Dossiê Consumo Consciente1 Sociedade de consumo Por Luiz Bouabci2 Na medida em que fui buscando insumos para elaborar esse dossiê, a imagem do filme Wall-E não saiu da minha cabeça. No longa de animação da Pixar, em 2100 o planeta está coberto de lixo e a alta toxicidade de nossa biosfera elimina as condições de sobrevivência para qualquer espécie. A alternativa criada então pela Buy & Large, única empresa do planeta e cujo dono também é o presidente da Terra, é um cruzeiro de cinco anos da humanidade a bordo da nave Axiom, enquanto os robôs Wall-E (acrônimo para Waste Allocation Load Lifters - Earth-Class, em português, Levantadores de Carga para Alocação de Lixo - Classe 'Terra') cuidam da limpeza. Setecentos anos depois, no entanto, o problema continua latente, e a raça humana passou por uma completa transformação anatômica, fisiológica e cultural. O exercício mais interessante quando se trabalha com tendências é o da análise de padrões na história e no tempo: olhar para o passado para entender o presente e tentar enxergar o que pode acontecer no futuro. Wall-E tem como pano de fundo o nosso comportamento de consumo, no presente, com as eventuais consequências que isso poderá trazer para a sobrevivência da espécie humana, no futuro. O filme também traz algumas premissas que serviram como base para a realização desse trabalho e que refletem com acuidade alguns padrões arraigados há séculos em nossa sociedade. As influências culturais e dos sistemas de valores são essenciais para explicarmos o estado do mundo. E entender o estado do mundo é indispensável para que tentemos vislumbrar possíveis caminhos para o futuro. O Ontem que Construiu o Hoje A idéia de que as necessidades humanas sejam ilimitadas e de que a economia deva crescer incessantemente é relativamente nova. Quando os europeus chegaram à África, não encontraram em nenhum dos idiomas locais uma palavra que significasse trabalho. Por que então, em nossa sociedade, o sucesso é medido por nossa capacidade de trabalhar e consumir? As relações comerciais existem desde as sociedades mais primitivas, mesmo que naquela época não houvesse mercadorias no sentido mais estrito da palavra. Naquele tempo, as relações de troca eram feitas com base no valor de uso das coisas, o que 1 Esse ensaio compõe o Dossiê Consumo Consciente, realizado pela Ideia Sustentável em parceria com a Unomarketing e Mob Consult. Confira a íntegra desse estudo, publicado na edição 19 da Revista Ideia Socioambiental. Confira a íntegra em: http://www.ideiasustentavel.com.br/pdf/IS19%20-%20Dossie%20v1.pdf 2 Consultor, mestre em sustentabilidade pela Fundação Politécnica da Catalunha e sócio da Mob Consult, empresa especializada no mapeamento de redes humanas e sistemas complexos para geração de inovação e tomadas de decisão estratégicas. os gregos convencionaram chamar de oikonomia (termo que poderia ser traduzido como administração do lar). Para essas sociedades primitivas, o valor de trocar estava diretamente relacionado à satisfação das necessidades básicas, de forma que apenas os excedentes da produção de cada família eram trocados. Na medida em que o tempo avança, entretanto, a diversidade na produção aumenta, e com ela aumenta também a complexidade nas transações, ficando cada vez mais difícil estabelecer-se um padrão de valor básico de uso. Nesse contexto surgem no ocidente os primeiros tipos de moeda e o que Aristóteles convencionou chamar de crematística: o amor pela arte de se gerar e acumular riqueza material.3 Para o filósofo grego, produzir com o intuito único de gerar lucro não faz parte da natureza humana e distancia o ser humano das relações com a sociedade e com o meio ambiente, na medida em que as relações de troca passam não mais a ter a função de suprir as necessidades básicas, e sim de acúmulo. O uso da moeda fez ferver o comércio na Europa e, não fosse pelo medo gerado pelas invasões bárbaras que fortaleceu os regimes feudais, o comércio teria se desenvolvido com muito mais velocidade. Em virtude desse fato, porém, somente a partir do século XII é que os grandes fluxos de comércio começaram a se intensificar e cidades como Veneza, Gênova, Pisa e Florença, além das grandes feiras do norte da Europa passaram a ser grandes pólos de negociação com lugares distantes. Esse é um ponto importante para o nosso entendimento. Aqui, ganha destaque o processo a que hoje chamamos globalização, marcado pela miscigenação cultural. No final do século XV a Europa passou a experimentar uma escassez