CRIAÇÃO INTERMIDIÁTICA: ESPAÇO E quadrinhos que é escrita e desenhada TRIDIMENSIONAL comercial comum. O desenho, portanto, é INTERATIVIDADE NUMA HQ Luiz Geraldo Ferrari Martins sobre a superfície de um manequim realizado não sobre uma superfície plana, Θ mas sobre uma superfície tridimensional cujos volumes são dados à priori e tem seu próprio significado enquanto reproduções das partes do corpo humano Introdução feminino. Várias questões podem então ser colocadas. Entre elas, a utilização dos volumes e espaços originais sobre os quais se inscrevem novas significações sem, no entanto, esconder a significação original, o processo de leitura que deixa de ser exclusivamente linear e passa a se dar em todas as direções no espaço, a metalingüística, que se refere à múltipla significação atingida pela sobreposição de significados dos dois sistemas semióticos distintos, a de uma qualidade de escultura adquirida no objeto, através do desenho no espaço que ‘esculpe’ novas formas em todo o volume do modelo, sua relação com o ambiente circundante, a questão do corpo e da condição feminina/ masculina com a massificação do gosto, a Figura 1 possibilidade que o resultado A experiência se insere na poética do meu tridimensional oferece para novas trabalho pessoal desde 1972, mais transcriações que podem se dar de especificamente, na busca da não inúmeras maneiras. linearidade em narrativas gráficas e, portanto, da questão da interatividade. Trata-se de experimento que, em sua Descrição da obra: suas questões e fase analógica, produz uma história em proposições Θ Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola Borba Gata é o nome de um personagem de Comunicações e Artes da USP, Master of Arts pelo e título de uma história em quadrinhos Royal College of Art, Arquiteto pela Faculdade de tridimensional. Essa experiência se insere Arquitetura e Urbanismo da USP, líder do grupo de em busca pertinente à poética de meu pesquisa Design de Comunicação: formas visuais de trabalho pessoal1 desde 1972, ano de narração, interação e representação, professor da publicação de meu primeiro trabalho que FAUDI da U. P. Mackenzie. propunha uma forma de narrativa gráfica 1 não linear. Aquela solução, intrinsecamente ligada a da interatividade, propiciou, vinte e cinco anos depois, estrutura para nova experiência, neste caso em mídia digital, para site na Internet. O caso de Borba Gata, em sua primeira fase, é realizada em meio analógico. Este trabalho procura, em primeiro lugar, descrever as possibilidades e partidos que se abrem com este novo experimento, no qual uma história em quadrinhos é escrita e desenhada sobre a superfície de uma manequim comercial comum. Ou seja, HQ desenhada não sobre uma superfície plana, mas sobre uma superfície tridimensional cujos volumes são dados à priori e que tem seu próprio significado enquanto reproduções do corpo humano feminino. Devo dizer que o fato mais ou menos casual dessa particular intervenção Figura 3 (manequim) não limita a aplicação geral da maioria dessas proposições para outros possíveis suportes tridimensionais. Descrição da obra e das principais questões colocadas A história em quadrinhos versa, simplificadamente, sobre um embate desejo/ aversão - entre uma figura feminina erotirânica, com características de super heroína e um rato chauvinista numa luta mais ou menos sadomasoquista que remete para a problematização do corpo e da condição feminina/ masculina com a massificação do gosto através da imposição de modelos comerciais representados pelo próprio manequim. No caso de Borba Gata, como dito mais Figura 2 acima, o suporte para os desenhos são as superfícies e volumes de um manequim 2 convencional de loja. Vinhetas, desenhos e balões, assim como os textos, se distribuem pelo corpo do modelo desde a cabeça até, praticamente, os pés. As divisões entre os quadros e os desenhos são dispostas de maneira a aproveitar volumes e linhas marcantes, do corpo representado, com o sentido de se justapor e de criar novas formas, volumes e significados sem no entanto alterar a volumetria original. Ambas as percepções coabitam o mesmo objeto resultante e criam um diálogo entre as formas do suporte e os da intervenção. “Meus poderes permitem que eu atravesse para outras dimensões, você não escapará, ratuíno!” exclama a mulher gato enquanto a sua representação bidimensional toma Figura 5 e a representação da mão da primeira Esta estrutura conduz para a questão, gradativamente uma forma tridimensional (2D) acaba por coincidir com a mão real metalingüística que se refere à múltipla (3D) do manequim. (fig.3) significação alcançada pela sobreposição tanto de significantes particulares como dos dois conjuntos semióticos distintos envolvendo estes múltiplos comentários e conotações que vão se imprimindo uns sobre os outros enquanto se desenvolvem. Erotismos são quebrados: o seio direito se transforma no focinho de um rato estilo Mickey. Outras vezes são multiplicados: o seio esquerdo é ao mesmo tempo parte do manequim como do personagem desenhada em novo ângulo, o que aumenta a sensação de proeminência deste seio, na segunda versão (fig. 4) . Um encaixe na parte de trás do ombro se apresenta como a divisão entre as nádegas da personagem desenhada naquela vinheta. Essa imagem antecipa e compõe com a forma de nádegas propriamente ditas, localizadas Figura 4 mais abaixo. 