UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA
CURSO: Formação Básica
DISCIPLINA: Antropologia da Religião
2ª UNIDADE:
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO
Professor José Lisboa Moreira de Oliveira
Introdução
Depois de termos entendido o significado do estudo da religião na universidade,
queremos agora, nesta segunda unidade, aprofundar o significado da Antropologia, entendida antes de tudo como ciência da humanidade, como aquele âmbito do saber que procura conhecer cientificamente a pessoa humana na sua totalidade. Nossa disciplina é a Antropologia da Religião. Por isso é importante ter presente o significado da antropologia para que se possa logo em seguida estudar a religião a partir desse enfoque. Além disso,
para se estudar em profundidade o fenômeno religioso é indispensável “uma reflexão sobre a experiência do conhecimento humano” (RAMPAZZO: 23).
Comecemos então pela etimologia da palavra. “Antropologia” vem do grego
αντροποσ (anthropos), homem, e λογοσ, λογια (logos, logia), estudo, e, etimologicamente,
significa estudo do homem (MARCONI & PRESOTTO: 1-2). Embora a Antropologia compreenda três dimensões básicas (biológica, sociocultural e filosófica), neste estudo vamos
nos deter muito mais no seu aspecto cultural, deixando os outros elementos para as disciplinas dos cursos especificamente voltados para essas áreas.
Segundo alguns autores as origens da Antropologia remontam à Grécia antiga. Os
gregos teriam sido os primeiros a reunir informações sobre diversos povos e culturas, embora não possamos desconsiderar as contribuições dos chineses, dos egípcios e dos romanos. Heródoto, filósofo grego do V século a.C. é considerado por esses estudiosos o
“pai da Antropologia” (Ibid.: 10-11). Mas há quem discorde dessa afirmação e coloque em
dúvida essa idéia (DAMATTA, 1987: 86-87). Na opinião desses antropólogos não se pode
situar o nascimento da Antropologia num simples relato de viagem de Heródoto no qual
ele reúne informações de povos que os gregos consideravam “bárbaros”. Eles acreditam
ainda que a história da Antropologia é uma verdadeira especulação, uma vez que ela tem
a ver com a capacidade dos seres humanos de perceberem as suas diferenças e com os
sistemas ideológicos que usaram os próprios dados da Antropologia para justificar invasões e aniquilações de tantos grupos étnicos.
Para DaMatta todo antropólogo terá que conviver sempre com generalizações sobre o específico de uma certa sociedade ou grupo e com a necessidade de escolher alternativas (Ibid.: 87-89). Jamais será possível num determinado momento ter-se uma visão
completa e definitiva de uma determinada cultura. Isso explica porque até o século XVIII a
Antropologia não era vista como ciência. Muitas pessoas como cronistas, viajantes, soldados, missionários, comerciantes relataram fatos e deixam dados sobre povos e culturas,
mas somente nos meados do século XVIII é que a Antropologia começa a aparecer como
ciência. Normalmente se considera como primeiros antropólogos os seguintes cientistas:
Linneu (que foi o primeiro a descrever as raças humanas), Boucher de Perthes (o primeiro
a relatar achados pré-históricos) e John Lubock que fez os primeiros estudos sobre a Ida-
de da Pedra, estabelecendo as diferenças culturais entre o Paleolítico e o Neolítico. Porém, a consagração definitiva da Antropologia como ciência vai se dar somente depois dos
estudos de Darwin, o qual propôs a teoria da evolução. No século XX a Antropologia conhece um grande progresso, fruto das descobertas sobre o ser humano e as constantes
pesquisas de campo realizadas com bastante rigor científico (MARCONI & PRESOTTO:
10-11).
1. A antropologia dentro do campo das ciências sociais
Sabemos que o ser humano “sempre teve curiosidade a respeito de si mesmo, independentemente do seu nível de desenvolvimento cultural” (Ibid.: 10). Assim sendo, o
surgimento da Antropologia está ligado a este desejo da humanidade de conhecer-se a si
mesma, buscando perceber e registrar as semelhanças e as diferenças entre os diversos
grupos sociais e culturais. Esse dado histórico nos leva à definição do objeto e do objetivo
da Antropologia.
a) Objeto e objetivo da Antropologia
Podemos afirmar que o objeto do estudo da Antropologia é a pessoa humana e a
sua atividade. No caso da Antropologia Cultural o objeto é o ser humano e os seus comportamentos, ou seja, o homem e a mulher enquanto integrantes de grupos sociais que
fazem cultura. Por essa razão é possível dizer que o objetivo da antropologia é o estudo
da humanidade como um todo, bem como das suas diversas manifestações e expressões.
Assim sendo, pode-se dizer que no seu objetivo a Antropologia se preocupa com a pessoa
humana na sua condição de ser biológico, ser pensante, ser que produz culturas e ser capaz de organizar-se em sociedades estruturadas (Ibid.: 2-3).
No caso da Antropologia Cultural, dentro da qual se situa a Antropologia da Religião, seu objetivo é procurar uma compreensão do ser humano enquanto tal e da sua existência ativa, capaz de interferir no destino do planeta que habitamos. O papel da Antropologia Cultural é interpretar as diferenças culturais na medida em que elas formam sistemas
culturais integrados. Sua função é captar o essencial das culturas e buscar uma verdadeira compreensão de tais sistemas. O essencial do trabalho do antropólogo cultural é o estudo da vida das pessoas organizadas em grupos culturais, vendo o seu conjunto formado
por tantos elementos como os valores, as reflexões, os costumes, as normas, etc.
(DAMATTA, 1987: 143-150).
Trata-se, pois, de estudar o ser humano enquanto capaz de produzir cultura. Por isso é fundamental percebermos desde agora a diferença e a relação entre sociedade e cultura. De fato, pode existir sociedade sem cultura. O que caracteriza a sociedade é a vida
ordenada, com divisões de trabalho, de espaços, de idades, de extratos sociais, de sexos
e assim por diante. Por isso também os animais são capazes de viver em sociedade. Já a
cultura, como veremos mais adiante, supõe uma tradição viva que passe de geração em
geração o que foi elaborado coletivamente, de modo que o próprio grupo perceba e tenha
consciência de que seu estilo de vida é diferente dos outros. A partir dessa percepção e
dessa consciência o grupo estabelece as suas normas de inclusão e de exclusão. Conseqüentemente, podemos ter um grupo ordenado socialmente, mas sem consciência do seu
próprio estilo de vida, isto é, sem cultura. A cultura se caracteriza, pois, pela tradição, ou
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seja, pela transmissão do jeito próprio de ser de um grupo, o qual é mais do que viver ordenadamente com regras e normas estabelecidas. A cultura é a vivência coletiva consciente e responsável dos padrões, costumes e hábitos, dentro de um espaço e de uma temporalidade, e que identificam um determinado grupo. Na cultura há uma interação dialética
entre as regras e o grupo, com possibilidades de reciprocidade e de mudanças. O grupo
age ou não desta ou daquela forma porque tem consciência de que esse agir lhe dá ou
não identidade e o diferencia dos outros grupos sociais (Ibid.: 47-58).
b) Divisões e Campos da Antropologia
A definição de Antropologia nos ajudou a perceber que ela tem um campo muito
vasto, abrangendo espaços, situações e tempos amplos e bem diferentes. Por esse motivo ela possui âmbitos diversos e uma infinidade de campos de ação. De um modo geral os
antropólogos costumam dividir a Antropologia em dois grandes campos de estudo: a Antropologia Física ou Biológica e a Antropologia Cultural (MARCONI & PRESOTTO: 3-7).
A Antropologia Física ou Biológica estuda o ser humano na sua natureza e na sua
condição física. Procura compreendê-lo nas suas origens, no seu processo evolutivo, na
sua estrutura anatômica, bem como nos seus processos fisiológicos e biológicos. Ela está
estruturada em cinco campos: 1) a Paleontologia que estuda a origem e a evolução da
espécie humana; 2) a Somatologia (do grego soma, corpo + logia, estudo) que estuda o
corpo humano nas suas variedades existentes, nas diferenças físicas e na sua capacidade
de adaptação; 3) A Raciologia que se interessa pela historia racial do ser humano; 4) A
Antropometria (do grego anthropos, homem + metria, medida) que trabalha com técnicas
de medição do corpo humano, especialmente de esqueletos (crânio, ossos, etc.), usando
instrumentos especiais de precisão, com o objetivo de fornecer informações detalhadas
acerca de pessoas ou de achados arqueológicos, sendo muito usada no âmbito forense
para tentar identificar corpos e esqueletos; 5) Antropometria do crescimento, voltada para
o conhecimento e o estudo dos índices de crescimento dos indivíduos, relacionando-o
com o tipo de alimentação, de atividades físicas e assim por diante.
