‘Decepção entre os mais pobres é com governo, mas não com o projeto’ Renato Meirelles entrevistado por Sonia Racy O Estado de S.Paulo, 07 dezembro 2015 | 01:30 “Pela primeira vez há uma sensação de perda – nas crises anteriores não havia. E eles querem de volta as oportunidades que sumiram do horizonte”. Para o presidente do instituto Data Popular, crise provoca nas classes C, D e E sensação de ‘abandono e orfandade’ mas elas defendem um Estado ‘eficiente, sem ser enxuto O economista Renato Meirelles passou os últimos 14 anos dedicado a entender, no seu instituto Data Popular, como vivem e sobrevivem, no Brasil, as classes de menor renda – C, D e E. Por serem as mais numerosas, ele sabe que suas reações ou desejos significam, estatisticamente, o que pensa e sonha a maioria dos cidadãos. “E o sentimento dominante é de abandono, até de orfandade”, resume nesta entrevista a Gabriel Manzano. “Pela primeira vez há uma sensação de perda – nas crises anteriores não havia. E eles querem de volta as oportunidades que sumiram do horizonte”. Para quem gosta de cálculos políticos, Meirelles destaca um detalhe importante: “Há uma decepção com a presidente mas não com o projeto. Por isso eles criticam Dilma, mas sem aderir à oposição”. A seguir, os principais trechos da entrevista. Como, a seu ver, os brasileiros das classes C, D e E estão reagindo à crise que ocorre atualmente no País? O que se nota é a resiliência da população. Esse brasileiro está segurando a onda. Sendo criativo. Eu resumiria nisso: resiliência e criatividade. Ele está se virando para sobreviver. E, ao mesmo tempo, há uma gigantesca sensação de abandono – que, na verdade, não é só dessas classes, é geral. Até mesmo de orfandade. E que consequências práticas isso traz, em especial nessas classes de menor renda com quem você trabalha? O resultado disso é que o brasileiro, em geral, está muito mal-humorado. Metade da população acha que esta é a maior crise econômica que o Brasil já viveu. A gente sabe que não é. E por que eles veem assim? Primeiro, porque um enorme contingente de jovens, nesses grupos, jamais viveu um cenário tão difícil. Pela primeira vez em muito tempo, eles começam a ter uma sensação de perda. Uma coisa é achar que a vida não vai pra frente, sensação que existia em 2002, outra é que o país parou, como em 2008. Agora, ele sente algo novo: que ele está começando a perder o que havia conquistado. O sonho de melhorar se desvaneceu. Como ele lida com a perda? O mais grave é que ele não está vendo a luz no fim do túnel. Em nossos testes de associação direta, falamos em praia, o sujeito pensa em sol, mar, cerveja. Mas quando perguntamos sobre o futuro, vem o silêncio. Ele perdeu a perspectiva. É uma das razões para o afastamento em relação à classe política. Outro dado é o medo de perder o emprego: oito de cada dez pesquisados conhecem alguém, amigo ou conhecido, que foi demitido. A classe política, para ele, vive em um redoma, e 92% acreditam que todo político é ladrão. A gente sabe que não é verdade, mas ele pensa: “Esses são os caras que vão resolver minha vida?”. Daí um clima de grande desilusão com relação ao futuro. Nesse cenário, como eles reagem, em sua avaliação, ao pedido de impeachment de Dilma? Acredito que o sentimento dominante persiste – uma grande decepção com o governo. Mesmo que ela permaneça no poder, eles querem é que melhore a economia e ele volte a ter esperança. Se ela sair e assumir o vice Michel Temer, talvez entre em cena um projeto do PMDB, recentemente apresentado na TV, que radicaliza o ajuste fiscal. Mas não circula nenhuma ideia de solução, um pensamento dominante na sociedade? Lidamos, no Data Popular, com as duas pontas: a do consumidor e a dos clientes, que incluem grandes empresas e fundos de investimentos. Quando a gente põe na balança, o que vê? Que falta, acima de tudo, um discurso que mostre um caminho único para sair da crise. Como se fosse uma nova Carta aos Brasileiros, de 2002. Essa