1 IV Reunião Equatorial de Antropologia XIII Reunião de Antropologia do Norte e Nordeste 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza -CE GT – 44. Grupo de Trabalho: Manifestações culturais, arte e antropologia. Coordenadores: Carla Dias , Isabelle Braz ARTE NA RUA – DIÁLOGOS ENTRE INDIVÍDUO, CULTURA E ESPAÇO URBANO Maria Eduarda Caseira Gimenes (NEI/UFES/GREM/UFPB) RESUMO: Este trabalho tem por objetivo refletir a experiência vivida por artistas urbanos em um recente – e crescente – diálogo criado com o espaço público, em Vitória capital do Espírito Santo. Em um movimento que se intitulou “Pontos da Arte – A cor da rua”, a arte saiu das galerias e foi para as ruas, ao encontro aos citadinos, alterando antigas noções de arte, utilização da cidade e dos patrimônios públicos. Nesse processo, identidades são criadas e novas memórias são construídas. A metodologia utilizada foi a de observação e documentação fotográfica, em que acompanhei, participei – e fotografei - intervenções artísticas em sessenta pontos de ônibus na cidade de Vitória. A maioria dos artistas utilizaram da técnica do graffiti, oriundo de um movimento cultural marginal – o hip hop. Percebeu-se que surgia um movimento de rompimento com a tradição– arte fora da galeria – e que se criava um diálogo entre arte, cultura, indivíduo e espaço urbano, sensibilizando consciências, fazendo surgir uma nova relação com o espaço comum, abalando antigas estruturas e criando novidades. Formando, assim, novas imagens capazes de sugerir significados – frutos dessa nova relação, mais próxima, da cidade com cada cidadão e o espaço coletivo considerado patrimônio público. Conclui-se, então, que o graffiti contribui com a criação de identidades, socialização e reconhecimento no espaço urbano para quem o faz, e torna-se uma galeria a céu aberto para quem o vê, aumentando a interação do individuo com o meio em que vive. Além da exposição da cultura marginal ser importante na autoestima de quem o faz, também assume essa importância na memória da cidade. Palavras-chave: arte, urbano, indivíduo, ressinificação, diálogos 2 INTRODUÇÃO Proponho nesse trabalho construir uma análise a respeito de um movimento que se instaurou em Vitória – ES e intitulou-se “Pontos da Arte – A cor da rua”, que constitui em trazer a arte-intervenção em sessenta pontos de ônibus da cidade. Um acontecimento que reuniu diversos segmentos de artistas, com suas diferenciações técnicas e ideológicas, em prol da criação de novos significados e de uma nova interação com o espaço público urbano. A arte, então, saiu das galerias e foi para as ruas, ao encontro dos citadinos, alterando estabelecidas noções sobre o que é arte, sobre como deve ser utilizada essas noções de arte, da utilização da cidade e dos patrimônios públicos. O novo buscou se inscrever em novas tradições, abalando e desordenando uma ordem estabelecida pelos padrões (BALANDIER, 1997 ). A maioria dos artistas utilizou da técnica do graffiti, oriundo de um movimento cultural marginal – o hip hop. Nascendo dentro dos grandes centros, o graffiti traz uma nova construção da subjetividade de seus indivíduos. Quanto maior o fluxo de informação, de imagens e de pessoas na cidade, maior a liberdade buscada pelos indivíduos que nela atuam. O efeito da repressão dos outdoors e da publicidade faz com que esses atores busquem uma nova forma de dialogo, melhor dizendo, um grito dos que ‘’devem se manter calados’’. E utilizam a arte para isso. Noto que a arte tem se ressignificado diante dessa necessidade de expressão, caminhando em paralelo com a repressão de um ambiente pacato, acimentado e segregado, fazendo com que desabroche esses atores, acompanhados de seus sprays e criatividade. 