Por sua vez a Antropologia Cultural, o campo mais amplo dessa ciência, estuda o
ser humano enquanto fazedor de cultura. O seu principal objetivo é compreender os relacionamentos humanos, os comportamentos tanto instintivos como aqueles adquiridos pela
aprendizagem, sem deixar de analisar os aspectos biológicos que contribuem para o desenvolvimento das capacidades culturais dos seres humanos. Portanto, seu objetivo é conhecer o ser humano enquanto capaz de criar o seu meio ou ambiente cultural através de
formas bem diferenciadas de comportamento.
c) Campos da Antropologia Cultural
A Antropologia Cultural abrange seis campos específicos de atuação (Ibid.: 4-7). O
primeiro deles é a Arqueologia que tem como objeto o estudo das culturas extintas que
viveram em épocas, em tempos e em lugares diferentes, de modo particular as que não
deixaram documentos escritos. Por isso o estudo da Arqueologia consiste basicamente na
análise de vestígios e de restos de materiais dessas culturas encontrados em escavações
e que resistiram à destruição através do tempo.
Um segundo campo de atuação da Antropologia Cultural é a Etnografia (do grego
éthnos, povo e graphein, escrever) que se ocupa com a descrição das sociedades huma3
nas por meio da observação e da análise dos grupos sociais, tentando, na medida do possível, fazer a reconstituição fiel de suas vidas. De um modo geral a Etnografia se ocupa
com as culturas simples, denominadas “primitivas” ou “ágrafas” (não possuidoras de escrita). Ligado a esse campo está a Etnologia que, utilizando os dados coletados e oferecidos
pela Etnografia, procura fazer a análise, interpretação e comparação das diversas culturas
pesquisadas, tentando perceber as semelhanças e diferenças entre elas, buscando a existência ou não de inter-relações do ser humano com o seu ambiente, da pessoa com a cultura, em vista da percepção de mudanças e de ações.
O quarto campo da Antropologia cultural é a Lingüística que estuda a linguagem, as
formas de comunicação e também a forma de pensar dos povos e culturas. A lingüística é
um dos espaços mais independentes e mais ricos da Antropologia. Basta pensar, por exemplo, na quantidade e diversidade de línguas, sendo que cada uma delas possui a sua
forma e a sua estrutura básica. Por essa razão ela é considerada o âmbito mais autosuficiente da Antropologia.
Temos ainda o campo do folclore e o campo da antropologia social propriamente dita. O folclore é o estudo da cultura enquanto fenômeno humano espontâneo. Possui diversos aspectos e âmbitos (rural, urbano, material, espiritual, espacial, temporal, etc.). Já a
Antropologia Social se interessa da sociedade e das suas instituições. Estuda o ser humano enquanto ser social, capaz de organizar-se e de tecer relações sociais. Também ela
inclui diversos aspectos: vida social, família, economia, política, religião, direito, etc. Ela
pode estudar tanto um aspecto, como também o conjunto das organizações e instituições
sociais, tendo presente a sua totalidade. De fato, para se compreender uma sociedade é
indispensável vê-la como um todo.
No campo da Antropologia Social é de fundamental importância estudar a relação
que existe entre cultura, sociedade e indivíduo, uma vez que esse último não é um mero
receptor e portador de cultura, mas também agente de mudança cultural. Por outro lado,
sabemos que a cultura tem uma influência determinante sobre a vida do indivíduo. Pelo
processo de endoculturação o grupo social confere um tipo de personalidade às pessoas
que dele fazem parte. Conhecer estas inter-relações é sumamente importante para analisar o comportamento humano e a capacidade de adaptação dos indivíduos aos valores
propostos pelos grupos aos quais pertencem.
d) Interação da Antropologia com outras ciências
O que acabamos de analisar nos mostra que, embora a Antropologia seja uma ciência autônoma, ela necessita de uma interação com outras ciências para que possa
cumprir a sua tarefa de ciência da humanidade (Ibid.: 8-10). No âmbito da Antropologia
Cultural e Social é de fundamental importância a sua interação com a Sociologia, com a
Psicologia, com as Ciências Econômicas e Políticas e com a História.
Através da interação entre Antropologia e Sociologia é possível conhecer melhor a
condição humana e social dos indivíduos e dos grupos a que pertencem. A Antropologia
vai trabalhar mais o enfoque cultural, enquanto a sociologia analisa tanto o conceito como
a experiência de vida em sociedade. O cruzamento de dados e informações contribui significativamente para o conhecimento do ser humano na sua globalidade.
Já a interação entre Antropologia e Psicologia se dá pelo interesse acerca do comportamento humano. A Psicologia analisa mais o comportamento individual, enquanto a
Antropologia aprofunda os comportamentos grupais, sociais e culturais. Desse modo a
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Psicologia ajuda a Antropologia a compreender a complexidade das culturas a partir da
avaliação do comportamento dos seus indivíduos. Essa, por sua vez, auxilia a Psicologia a
perceber cada indivíduo como ser inculturado que recebe influência do ambiente onde vive
e do grupo cultural a que pertence. Os dados resultantes desse processo ajudam a desvendar melhor o mistério da existência humana.
No que se refere à interação entre Antropologia e Ciências Econômicas e Políticas,
pode-se afirmar que os estudos comuns estão relacionados à compreensão das organizações econômicas e das instituições que regulam o poder dentro dos grupos humanos. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma realidade complexa e bastante diferenciada, mas que é
determinante para a existência das sociedades e de suas culturas.
Quanto à relação entre Antropologia e História podemos afirmar que o ponto de encontro é basicamente a tentativa de reconstrução de culturas que já desapareceram. A
História permite a Antropologia conhecer as origens dos fenômenos culturais, bem como
as formas de adaptação e de modificação introduzidas pelas pessoas no meio ambiente.
e) Métodos da Antropologia
Enquanto ciência social que estuda o ser humano, a Antropologia faz uso de diversos métodos, de acordo com os seus campos e com as situações (Ibid.: 11-14). Por método entende-se um conjunto de regras bem definidas que são utilizadas na investigação.
Normalmente o método segue um procedimento anteriormente elaborado e que deve ser
cuidadosa e escrupulosamente observado. O método tem como finalidade descobrir quais
são as lógicas e as leis da natureza e da sociedade, visando respostas satisfatórias.
Normalmente são utilizados sete métodos nas pesquisas de Antropologia. O primeiro é o método histórico utilizado para a investigação de culturas passadas. Por meio dele o
antropólogo, com a ajuda do historiador, tenta reconstruir as culturas, explicar fatos e observar fenômenos, como, por exemplo, as mudanças ocorridas e as adaptações. O segundo é o método estatístico empregado, sobretudo para analisar as variações culturais
das populações ou sociedades. Os dados são obtidos por meio de tabelas, gráficos, quadros comparativos, etc. O terceiro é o método etnográfico utilizado para descrever as sociedades humanas, de modo particular as consideradas primitivas ou ágrafas (sem escrita).
O método consiste essencialmente em levantar todos os dados possíveis sobre uma determinada cultura ou etnia e, a partir desses levantamentos, tentar descrever o estilo de
vida ou cultura desses grupos.
O quarto método é chamado de comparativo ou etnológico. É usado de modo particular para a pesquisa sobre populações extintas. Por meio da comparação de materiais
coletados, especialmente fósseis, se estudam os padrões, os costumes, os estilos de vida
das culturas, vendo de modo particular as diferenças e semelhanças existentes entre elas.
O objetivo é melhor compreender as culturas passadas e extintas. O quinto método é conhecido como monográfico. É também chamado de estudo de caso. Consiste em estudar
com profundidade determinados grupos humanos, considerando todos os seus aspectos
como, por exemplo, as instituições, os processos culturais e a religião. O estudo monográfico é muito importante para os casos de culturas que estão ameaçadas de extinção, uma
vez que permite analisá-las e descrevê-las de forma bem pormenorizada.
Por fim, temos o método genealógico e o método funcionalista. No primeiro caso
trata-se de um método usado para o estudo do parentesco e todos os outros aspectos sociais dele decorrentes. Visa à análise da estrutura familiar e exige a presença de um in5
formante, ou seja, de alguém que possa revelar os nomes das pessoas que compõem a
árvore genealógica. No segundo caso, a cultura é estudada e analisada a partir do âmbito
da função ou das funções. Por meio dele busca-se perceber a funcionalidade de uma determinada unidade cultural no contexto da cultura geral ou global.
f) Técnicas de pesquisa da Antropologia
Já foi possível perceber que aos métodos estão associadas determinadas técnicas
de pesquisa. Por técnica entende-se a habilidade do cientista ou pesquisador no uso dos
métodos, ou seja, daquele conjunto de regras bem definidas que são utilizadas na investigação e que lhe permite obter os dados desejados. As técnicas usadas no campo antropológico são três: observação, entrevista e formulário (ibid.: 14-16).
A técnica da observação consiste na coleta e obtenção de dados. Nela os sentidos
têm um lugar privilegiado. Ela pode ser sistemática ou participante. Na sistemática o pesquisador direta (pessoalmente) ou indiretamente (por meio de outras pessoas) observa os
fatos no local da investigação e por um período de tempo. Na participante o pesquisador,
por um longo período de tempo, participa do seu campo de pesquisa. É muito utilizada
para a pesquisa cultural. Neste caso o cientista torna-se um participante ativo da cultura
que quer estudar. Ela exige fina capacidade de observação, superação de preconceitos,
trabalho diário de anotação, registro de fatos e de dados. Exemplo desse tipo de pesquisa
é aquela feita pelo francês Roger Bastide sobre as religiões africanas em Salvador (Bahia)
ou o caso de Dacyr Ribeiro que conviveu durante muito tempo com os índios Kayapós em
Mato Grosso. Também Roberto DaMatta descreve a sua pesquisa entre os índios Gaviões
no Pará e entre os Apinayé no atual estado de Tocantins (DAMATTA, 1987: 182-240).
