autogestão que têm acontecido em vários países do continente. Associada a uma política de reforma agrária, dotar os países de escolas nas quais sejam garantidos padrões mínimos de qualidade de ensino. Entendemos que um valor mínimo para garantir essa qualidade na AL, para o ensino primário, deveria ser da ordem de US$ 1.500 a US$ 2.000 por aluno por ano. Entendo que investimentos maciços em educação tendem a produzir um efeito virtuoso na economia uma vez que os gastos públicos com educação envolvem basicamente gastos com pessoal e repercutem em todos os setores econômicos (bens de consumo e serviços, construção civil, bens duráveis etc). Portanto, a injeção de recursos que hoje são usados basicamente em pagamento dos serviços da dívida e despesas militares já permitiria mais que dobrar os recursos atualmente aplicados em educação, produzindo uma combinação virtuosa entre distribuição de ativos e educação. Além disto, entendo que uma rede de escolas técnicas de massa, associadas a instituições de educação superior e espalhadas nas diferentes regiões do continente, teriam um papel extremamente dinâmico quanto à formação profissional. Guardadas as variações regionais, esta foi a receita seguida com sucesso pelas nações hoje consideradas desenvolvidas. Creio que não temos que reinventar a roda, mas com certeza ainda temos que inventar uma escola pública de qualidade para o conjunto da população. José Marcelino Rezende Pinto é professor associado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, mestre e doutor em Educação pela Unicamp, com pós-doutorado pela Universidade de Stanford, Estados Unidos. * O Índice de Gini mede a igualdade de renda, varia de 0 a 100, sendo que 0 representa a distribuição de renda mais equitativa possível (onde todos tem a mesma renda) e 100 a distribuição de renda menos equitativa (onde uma pessoa detém toda a renda). Ilustração: Perfil do gasto público para alguns itens de despesa 2003-04 (% do total) 100% 80% 60% 40% 20% 0% Educação Saúde Militar Dívida Fonte: Relatório do Desenvolvimento Humano da ONU 2006