de metais, um descompasso com o aumento do volume comercial experimentado naquele continente. A situação exigiu uma série de medidas por parte dos governantes e criou um ambiente altamente favorável à consolidação das idéias mercantilistas.4 Essa fase também foi marcada pela derrocada da influência da igreja católica no comércio, principalmente a condenação da prática de empréstimo de dinheiro a juros, a usura. O pensamento mercantilista pode ser sintetizado através das nove regras de Von Hornick5, das quais ficamos com aquelas que são importantes para o nosso processo de entendimento: 1. Que cada polegada do chão de um país seja utilizada para a agricultura, a mineração ou as manufaturas. 2. Que seja fomentada uma população grande e trabalhadora. 3. Que sejam proibidas todas as exportações de ouro e prata e que todo o dinheiro nacional seja mantido em circulação. 3 Aristóteles. Ética a Nicómaco. Quetzal, 2004. Tradução portuguesa de António de Castro Caeiro 4 HUNT, E. K. História do pensamento econômico; tradução de José Ricardo Brandão Azevedo. 7a. edição - Rio de Janeiro : Campus, 1989 5 Robert B. Ekelund e Robert F. Hébert, A History of Economic Theory and Method 4. Que sejam procuradas constantemente as oportunidades para vender o excedente de manufaturas de um país aos estrangeiros, na medida necessária, em troca de ouro e prata. O mercantilismo também ficou caracterizado pelas grandes conquistas e pela fundação das colônias, conferindo ainda mais força ao processo de globalização, intensificado com as rotas de comércio. O mercantilismo foi duramente criticado por Adam Smith mais tarde, no século XVIII. Smith, considerado o pai da economia moderna e um importante fomentador do liberalismo econômico, recusou a ênfase do mercantilismo para a produção, argumentando que a única forma de fazer crescer a economia era através do consumo. Ele também acreditava na existência de uma mão invisível que faz com que um conjunto de egoísmos se transforme em altruísmo, ou seja, se reunirmos a ganância da cada indivíduo, teremos um benefício coletivo. Smith foi contemporâneo da primeira fase da revolução industrial e do período em que os ingleses começaram a utilizar a palavra improvement (melhoria) para descrever os avanços na qualidade de vida da sociedade, até então suprimida pela lógica mercantilista de que era preciso manter os trabalhadores apenas com o necessário para aumentar os ganhos do Estado. Essa idéia foi responsável pela transformação do conceito de necessidade, pois na mesma medida em que as pessoas tinham acesso a bens de consumo e ao acúmulo material, aumentava também a sensação de bem estar. Ainda assim, a sociedade do século XVIII é considerada por grande parte dos historiadores como uma sociedade industrial e, só no século XIX, com a unificação da Itália e da Alemanha é que ganharia a alcunha de sociedade de consumo. A unificação da Itália fez explodir a segunda fase da Revolução Industrial, com enormes avanços mercantis, técnico-científicos e industriais. A unificação da Alemanha por sua vez contribuiu com a consolidação de leis que melhoraram a qualidade de vida no trabalho, conferindo aos trabalhadores, entre outras coisas, melhores salários. Os avanços tecnológicos do século XIX são, sem dúvida, o ponto de mutação da cultura de consumo da humanidade. Inventos como a locomotiva e o barco a vapor transformaram para sempre a noção de tempo. A iluminação artificial mudou por completo a dinâmica social dentro e fora dos lares e a distribuição de eletricidade através de uma rede abriu um leque infinito de possibilidades de novos inventos e bens de consumo. É comum historiadores mencionarem o barateamento do produto final proporcionado pela linha de produção inventada por Ford como o ponto crítico para o paradigma de consumo vivido por nós hoje. Mas será que ele não foi somente a ponta do iceberg de um processo muito mais longo, iniciado há séculos? O que sim foi uma conseqüência da linha de montagem foi o crescimento abrupto da comunicação e do marketing. Com o barateamento do produto final e a diversificação, tornou-se fundamental a criação de estratégias que convencessem aos cidadãos que os novos inventos eram necessários para que tivessem uma boa qualidade de vida. Nos Estados Unidos, o governo e a indústria taxavam como bons cidadãos aqueles que consumiam mais e muitos dos formadores de opinião e lideres da época tinham opiniões que muito corroboravam com a idéia. É o caso do economista Simon Nelson Patten que