A técnica da entrevista consiste num contato direto, face a face, do cientista e pesquisador com a pessoa entrevistada, da qual ele pretende obter informações. A entrevista
pode ser dirigida ou não dirigida (livre). A entrevista dirigida é aquela na qual o entrevistador segue um roteiro pré-estabelecido. A não dirigida é aquela do tipo informal, sem roteiro
a ser seguido, na qual o entrevistador vai colhendo as idéias do entrevistado, manifestadas de forma espontânea.
O formulário é uma técnica que se parece com o questionário. Consiste num levantamento de dados feito através de uma série organizada de perguntas escritas entregues
ao entrevistado, às quais ele é convidado a responder. De uma certa maneira é uma pesquisa dirigida, uma vez que o rol de perguntas é feito pelo entrevistador, visando obter esclarecimentos sobre determinadas questões.
Convém observar que no caso das duas últimas técnicas, embora as respostas sejam dadas pelo entrevistado, o modo de formular as perguntas e a escolha do público alvo
pode induzir a um determinado resultado. Isso acontece, por exemplo, em certas pesquisas de opinião pública, como ficou bem evidente por ocasião das recentes eleições no
Brasil. O risco de manipulação dos resultados pode sempre existir.
2. A evolução humana como processo biológico e cultural
Tendo como objetivo o estudo da humanidade, um dos campos de pesquisa da Antropologia é a evolução da humanidade. Trata-se do estudo da evolução biocultural, ou
seja, de verificar como o ser humano foi crescendo e se aprimorando não só fisicamente,
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mas também, e, sobretudo, culturalmente. O estudo científico desse fato é de suma importância, uma vez que nos ajuda a perceber não só as formas de evolução da humanidade,
mas também a valorizar o momento em que nos encontramos. Por outro lado, o estudo da
evolução contribui para que saibamos relativizar a nossa cultura, dando-nos conta de que
ela é apenas um estágio nesse processo evolutivo. Depois de nós certamente virão outras
culturas que poderão alcançar formas evolutivas bem mais sofisticadas do que a nossa.
No estudo da evolução humana considera-se o ser humano antes de tudo como
“uma espécie do reino animal” (LABURTHE & WARNIER: 45) que foi passando da sua
condição de antropóide (10 a 12 milhões de anos atrás), para a condição de hominída (a
partir de nove milhões de anos atrás). Portanto, de uma condição de puro primata para a
condição de ser com características sociais e pensantes (MARCONI & PRESOTTO: 4975). De acordo com boa parte dos antropólogos os dois tipos de evolução (biológica e cultural) se deram numa interação permanente. A evolução biológica tornou possível a evolução social, mas essa contribuiu para o aprimoramento daquela (LABURTHE & WARNIER:
54-58). Assim sendo, a distinção que fazemos a seguir serve apenas a um objetivo metodológico, visando a melhor compreensão dos dois aspectos.
a) A evolução como processo biológico
A evolução biológica é estudada pela Antropologia Física. Por isso aqui não iremos
nos deter em detalhes. Apenas pretendemos oferecer alguns elementos que nos permitam
compreender depois a evolução cultural, uma vez que, como vimos anteriormente, ambas
estão intimamente relacionadas. De fato, para conhecer o seu humano na sua totalidade é
preciso também conhecer “as diferentes fases pelas quais a humanidade passou, desde o
Homo primitivo até o homem atual, isto é, moderno” (MARCONI & PRESOTTO: 49).
O estudo da evolução biológica do ser humano se concentra essencialmente na
análise dos fósseis, tentando perceber as transformações anatômicas e fisiológicas pelas
quais ele passou, a partir da sua condição de primata superior. A Paleontologia e a Arqueologia fazem esse estudo considerando as eras e os períodos geológicos, uma vez que a
evolução humana tem tudo a ver com isso. Os paleontólogos e os arqueólogos já dispõem
de material que datam de cerca de 70 milhões de anos atrás, quando se deu a passagem
dos antropóides para os hominídeos. Mas a etapa mais importante é a do período conhecido como Pleistoceno (entre dois milhões a 10 mil anos atrás), pois foi neste período que
o ser humano sofreu as suas maiores alterações (Ibid.: 49-52).
O período Pleistoceno foi marcado por um clima bastante instável, com fases de
muitas chuvas e outras de muita seca. Houve avanços e recuos das geleiras. Tudo isso
interferiu na vida animal e vegetal forçando migrações ou causando a extinção de muitas
espécies.
Como dito anteriormente, as transformações evolutivas do ser humano podem ser
registradas através dos fósseis descobertos. Embora em quantidade pequenas esses fósseis foram encontrados tanto na Ásia como na África. No continente americano os achados são da fase final do Pleistoceno. Os achados arqueológicos permitem o reconhecimento de quatro fases evolutivas do ser humano a partir de seus ancestrais pré-humanos:
pré-homínida; homo erectus, homo sapiens e homo sapiens sapiens (Ibid.: 55-69).
Os cientistas, de um modo geral reconhecem apenas um nosso ancestral da fase
pré-homínida (até um milhão de anos atrás): o Homo australopithecus (austral, sul; pithecus, macaco), ou homem-macaco, macaco-homem ou quase homem. Ele, entre outras
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características, era bípede e habitava em lugares mais abertos, especialmente às margens dos lagos. Era de baixa estatura, com caixa craniana pequena, tendo os dentes molares bastante desenvolvidos. Não existem registros de que entre as diversas espécies
existisse alguma forma de contato.
O homo erectus, segundo os cientistas viveu no Pleistoceno Médio, ou seja, entre
um milhão e 100 mil anos atrás. Ele teria evoluído a partir do australopithecus africano e
se espalhado por outros lugares do planeta, tendo sido encontrados vestígios dele na ilha
asiática de Java e em Pequim. Entre as suas principais características estão: cérebro
grande (900 a 1200 cm3), bípede, altura em torno de 1,60m, redução dos molares, caninos
menores e diversas modificações na face. Foi constatada uma modificação da pélvis, indicando que ele fazia caminhadas mais longas. Usava artefatos de pedra e armas, praticava
a caça, inclusive de animais de grande porte, valendo-se para tanto de tochas de fogo e
de armadilhas. Ele foi extinto no Pleistoceno Superior.
De acordo com os antropólogos (Ibid.: 62-67) o homo sapiens primitivo, também
conhecido como pré-sapiens teria surgido por volta de 500 mil anos atrás, portanto no período do Pleistoceno Superior e desaparecido a cerca de 70 a 40 mil anos. O mais conhecido representante do homo sapiens é o homo sapiens de Neanderthal que teria surgido
há cerca de 150 mil anos atrás. O primeiro fóssil dessa espécie foi encontrado na Alemanha em 1856, mas existem indícios de que ele viveu também na Ásia e na África. Suas
principais características físicas: era pequeno (cerca de 1,55 a 1,60m), bípede e curvo e,
comparando-se com os seres humanos atuais, tinha os membros superiores bem menores. Tinha cérebro bem mais volumoso do que os humanos atuais (cerca de 1.540 cm3),
sendo que o do homem era maior do que o da mulher (1.300cm3).
Os cientistas divergem quanto ao fim do homo sapiens. Alguns acreditam que ele
teria sido expulso para o sul da Europa pelo homo sapiens sapiens. Outros levantam a
hipótese de que teria se misturado com estes últimos, dando origem aos descendentes
diretos dos europeus. Tal miscigenação teria sido confirmada pela descoberta de um fóssil
de criança, de cerca de 25 mil anos, perto de onde hoje é a cidade de Leira, em Portugal.
Mas o motivo “do desaparecimento do Homem de Neanderthal, por volta de 30 mil anos
atrás, é ainda hoje inexplicado. Dois fatos podem ter ocorrido: ou aconteceu a miscigenação ou simplesmente os neanderthalenses desapareceram dado o clima instável da época” (Ibid.: 66). Os registros de fósseis desse período e a utilização de exames de DNA têm
reforçado a teoria da origem africana do homem de Neanderthal, o qual “desenvolveu-se
em uma única localidade no deserto do Saara, África, de 100 mil a 200 mil anos atrás e
emigrou mais recentemente, substituindo populações existentes de humanos antigos de
todo o Universo” (Ibid.: 67).
