ENTREVISTA | Peter Singer Ética para o cotidiano “Se temos mais do que o suficiente para nós mesmos, temos a obrigação não apenas de não prejudicar os outros, mas de ajudá-los”, diz, em entrevista exclusiva, o filósofo australiano Peter Singer, convidado do Fronteiras do Pensamento Foto Denise Applewhite 6 Autor de Libertação Animal, Peter Singer já esteve duas vezes no Brasil e volta ao país em agosto, para uma palestra do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento 7 ENTREVISTA | Peter Singer C onvidado do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, aber to mês passado em São Paulo com uma palestra do escritor Mario Vargas Llosa, o filósofo australiano Peter Singer, que é professor na Universidade de Princeton, Nova Jersey, nos Estados Unidos, trata de questões éticas sob perspectiva prática e utilitarista. “A ética é um exercício diário, precisa ser praticada no cotidiano. Só assim ela pode se afirmar em sua plenitude numa sociedade. Se uma pessoa não respeita o próximo, não cumpre as leis da convivência, não paga seus impostos ou não obedece às leis de trânsito, ela não é ética. Num primeiro momento, pequenas infrações isoladas parecem não ter importância. Mas, ao longo do tempo, a moral da comunidade é afetada em todas as suas esferas. Chamo a isso de círculo ético. Uma ação interfere na outra, e os valores morais perdem força, vão se diluindo. Para uma sociedade ser justa, o círculo ético é essencial”, disse à revista Veja, em 2007, numa fala com a qual percorre o mundo e que ele reitera na entrevista exclusiva concedida à Vila Cultural. E leito o Humanista do Ano pelo Conselho de Sociedades Humanistas Australiano em 2004, Singer também é identificado como um dos mais respeitados filósofos contemporâneos. Tem mais de 30 livros publicados e o mais influente e conhecido deles, Libertação Animal, foi lançado ainda na década de 1970. Virou uma referência na discussão e no movimento homônimo de defesa dos animais, que argumenta contra o que chama de “especismo”: a discriminação de certos seres baseada apenas no fato de estes pertencerem a uma dada espécie. P ara o pesquisador, todos os seres que são capazes de sofrer devem ter seus interesses considerados de forma igualitária. Por essa ideia, muitas vezes vê seu 8 nome equivocadamente identificado com radicalismos veganos. “Sempre fui mal interpretado nesse aspecto. Em nenhum momento disse que não devemos comer carne porque é errado matar animais. O alvo de minhas críticas é a maneira antiética como os animais são criados e abatidos para consumo”, declarou. Suas defesas estão em plena sintonia com conceitos e práticas de sustentabilidade. Temos de mudar a cultura para que o “se dar bem” à custa de prejudicar os outros não seja aceitável. N o livro A Ética da Alimentação, por exemplo, aborda como os tipos de alimentos que escolhemos afetam a vida das outras pessoas e o meio ambiente. Por isso, defende Singer, nossas escolhas alimentares dependeriam de mais atenção quanto à procedência daquilo que ingerimos diariamente. No livro, a discussão é ilustrada pelas histórias de três famílias, que representam o tipo de alimentação padrão dos americanos. Para Singer, também comemos demais e desnecessariamente, o que, sob o ponto de vista global, causa impactos incomensuráveis na natureza e no meio ambiente, além de sociedades em que a obesidade é questão de saúde pública. A palestra de Peter Singer em São Paulo acontece no dia 28 de agosto na sequência do Fronteiras do Pensamento, que, ao longo dos últimos sete anos, já promoveu mais de 130 conferências realizadas para milhares de espectadores. Segundo seu curador, Fernando Schüler, o Fronteiras “quer trazer para o debate temas imprescindíveis, dando aos espectadores uma visão real dos próximos dez ou vinte anos, nas diferentes áreas contempladas.” O projeto também estreia este ano o seu canal de vídeos na web, o www. fronteiras.com, com a intenção de democratizar o acesso ao conhecimento e revelar um acervo inédito de ideias expressas durante o evento. Leia a seguir a entrevista do filósofo Peter Singer. Vila Cultural. Poderia, por favor, relembrar as circunstâncias e a época em que entendeu sua vocação para a filosofia? Peter Singer. Foi quando eu era adolescente. Alguém me deu uma edição de História da Filosofia Ocidental de Bertrand Russell e achei fascinante. As ideias eram difíceis, às vezes, mas Russell é um escritor maravilhosamente claro. VC. E como surgiu o interesse específico pelo estudo da ética? PS. Sempre quis fazer algo que fosse relevante para a vida real. Alguns filósofos se perguntam: “Como posso saber que não estou sonhando?”