declarou, em 1907, que “a nova moral não consiste em economizar, mas sim em expandir os hábitos de consumo” 6. Em 1918, após a Primeira Guerra Mundial, a herança mercantilista ainda era latente no Brasil, com a economia do país voltada para as exportações principalmente de insumos brutos como café, borracha e cacau e as políticas voltadas para o fortalecimento das elites. Enquanto isso nos Estados Unidos, a industrialização evoluía a passos largos, e com ela se fortalecia o famoso sonho americano, combinação de um vasto mercado de trabalho, alta renda, preços baixos e fácil acesso a bens de consumo. Esse processo foi facilitado pelo fluxo de exportações de produtos industrializados para a Europa devastada pela guerra. Em 1919, por exemplo, surgia a General Motors Acceptance Corporation e com ela a cultura das compras a prazo financiadas pelos próprios fabricantes. A mesma GM, em 1925, fincou mais um pilar para a construção de nossa cultura de consumo atual ao criar o “modelo do ano”. Até então Ford brincava ao dizer que o consumidor podia ter um de seus carros na cor que quisesse desde que o carro fosse preto. A introdução desse conceito pode parecer insignificante em um primeiro momento, mas foi quando a obsolescência forçada passou a ser um vetor de tomada de decisões para as pessoas. Em 1929, esse clima de otimismo foi freado pela grande depressão, período no qual também começaram a prevalecer as idéias de J. M. Keynes. Ele defendia que, com o aumento do consumo por parte da população, as empresas se animariam a fazer novos investimentos e continuariam produzindo, e assim o país cresceria. As idéias de Keynes promoveram um aumento constante da demanda dos consumidores privados e políticas baseadas nas premissas criadas por ele se generalizaram no mundo capitalista entre as décadas de 1950 e 1970. Esse meio tempo marcou também a invenção do cartão de crédito pelo grupo Diners Club, com a idéia de reunir todas as suas contas em uma só fatura e assim facilitar a vida e poupar o tempo do consumidor. Na década de 1960, começa a fase chamada pelo economista Thorstein Veblen de Consumismo Conspícuo, termo utilizado para descrever um padrão de comportamento segundo o qual uma pessoa consome de maneira pródiga com o fim específico de demonstrar à sociedade sua capacidade de acúmulo material, uma forma de conquistar status.7 Esse espírito foi a tônica para o enraizamento cada vez mais profundo do objetivo comum de acumular riqueza. 6 7 http://www.pbs.org/kcts/affluenza/diag/hist5.html Veblen, Thorstein. (1899) Theory of the Leisure Class: An Economic Study in the Evolution of Institutions. New York: Macmillan. Hoje em dia, a capacidade de compra e a quantidade de bens de consumo acumulados são elementos indispensáveis na composição da equação que mede a qualidade de vida de uma pessoa. O nível de renda de uma pessoa é o principal componente para que figure abaixo ou acima da chamada linha de pobreza. Esses indicadores não consideram que, para determinadas culturas, o desenvolvimento econômico é apenas um braço de um sistema mais complexo. No tão conhecido e divulgado Índice de Felicidade Bruta do Butão, por exemplo, a preocupação maior é com o crescimento da felicidade individual dos cidadãos, conceito que leva em conta não só o desenvolvimento sócio-econômico duradouro e eqüitativo, como também a preservação do ambiente e das relações sociais, a promoção da cultura e a boa governança. Essa é uma lógica que, apesar da aceleração massiva do processo de globalização, nas duas últimas décadas permaneceu intacta em muitas das culturas orientais. E no ocidente, quais são os aspectos mais marcantes de nossa cultura quando o tema é o consumo? Voltemos então à proposta de trabalhar com as premissas ocultas e aparentes de Wall-E. O Hoje que Pode Refletir no Amanhã Nossa Percepção de Necessidades e as Montanhas de Lixo “Você veio. Respeitamos a imagem que fez de nós. Entretanto, deixe-nos com nossos costumes. São mais sábios e honestos que os seus. Não queremos de nenhuma forma abrir mão do que você define como ignorância por suas luzes. Tudo o que para nós é bom e necessário, já temos aqui. Merecemos o seu desprezo por não sabermos adquirir necessidades supérfluas? Quando sentimos frio, temos com o que nos vestir. Você entrou em nossas cabanas. Faltava alguma coisa? Busque como quiser o que você define como comodidades. Permita, no entanto, a seres mais sensatos deteremse quando o que poderiam adquirir com pesados esforços não são mais do