Por fim, o último grupo de ancestrais humanos seria o homo sapiens sapiens que
teria vivido entre 35 a 10 mil anos atrás, embora alguns cientistas, como é o caso do antropólogo Jospe Gilbert Clols, cheguem a afirmar que ele surgiu há 200 mil anos (Ibid.: 6768). Ele viveu na Europa, na Ásia e na África e, mais tarde, teria chegado à América. Inicialmente compreendia duas raças das quais, mais tarde, surgiram os três grupos raciais:
brancos, negros e amarelos (asiáticos). Esse grupo humano, em relação aos demais, já
utilizava uma tecnologia avançada e uma cultura considerada bastante desenvolvida. Exemplo disso são as pinturas nas paredes das cavernas, os murais de baixo relevo, gravuras, esculturas e modelagens deste período encontradas pelos arqueólogos.
Hoje existe um certo consenso entre os estudiosos, corroborado pelos exames de
DNA, de que o ser humano teria surgido na África e depois se espalhado pelos outros con8
tinentes. Isso levanta a pergunta sobre o surgimento das diferentes raças humanas (Ibid.:
69-74). Embora ainda não exista um consenso sobre a definição de raça, os antropólogos
concordam num ponto: o ser humano pertence a um mesmo gênero (homo) e a uma
mesma espécie (sapiens). Acredita-se que houve um tronco comum, mas não se sabe
dizer quando foi que começou a diversificação.
As dificuldades em definir o conceito de raça estão ligadas a três fatores: a relatividade do tempo, a questão das grandes diferenças físicas e à distribuição espacial dos seres humanos. Houve, a partir de 1758, com o naturalista sueco Linneu, o primeiro a fazer
esse trabalho, várias tentativas de definição e de classificação de raças. De um modo geral os antropólogos aceitam a definição de raça dada por Vallois: “Agrupamentos naturais
de homens, que apresentam um conjunto de caracteres físicos hereditários comuns,
quaisquer que sejam suas línguas, costumes e nacionalidade” (apud ibid.: 71). Quanto à
classificação há também uma comum aceitação de que as principais raças são: caucasóide ou branca; negróide ou africana e mongolóide ou asiática. Há divergências quanto à
questão das etnias ou sub-raças. Não há concordância acerca da primeira raça. Alguns
estudiosos acreditam que seja a africana, outros afirmam ser a branca.
Quanto à diferenciação das raças afirma-se que ela se deve a uma série de fatores.
Entre esses fatores estariam a seleção natural, a mutação (alteração no gene), isolamento
de grupos, pendor genético (sobrevivência, difusão e combinação de genes mutantes),
hibridação (união de indivíduos de genes diferentes), seleção sexual (escolha do cônjuge)
e seleção social (regulamentação dos cruzamentos).
b) A evolução como processo cultural
Para se falar de evolução cultural é indispensável ter presente as observações feitas por DaMatta a este respeito (DAMATTA, 1987: 86-142). Lembrando que em antropologia sempre há o risco de “buscar a generalidade para realizar generalizações de cunho
formalista”, DaMatta critica o hábito de certos antropólogos que consiste em separar os
fatos de seus contextos. Por essa razão ele levanta uma certa suspeita em relação ao
evolucionismo antropológico, o qual trabalha muito com idéias gerais. Entre essas idéias
gerais ele destaca quatro: a comparação dos costumes das sociedades humanas, a afirmação de que os costumes têm uma origem e um fim, o princípio de que as sociedades se
desenvolvem irreversivelmente de modo linear e a definição das diferenças entre os seres
humanos a partir das características anteriores.
Ao trabalhar com idéias genéricas a antropologia termina por dar respaldo a um tipo
de progresso que é “sintoma de uma sociedade muito confiante nas suas possibilidades e
na sua superioridade” (Ibid.: 93). Com isso, acredita DaMatta, os antropólogos assumem o
lugar daquelas culturas que estão estudando, não permitindo que elas mesmas falem. Esse modo de estudar as culturas, colocando-se acima delas, teve como resultado a destruição do planeta, hoje tão visível. Isso porque o progresso que construímos está profundamente relacionado ao determinismo tanto temporal como histórico que concebe a evolução da humanidade de forma unilinear, perdendo de vista a multiplicidade de realidades e
toda a riqueza das diferenças.
DaMatta questiona também o método funcionalista usado na Antropologia a partir
das obras de Malinowski e Radcliffe-Brown (Ibid.: 101-106. Tal método, usado inicialmente
como reação ao evolucionismo, relaciona o presente com o futuro, explicando um pelo
outro. Afirma que numa sociedade ou sistema nada acontece por acaso e nada está defi9
nitivamente errado ou deslocado. O que existe hoje é apenas sobra ou sobrevivência do
passado. Embora tivesse o mérito de mostrar que a pesquisa antropológica tem um duplo
movimento, o funcionalismo desenvolve uma visão parcial das culturas, uma vez que tende a interpretar os fatos do passado projetando sobre eles as concepções e valores do
presente.
Feitas essas observações inicias, podemos agora tentar descrever alguns elementos da evolução cultural do ser humano. Vimos inicialmente que esse tipo de evolução está associado àquela psicobiológica. Por evolução cultural entendemos o fato de que o ser
humano foi “capaz de produzir, ou seja, capaz de criar e acumular experiências e principalmente de transmiti-las socialmente” (MARCONI & PRESOTTO: 77). Por essa razão a
cultura é considerada, enquanto desenvolvimento de padrões, comportamentos, hábitos e
costumes, a principal característica do ser humano.
A evolução cultural é atestada pelos diversos achados arqueológicos (Ibid.: 76-91).
Através de artefatos encontrados pode-se avaliar tal processo evolutivo cultural (Ibid.: 168182). Esse segue basicamente os mesmos estágios da evolução biológica. Pode-se afirmar que os registros de cultura começam com o homem de Neanderthal que tinha características sociais significativas. Vivia em cavernas, usava o fogo com a finalidade de se
aquecer e iluminar e talvez também para cozinhar. Sobrevivia da caça e da coleta, aperfeiçoando as técnicas para isso, passando a usar, além da pedra lascada também ossos,
madeira, conchas, dentes e chifres. Inventou instrumentos como o machado, a faca, a
raspadeira, as pontas de lança, o martelo, cinzéis, lâminas e cabos de madeira. Ele foi o
primeiro a utilizar instrumentos musicais feitos de ossos e o usar o breu retirado de árvores como cola.
No homem de Neanderthal foram encontrados vestígios de religiosidade, uma vez
que construía sepulturas onde enterrava seus mortos com os seus pertences, levando-nos
a crer que ele acreditava na existência da alma e do espírito. Foram encontradas evidências de que ele já praticava a magia e cultuava o urso. A maioria dos antropólogos acredita que o homem de Neanderthal alcançou um nível complexo de cultura, existindo sinais
de vida grupal e de espírito de cooperação. Apoiava os mais fracos, possuía uma linguagem, embora com um número limitado de sons. Conhecia plantas medicinais. O período
em que ele viveu era marcado por mudanças climáticas rápidas o que exigia uma série de
adaptações.
De um modo geral os antropólogos dividem o estudo da evolução cultural em quatro
períodos: culturas do Paleolítico, culturas do Mesolítico, culturas do Neolítico e culturas
recentes (Ibid.: 80-89).
As culturas do Paleolítico compreendem aquelas do período que vai de 500 mil a 10
mil anos atrás. Elas se caracterizam pela presença do ser humano predador ou caçador
de alimentos. O homem e a mulher desse período desenvolveram um modo sistemático
de coletar alimentação que consistia basicamente em vegetais e pequenos animais selvagens. Neste período se dá a primeira grande revolução no setor da economia e da indústria. O ser humano cria seus próprios recursos, os quais consistem em técnicas diferentes
para coletar alimentos, usando instrumentos produzidos a partir da pedra, da madeira, de
ossos e conchas. Este tipo de evolução não aconteceu de forma idêntica em todos os lugares e períodos. De fato, os antropólogos dividem esse período em três etapas; Paleolítico Inferior (de 500 mil a 150 mil anos atrás), Paleolítico Médio (150 mil a 40 mil anos) e
Paleolítico Superior (40 mil a 12 mil anos atrás).
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As culturas mesolíticas são aquelas do período que vai de 12 mil a 10 mil a.C. De
acordo com os antropólogos trata-se de um período breve que marca a passagem do ser
humano predador para produtor de alimentos. Neste período são desenvolvidas técnicas
mais sofisticadas e se dão invenções significativas como o arco, a flecha, a roda, as agulhas, os arpões, os trançados, a enxada, os pilões, a canoa e a rede. Iniciam-se as aglomerações humanas, especialmente em torno dos locais de pesca, favorecendo assim um
certo sedentarismo. Em virtude disso surgem as habitações, que inicialmente eram palafitas construídas sobre os lagos e com a finalidade de oferecer abrigo contra as intempéries
do tempo e do clima.
O Neolítico começa por volta de 10 mil a.C. e se estende até 4.500 anos a.C. Neste
período se dão transformações significativas. O ser humano começa a se fixar na terra e,
além da coleta de vegetais, passa a domesticar e criar animais (cabras e ovelhas) para a
sua alimentação. Neste período nasce e se consolida a agricultura que era formada basicamente do cultivo de trigo e cevada. Os humanos inventam os silos para armazenar alimentos. Os instrumentos de caça e pesca e os agrários são aperfeiçoados pela técnica do
polimento e revestidos de estética. Entre 7.000 e 8.000 a.C. surge a cerâmica. No Neolítico se consolidam as aldeias sedentárias que mais tarde serão transformadas em vilas,
cidades e centros comerciais.