3 PROBLEMA - identidade e ressignificações da arte no urbano Posso dizer que graffiti surge como uma nova forma de interpretação do urbano no que se refere a apropriação do espaço pelos seus habitantes e a criação de identidades nesse contexto. Dentro de um quadro do caos, da buzina, dos carros, dos muros, surgem as cores, a expressão de indivíduos ocultos que se comunicam pela arte. Procurarei entender essas novas identidades – e resistências - urbanas como uma ressignificação na forma como enxergarmos a cidade. E ainda, esses indivíduos atuantes, que, normalmente, nasceram na cidade, nela cresceram e nela sentem necessidade de falar. E se realizam a partir do momento que o fazem. Compreendo o graffiti enquanto arte, e que o muro e os espaços públicos, a ninguém mais deveria pertencer, a não ser ao povo, que cria, a partir de determinadas ações no espaço, uma nova forma de apropriação desses lugares, que agora se estabelecem em suas mentes e na memória da cidade. Como e porque essas identidades são criadas? Como a arte é ressignificada? Quem são esses indivíduos, e porque buscam o graffiti como realização pessoal? Quais são essas ressignificações do urbano? Que cidade é essa que os atores querem ressignificar? Como é essa cidade que esse fenômeno artístico quer aparecer? Uma cidade que as pessoas querem participar se envolver? 4 EM BUSCA DE UMA ETNOGRAFIA DE UMA ARTE MARGINAL O presente trabalho constitui uma etnografia e registros fotográficos, com anotações escritas a respeito do cotidiano e da nova linguagem e utilização do graffiti nesses espaços de fluxo urbano, da Grande Vitoria. Apoiarei-me nas considerações de Clifford Geertz acerca das categorias antropológicas utilizadas para tratar os fenômenos culturais, em Gilberto Velho e sua antropologia urbana, em Balandier, com a oposição tradição/novidade, em Benjamin e a flânerie. E ainda, em Canclini e suas ressignificações, em Georg Simmel e em Wirth com sua descrição e visualizações do fenômeno urbano. Geertz propõe uma nova leitura do conceito de cultura, dando ênfase às suas dimensões simbólicas. Entendendo a cultura a partir de uma leitura semiótica, ele a assume como sendo um “sistema entrelaçado de signos interpretáveis” (GEERTZ, 1989, p.22) ; um contexto dentro do qual os comportamentos tornam-se inteligíveis. "A cultura é pública porque a significação o é" (Geertz, 1989, p. 22) O pensamento é tanto público como privado – pessoal – e seu lugar é a rua. Tal posicionamento implica em tomar a cultura como sendo essencialmente um texto, ou discurso social, que se faz no ato. Sendo assim, cada evento é parte do texto da cultura e expressa, em algum grau, algo sobre ela. Geertz propõe uma hermenêutica da cultura, relegando ao antropólogo a tarefa de interpretar os possíveis significados implícitos na agência humana. Todavia, deve-se reconhecer na interpretação não mais do que uma possibilidade, deixando de lado as pretensões de certeza. Segundo Geertz, a etnografia seria o esforço intelectual por uma descrição densa e atenta para os possíveis significados das ações; uma descrição que não se contenta em narrar os acontecimentos, mas que procura interpretar o fluxo do discurso social e sua representatividade. Portanto, minha pesquisa se utilizou de observação participante, de registros fotográficos, de conversas informais, e de interações em grupos de redes sociais, voltadas para o assunto, tornando-me livre e aberta para outros diálogos e outros acontecimentos. O fato de eu ser um indivíduo nascido e criado no urbano e ter tido contato contato prévio com o movimento graffiti - especificamente em uma etnografia 5 sobre PIXO no Espírito Santo - tive de tomar certas precauções, como o distanciamento e estranhamento do que por vezes é óbvio e comum no cotidiano de um urbanoide, como afirma Gilberto Velho "[...] para realizar seu trabalho precisa permanentemente manter uma atitude de estranhamento diante do que se passa não só a sua volta como com ele mesmo." (VELHO, Gilberto. 1980. p.18). Ainda na obra de Gilberto Velho: "[...] há distancias culturais nítidas internas ao meio urbano em que vivemos, permitindo ao nativo fazer pesquisas antropológicas com grupos diferentes do seu, embora possam estar basicamente próximos." (VELHO, Gilberto. 1980. p.16), compreendi a possibilidade de exercer essa análise, utilizando a literaturo do autor, em que o mesmo afirma: “"[...] poderemos estranhar situações e fatos que são naturais para o nativo. Mas se este estranhamento não for elaborado, poderá ser apenas uma reação preconceituosa de espanto diante do inusitado." (VELHO, Gilberto. 