que bens imaginários. Se você nos persuadir a cruzarmos a tênue linha das necessidades, quando deixaremos de trabalhar? Quando desfrutaremos? Preocupamos-nos em fazer com que nosso fardo anual e diário seja o menor possível, pois nada nos parece melhor que repousar. Volte a seu país e agite-se a atormente-se o quanto quiser, mas deixe-nos descansar, sem as suas necessidades artificiais e nem tampouco suas virtudes quiméricas.” Denis Diderot.8 Diderot é considerado por muitos o pensador que fundou a era moderna. Em Supplement au Voyage de Bougainville, o pensador descreve a vida de nativos das ilhas do Pacífico e relata com muita precisão o movimento de consumo iniciado com a 8 Denis Diderot, Supplement au Voyage de Bougainville, 1772. Revolução Industrial e como o conceito de necessidades mudou com a introdução das melhorias tecnológicas trazidas na época. Acima de tudo, a passagem acima mostra como o conceito de necessidades humanas é sempre determinado pela cultura. Cada sociedade cria seus valores e prioridades. Uma criança quando nasce, exige um esforço de socialização por parte de pais e tutores, com o fim de educá-la para que faça parte de sua sociedade e assuma, assim, suas necessidades. Tudo depende, portanto, dos valores culturais que lhe serão transmitidos. Se em alguma parte se ensina que o fundamental é a espiritualidade, as relações com a família e o respeito ao meio ambiente, essas serão as necessidades fundamentais para essa pessoa. Se por outro lado lhe é ensinado que o fundamental é estar sempre na moda, ter o carro do ano e consumir cada vez mais, esses valores serão carregados com ela durantes sua vida. Existe então uma forma de definir se um conjunto de necessidades é melhor ou pior? Talvez não, mas sim é possível pensar no que é mais lógico. Se continuarmos a produzir e a consumir sem questionarmos o que realmente é necessário para que vivamos com qualidade de vida, sem excessos, continuaremos também a desafiar os limites da biosfera, e o futuro mais visível é o das montanhas de lixo compactadas por Wall-E. Claro que, por se tratar de uma pergunta sem resposta certa, alguém poderia responder que o necessário para uma qualidade de vida razoável é muito mais do que aquilo que possamos imaginar. Afinal de contas, as necessidades humanas podem ser ilimitadas. A pergunta nesse sentido, então, passa a ser: estamos prontos para deixar de viver em uma cultura de suficiência para passar a viver em uma outra, baseada na escassez? Dependência Tecnológica, Obsolescência Forçada e as Montanhas de Lixo “A tecnologia não é boa e nem má. Tampouco é neutra (...). As interações da técnica com a ecologia social são tais que o desenvolvimento técnico muitas vezes tem efeitos ambientais, sociais e humanos que vão muito além dos objetivos imediatos do instrumento e das práticas técnicas. A mesma tecnologia pode ter efeitos distintos segundo o contexto e as circunstâncias nas quais são introduzidas. Melvin Kranzberg.9 A história da tecnologia é praticamente tão antiga quanto a da humanidade. Foi através dela que nossos ancestrais puderam superar condições inóspitas e usar os recursos naturais a seu favor, para sobreviver. Com o passar do tempo a luta por sobrevivência se transformou em domínio da natureza e, socialmente, em poder. O processo inventivo da segunda fase da Revolução Industrial provocou um salto quântico no patamar tecnológico da época. Ainda assim, a característica principal do 9 Melvin Kranzberg, Technology and History: Kranzberg’s Laws; in T. S. Reynolds and S. H. Cutcliffe. Technology and the West. A Historical Anthology from Technology and Culture; Chicago: The Chicago University Press, 1997. que era fabricado em grande parte das vezes era a durabilidade. Quando a GM lançou no mercado a idéia do modelo do ano, esse cenário começou a mudar e o que passamos a experimentar desde então foi a cultura do amor pelo novo. Esse processo se intensificou ainda mais a partir da década de 60 com o consumismo conspícuo e o último modelo, a moda, passou a ser o fator determinante para o status social. Hoje, a obsolescência já faz parte da estratégia de marketing de muitas empresas e fomenta a cultura do descarte, dando a tônica para a geração das montanhas de lixo de Wall-E. O problema do lixo já é grave agora, e tende a se intensificar com as perspectivas de aumento da capacidade de compra das pessoas. Com o nível de competição cada vez mais acirrado nos mercados destinados às classes A e B, ganham cada vez mais espaço