Tudo isso contribuiu para mudanças significativas no modo de pensar e de agir do
ser humano, uma vez que ele tinha garantido a sua auto-suficiência. Desenvolve-se neste
período o culto à fecundidade e a mulher passa a ter status na sociedade. O sedentarismo
e a facilidade dos meios de sobrevivência permitiram um aumento da população e a formação de grandes aglomerados urbanos. A partir desse período têm início as culturas recentes das quais temos vestígios mais abundantes que nos permitem conhecê-las melhor.
c) Importância do estudo da evolução para a Antropologia da Religião
Podemos concluir afirmando que o estudo da evolução do ser humano contribui para que mudemos os nossos olhares. O antropólogo sério sabe muito bem disso e procura
relativizar ou até eliminar toda pretensão de superioridade das culturas atuais. Ele constata a presença permanente de mudanças desde que a humanidade apareceu sobre a Terra
e tem consciência de que esse processo continuará por todo o período em que a humanidade existir. Assim sendo, a reflexão sobre a evolução humana “relativiza a suposta novidade da modernidade, e seus surpreendentes fenômenos espetaculares como a revolução
industrial, nuclear ou informática” (LABURTHE & WARNIER: 58). Isso porque cada invenção ou descoberta deve ser contextualizada e ganhar importância a partir daí. Tendo presente esse princípio podemos afirmar que outras descobertas do passado sejam até mais
importantes do que aquelas atuais como, por exemplo, a invenção da agricultura. Portanto, aquela concepção “das sociedades primitivas paralisadas em um eterno presente é
fonte de erro” (Ibid.: 58).
Conseqüentemente o estudo da evolução cultural é muito importante para a Antropologia da Religião porque nos ajuda a perceber como a experiência religiosa, que sempre
acompanhou o ser humano e os grupos sociais, também passou por diversos estágios
evolutivos. Da mesma forma como o ser humano vai mudando biologicamente e culturalmente também vai progredindo em sua crença. Desse modo é possível perceber uma certa evolução na maneira de se relacionar com o transcendente, com a divindade. Outras
vezes nota-se recuos significativos.
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De um modo geral, as pessoas e os grupos humanos, na medida em que avançam
no conhecimento e no saber, não precisam mais incomodar os deuses para explicar certas
realidades. Assim a experiência religiosa passa a ser mais crítica e mais adulta, no sentido
de que a religiosidade permite aos humanos entenderem suas questões e assumirem suas responsabilidades. Às vezes, porém, há como que um recuo e um fechamento em torno de uma visão mágica e milagreira da religião, impedindo as pessoas de verem com
clareza o que está acontecendo. Quando esse recuo acontece a religião corre o risco de
se tornar ópio, anestésico, uma vez que leva o sujeito à “despossessão de si”, ou seja, a
se tornar “alheio a si mesmo” (COLLIN: 34).
No momento atual, por exemplo, mesmo com todo o avanço da ciência e da tecnologia, há uma presença muito forte da religiosidade em todo o mundo. No Brasil, como
veremos mais adiante, quase 93% da população se declara adepta de uma religião. No
entanto, nunca como hoje, assiste-se a um verdadeiro estranhamento do ser humano de si
mesmo. De um modo geral a experiência religiosa não está criando consciência crítica e
atitudes de responsabilidade. As pessoas que se professam adeptas de uma religião, salvo pouquíssimas exceções, vivem numa tremenda alienação religiosa. Elas não têm autonomia verdadeira, vivem projetando suas vidas num mundo ilusório, imaginário, fora da
realidade terrestre. Apelam para os deuses e deixam a eles a tarefa de resolver situações
que elas mesmas poderiam e deveriam resolver. Com isso, em nome da religião ou da
religiosidade, deixa-se de intervir na hora certa e no lugar certo para corrigir injustiças e
incrementar um estilo de vida no qual prevaleça a solidariedade e a paz (Ibid.: 28-57).
O estudo da evolução da religiosidade da humanidade nos permite afirmar a necessidade de que no mundo de hoje a experiência religiosa se transforme em espiritualidade.
Essa, segundo Boff, “é aquela atitude que coloca a vida no centro, que defende e promove
a vida contra todos os mecanismos de diminuição, de estancamento e de morte” (BOFF,
13-131). Disso nasce uma grande tarefa para os cientistas, estudiosos e acadêmicos que
dizem professar uma fé religiosa: ajudar a religiosidade a se transformar em espiritualidade. De fato, como diz ainda Boff, a experiência religiosa que se transforma em espiritualidade é criativa, capaz de proporcionar mais capacidade ao ser humano de extasiar-se e
de contemplar. A pessoa que faz da sua experiência religiosa uma experiência de espiritualidade é capaz de captar a harmonia e a beleza do universo e, a partir disso, perceber
que conhecer ou saber não é “um ato de apropriação e domínio sobre as coisas, mas uma
forma de amor e de comunhão com as coisas” (Ibid.: 133).
O amor e a comunhão levam o cientista, o estudioso, a mostrar que na religião não
cabem atitudes de manipulação e de dominação. Na religião não podem existir individualismos que fazem das pessoas seres insensíveis, indiferentes, hostis e egoístas. Desse
modo espiritualidade e ciência terminam se encontrando num ponto comum: o ser humano
é responsável por quase tudo que acontece no mundo. Ele não pode, em pleno século
XXI, achar que ainda é vítima do fetichismo, ou seja, alguém submetido ao capricho dos
deuses. Em nosso tempo a religião que não for subversiva, capaz de captar a verdade e a
realidade das pessoas, dos fatos e das coisas, estará sendo desumana e cruel. Não há
mais razão para que ela exista. Se uma religião ou uma experiência religiosa não é capaz
de questionar com ousadia e criatividade os sistemas sociais, políticos, morais e religiosos
que mantêm a humanidade e o planeta em constante ameaça de extinção, ela perdeu por
completo a sua razão de ser. Passa a ser ela também uma séria ameaça para a vida no
planeta.
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3. As especificidades da antropologia cultural
3.1. O conceito de cultura
A análise da evolução cultural e religiosa do ser humano exige a compreensão do
conceito de cultura. Sabemos que a palavra cultura é de origem latina. Deriva do verbo
colere (cultivar ou instruir) e do substantivo cultus (cultivo, instrução). Etimologicamente
tem muito a ver com o ambiente agrário, com o costume de trabalhar a terra para que ela
possa produzir e dar frutos. Ainda hoje se costuma usar a palavra cultura para designar o
desenvolvimento da pessoa humana por meio da educação e da instrução. Disso vêm os
termos culto e inculto, usados no jargão popular com uma carga de preconceito e de discriminação, considerando uma cultura (especialmente a letrada) superior a outra. Porém,
não existem grupos humanos sem cultura e não existe um só indivíduo que não seja portador de cultura.
A cultura, pois, é um termo vasto e complexo, englobando vários aspectos da vida
dos grupos humanos. Não existe ainda um consenso entre antropólogos acerca do que
seja a cultura. Afirma-se que existem mais de 160 definições de cultura (MARCONI &
PRESOTTO: 21-22). Tylor foi o primeiro a formular um conceito de cultura. Para ele essa
“é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os
costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da
sociedade” (apud ibid.: 22). Poderíamos então afirmar que cultura é a forma ou o jeito comum de viver a vida cotidiana na sua totalidade por parte de um grupo humano. Inclui
comportamentos, conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes, hábitos, aptidões,
tanto adquiridos como herdados.
a) Elementos da cultura
Percebe-se então que existem vários elementos de cultura. As idéias que são os
conhecimentos, os saberes e as filosofias de vida. A crença que consiste em tudo aquilo
que se crê ou se acredita em comum. Os valores, ou seja, a ideologia e a moral que determinam o que é bom e o que é ruim. As normas que englobam tanto as leis, os códigos,
como os costumes, aquilo que se faz por tradição. As atitudes ou comportamentos, isto é,
maneiras de cultivar os relacionamentos com as pessoas do mesmo grupo e com aquelas
que pertencem a grupos diferentes. A abstração do comportamento, a qual consiste nos
símbolos e nos compromissos coletivos. As instituições que funcionam como uma espécie
de controle dos comportamentos, indicando valores, normas e crenças. As técnicas ou
artes e habilidades desenvolvidas coletivamente. Os artefatos que são os instrumentos e
utensílios usados para aperfeiçoar as técnicas e os modos de vida (Ibid.: 27-31).
Podemos então afirmar que a essência da cultura está basicamente em três elementos: as idéias, as abstrações e os comportamentos. As idéias são concepções mentais
das coisas concretas ou abstratas. As abstrações são a capacidade de contemplar as idéias e traduzi-las em sinais e símbolos. Os comportamentos são os modos de agir dos
grupos humanos, a partir das idéias e das abstrações (Ibid.: 25-26). Portanto, é possível
concluir que a cultura “consiste em uma série de coisas reais que podem ser observáveis,
ser examinadas num contexto extra-somático” (Ibid.: 26).