1980. p.16). Logo, mantive um estranhamento analítico da situação, sem os pré-julgamentos, que o grupo e o objeto estudados estão acostumados a receber, e, vivenciar: "[...] a importância de procurar perceber como os indivíduos da sociedade investigada constroem e definem a sua realidade, como articulam e que peso relativo tem os fatos que vivenciam." (VELHO, Gilberto. 1980, p.16). E assim, foi possível: "[...] ir alem da percepção das diferenças e mesmo dos conflitos para captar a lógica que define a especificidade da experiência de um sistema cultural particular." (VELHO, Gilberto. 1980, p.17). Dessa forma, deve-se valorizar a obra de Velho e o método antropológico na compreensão da sociedade urbana moderna. Com Firth e sua idéia de organização social, pude, através da negociação da realidade, interagir com os indivíduos e as diferentes redes de relação (FIRTH, Raymon. 1971), e, assim, na teoria de Schutz, compartilhamos por um tempo uma definição comum de realidade em uma província de significados (SCHUTZ, A. 1979). Utilizei, também, a leitura de ‘‘Sociedade da Esquina” de William Foote Whyte, que nos seus estudos urbanos, se dedicou à relação "indivíduo e sociedade” Foote Whyte crê no indivíduo como sujeito ativo, atuando dentro de um grupo e interagindo com os outros indivíduos e grupos sociais. Crê na mudança e na reinvenção social. Assim, percebo o papel dos grafiteiros e do graffiti no meio 6 social: estão em constante mudança, e em intensa interação, com o espaço e com quem circula nele. A leitura de Sociedade da Esquina foi importante porque trata de conflitos e violência e desigualdade, e criação de estereótipos, que se encaixa perfeitamente com o grupo com que trabalhei. Trabalhadores, estudantes, que cometem um crime previsto na Constituição – caso do pixo em patrimônios públicos ou privados - mas que nessa situação específica do projeto, estavam livres para fazer o que gostam, sem se preocupar com a detenção. A legalidade do processo, no entanto, não impedia a constante aparição da polícia, guardas municipais ou vizinhos que apareciam para constatar a autorização que tínhamos para estar ali, intervindo em um espaço público. Esses jovens, a maioria surgindo de uma periferia, estereotipados, ou não, vivem sempre no conflito, correndo da polícia, buscando seu espaço no meio urbano, que cresce a cada dia, junto com a violência. Assim como Foote Whyte defendia, realizei observação participante, com constante e intensa aproximação e troca com o universo que investiguei, com o devido cuidado, como salienta o autor, para não me tornar participante nãoobservador. Participei, mas me mantive observadora, diante dessa possibilidade que a antropologia urbana proporciona, de analisar o familiar, a partir do estranhamento. Gilberto Velho disse na apresentação à edição brasileira do livro Sociedade de Esquina sobre o modo de Foote Whyte pesquisar: Esse sentido, viver e conviver com os universos pesquisados, participando dessas dificuldades e dramas, por períodos de tempo mais extensos, representava, de saída, um esforço para não ficar preso ao senso comum, estereótipos e preconceitos, estudando situações, matizes, ambiguidades, contradições são características inescapáveis. (VELHO, Gilberto apud FOOTEWHYTE, William. 2005) A partir dessas leituras, encontrei uma saída para minha pesquisa. Não quis ficar presa ao papel, a tempo ou a normas. Tinha, de início, uma ideia do que seria, tinha a minha proposta inicial, mas estava lá por eles, para ouvi-los, 7 entrar em contato com ‘’grupo de esquina’’. Buscava entender esse grito que surge de uma indignação e que se descobre um prazer. Para quem faz, e, para a maioria que o vê. O urbano engloba, reforça, constrói, ascende, ressignifica e reinventa sentimentos e emoções. E é ai que o antropólogo precisa deixar de ser espectador e passar a perceber as práticas e os simbolismos que estão presentes diariamente nesse fervo urbano. Essa atitude blasé pertence à maioria da sociedade que olha os espaços urbanos diariamente, mas não o vê, devido a multiplicidade de informações e fluxo de pensamentos e imagens. E que, a partir de determinadas intervenções, o olhar muda. Comecei, então, a enxergar e a entender o que antes era ininteligível para mim. 8 INDIVÍDUO, ARTE, ESPAÇO URBANO O patrimônio público representa a coletividade, e, na idéia geral, deve ser preservado. Da mesma