as estratégias de comércio para a chamada base da pirâmide. O problema é que essas estratégias raramente têm o nobre propósito de garantir acesso a bens necessários à qualidade de vida das pessoas mais pobres: ou criam necessidades supérfluas, ou prezam pela baixa qualidade em função de preços acessíveis. Na maioria das vezes, é uma combinação de ambos. Em qualquer uma dessas hipóteses, as consequências sócio-ambientais são desastrosas. A tecnologia, se bem utilizada, é sem dúvida um instrumento que contribui para a melhoria da qualidade de vida das pessoas e para uma relação mais saudável entre sociedade e meio ambiente. O outro lado da moeda é o uso motivado exclusivamente para a conquista de status e bem-estar virtual. É um erro acharmos que a tecnologia seja um fim em si mesmo. Também é um erro acreditarmos que a tecnologia seja necessária em todos os momentos de nossas vidas. O uso da tecnologia definitivamente não é neutro e provoca consequências sociológicas que muitas vezes não somos capazes de entender. É possível encontrarmos o uso adequado da tecnologia, interrompendo assim a torrente que faz com que seu uso seja um fim em si mesmo? Nossa relação com o tempo, a baixa integração com os ciclos naturais e as Montanhas de Lixo “Sem dúvida o poder adquirido hoje pela grande velocidade vai, seguramente, deixar menos poder para as gerações futuras. É a geração do século XX que se vale de uma grande parte dos recursos indispensáveis para guiar o barco da humanidade pelas corredeiras do século seguinte (...). Nessa perspectiva, a vitória sobre a distância tem um custo enorme. A velocidade não é gratuita. De forma bastante óbvia, a mobilização de espaço e tempo requer a mobilização da natureza (...).” Wolfgang Sachs10 Desde que passamos a nos movimentar com maior velocidade, nossa relação com o tempo e com os ciclos do planeta mudou para sempre. Ao mesmo tempo em que 10 Wolfgang Sachs, Planet Dialetics, London Books, Zed Books. perdemos pouco a pouco nossa capacidade de observação, também exigimos do planeta que se mova na velocidade que esperamos. As consequências disso são cada vez mais sensíveis. Em uma primeira dimensão, como Wolfgang Sachs observa, para nos movermos mais rápido, precisamos transformar recursos em energia. Na nossa matriz energética atual, isso significa consumir mais combustíveis fósseis e acelerar o ciclo de carbono do planeta. A segunda dimensão é menos visível. A aceleração provocada por nossa dinâmica social tem, obviamente, reflexos em nosso paradigma de produção. Faz com que nos afastemos cada vez mais de um sistema que funcione para atender demandas e nos aproximemos de um outro que desafia os limites da biosfera. A agricultura produz cada vez mais rápido, insumos naturais são transformados cada vez mais rápido, estruturas são levantadas cada vez mais rápido e nós consumimos cada vez mais. A terceira dimensão diz respeito à nossa relação com o tempo no dia a dia. Pressionados por uma velocidade cada vez maior e pela necessidade de consumir sempre mais, imprimimos um ritmo maior também às nossas vidas, e adotamos hábitos que são compatíveis com essa velocidade, cada vez maior. Nossa dieta, nosso transporte, nossa comunicação, tudo requer maior rapidez. Com isso, vamos trocando nossos aparatos por outros, que atendam a essa demanda, e buscando alternativas mais práticas. O problema é que alternativas mais práticas consomem mais energia, utilizam mais recursos para serem produzidas e geram uma quantidade maior de resíduos. O resultado? As montanhas de lixo compactadas por Wall-E. Muitas vezes a velocidade imposta em nosso dia a dia é criada por nós mesmos. Quantas vezes, no meio de um fim de semana, não nos movemos com pressa, sem ao menos termos uma razão para isso. Em um ambiente de trabalho isso é diferente. Organizações funcionam como máquinas que devem produzir continuamente e nós somos as engrenagens que fazem com que essas máquinas nunca parem. É possível romper com o paradigma do automatismo sem gerar crise no sistema? O crescimento constante é compatível com os ciclos do planeta? A homegeinização da cultura global, a alteração do meio ambiente em escala planetária e as montanhas de lixo “Culturas ao redor do mundo evoluíram como fenômenos localizados e específicos. (…) Práticas culturais como idiomas, crenças e hábitos alimentares (inclusive processos de fermentação) são incrivelmente diversos. Essa diversidade, entretanto está ameaçada pelo mercado global unificado. Produtos como cerveja, pão