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Enquanto coisas reais e observáveis, a cultura pode ser classificada em três tipos:
1) material, quando ela é formada por coisas ou objetos materiais, desde os machados de
pedra das antigas civilizações até os moderníssimos computadores; 2) imaterial, também
chamada de não material ou espiritual, quando não tem substância material, mas, assim
mesmo, é algo real, como no caso das crenças, dos hábitos e dos valores; 3) cultura ideal,
aquela que é apresentada verbalmente como sendo a perfeita para um determinado grupo, mas que nem sempre é praticada. Pode-se tomar como exemplo disso a cultura religiosa, a qual nem sempre é assumida integralmente pelos que se dizem adeptos dela (Ibid.:
26-27).
Normalmente numa cultura os conhecimentos são mais de ordem prática, ligados à
questão da sobrevivência. Todavia o conhecimento engloba também a organização social,
as estruturas sociais, os costumes, as crenças, bem como as técnicas de trabalho e os
conhecimentos acadêmicos. Por crença entende-se “a aceitação como verdadeira de uma
proposição comprovada ou não cientificamente. Consiste em uma atitude mental do indivíduo, que serve de base à ação voluntária. Embora intelectual, possui conotação emocional” (Ibid.: 27). Os antropólogos costumam classificar as crenças em três categorias: a)
pessoais, isto é, aquelas que são aceitas por cada indivíduo, independentemente das
crenças do seu grupo; é o caso da crença no caapora; b) declaradas, ou seja, aquelas que
são aceitas, pelo menos em público, com a finalidade apenas de evitar constrangimentos;
no Brasil poderia ser exemplo disso a crença na igualdade entre as pessoas, especialmente entre homem e mulher; c) públicas são aquelas crenças aceitas e declaradas como
crenças comuns. Exemplo disso é a crença na ressurreição por parte dos cristãos e na
reencarnação por parte dos espíritas. Existem antropólogos que falam de crenças científicas (que podem ser comprovadas), supersticiosas (fruto do medo) e extravagantes (quando fogem do comum e do que é considerando normal, como é o caso da crença de que
pode acontecer alguma coisa numa sexta-feira, dia 13 do mês). Há ainda os que classificam as crenças em benéficas e maléficas (Ibid.: 28).
Dentro da cultura os valores são muito importantes. Eles são definidos pelos antropólogos como sendo “objetos e situações consideradas boas, desejáveis, apropriadas,
importantes, ou seja, para indicar riqueza, prestígio, poder, crenças, instituições, objetos
materiais, etc. Além de expressar sentimentos, o valor incentiva e orienta o comportamento humano” (Ibidem). Já as normas são definidas como “regras que indicam os modos de
agir dos indivíduos em determinadas situações”. De um modo geral consistem “num conjunto de idéias, de convenções referentes àquilo que é próprio do pensar, sentir e agir em
dadas situações” (Ibid.: 29). As normas podem ser ideais (aquelas que os membros do
grupo devem praticar) e comportamentais que são aquelas reais, pelas quais, em determinadas situações, os indivíduos fogem das ideais. Exemplos disso são as normas de trânsito. Um outro elemento importante para a cultura é o símbolo. “Símbolos são realidades
físicas ou sensoriais às quais os indivíduos que os utilizam lhes atribuem valores ou significados específicos” (Ibid.: 30). Normalmente os símbolos costumam representar coisas
concretas ou também abstratas.
b) Estrutura da cultura e níveis de participação
Toda cultura possui uma estrutura. Normalmente ela se estrutura a partir de seis
aspectos (Ibid.: 33-39). O primeiro deles é o traço cultural, considerado o menor elemento
da cultura (a feijoada, o sotaque, etc.), mas que já permite a sua descrição. Os traços po14
dem ser materiais ou não. Um segundo aspecto é formado pelos complexos culturais que
são o conjunto de diversos traços ou características de uma cultura, formando o seu todo
funcional (as diversas características de uma região brasileira). Em terceiro lugar podemos
mencionar os padrões culturais que são as coincidências individuais de conduta manifestas por um grupo social. Em quarto lugar aparecem as configurações culturais, ou seja, a
integração dos outros três elementos, a ponto de dar unidade à cultura, de modo que essa
possa ser identificada a partir disso. Pense-se, por exemplo, na configuração cultural do
povo mineiro. Em quinto lugar estão as áreas culturais, que são os territórios geográficos
onde estão localizadas as culturas. As áreas culturais podem ser diferentes das áreas geográficas. Pense-se na área cultural do Nordeste que pode inclusive estar localizada também em São Paulo e no Rio de Janeiro. Por fim temos a subcultura que pode ser definida
como algo que gera uma variação da cultura (um grupo cultural menor dentro da sociedade maior). É o caso, por exemplo, da cultura japonesa dentro da cultura paulistana. Por
essa razão o termo “subcultura” não pode e nem deve ter conotação pejorativa ou negativa.
Isso já nos revela que o nível de participação dos indivíduos numa determinada cultura é bastante variável. Marconi e Presotto, citando o antropólogo Ralph Linton (Ibid.: 3739) falam de quatro níveis: 1) universal, quando os padrões culturais são seguidos pela
maioria absoluta da sociedade (respeito pelos idosos); 2) especial, quando certas normas
são praticadas apenas por algum grupo ou alguns grupos de pessoas da sociedade (cultura católica); 3) alternativo, quando certos padrões são seguidos apenas por um número
limitado de pessoas numa determinada sociedade (cultura dos grafiteiros); 4) da peculiaridade individual, que consiste nas características pessoais dos indivíduos que compõem o
grupo cultural.
c) Qualidades da cultura e processos culturais
Disso resultam as qualidades da cultura e os processos culturais (Ibid.: 39-47). As
qualidades da cultura podem ser entendidas como aqueles modos de vida, ou seja, as
formas pelas quais as culturas se manifestam. Uma primeira qualidade é a social, isto é, a
cultua aprendida, acumulada e transmitida pelo grupo social. A segunda é a seletiva, ou
seja, aquela que se refere ao que cada cultura escolhe ou postula como básico para a sua
sobrevivência (exemplo: o forró e a festa do São João no Nordeste). Uma terceira qualidade é chamada de explícita ou manifesta e se dá quando uma cultura é exteriorizada através de ações ou movimentos (o caso do carnaval brasileiro). Por fim a qualidade implícita
ou não manifesta, que é aquela que se encontra na mente, no íntimo, das pessoas do
grupo cultural (crenças, valores, etc.).
Disso tudo resultam os processos culturais, os quais são maneiras, conscientes ou
inconscientes, através das quais os grupos sociais se organizam e se comportam. Por
meio dos processos culturais as culturas realizam mudanças significativas seja assimilando novos traços, seja abandonando outros. Um primeiro tipo de processo cultural é a mudança cultural, a qual consiste na realização de alterações na cultura, a partir de descobertas, invenções, empréstimos, abandonos, substituições, perda, etc. Um segundo elemento do processo é a difusão cultural, ou seja, a propagação de elementos culturais por
imitação, estímulo ou imposição. O terceiro tipo de processo cultural é a aculturação, isto
é, a fusão de duas ou mais culturas diferentes, desde o contato entre elas até o surgimento de uma nova cultura. Foi o que aconteceu no Brasil com as diferentes culturas. O quarto
15
processo cultural é a endoculturação que é a forma de estruturação que condiciona o
comportamento da conduta e dá estabilidade à cultura. Por meio da endoculturação se dá
a transmissão da cultura.
d) A relação entre indivíduo e cultura
Marconi e Presotto lembram muito bem que a pessoa “adquire as crenças, o comportamento, os modos de vida da sociedade a que pertence”. Porém nenhum indivíduo
“aprende toda a cultura, mas está condicionado a certos aspectos particulares da transmissão de seu grupo” (Ibid.: 47). Embora haja por parte do grupo cultural um certo controle
sobre os comportamentos das pessoas, nenhum ser humano se deixa condicionar totalmente pelas imposições de sua cultura. Isso nos permite falar da relação entre cultura e
personalidade (Ibid.: 183-195).
A Antropologia se interessa por este tema, uma vez que essa relação, na maioria
das vezes dialética, tensa, é que produz o dinamismo dos processos culturais dos quais
falamos anteriormente. De fato, as culturas são formadas de seres humanos que adotam
uma forma de viver e se tornam portadores dessas culturas.
Sabemos que o ser humano só se humaniza se interagir com os demais seres humanos. É a sociedade que, normalmente, estimula a pessoa a desenvolver suas potencialidades. Além disso, a elaboração da cultura supõe uma interação entre o indivíduo, a sociedade e o ambiente onde ele vive. Normalmente o ser humano tem o seu comportamento modelado pela sua cultura, a qual é geradora de personalidades. O processo de enculturação, de educação e de socialização é o responsável pela produção das personalidades. Por meio dele o sujeito interioriza a sua cultura e molda a sua personalidade.