forma, a arte, tradicionalmente, é colocada dentro de galerias e museus, em espaços privados e fechados para ela. Sendo os pontos de ônibus locais de passagem e encontro das pessoas, a ideia de customizar esses locais, além contribuir para a diminuição da poluição visual dos cartazes de propaganda, e suas consequentes sujeiras, também interferiu na vida das pessoas que passam por eles, pois essa intervenção de arte urbana permitiu uma maior interação com o espaço publico. Os desenhos que antes existiam apenas em muros, ou em fachadas, de formas às vezes ilegais, puderam ser apresentados em um local alternativo, legítimo e de grande visualização. Dessa maneira, foram abertas novas frentes de atuação e visibilidade da arte, que agora foi exposta fora dos espaços consagrados de atuação, tornando-a mais acessível ao público. São esses fenômenos atuais que estão questionando essas tradicionais noções de arte. Eu acompanhei, observei, registrei fotograficamente todo o processo. Participei observando. E fui tomada pela causa. O que pra mim já era uma paixão, a arte urbana, se tornou objeto de minha pesquisa, juntamente com o indivíduo atuante nessa causa. Nessa experiência, busquei questionar que cidade é essa que buscamos, a forma dessa cidade, e as ressignificações da arte dentro dela. Principalmente a arte marginal, uma vez que o graffiti surge nesse movimento marginal que é o hip hop. E, também, analisar esse sujeito, que fica entre uma situação de alienação, perturbação, ausência de sentido nessa nova cidade metropolitana. Onde há muitas imagens, muitas perdições. O cinza do concreto impera, e também a luminosidade e poluição visual dos outdoors. O individuo é oprimido, tem dificuldade de se manifestar, e se perde, muitas vezes, nessa tentativa de criar uma identidade. Além da utilização da cidade e dos patrimônios públicos, esse processo se encaixa na teoria de Balandier (1997) em que o novo busca se inscrever em 9 novas tradições, abalando e desordenando uma ordem estabelecida pelos padrões, uma vez que, na cultura ocidental, o par opositivo ordem/desordem se estabelece a partir de outro par opositivo: tradição/novidade. O novo abala. Transforma. O presente entra em conflito com o passado, e ocorre a mobilidade de signos e símbolos, que é a essência da vida urbana. Annateresa, coloca em sua obra: “Conflito e integração são os dois pólos que articulam esse segundo eixo, marcado pela presença das categorias, como desfuncionalizaçao/refuncionalizaçao, conquista do espaço simbólico, articulação do novo num regime totalitário, presença do moderno numa situação peculiarmente periférica. Nos vários momentos, a cidade é o cenário no qual essas ações se desenrolam, pois ela é sua verdadeira razão de ser.” (FABRIS, Annateresa, 2000, p.10). E é isso que aconteceu com o projeto: transformou a cidade, os simbolos, arte virou memória, os indivíduos passaram a ter outra relação com o espaço urbano, no caso os pontos de ônibus, o cinza tomou cor, o interventor passou a pintar mais – devido a boa repercussão de seu trabalho – e isso tudo invadiu a mídia e as redes sociais, dando mais visibilidade para o que era esquecido pela cidade e seu grande fluxo de informação uma vez que, como afirma Annateresa Fabris, é na cidade que é possível ir de encontro a esses estímulos e a esses canais de divulgação (FABRIS, Annateresa, 2000). Utilizando definições de Canclini (CANCLINI, Nestor. 2005) afirmo que as chamadas belas-artes e obras de vanguarda passam por reconceituações , uma vez que torna-se necessário redefinir a arte. Retirá-la dos museus e colocá-la na rua é um processo que ocorre pela mudança dos atores, pela união dessas minorias para combater ou lutar por um ideal – que Canclini expõe no fim do primeiro capítulo de “Diferentes, Desiguais e Desconectados” e que, finalmente, ao passarem a ser vistos, tornam-se objetos de uso e apropriação de outros grupos, criando uma relação com esses outros sujeitos, que passam a enxergar essa arte e manifestação de outra forma, podendo ser até comercial e de valorização estética, o que não muda o significado original, mas o transforma, de acordo com o grupo que o analisa e o utiliza. E, já que se 10 mudam os atores, mudam os sentidos de produção