e queijo antes tinham peculiaridades que variavam de acordo com o lugar. Hoje os “sortudos” consumidores do século XXI podem encontrar produtos fermentados em qualquer parte, produtos que têm o mesmo gosto ao redor do mundo todo. A produção e o marketing de massas demandam uniformidade. Nesse processo, identidades locais, cultura e sabores são submetidos à lógica do mínimo denominador comum (...). Sandor Ellix Katz11 A tecnologia criou a possibilidade e surgimento de uma cultura global. A internet, os satélites e a TV a cabo estão eliminando barreiras culturais. As companhias globais de entretenimento moldam as percepções e sonhos de cidadãos, não importa aonde vivam. Essa disseminação de valores, normas e cultura tende a promover os ideais ocidentais e a cultura de consumo. As consequências desse processo vão muito além das perdas culturais. Um processo de homegeinização global significa sete bilhões de pessoas no mundo todo desejando consumir exatamente as mesmas coisas. Isso teria consequências de diferentes ordens. A primeira delas está relacionada à perda de diversidade biológica. Desde um ponto de vista econômico, quanto maior é a demanda por um produto, maior deve ser sua produção. Se todas as pessoas do planeta, por exemplo, estiverem convencidas de que o álcool é a solução definitiva para a matriz energética, o consumo desse produto aumentará vertiginosamente e demandará uma área muito maior para sua produção, ocupando o lugar de ecossistemas nativos, além de espaços destinados a outras culturas fundamentais para a nossa sobrevivência. O segundo ponto também está ligado à produção agrícola. Como é possível todas as pessoas do planeta quererem consumir as mesmas coisas se a produtividade está diretamente ligada a peculiaridades locais como condições climáticas e propriedades do solo? A solução para essa pergunta traz consigo a alteração de condições naturais, o uso desmesurado de produtos químicos e uma série de outras externalidades que ainda não conseguimos solucionar em nível local. O terceiro e último ponto diz respeito à produção de resíduos. Em um processo de produção em massa não temos como fugir da transformação ou do processamento industrial de insumos. Isso inclui não só um alto uso de energia, como também uma produção maior de resíduos. É possível prosseguirmos com o processo de miscigenação cultural global, mantendo ao mesmo tempo peculiaridades de culturas locais. Como aproveitar somente dos benefícios gerados pelo processo de globalização iniciado há tantos anos e que se intensificou nas últimas décadas? O Amanhã que Começa no Hoje Mesmo que essas premissas estejam arraigadas em nossa cultura há tanto tempo, romper com elas é uma questão de mudança de hábitos. O problema é que mudar hábitos é um exercício árduo de desapego que requer disciplina e determinação. 11 Sandor Ellix Katz, Wild Fermentation: The Flavor, Nutrition, and Craft of Live-Culture Foods, Chelsea Green Publishing Sustentabilidade deve ser sempre um processo de reforma íntima, sob pena de se tornar uma moda e de que práticas como o greenwashing12 e episódios como o da Enron virem lugar comum. Muitas vezes consumidores fraquejam em processos de mudança de hábito por falta de informações e de ferramentas. Esses dois pontos impulsionam movimentos já em marcha e que prometem ser um vetor de transformação do comportamento de consumo em um futuro próximo. Esses movimentos são o reflexo de uma única grande tendência: a de que o sentido de pertencimento, hoje fundado na necessidade de consumir, se transfira para movimentos globais que respondem à emergência socioambiental que vem sendo constantemente noticiada pela mídia comum mundial. Problemas como as mudanças climáticas, a escassez de recursos, o acúmulo de lixo e desordens sociais de vários tipos têm alertado a população global de que é preciso agir e as pessoas começam a querer fazer parte da solução. “Fico especialmente encorajado de que a crença no consumismo como um fim em si parece estar cedendo a um reconhecimento de que nós humanos devemos conservar os recursos da terra. Isto é muito necessário. Os seres humanos são, em certo sentido, as crianças da terra. E, enquanto até agora a nossa Mãe em comum tolerou o comportamento de seus filhos, atualmente ela está nos mostrando que ela atingiu seu limite de tolerância.” Sua Santidade, o Dalai Lama do Tibet.13 Com isso, o que antes se resumia a poucos, começa a perturbar um número cada vez maior de pessoas e a despertá-las para que