Acontece, porém, que a enculturação não é a aceitação compulsória e passiva do
comportamento ditado pela sociedade. Os indivíduos se ajustam à cultura de modos variados e diferentes, segundo seus interesses. Mesmo porque a configuração aos padrões
culturais depende da personalidade de cada indivíduo, dada a diferença de temperamentos e aos aspectos psicológicos de cada um. É certo que tanto a sociedade como os seus
indivíduos não podem viver sem cultura, uma vez que essa é a sua identidade, a maneira
própria de ser das pessoas e dos grupos sociais. Todavia a assimilação da cultura depende de vários fatores, desde aqueles genéticos até aqueles ambientais.
Hoje temos condições de saber que a formação da personalidade humana depende
de vários fatores. Antes de tudo o fator da homeostase, isto é, do equilíbrio entre corpo e
mente, o qual, por sua vez, depende de tantos outros fatores. Depois o fator sócio-cultural,
o qual consiste naquela ação da cultura que tenta padronizar as personalidades, regulando os seus comportamentos, tentando criar uma personalidade coletiva. Por fim o fator
ambiental, o qual consiste na influência de elementos externos, como, por exemplo, o clima, a alimentação, a localização geográfica, etc.
Podemos então concluir que há uma influência decisiva da cultura, do ambiente e
do elemento biológico na formação da personalidade humana. Mas não se pode falar de
um biologismo, de um culturalismo exclusivo e de um determinismo ambiental. Não podemos ter posições deterministas e querer construir estereótipos a partir disso. O ser humano é sempre capaz de surpreender e inventar.
3.2. A construção do “outro”
16
Para concluir essa unidade queremos, mesmo que brevemente, tratar de alguns
temas que estão relacionados com a “construção do outro”, ou seja, com os relacionamentos entre as culturas. Trata-se basicamente da aculturação, do etnocentrismo e da diversidade ou relativismo cultural.
Podemos perceber, ao longo das reflexões que fizemos, que a Antropologia, enquanto ciência que estuda o ser humano, tem ao mesmo tempo uma dimensão teórica e
uma dimensão prática. Além disso, para que os estudos e as pesquisas no campo antropológico cheguem a resultados corretos e sérios é indispensável que o pesquisador abstenha-se ao máximo possível de atitudes e de idéias preconcebidas que podem atrapalhar
a investigação. Por essa razão é indispensável que o antropólogo esteja atento a três conceitos ou realidades sumamente importantes: aculturação, relativismo cultural e etnocentrismo.
a) Aculturação
A aculturação é o processo de inter-relações ou contatos entre grupos e culturas diferentes (Ibid.: 45-46). Nesse processo o risco de predominância da cultura dominante é
muito grande, fazendo com que as culturas menores e mais simples não sejam respeitadas em suas especificidades e identidades. A história nos mostra como culturas pequenas
foram esmagadas e dizimadas por culturas mais potentes. No Brasil temos um exemplo
muito claro disso. Segundo alguns antropólogos (Ibid.: 213-243), em 1900 havia 230 grupos tribais no Brasil. Em 1957 eles estavam reduzidos a 143 e em 1977 só restavam 116
grupos. Isso mostra que o processo aculturativo no Brasil resultou na subordinação e na
dizimação de muitas tribos e de milhões de indígenas. E tudo isso foi feito sob o pretexto
de que eles pertenciam a uma cultura inferior que não precisava ser respeitada.
De fato, a aculturação pode se dar através de quatro formas: por assimilação, por
sincretismo, pela transculturação e por dominação. O processo de assimilação costuma
ser mais tranqüilo e pacífico. Culturas que vivem num território comum, mesmo que vindas
de lugares diferentes, realizam o que os antropólogos chamam de “solidariedade cultural”.
Pela interação entre elas poderá haver até mesmo a fusão das culturas, resultando numa
nova cultura. Muitos grupos culturais podem ser suprimidos através desse processo, mas
também pode acontecer que as culturas persistam através de um equilíbrio dinâmico de
assimilação de diversos elementos culturais. Neste caso a assimilação não consegue extinguir as culturas que se relacionam.
Pelo sincretismo as culturas realizam a fusão de elementos religiosos, realçando
numa cultura específica aspectos de outras. Foi o que aconteceu no Brasil, como veremos
na terceira unidade. Muitas vezes, como foi o caso do nosso país, o sincretismo é forçado
pela imposição da cultura religiosa mais forte que proíbe a manifestação religiosa das demais culturas. Já na transculturação o que acontece é a troca de elementos culturais entre
sociedades completamente diferentes e até mesmo distantes. Exemplo disso é a troca de
traços culturais realizada entre brasileiros e japoneses. No processo de dominação a cultura mais forte impõe o seu estilo e obriga as demais a abandonar seus usos, costumes e
tradições. Às vezes o processo de dominação chega mesmo a eliminar por completo as
culturas diferentes. A dominação pode acontecer de forma violenta e sangrenta, como foi
o caso da colonização européia na América, África e Ásia. Mas existe também um tipo de
dominação cultural que se dá através da propaganda ideológica, levando as pessoas,
mesmo que de forma inconsciente, a abandonar os seus hábitos culturais e a adotar ou17
tros costumes. Este tipo de dominação cultural está muito presente na atualidade, induzindo as pessoas a considerarem a própria cultura como inferior e forçando-as a assimilarem
formas de viver completamente estranhas à sua.
b) Relativismo cultural
Por esse motivo o relativismo cultural é muito importante. Ele consiste na capacidade de compreender cada cultura dentro do seu contexto e da sua realidade, segundo os
seus padrões, os seus moldes e processos (ibid.: 31-32). Isso faz com que uma pessoa de
determinada cultura não veja a outra – ou as outras – como algo exótico, estranho e insignificante. O relativismo cultural não considera uma cultura superior às demais. Isso permite ao antropólogo chegar ao local de pesquisa desprovido de preconceitos e com mais
possibilidades de realizar um trabalho científico sério. Além do mais, hoje, razões humanitárias nos dizem que cada grupo humano tem o direito à autonomia e a desenvolver a sua
cultura de acordo com os próprios princípios e tradições, sem sofrer interferências e pressões externas. Cada povo ou cultura tem direito de pensar e agir de forma autônoma e
diferente dos demais. E seria uma grande injustiça e falta de respeito tentar interferir para
mudar tais padrões.
c) Etnocentrismo
Assim sendo, precisamos evitar toda forma de etnocentrismo, o qual consiste em
considerar ou afirmar que existem culturas boas e culturas ruins. “O etnocentrismo pode
ser manifestado no comportamento agressivo ou em atitudes de superioridade e até hostilidade. A discriminação, o proselitismo, a violência, a agressividade verbal são outras formas de expressar o etnocentrismo” (Ibid.: 32). Não existem culturas superiores ou inferiores. Cada uma delas deve ser vista dentro daquilo que os antropólogos chamam de interioridade cultural. Por esse motivo jamais se pode afirmar que existem culturas selvagens,
bárbaras ou atrasadas. Mesmo as mais antigas e as extintas não podem ser rotuladas
nestes termos. Toda atitude etnocêntrica precisa ser condenada e rejeitada porque fere o
princípio da igual dignidade de todos os seres humanos e de todos os povos.
A compreensão e a solidariedade são características dos seres humanos, mas nem
sempre isso acontece de forma natural. Por essa razão as diferenças e diversidades costumam serem tomadas como pretexto para a geração de conflitos. Neste conflito o diferente é tratado como adversário, como bárbaro, como selvagem. Assim sendo, costuma-se
aplicar ao diferente o que é proibido fazer com os que são do mesmo grupo cultural, desde
o linchamento até a tortura, a morte, a escravização e o genocídio. Muitas vezes o etnocentrismo costuma ser disfarçado por atitudes que são até louvadas, como é o caso, por
exemplo, do patriotismo (LABURTHE-TOLRA & WARNIER: 30-31).
O etnocentrismo não se confunde com o racismo. São coisas diferentes. O racismo
é a afirmação de que existem raças distintas e que determinadas raças são inferiores, sejam do ponto de vista moral, como intelectual e técnico. No racismo a inferioridade não é
considerada a partir da perspectiva social ou cultural, mas do ponto de vista biológico. A
inferioridade seria inata. Nasce-se inferior por se pertencer a tal raça. O etnocentrismo, por
sua vez, é a afirmação de que a própria cultura ou civilização é superior às demais (Ibid.:
31-32).
18
De acordo com os antropólogos o etnocentrismo, enquanto configuração cultural e
social se manifestou em três momentos específicos. O primeiro foi durante o período da
Renascença. As viagens dos europeus aos outros continentes levaram-os a encontrar outros povos e culturas. Disso resultava a pergunta acerca da identidade dessas pessoas.
Perguntava-se se eram homens ou animais, se possuíam alma e se eram descendentes
do Adão bíblico, segundo a visão religiosa da época. O segundo momento foi o do iluminismo. Os filósofos da época acreditavam que a razão superava tudo. Por esse motivo os
povos e culturas que não tinham alcançado um grau racional idêntico aos europeus eram
considerados bárbaros e selvagens. O terceiro momento acontece no século XIX e início
do século XX. Os estudiosos faziam confusão entre raça (aspecto biológico) e etnia (aspecto social) e estabelecem comparações entre as várias sociedades. Nessa comparação
eles se voltam para o diferente com um olhar distanciado e de estranheza. Chega-se a
criar o mito do “bom selvagem”, mas a ideologia dominante não permite reconhecer o valor da sua cultura. Por isso se continua a falar de “povos primitivos” e “povos civilizados”.
