ILUSTRAÇÃO DA MODELAGEM DE SISTEMAS FÍSICOS PELA DETERMINAÇÃO DO CONTEÚDO DE AR EM SORVETE José Carlos Lauria1 Centro Universitário do Instituto Mauá de Tecnologia1 Praça Mauá, 1 – 09580-900 São Caetano do Sul – SP [email protected] Resumo. Tendo como elemento de apoio uma referência corriqueira, apresenta-se exemplo ilustrativo metódico do processo de modelagem de sistemas físicos. O intuito é ressaltar a importância da compreensão dos acontecimentos para formar a base de apoio para a previsão das suas consequências. O envolvimento pessoal dos alunos verificado quando da aplicação do tema nos anos letivos de 2000 e 2001 mostrou que um fator primordial de motivação é a noção de conjunto do assunto a ser estudado associada à aplicabilidade prática. Palavras-chave: Modelagem, Validação de modelos, Verificação experimental MTE - 251 1. INTRODUÇÃO Modelos são elaborados para facilitar o entendimento e realçar a previsão dos acontecimentos, sejam eles ligados ao mundo físico, ao comportamento social ou a fatores econômicos. Em geral, modelos não são a realidade; eles são uma representação abstrata da realidade. A representação é direcionada para um propósito específico ou enfatiza um aspecto em particular. Ademais, os elementos participantes da modelagem são selecionados de acordo com o conhecimento e a cultura do modelador, aumentando ainda mais a sua margem de variabilidade, bem como de falibilidade. Modelos evoluem, e mudam à medida que novos horizontes são alcançados, com novos modelos dando passagem para novas versões mais úteis e produtivas de acordo com os propósitos segundo os quais eles foram idealizados. Com a crescente complexidade dos projetos e decisões de engenharia, associada à velocidade cada vez maior que são requeridas às soluções, a correta e apropriada modelagem dos problemas é fator fundamental para a atuação profissional. Além de essencial na vida profissional, o emprego de modelos, sejam eles físicos, matemáticos ou conceituais, constitui uma das ferramentas mais eficazes para a formação da mentalidade de engenheiro. O valor da modelagem na formação profissional reside na sugestão do mundo real ou na possibilidade do funcionamento de sistemas, no apoio à compreensão dos acontecimentos, ou ainda na sugestão de novas possibilidades. As idéias inerentes à elaboração de modelos transcendem as fronteiras disciplinares e constituem o alicerce de qualquer carreira profissional, mesmo fora do âmbito imediato de uma determinada modalidade de engenharia. Uma forma encontrada pelo autor para a ilustração dos passos envolvidos tanto no desenvolvimento como na validação de modelos foi a discussão de uma situação de amplo conhecimento de todos, buscando a modelagem de um resultado previsível de imediato. Ao serem indagados sobre a razão de a massa específica do sorvete ser pouco acima de metade da massa específica da água, os alunos acabam de imediato associando o fato a um conteúdo de ar no produto de cerca de cinquenta por cento. Com esse ponto de partida, é desenvolvido um modelo matemático para a fração em volume do conteúdo de ar, elaborado e verificado por associação de informações de diversas fontes, bem como comparado por medida direta realizada por procedimento elementar. O presente trabalho detalha a forma de aplicação da atividade. 2. FORMA DE APRESENTAÇÃO No próximo item é exposto o texto completo do assunto desenvolvido. O material é reprografado e distribuído individualmente aos alunos, com a apresentação realizada por transparências para permitir discussão ampla do tópico e a concentração dos alunos no tema. Durante o desenvolvimento são apresentados exemplares das fontes de referência das informações pesquisadas para enfatizar indiretamente a importância da consulta bibliográfica. O exercício foi aplicado em aula da modalidade de produção mecânica em 2000 e para a modalidade de controle e automação em 2001. 