e de apreciação da arte. Logo, altera-se a forma como as pessoas ressignificam um muro vazio, ou o uso daquele espaço da cidade. Há, na obra de Benjamin “Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo”, a afirmação de Baudelaire de que a arte não deve ser separada da utilidade (BENJAMIN, W. 1989). E, fazendo alusão a Canclini e suas ressignificações - ao passar de um sistema cultural a outro, e ao inserir-se em novas relações sociais e simbólicas - a arte se transforma. Nesse caso, transforma-se ao ser trazida, por esse específico grupo urbano, com suas particularidades, para uma galeria a céu aberto, que é a cidade. E que nela, há uma circulação de mensagens e novos significados – que, nesse caso, são imagens capazes de sugeri-los, uma vez que elementos visuais podem complementar – ou ser a totalidade – um texto, considerando a expressividade e potencialidade desses elementos. Quem definirá isso, será o cidadão que sempre passou por determinados locais, mas que agora, que alguém interveio com cores, mensagens e desenhos, interage diferentemente com o patrimônio, diminuindo as distâncias entre a relação individuo x espaço urbano. O projeto “Pontos da Arte” surgiu para abalar e dar um novo olhar a esses espaços públicos. Tradições se quebram nessa ação, ao tirar a arte da galeria, e trazer aos olhos do público, na rua, sensibilizando consciências, criando uma nova relação com o espaço comum, e, assim, abalando as antigas estruturas e criando novidades. Formando, então, novas memórias. Nos indivíduos e na própria cidade. Teve como objetivo principal criar um espaço de convivência e trocas na cidade, um verdadeiro diálogo, seja ele por palavras (poemas, canções, frases) ou desenhos (composições abstratas, alusões a temas do cotidiano ou obras famosas, representações divertidas). Além de divulgar os trabalhos de outros jovens e adolescentes que participam de oficinas de graffiti em projetos sociais de Vitória. Gosto da fala de Annateresa Fabris, em Fragmentos Urbanos – Representações Culturais (2000), em que ela coloca a cidade como um espaço de utopias possíveis, onde podemos projetar nossas vontades, com comportamentos inovadores, ações coletivas e transformações. “Modelo espacial, social e cultural, a cidade apresenta-se , não raras vezes, como o território privilegiado da utopia. Em muitas 11 “arquiteturas pintadas”, típicas do Renascimento, configura-se o desejo utópico de construir modelos ideais, proceçoes de uma visão de mundo, de um pensamento filosófico, que só em poucas ocasiões terão oportunidade de transformar-se em realidade” (FABRIS, Annateresa, 2000, p.9). O espaço urbano moderno é um território possível dessa transformação antropológica, que alia arte e sociedade e gera novos comportamentos e novas percepções, transformando a mente do ser humano que nela habita, e tornando a arte imprescindível como memória da cidade, que se ressignifica constantemente. A cidade é o espaço possível para a arte, para o confronto de idéias, para expor as obras e reflexões individuais. O sentimento blasé, de Simmel, que a quantidade de informações e fluxo de pensamentos que a cidade abriga, é muitas vezes deixado de lado quando nos deparamos com algo diferente, com esse novo que choca e abala e transforma. Simmel também afirma que a atividade visual é preponderante nos seres humanos na cidade. E o que propusemos foi essa galeria a céu aberto. Para acesso de todos, para envolver o individuo nesse espaço que também é dele. Andar pela cidade e se deparar com algo que o faça parar, e olhar – o que é cada vez mais difícil nesse espaço moderno. Essa ressignificaçao das funções da arte e a utilização dessa cidade possível de se expurgar, e se utilizar. Aproveito para citar Benjamim, que, analisando a cidade e o flâneur, retrata essa transformação de interior em rua. Se a galeria é a forma clássica do interior sob o qual a rua se apresenta ao flâneur, então sua forma decadente é a grande loja. Este é, por assim dizer, o derradeiro refúgio do flâneur. Se, no começo, as ruas se transformaram para ele em interiores, agora são esses interiores que se transformam em ruas e, através do labirinto de mercadorias, ele vagueia como outrora através do labirinto urbano (BENJAMIM, W