iniciem seus próprios processos de mudança pessoal. Existem também algumas ferramentas e formas novas de atuação que favorecem a agregação dessas pessoas em grupos e, em última instância, a formação desses movimentos. O que você verá, a seguir, são exemplos de algumas dessas ferramentas e estratégias. Redes Sociais “Rede Social é uma das formas de representação dos relacionamentos afetivos ou profissionais dos seres entre si ou entre seus agrupamentos de interesses mútuos. A rede é responsável pelo compartilhamento de idéias entre pessoas que possuem interesses e objetivo em comum e também valores a serem compartilhados. Assim, um grupo de discussão é composto por indivíduos que possuem identidades semelhantes. Essas redes sociais estão hoje instaladas principalmente na Internet devido ao fato desta possibilitar uma aceleração e ampla maneira das idéias serem divulgadas e da absorção de novos elementos em busca de algo em comum.”14 12 Greenwashing é um termo em língua inglesa usado quando uma empresa, organização não governamental (ONG), ou mesmo o próprio governo, propaga práticas ambientais positivas e, na verdade, possui atuação contrária aos interesses e bens ambientais. Fonte: Ambiente Brasil 13 http://www.dalailama.org.br/ensinamentos/meio.php 14 Fonte: Wikipedia. As Redes sociais têm sido bastante utilizadas na internet para promover produtos. Por outro lado, têm sido utilizadas também para promover temas como o consumo responsável e a sustentabilidade. Uma busca rápida nas principais redes sociais como MySpace, Facebook, Twitter, Youtube e Orkut resultaram em mais de cem mil resultados, com milhões de pessoas envolvidas no mundo todo. As redes são, sem dúvida, um dos caminhos mais claros para a sustentabilidade por representarem uma forma simples e barata de disseminação da informação e de envolvimento de pessoas ao redor de idéias e estratégias. Sua forma desestruturada lhe garante uma grande capacidade cognitiva e um alto poder criativo. Elas permeiam a maioria das estratégias e ferramentas mencionadas aqui. Tecnologia da Informação A internet por si só é uma poderosa ferramenta de disseminação de informações em massa. O seu uso, no entanto, foi se aprimorando ao longo da última década e o que antes era feito de forma tradicional, com informação em forma textual, hoje adquire formas que têm a capacidade de sensibilizar um número muito maior de pessoas. Não que a forma tradicional de disseminação da informação não seja importante. Páginas como a do Instituto Akatu no Brasil e outras em inglês como Good Guide, Greenwashing Index, Adbusters, Slow Movement e How Stuff Works, entre outras, alimentam o consumidor de informações relevantes para que tome decisões mais acertadas em consideração ao meio-ambiente e à sociedade na hora de consumir. O problema com a forma tradicional de comunicação de conceitos e mobilização é a falta de tempo das pessoas, o que dificulta a leitura de textos mais longos. Nesse contexto, outras mídias como imagens e vídeos ganham espaço na promoção da sustentabilidade e do consumo responsável. Um ótimo exemplo foi uma paródia feita pela produtora americana de filmes Free Range de Guerra nas Estrelas, chamado Grocery Store Wars. Atualmente disponível no Youtube, o vídeo tem mais de dois milhões e meio de visitas. Outro bom exemplo, também voltado à promoção da responsabilidade no consumo, é a paródia de Matrix, The Meatrix, que expõe as práticas da indústria de processamento de carne. Outra forma de disseminação da informação criativa é através dos aplicativos criados para que o consumidor monitore em tempo real informações sobre produtos. Um deles, o Know More, é um aplicativo criado para o navegador de internet Mozilla Firefox. O Know More reconhece o nome de empresas e marcas conforme o internauta navega na internet e dá informações sobre políticas socioambientais. Outro aplicativo interessante é o do próprio Good Guide, desenhado para que os donos de I Phones consultem em tempo real informações sobre produtos e empresas quando estão fazendo suas compras. Os celulares são um campo ainda em exploração, mas as chamadas Smart Mobs prometem ser uma ferramenta indispensável para a mobilização de consumidores. Smart Mobs foi um termo criado por H. Rheingold para descrever as “novas” formas de mobilização usando tecnologias móveis como celulares, com voz e SMS, pagers, internet sem fio, blogs, etc. Casos clássicos de utilização bem sucedida dos Smart Mobs foram os das manifestações que agregaram