Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2015, página A3.
Espaços de vida
PATRUS ANANIAS
O imaginar o senhor não pode, como foi que eu achei
gosto naquela comida, às ganas, que era: de feijão, carne-seca,
arroz, maria-gomes e angu. Ao que bebi água, muita (...).
A epígrafe cita Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, mas
referências da fartura à mesa nativa poderiam ser colhidas em tantas outras
obras da nossa literatura. O melhor da nossa prosa nutre-se da variedade de
alimentos que produzimos. Para que germinem cada vez mais saudáveis, a
presidenta Dilma Rousseff anuncia o Plano Safra da Agricultura Familiar 201516 nesta segunda-feira (22).
Resumir a agricultura familiar à produção de alimentos é muito, mas não
é tudo. Cerca de 70% do que chega às mesas dos brasileiros provém da
agricultura familiar - 70% do feijão (que Riobaldo saboreou com “ganas”), 83%
da mandioca, 69% das hortaliças, 58% do leite, 51% das aves.
Se ela provisiona segurança alimentar, atestada pela ONU (Organização
das Nações Unidas), também nos proporciona alimentos saudáveis, cada vez
com menos agrotóxicos. Enquanto alimenta reduz nossa dependência de
alimentos importados e contribui no controle da inflação. Ou seja, traz
segurança macroeconômica.
Assim como brotam refeições das lavouras de 4,3 milhões de
estabelecimentos da agricultura familiar (84% do total), vicejam em suas leivas
farta riqueza, que gera distribuição de renda, que protege a biodiversidade, que
mantém a juventude no meio rural. Que tece espaços de vida.
Espaços estimulados pelo governo federal. Os R$ 2,4 bilhões do Plano
Safra da Agricultura Familiar 2002-03 saltaram para R$ 24,1 bilhões em 201415 - dez vezes mais.
Esse incentivo, que será maior em 2015-16, vem de políticas públicas
como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar),
dão segurança a quem produz, apoiam a comercialização e agregam valor à
agricultura familiar dinâmica. É vital à economia, pois responde por 74% dos
postos de trabalho nos campos país adentro - o dobro do que gera a
construção civil.
O imaginário do agricultor que calca o berço onde joga a semente à
espera do orvalho que a faz germinar vai se evanescendo dos roçados. Entre
2008, primeiro ano da linha de crédito Mais Alimentos, e 2014, a venda de
Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2015, página A3.
tratores destinados à agricultura familiar dobrou - alcançando 20.388 unidades,
31% do total produzido no Brasil.
O arado, esteio da agricultura por milênios, vai cedendo à tecnologia,
aumentando a produtividade no campo e a produção industrial.
Essa imensa cadeia produtiva não se espraia apenas por rincões e
querências afastados. A nova ruralidade, que abriga o conceito de territórios,
engloba 4.963 municípios. O território rural, que integra campo e cidade,
agrega-se pela coesão e identidade cultural, social e econômica.
Esses programas de desenvolvimento rural são coordenados pelo
Ministério do Desenvolvimento Agrário em parceira com outros entes do
governo federal. Políticas que buscam restringir os flagelos aos compêndios
históricos, como o que as pesquisadoras Heloisa Starling e Lilia Schwarcz
descrevem em seu alentado Brasil: uma biografia.
Com base em obra do jesuíta André João Antonil, a dupla descreve o
desastre famélico entre os séculos 17 e 18 nos sertões mineiros.
"Deslumbrados" pelo tesouro que brotava das minas, aventureiros morreram
"com as mãos cheias de ouro", já que se esqueceram de plantar "mandioca,
feijão, abóbora e milho".
Assim, o Plano Safra da Agricultura Familiar significa mais do que
alimento na mesa dos brasileiros. Representa a agroecologia, a diversificação
no plantio, o desenvolvimento territorial, a cultura preservada, a qualidade de
vida, os mananciais resguardados, a geração de energia, a redução da
pobreza, o desenvolvimento interiorizado, o crescimento econômico com
sustentabilidade.
Representa a convivência solidária entre o campo e a cidade.
* PATRUS ANANIAS, 63, professor da PUC-MG,
é ministro do Desenvolvimento Agrário.
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