p.51) 12 Essa é a cidade que atuamos, uma cidade possível de realizações, de estímulos e divulgação artística e cultural. Onde os sujeitos, como os flâneurs, se encontram. A rua é moradia para o flâneur (BENJAMIN), e também para o interventor urbano. Nesse caos de imagens e informações, o individuo busca liberdade, e é nos muros e nos espaços públicos que encontra espaço e motivações para expurgar suas vontades, seus gritos, sua arte, já que a galeria e os museus não permitiram seu acesso. Essa possibilidade de espalhar imagens que a cidade oferece, dá ao artista e interventor urbano um leque de ações. E espalhar sua imagem pela cidade, faz com que esse indivíduo nela se encontre. No meio dessa atividade intensa urbana, reconhece-se. Identifica-se. Cria uma identidade, que as vezes foi reprimida, por essa dualidade que o urbano delega, de você ser ao mesmo tempo visto a qualquer momento, mas também ser apenas mais uma pessoa qualquer nessa multidão. Que é, também, segundo Benjamin, a dialética da flâneria; o homem se sente olhado por tudo e por todos, é suspeito, e por outro lado, é insondável, escondido. Nessa arte de rua, e imagens lançadas sobre ela, o individuo se realiza. “O prazer de se achar numa multidão é uma expressão misteriosa do gozo pela multiplicação do número” (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994, p. 54). Nos doze finais de semana que me dediquei a passar o dia fotografando, pintando e conversando com os 48 artistas que participaram do projeto pude constatar o consenso do prazer em interagir e se enxergar a partir dessa interação no espaço urbano. Segundo Simmel, em “Metrópole e a vida mental”, a característica mais significativa da metrópole é a sua extensão para além de suas fronteiras físicas, que a torna sede da divisão econômica do trabalho. Nela a pessoa precisa enfrentar a dificuldade de afirmar sua própria personalidade no meio da multidão, voltando-se às diferenças qualitativas para atrair a atenção do seu círculo social, tentada a adotar extravagâncias especificamente metropolitanas. O que nos faz voltar em Baudelaire e o prazer de se achar na multidão (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994, p. 54). Fazer-se conhecido torna-se o meio de salvar a posição e a autoestima. O graffiti permite a criação de uma identidade, da socialização e do reconhecimento de si mesmo no espaço urbano. Retomando essa obra de Benjamin, chamamos atenção para o flâneur, já citado nesse trabalho, que é 13 personagem urbano, apaixonado pela cidade e pela multidão, e que tem como habito a flânerie, que seria a apreensão e representação desse espaço urbano – constantemente reconstruído e ressignificado – gerando novas propostas estéticas e novos olhares sobre o espaço comum. O citadino que intervém no espaço, e aquele que o percebe, podem ser representações desse flâneur, já que estão em constante observação do espaço e de seus agentes, e já que, segundo Benjamin “a cidade é o autêntico chão sagrado da flanêurie” (1994: 191) e o “fenômeno da banalização do espaço” é experiência fundamental para o flanêur (1994: 188). Além de que, consenso entre os artistas com que convivi: somente quando passeamos, percorremos e percebemos a cidade nos é possível conhecê-la. E eles o fazem em busca de novos muros e espaços para interação, além de apreciação de intervenções alheias. A rua, então, é refúgio para o flâneur, e espaço onde essa paixão pode ser exteriorizada: A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho observa o ambiente. Que a vida em toda sua diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolva entre os paralelepípedos cinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo: eis o pensamento político secreto da escritura de que faziam parte as fisiologias. (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994) Muros como escrivaninhas e adornos de parede melhores que pintura a óleo no salão, são representações dos grafiteiros, e que casam com essa descrição de Benjamin. A crítica do descaso burguês com a coisa pública, feito por Walter Benjamin em Flâneur, é muito válida. Pegamos pontos de ônibus sujos, maltratados e, por 14 nossas mãos, transformamos em arte, enaltecendo e preservando a identidade