. Mas embora esta pergunta possa ser intelectualmente estimulante, ela não irá mudar nada. Por outro lado, a forma como respondemos questões no campo da ética de fato muda as coisas. VC. Como o senhor define a experiência de escrever? PS. Gosto de escrever, é uma experiência criativa. VC. Entre todos os livros que já escreveu, há algum(ns) que seja(m) o(s) favorito(s) ou com o qual tenha um vínculo mais afetivo? Por quê? PS. Libertação Animal continua sendo o meu favorito. Escrevi este livro em um impulso de entusiasmo, porque sabia que havia algo terrivelmente errado no que fazíamos com os animais, e queria que isso mudasse. E, até certo ponto, o livro de fato mudou a forma como tratamos os animais, pelo menos em países desenvolvidos, embora não o suficiente. VC. A que atribui o seu sucesso e o interesse por sua obra e suas ideias em lugares e realidades tão diferentes? PS. À qualidade das ideias e à minha habilidade de expressá-las de forma clara e defendê-las com argumentos sólidos. VC. O que há de mais antiético na sociedade contemporânea e o que seria necessário fazer para reverter essa situação? PS. Oh, há tantas situações, mas se você quiser resumi-las a uma coisa só é o fato de não nos importarmos o suficiente com aqueles que estão distantes de nós – seja uma distância geográfica, pois estão em países longínquos, ou distantes culturalmente, ou economicamente, ou distantes porque virão a existir apenas daqui a um ou dois séculos, ou porque são de uma espécie distinta. VC. Qual é a maneira mais eficiente para avaliarmos se estamos ou não sendo éticos nas decisões que tomamos no dia a dia? PS. C o l o c a r- s e n o l u g a r d o s outros – de todos aqueles outros que mencionei em minha resposta anterior. VC. Como é possível manter a retidão numa época em que o “se dar bem a qualquer preço” parece, em algumas sociedades, algo respeitável como conduta? PS. Temos de mudar a cultura, para que o “se dar bem” à custa de prejudicar os outros não seja aceitável. Com efeito, eu iria mais longe: se temos mais do que o suficiente para nós mesmos, temos a obrigação não apenas de não prejudicar os outros, mas de ajudá-los. VC. Como viver o desejo com ética e responsabilidade numa sociedade supererotizada, movida justamente por desejos individuais? PS. Não sei por quê você citou especificamente o caráter erotizado da nossa cultura. O sexo sempre esteve entre nós, e não o vejo como um problema em especial. O egoísmo e a indiferença ao sofrimento alheio são o problema. Precisamos desenvolver uma cultura ética mais forte para combater isso. Existem jovens idealistas maravilhosos no mundo, determinados a mudá-lo para melhor, o máximo que for possível. VC. O que é possível aprender, do ponto de vista da filosofia, com as respostas/soluções que a bioética propõe para questões científicas? PS. Aprendemos que o pensamento ajuda a encontrar respostas, às vezes bem diferentes daquelas a que chegamos instintivamente. VC. É possível fazer uma relação entre ética e sofrimento? Se formos, por exemplo, mais éticos na nossa conduta de vida, sofreremos menos? PS. Sim, Sócrates já dizia que o homem justo é feliz, e pesquisas científicas atuais confirmam que aqueles que são generosos com os outros, e fazem doações para caridade, estão mais satisfeitos com suas vidas do que aqueles que não o fazem. E isso não parece ser uma mera correlação, mas uma conexão causal: viver eticamente pode de fato conferir mais sentido e significado à vida. VC. Como define a condição de estrangeiro num mundo globalizado? PS. Somos todos cidadãos do mesmo mundo, então, nesse sentido, ninguém é estrangeiro. VC. O que o senhor mais aprende com os seus alunos? PS. Otimismo! Existem jovens idealistas maravilhosos no mundo, determinados a mudá-lo para melhor, o máximo que for possível. VC. O que significa, para o senhor, estar entre os intelectuais mais influentes do país onde nasceu? PS. Fico feliz que as pessoas conheçam minhas ideias, e especialmente que estas ideias levem-nas a mudar suas vidas – por exemplo, ajudando as pessoas mais pobres do mundo e parando de comer animais. VC. Qual é, na opinião do senhor, o papel da religião no mundo hoje? PS. A religião tem bons e maus efeitos, mas alguns desses e f e i t o s s ã o v e rd a d e i r a m e n t e desastrosos, como desestimular o uso de anticoncepcionais ou até mesmo de preservativos, para impedir a disseminação da aids e dificultar que as mulheres possam interromper a gravidez quando não querem estar grávidas. VC. O senhor já esteve no Brasil? Qual a expectativa em relação à visita que tem programada para este ano ao país? PS. Sim, já estive no Brasil duas vezes, mas sei que o país está se desenvolvendo rapidamente e tornando-se um jogador mais importante no cenário internacional, então estou ansioso para voltar. VC. Em que projetos o senhor trabalha atualmente? PS. Atualmente, estou preparando uma palestra para uma conferência na Califórnia sobre Altruísmo Eficaz. Essas palestras ficam disponíveis online e espero que esta seja vista por milhões de pessoas. Depois, desenvolverei as ideias da palestra em um livro. 9