sensação une empresários e consumidores: a clareza de que não há uma saída única, que leve a um movimento de união nacional. Perguntamos se eles enxergam alguém capaz de tirar o País da crise e pouco mais de 20% mencionaram algum nome. Uns 80% não citam ninguém. Sabe quem lidera essas preferências? O papa Francisco. Qual o impacto que isso traz, na prática, ao mundo político? Para começar, essa desaprovação que beira os 80% – mas esse fenômeno ocorre em todas as classes. A diferença é que, para esses segmentos de menor renda, não existe ódio ao governo, mas decepção. Temos 46% decepcionados por causa do que se prometeu e não foi cumprido, mas é gente que concorda com o projeto apresentado. Outros 34% não gostam do governo e também não gostam de seu projeto, querem outro. É por isso que, até agora, a tese do impeachment não ganhou adesão das classes C e D. E por quê? Entre outras razões, esses grupos querem um Estado eficiente, mas não um Estado enxuto. Pois eles usam a educação pública, a saúde pública, aprovam o Mais Médicos. Os argumentos sobre ineficiência de gestão, corrupção ou gastos além da conta não os levam a reconsiderar essa posição? O que se enxerga é que essas classes não querem pagar a conta. Elas acreditam que políticas de distribuição de renda melhoraram suas vidas e não querem abrir mão disso. E não estão sentindo que a oposição possa lhes oferecer de volta o que tinham e que foi perdido. A igualdade de oportunidades, no entender dessa maioria, não é, para os oposicionistas, uma prioridade.. As dificuldades concretas provocam mudanças na vida desses grupos. Quais? As classes C e D, habitualmente, têm mais amigos do que as classes A e B. A vida em áreas de periferia é mais grupal, todo mundo ajuda todo mundo, compra-se fiado no armazém, eles rateiam o custo do wi-fi, o uso coletivo de certos bens é comum. Ou seja, eles estão fazendo o seu ajuste fiscal doméstico. Há um mundão de “Joaquim Levys de saias”, mulheres fazendo conta toda hora, fazendo bico, hora extra. Até tirando a TV da tomada pra economizar energia. Isso traz também um impacto no comércio. Como é isso? Passam a comprar o mais barato, e usam a criatividade. Se juntam para ir aos atacados e fazer um “comprão”. Fazem de tudo pra não abrir mão de uma picanha, não querem voltar ao frango, não querem trocar bebida melhor pela cidra. Buscam ofertas, compram em menor quantidade. Mas o resultado disso é que fazer compras, que eles viam como um prazer, tornou-se frustrante. E como é a percepção disso pelas empresas? Algumas áreas transformaram esse processo. O varejo, que se mexe em canais diversificados, seja na internet ou em lojas menores. E passam a olhar com atenção para dois setores de consumo que assumiram importância: as mulheres e os negros. Veja estes dados: oito de cada dez pessoas que melhoraram de vida são negros. E a mulher, indo para o mercado de trabalho, criou uma nova realidade, a “renda familiar”. E passam a circular mais em público, e os produtos de beleza tornaram-se importantíssimos. Mas não se trata apenas disso. Do que mais, então? A mulher foi para o mercado de trabalho, mas o homem não foi para a cozinha. Não assumiu parte das tarefas domésticas. Ele não divide, é só um ajudante. A consequência é que começam a aparecer produtos para ajudar a mulher. O desinfetante que limpa e perfuma, a comida congelada, produtos semiprontos… Essas famílias começam a investir em micro-ondas, máquina de lavar louça. É racionalização do tempo pra ela poder trabalhar fora. Nessa nova realidade, pode-se perceber alguma preferência para um próximo governo? Há uma possibilidade, que me parece razoável, de que o próximo presidente venha a ser alguém que, neste momento, ainda não está no páreo. É marcante que o índice de rejeição de todos, dentro desses grupos, é maior do que a intenção de votos. Creio que vai levar vantagem, nessas classes, quem as convencer de que pode trazer de volta as oportunidades que sumiram.