3. O ESTUDO DESENVOLVIDO Estimar a fração em volume de ar contido em sorvete industrializado, tomando como referência uma embalagem com volume de Vr = 2,0 dm3 e massa mr = 1,05 kg. 3.1 Composição O sorvete é um produto congelado obtido da mistura aerada de diversos ingredientes; tais como, o leite e seus derivados, açúcar, gordura vegetal e suco de frutas. Pela incorporação de ar na sua massa, o sorvete adquire consistência semelhante à neve. Dependendo do tipo a ser produzido e da matéria-prima disponível tem-se uma composição específica do sorvete. De Leonhardt el al. [1] pode-se adotar uma formulação típica como contendo ingredientes sólidos nas seguintes frações segundo o volume total de sólidos: Água: αag = 0,615 Gordura vegetal: αgo = 0,100 Açúcar: αaç = 0,100 Sólidos diversos: αsd = 0,185 MTE - 252 3.2 a) b) c) d) e) 3.3 Premissas Meios contínuos. Mistura homogênea. Ar com comportamento de gás perfeito. Mistura na temperatura de 0O C. Pressão no local de produção de 100 kPa. Massa específica média do sorvete Das informações para a embalagem mencionada expressa-se a massa específica média do sorvete ρ sv = mr Vr (1) Por outro lado, como se trata de uma mistura de sólidos (massa mso, volume Vso e massa específica ρso ) e de ar (massa mar, volume Var e massa específica ρar), por simplicidade, ela é dividida segundo essas duas fases ρ sv = 3.4 m so + m ar V so + Var ρ sv = Þ ρ soVso + ρ ar Var V so + Var (2) Fração em volume de ar Desenvolvendo a Eq. (2) ρ sv (Vso + Var ) = ρ soVso + ρ ar Var ( ) ( Var ρ sv − ρ ar = V so ρ so − ρ sv Þ ) O volume total é V = V so + V ar . Aplicando-a para substituir o volume de sólido na equação anterior ( ) ( Var ρ sv − ρ ar = (V − Var ) ρ so − ρ sv ( ) ( ) ) ( Þ Var ρ sv − ρ ar = V ρ so − ρ sv − Var ρ so − ρ sv ( ) ( Var ρ so − ρ ar = V ρ so − ρ sv 3.5 ) Þ ) Þ Var V = ρ so − ρ sv ρ so − ρ ar (3) Representação do produto Uma vez suposto o sorvete como constituído de duas fases, estuda-se separadamente os sólidos totais e o conteúdo de ar. Participação dos sólidos. A massa total de sólidos é resultado da soma das massas de água (mag), de gordura (mgo), de açúcar (maç) e de sólidos diversos (msd), tal que m so = m ag + m go + m aç + m sd a qual é expressa em termos da massa específica e do volume de cada um dos componentes como m so = ρ ag Vag + ρ goV go + ρ açVaç + ρ sd V sd Dividindo a expressão pelo volume total de sólidos, tem-se a massa específica média dos sólidos ρ so = m so Vso = ρ ag Vag Vso + ρ go V go Vso e com as respectivas frações em volume, chega-se a MTE - 253 + ρ aç Vaç V so + ρ sd V sd V so ρ so = ρ ag α ag + ρ goα go + ρ açα aç + ρ sd α sd (4) Participação do ar. Supondo o ar com comportamento de gás perfeito, a sua massa específica é determinada a partir da equação de Clapeyron ρ ar = p (5) RT onde p é a pressão; T, a temperatura; e R, a constante de gás perfeito. 3.6 Informações experimentais Adota-se para a água a massa específica ρag = 1000 kg / m3 e estima-se a sentimento para os sólidos diversos ρ sd = 1100 kg / m 3 . Por sua vez, de Hayes [2] obtém-se as informações: ρ go = 920 kg / m 3 (valor médio) e ρ aç = 800 kg / m 3 . 3.7 Estimativa numérica Da Eq. (1) vem a massa específica média do sorvete assinalado ρ sv = 1,05 = 0 ,525 kg / dm 3 2 ,0 ρ sv = 525 kg / m 3 Þ Com os valores especificados, da Eq. (4) resulta para a massa específica média dos sólidos ρ so = 1000 × 0 ,615 + 920 × 0 ,100 + 800 × 0 ,100 + 1100 × 0 ,185 = 990 ,5 kg / m 3 Þ ρ so = 990 kg / m 3 Para o ar R = 286,9 J / kg K e supondo p = 100 kPa e T = 0 o C , da Eq. (5) vem ρ ar = 100 × 10 3 = 1,28 kg / m 3 286 ,9 × 273 Notar que a massa específica do ar é irrelevante quando comparada tanto com a massa específica da fração sólida como com a massa específica média do sorvete. A Eq. (3) pode ser simplificada para Var V = 1− ρ sv (6) ρ so Os resultados numéricos proporcionam Var V 3.8 = 1− 525 = 0 ,470 990 Þ Var V = 0 ,47 Verificação de coerência Pela massa específica média do sorvete de 525 kg/m3, se ele fosse constituído apenas de água e desconsiderando a massa específica do ar, haveria 52,5 por cento de água na mistura (0,525 = 525/1000). Uma vez que na mistura existem outros componentes sólidos, e a sua participação em volume da água na mistura deve ser inferior a 52,5 por cento. MTE - 254 A fração de sólidos na mistura é V so V V = 1 − ar = 1 − 0 ,47 = 0 ,53 V Para a proporção de água Vag V so V = α ag so V so V V Þ Vag V = α ag V so V Numericamente Vag V = 0 ,615 × 0 ,53 = 0 ,33 valor aceitável pois é inferior ao limite estimado anteriormente de 52,5 por cento. 