3 O resultado escultural também é realçado O espaço ocupado pelo corpo do suas relações com formatos e volumes transforma em espaço/ tempo, isto é, pelo tratamento dado pelo desenho em manequim é, destarte, re estruturado e se que adicionam elementos, criam altos e passa a expressar também a dimensão baixos relevos e tromp lóeils, esculpindo temporal e a figura, estática, congelada, novas dimensões ao redor da forma passa a adquirir movimento, a atuar na tridimensional2. Este é o resultado de dialética produzida pela relação que se uma manipulação da percepção visual estabelece entre uma qualidade fundos/ figuras, já que existem pelo forma através do nosso próprio através das relações fundo/ figura, ou escultural, que transforma e dinamiza a menos duas figuras e, muitas vezes, dois movimento e a da narrativa seqüencial, fundos em cada quadro. que também é posta em ação pela participação do observador. Este movimento é reforçado por efeitos estroboscópicos obtidos por contigüidades espaciais entre elementos tridimensionais e suas representações bidimensionais. Em uma desses casos a mão do manequim é ‘projetada’ sobre a sua perna numa representação de um tapa visando atingir o rato que passa por aquela parte de seu corpo. (fig. 5) Figura 6 O humor verbal está em grande parte atrelado a esses jogos e sobreposições com o uso de expressões adequadas às diversas partes do corpo onde se dão as vinhetas, se referindo, simultaneamente, às ações e intenções dos dois personagens em seu duelo particular. O texto vem aumentar a sensação de movimento e vida, adicionando uma Figura 7 dimensão ‘sonora’ a esse conjunto. Estes resultados alcançados e percebidos, apenas no contato direto com o modelo, 4 são responsáveis pela dificuldade não só vários níveis da altura e é possível lê-las da fruição como da compreensão do separadamente ao redor tanto do corpo, trabalho quando este passa a ser como de cada um dos braços, da cabeça e reproduzido bidimensionalmente por das duas pernas (fig.6). Cada uma dessas meio de fotografia. Outra questão que se leituras cria um looping que se repete encerra na mesma problemática é a indefinidamente formando uma unidade dimensão da história / personagem que narrativa em si mesma. Assim, é possível tem aproximadamente a mesma altura, fazer uma espécie de leitura em espiral de ou é talvez um pouco superior à estatura cima para baixo. É possível, ainda, fazer de um ser humano. Esta característica combinações destas leituras ou mesmo estabelece um verdadeiro ‘corpo a corpo’ fazer leituras mais ou menos aleatórias com quem a observa e impõe uma através do objeto já que este resulta presença, um tanto quanto desafiadora, numa obra gráfica que, assim como sobre o ambiente circundante. qualquer outra, pode ser contemplada como um todo. Esta é uma história em quadrinhos que se presentifica de uma forma semelhante à de uma outra pessoa – nua – no recinto Das novas possibilidades midiáticas e em que nos encontramos. conclusão Todas estas características são difíceis de serem reproduzidas através de fotos O fato de se tratar de um objeto bidimensional exigirá uma transcriação se produzir diferentes variantes, ou respeite e construa outras relações outras técnicas e meios de expressão. será mencionado mais à frente. Pode-se voltar para o formato original (fig.1 e 2). A passagem para um meio tridimensional oferece a possibilidade de apropriada, um novo produto que transcriações3, do resultado original em adequadas para esse meio, assunto que dos quadrinhos com uma decupagem das imagens captadas à partir do objeto e que podem ser tratadas de muitas formas Da leitura diferentes, incluindo as que levem para resultados da família do próprio desenho Existe a possibilidade de se fazer uma ou da HQ. leitura linear da história de uma forma mais ou menos convencional, de cima Ainda, dentro do meio e dos recursos para baixo, da esquerda para direita, bidimensionais, um número indefinido de primeiro na frente e depois na parte de outras soluções podem ser propostas trás, como se virássemos uma página, tanto no uso de meios, formatos, mas essa é apenas uma das leituras recursos gráficos, como no tratamento possíveis das imagens (fig. 7). È também possível, percorrer outras trajetórias de leitura. Existem tiras de quadrinhos dispostas horizontalmente em 5 2 Souriau, E. (1983). A correspondência entre as artes. SP: Cultrix. 3 Plaza, J. (1987). Tradução Intersemiótica, Figura 8 SP, Perspectiva. As opções que envolvam um ambiente digital permitem outro leque de opções 4 isto é, explorando a interatividade. ZAMBONI, S. (1998). A pesquisa em arte: A captação do objeto em filme, vídeo ou Editora Autores Associados respeitando, inclusive, a não linearidade, Um paralelo entre arte e ciência. SP: outra forma correlata permite que se envolva o registro espaço-temporal e o registro de trajetórias de leitura que abrem a possibilidades tanto para a animação como para o vídeo e o filme. Finalmente, pode-se pensar em qualquer tipo de combinação entre os caminhos apresentados ou mesmo na criação de outros novos. A abertura deste leque de opções4 era o principal objetivo da opção por um partido original em 3D. REFERÊNCIAS 1 GÊ, L. (1981). Macambúzios e Sorumbáticos. São Paulo: T. A. Queiroz. GÊ, L. (1984). Quadrinhos em fúria. São Paulo: Circo editorial. AZEVEDO, A. e GÊ, L. (1990). Mal dos Séculos. São Paulo: Melhoramentos. GÊ, L. (1993).Território de Bravos. SP/ Rio: Editora 34. 6 III FÓRUM DE PESQUISA FAU.MACKENZIE I 2007 7 7