de um grupo. Para esse cosmopolita moderno, as imagens são mais importantes que a realidade. Nada que é normal diz respeito ao flâneur. O flâneur também é aquele que vem contradizer, transformar, questionar. Logo, quem faz e quem consegue enxergar essa nova arte, criticamente ou não, age como flaneur no atual sistema. A degradação da experiência na vida moderna torna-se algo doloroso e dá impulso para outra base artística, com uma nova objetividade: arte na rua, apropriação dos patrimônios públicos, e cultura marginal ascendendo e criando identidades. E concordando e aproveitando-me da máxima de Diderot: “É bela a rua”, acredito que ao interagirmos e nos apropriarmos dela, admirando ou intervindo, dialogando ou simplesmente criando um olhar diferente desse blasé que a imensidade de fluxo de idéias que o urbano nos trás, a rua se embelezará cada vez mais, uma vez que torna-se de todos. 15 CONCLUSÃO Escolhi a rua, pois me interessei pela possibilidade de analisar o que está no meu cotidiano e que requer um olhar de dentro para que possa ser compreendido. Entusiasta da literatura, da arte e de Baudelaire, que sou, encanto-me pelas mensagens visuais – incluindo as escritas - que o urbano proporciona. Cheia de símbolos e significados, que cabe a nós, antropólogos, analisar, sem absolutas certezas. Compartilho do sentimento da Annateresa Fabris, quando diz: “É, sem dúvida, em Baudelaire e, sobretudo no Baudelaire de “O pintor da vida moderna” que o cronista carioca encontra a idéia da multidão citadina como movimento instável e fugidio, na qual o eu, presa do turbilhão e do sentido de embriaguez que ela emana, perde sua dimensão individual” (FABRIS, Annateresa, 2000, p.9). O individual na sua trajetória e projetos, perpassa e convive no campo de possibilidades do urbano, e, muitas vezes, essa complexidade da rede de significados nos faz conviver com trajetórias sem penetrá-las. Esse fervo de informações e possíveis ações instiga a continuidade da pesquisa na cidade e sobre a mesma. Para ilustrar a razão de meus anseios, cito de novo Annateresa: “Antípoda do espaço rural, a cidade é frequentemente um centro de poder político-administrativo, econômico, militar, religioso, artístico e cultural. Desde a Revolução Industrial, tornou-se o espaço mais propicio a produção artístico- cultural. É nela que se configura uma vida artística e cultural intensa. É nela que vivem os artistas, atraídos pela possibilidade de confrontar obras e idéias, de inserir suas produções num circuito peculiar. É nela que a produção artístico-cultural encontra estímulos e canais de divulgação, que o confronto 16 entre o presente e o passado se torna mais acirrado, gerando aquela mobilidade de signos e símbolos, que é a verdadeira essência da vida urbana e de seus produtos simbólicos.” (FABRIS, Annateresa, 2000, p.10). O projeto “Pontos de arte – A cor da rua” conseguiu ilustrar essas potências e características do urbano. Utilizando-se da preponderância do visual, das ressignificaçoes do espaço, da arte, do individuo e sua vontade de pertencimento e reconhecimento no espaço, das criações de identidade, e de uma nova relação entre o espaço público e os habitantes dele. Transformando, da maneira que o urbano consegue, a mente do ser humano. 17 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALANDIER, George. A desordem: elogio do movimento (Le desórdre).Trad, de Suzana Martins. Bertrand Brasil, 1997 BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora. Brasiliense, 1989 Benjamin, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7. ed., trad. de Sérgio Paulo Rouanet, são Paulo: Brasiliense, 1994, CANCLINI, Néstor Garcia. A cultura extraviada nas suas definições. In: Diferentes, desiguais e desconexos: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005 FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 2000. Firth, Raymond. Organização social e estrutura social. In: CARDOSO, F.H. & IANNI, O. (org.). Homem e. Sociedade. São Paulo: Cia. Editira Nacional, 1971. SIMMEL, Georg. A Metropole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. Schutz, A. (1979).Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989 WIRTH, Louis. Urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.