milhões de pessoas por SMS nos protestos anti-globalização nas Filipinas, e na Espanha, pós atentado nos trens em 2004. Nesses casos, a mobilização por SMS tiveram consequências que mudaram o rumo nos dois países. Nas Filipinas, o presidente Estrada foi deposto. Na Espanha, o partido do até então presidente José Maria Aznar liderava as pesquisas até o último dia, mas acabou derrotado em função da mobilização provocada pelo Smart Mob. Em todos esses casos a colaboração é o que possibilita não só a construção de ferramentas, mas principalmente que sejam bem aplicadas e que as informações atinjam o maior número de pessoas possível. Colaboração e Brigadas O espírito colaborativo também dá o tom para uma estratégia ainda pouco usada para a sustentabilidade, mas que também promete gerar impactos muito positivos para a promoção de mudanças. Quando os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, no final de 1941, os cidadãos americanos ajudaram ativamente para que os esforços do país fossem bem sucedidos. Qualquer coisa que pudesse ser reciclada era aproveitada. A gordura da carne não era nem mesmo levada dos açougues pelos consumidores, porque era reaproveitada na fabricação de nitroglicerina. As mulheres abriram mão de saias plissadas, a moda da época, em favor de saias mais justas que consumiam menos matéria prima para sua fabricação. O racionamento de combustível e de outros bens de consumo foi rigorosamente respeitado durante a Guerra, tudo em função do interesse coletivo. Hoje a colaboração está presente de forma latente no mundo virtual, através do desenvolvimento de aplicativos e de conteúdo na internet. O mesmo espírito, entretanto não é tão comumente encontrado em situações reais. Ainda assim bons exemplos podem ser encontrados para ilustrar como mutirões e brigadas são fundamentais na busca pela sustentabilidade. A Terra Cycle, por exemplo, empresa que produz a partir de insumos não recicláveis que normalmente são descartados no meio ambiente, como sacos de salgadinhos e fraldas descartáveis, utiliza o modelo de brigadas para coletar insumos para o seu processo produtivo. Através desse modelo, a empresa mobiliza pessoas para que coletem matéria prima, confiando que sejam capazes de mobilizar suas redes para o mesmo objetivo. A Natura também tem buscado o modelo colaborativo para implantar um mecanismo de logística reversa. Através desse mecanismo, as consultoras, responsáveis pela venda na ponta, mobilizam consumidores para que não descartem embalagens, as quais são coletadas pelas mesmas consultoras e distribuídas a cooperativas de reciclagem. No Brasil, um projeto que regulará a gestão dos resíduos sólidos tramita há dois anos no Congresso Nacional e deve entrar um pauta para votação muito em breve. Essa legislação tornará obrigatórias iniciativas como a da Terra Cycle e da Natura, mas provavelmente essas empresas sairão muito na frente, principalmente em virtude da estratégia colaborativa. Regulamentação Não há como negar que a regulamentação é uma importante ferramenta para os consumidores. Até pouco tempo atrás, as empresas não eram obrigadas a mencionar dados nutricionais nos alimentos. Aquelas que faziam por sua conta, o faziam porque mencionar as características de seus produtos trazia alguma vantagem competitiva sobre os concorrentes. Hoje a transparência em relação aos dados nutricionais deixou de ser opção para ser uma obrigação. Recentemente por exemplo empresas produtoras de alimentos passaram a ser obrigadas a mencionar na embalagem dos alimentos, se os mesmos contêm ou não a chamada gordura trans. Os rótulos também trazem outras informações importantes para o processo de tomada de decisão dos consumidores, como por exemplo, o fato de uma embalagem ser ou não reciclável. Nos próximos anos a legislação deve avançar muito nesse sentido, mas até que isso aconteça, é necessário que nos cerquemos de outras ferramentas. Comentários Finais Como já foi dito aqui, a mudança nos hábitos de consumo não é um processo simples e fácil que possa ser feito do dia para a noite. Requer mudança de hábitos e com isso disciplina e muita dedicação, principalmente na busca de informações que ajudem na tomada de decisões. Deixar de consumir não parece ser a melhor solução, mas consumir com consciência e responsabilidade só depende de nossa própria atitude. O mais importante é termos a consciência de que consumo não significa qualidade de vida, pois na medida em que assumimos essa premissa, essa se tornará uma busca infinita.