3.9 Análise de sensibilidade Em função das aproximações realizadas, o resultado encontrado para o conteúdo de ar deve ser visto como um valor indicativo, sujeito a uma incerteza considerável. A estimativa do conteúdo de ar decorre da avaliação da massa específica dos sólidos. Em consequência, é importante verificar a sensibilidade do resultado a variações na composição de sólidos. Representações gráficas simplificam a pesquisa. FRAÇÃO EM VOLUME DE AR: VAR/ V 0 ,6 0 ,5 0 ,4 ρ ar = 1,28 kg/m3 ρsv = 525 kg/m3 0 ,3 800 90 0 10 0 0 110 0 120 0 MASSA ESPECÍFICA MÉDIA DOS SÓLIDOS: ρSO [kg/ m3 ] Figura 1. Comportamento da fração em volume de ar Na Fig. 1 tem-se a curva correspondente à Eq. (3), mostrando um comportamento praticamente linear na região em torno da massa específica avaliada para o conteúdo sólido. Um aumento de 10 por cento na estimativa da massa específica acarreta igual aumento no conteúdo de ar; redução de 10 por cento na massa específica, redução de 12 por cento no conteúdo de ar. 3.10 Discussão A informação adotada sobre o açúcar no cálculo da massa específica da fração sólida é questionável. MTE - 255 Da experiência cotidiana sabe-se que quando adicionado à água, o açúcar afunda. Portanto, a sua massa específica como composto homogêneo é superior à da água. No entanto, o valor referido para a massa específica não se adequa ao fato. A informação fornecida deve corresponder ao produto a granel, um sistema de partículas sólidas e ar. Compactando-se açúcar por umedecimento, avalia-se, de forma rudimentar, em cerca de 30 por cento a redução de volume por eliminação de ar. Haverá um aumento aproximado de 45 por cento na massa específica, passando para ρ′aç = 1160 kg / m 3 . Recalculando a massa específica do conteúdo sólido, ρso = 1030 kg / m 3 , aumento de quatro por cento em relação à estimativa inicial. V A fração em volume de ar passa a ar = 0,49 , também um acréscimo de quatro por cento em relação ao V cálculo anterior. Outro ponto discutível seria o valor adotado da massa específica dos sólidos diversos. No entanto, não é de se esperar que ele influa de forma significativa no resultado, tanto em razão da sensibilidade da fração de ar à massa específica dos sólidos como à participação de 18 por cento dos sólidos diversos no total de sólidos. 3.11 Verificação experimental Uma avaliação do conteúdo de ar de sorvete foi realizada preenchendo totalmente um frasco de diâmetro constante. O sistema foi deixado no ambiente até a liquefação, com posterior colocação do recipiente em água aquecida para eliminação de eventuais bolhas. Em razão do diâmetro constante, a proporção entre o comprimento de ar no recipiente (Lar) e o comprimento total (Ltot) indica a fração em volume de ar. Mediu-se: Lar = 45,2 mm e Ltot = 100,8 mm, resultando Var V = 45 ,2 = 0 ,45 100 ,8 valor oito por cento abaixo da estimativa do item anterior. Seguramente as incertezas, tanto de cálculo como de avaliação da fração de ar, são superiores a tal diferença. 4. CONCLUSÃO Ao invés de trabalhar com informações segmentadas específicas à disciplina em desenvolvimento, procurou-se compor uma situação onde fatos esparsos (de várias disciplinas) são agrupados com o objetivo de correlacioná-los para atingir uma meta específica. Reunindo-se elementos diversos para formar um todo, criam-se condições para os comparar, os analisar, bem como estudar a suas analogias e suas diferenças. Não foi aplicada uma metodologia quantitativa de coleta de dados para mensurar a resposta dos alunos quanto à forma de apresentação. Todavia, em decorrência de conversas extra-aula com alunos nos dois anos em que o exercício foi aplicado, pôde-se verificar qualitativamente que a reação foi bastante positiva. Os comentários foram de que os conhecimentos, tanto os discutidos na disciplina como em outras, são interrelacionados segundo um exemplo prático; que a maneira de apresentação estimula o raciocínio lógico; que é uma forma muito interessante de visualizar uma situação prática; que permite aos alunos verificar a existência de procedimentos de solução desconhecidos por eles; que lidar com exercícios da realidade é fator significativo de motivação. Em síntese, pode-se afirmar que um elemento primordial de motivação dos estudantes é a noção de conjunto do assunto a ser estudado associada à aplicabilidade prática. 5. REFERÊNCIAS [1] Leonhardt, Gustavo Ferreira; Ribeiro, Eliana Paula & Nitz, Marcello, Fabricação de Sorvetes. São Caetano do Sul: Escola de Engenharia Mauá, s.d. Hayes, George D., Manual de Datos para Ingeniería de los Alimentos. Trad. Justino Burgos Gonzáles. Zaragoza: Editorial Acribia, 1987. [2] MTE - 256