Exalta-se a liberdade do bom selvagem, a beleza do seu estado natural, mas para depois
afirmar a superioridade da civilização européia, a qual evoluiu e superou o estado de barbárie e de selvajaria ainda presentes nas culturas consideradas primitivas (Ibid.: 32-42).
Infelizmente o etnocentrismo ainda não foi superado. Ainda hoje quando opinamos
sobre determinadas questões (identidade cultural, família, relações sociais, sexo, crenças
religiosas, estado, democracia, etc.) ele continua presente com toda a sua carga ideológica. Por isso o trabalho de “descolonizar” certas práticas e opiniões ainda precisa continuar. Às vezes nos espantamos com o que sabemos do passado, mas, olhando nossas práticas atuais, vamos perceber com toda a clareza uma carga enorme de etnocentrismo.
Hoje se tenta disfarçar a crise do sistema neoliberal, predominante em todo o mundo, com
o etnocentrismo. É o que acontece, por exemplo, com a civilização árabe apresentada pelos Estados Unidos e seus aliados como sendo expressão do atraso e da violência. Enquanto isso os massacres e as destruições provocadas por esses países em várias partes
do mundo são tidas como ações de países civilizados e democratas. As mortes de tantas
pessoas e a miséria deixada após as investidas sangrentas por eles praticadas são vistas
apenas como “efeitos colaterais”, um “mal necessário” para manter a democracia no mundo!
Conclusão
Podemos concluir afirmando que, dada as suas características, a Antropologia é
uma ciência de extrema atualidade. Ela pode contribuir para o desenvolvimento dos seres
humanos e dos povos. O resultado de seus estudos e pesquisa ajuda na superação de
desequilíbrios e de tensões culturais. Os antropólogos costumam apontar as causas das
tensões sociais e indicar soluções para que se restabeleça o equilíbrio entre os diversos
grupos culturais.
O grande desafio está no fato de que as culturas dominantes nem sempre concordam com as conclusões dos estudos e das pesquisas dos antropólogos. Por isso muitas
tensões sociais permanecem e até tendem a se agravar. Não se quer escutar uma verdade que incomoda. “A ação do antropólogo é de relevância, mas a perspectiva histórica tem
demonstrado que sua tarefa lhe tem sido decepcionante, em face das pressões da cultura
dominante, que nem sempre concorda com as posições teóricas e os métodos humanísti19
cos por ele adotados, ao desempenhar o papel de conciliador entre o mundo dominante e
o mundo dominado” (MARCONI & PRESOTTO: 19).
Mesmo assim vale a pena insistir sobre a importância da Antropologia no mundo de
hoje. Com a sua função de produzir interpretações das diferenças e de captar, com reverência e profunda compreensão, o essencial de cada cultura diferente, ela contribui para
alargar nossas visões e romper esquemas ideológicos que tendem a desvalorizar aqueles
que não são e não pensam como nós (DAMATTA, 1987: 143-150). A Antropologia, mesmo no atual contexto, tem essa função de ser ponte e mediação entre dois mundos. Cabelhe a tarefa de ajudar-nos a ver o diferente não como algo exótico, distante e marginal,
mas como uma realidade familiar. Embora não deixe também de ter a função de manter o
caráter “exótico” de cada cultura, ou seja, de insistir sobre o direito que cada cultura tem
de permanecer diferente, com suas características próprias, sem que lhe seja imposta
uma aculturação forçada.
Neste sentido a Antropologia da Religião ocupa um papel decisivo. Partindo de um
fenômeno comum a todos os povos e todas as culturas (a experiência religiosa, a religiosidade e a religião), a Antropologia da Religião pode oferecer caminhos e alternativas para
que a humanidade possa progredir na direção da convivência pacífica e de um desenvolvimento sustentável, capaz de incluir todos os seres humanos da Terra. Ao antropólogo da
religião cabe a função de mostrar para as religiões o potencial de que elas dispõem para,
se quiserem, ajudar na construção de um modelo de civilização que não seja excludente e
injusto. Mas é também tarefa do antropólogo da religião posicionar-se criticamente diante
de determinadas manifestações religiosas que se mantêm alheias às injustiças e aos sofrimentos das pessoas e das nações. O antropólogo da religião precisa questionar seriamente todas as formas religiosas que levam a infantilização das pessoas, tirando-lhes a
capacidade de pensar e de enxergar a realidade com os olhos da verdade e da honestidade.
A partir dessa afirmação podemos dizer também que todas as pessoas que têm acesso ao saber e às diversas formas de conhecimento precisam adotar essa mesma postura. De fato, como nos lembra Rampazzo, conhecer ou saber é a capacidade que tem o
ser humano “de refletir sobre si mesmo, de ter idéias, de julgar, de raciocinar”
(RAMPAZZO: 35). Assim sendo, o conhecimento e o saber proporcionam às pessoas
consciência e memória. Pela consciência as pessoas percebem as coisas e as realidades
assim como elas são. Pela memória o ser humano tem a possibilidade de trazer para essa
consciência informações que pertencem ao passado, mas que são muito importantes para
entender o presente. Pela consciência e pela memória as pessoas deixarão de viver de
ilusões e de fantasias. Não serão apenas “reprodutoras e consumidoras” de hábitos e de
costumes, na maioria das vezes, impostos por quem tem mais força, mas saberão criar,
inventar outros modos diferentes e melhores que possibilitem à humanidade uma vida
mais digna e mais saudável. Ao agir assim o ser humano faz ciência, ou seja, define seus
conhecimentos, organiza-os, confronta-os com outros conhecimentos e, a partir disso, elabora novos saberes que ajudarão as pessoas e as culturas a se compreenderem melhor
e a compreender a complexidade do mundo.
Desse modo é possível concluir que toda pessoa que chega ao ensino superior,
particularmente à universidade, pode tornar-se também um cientista da religião, sabendo
olhar criticamente as experiências religiosas e as formas de religiosidade na perspectiva
que acabamos de propor. E ao se interessar de modo científico pela religião ela poderá
contribuir para que as experiências religiosas não sejam instrumentalizadas por pessoas e
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grupos que, defendendo seus interesses, querem impor aos demais um estilo de vida sem
justiça e sem dignidade.
Analisando a religião com um olhar científico o estudioso não pretende excluí-la ou
eliminá-la, mas apenas alertá-la de que só é verdadeira aquela experiência religiosa que é
capaz de “dar crédito ao homem” (BÁZAN: 257). E dar crédito à pessoa humana significa
defender de maneira intransigente e determinada a dignidade deste ser humano e todos
os seus inalienáveis direitos diante de qualquer autoridade, regime, lei ou sistema opressivo que pretenda negá-los. Uma religião que se negasse a realizar essa tarefa, que se negasse a promover e defender esses direitos básicos de todo e qualquer ser humano, estaria traindo a sua própria essência (Ibid.: 242-254).
E o cientista brasileiro é, talvez mais do que qualquer outro, portador de um grande
potencial que lhe dá condições de realizar essa tarefa. De fato, como nos lembra DaMatta,
somos um aglomerado de culturas com uma riqueza de “caminhos para Deus”
(DAMATTA, 1984: 107-118). E nessa variedade de caminhos a religião dos brasileiros existe “para dar a todos e a cada um de nós um sentimento de comunhão com o universo
como um todo” (Ibid.: 111). Ora, com este sentimento presente em sua alma, o cientista
brasileiro pode contribuir para que no mundo inteiro a religião seja “um modo de permitir
uma relação globalizada não só com os deuses, mas também com todos os homens e
com os seres vivos que formam o nosso mundo” (Ibidem). Teríamos assim a contribuição
dos cientistas brasileiros para que as mais diferentes formas de religiosidade e de religião
se tornem, de fato, capazes de dar crédito ao ser humano e à humanidade.
Referências bibliográficas
BÁZAN, Francisco García. Aspectos incomuns do sagrado. São Paulo: Paulus,
2002.
BOFF, Leonardo. Ética da Vida. Brasília: Letraviva, 2000, 2ª edição.
COLLIN, Denis. Compreender Marx. Petrópolis: Vozes, 2008.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
_____. Relativizando. Uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,
1987.
LABURTHE, Philippe; WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia-Antropologia. Petrópolis:
Vozes, 2003, 3ª edição.
MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia. Uma
introdução, São Paulo: Atlas. 2006, 6ª edição.
NEVILLE, Robert Cummings (org.). A condição humana. Um tema para religiões
comparadas, São Paulo: Paulus.
RAMPAZZO, Lino. Antropologia, religiões e valores cristãos, São Paulo: Loyola.
TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado. Culturas e religiões.
São Paulo: Paulus.
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Introdução ao Pensamento Antropológico