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RIQUEZA DOS CARISMAS: FUTURO DA IGREJA DO NOVO MILÊNIO*
Maria Clara Lucchetti Bingemer
A complexidade do tema sobre a vocação e a missão do cristão leigo e sua
extensão representam um enorme desafio, que a reflexão teológica está longe de cobrir
satisfatoriamente. Neste momento em que florescem por todos os lados os movimentos
leigos, - antigos e novos – e onde o futuro da Igreja depende em boa parte de como se
configurará a participação dos leigos nesta mesma Igreja, importa retomar a história do
catolicismo brasileiro que sempre foi marcado por uma forte presença laical.
A história da Igreja do Brasil é, desde os seus primórdios, marcada por uma
presença forte dos cristãos leigos. Desde os tempos da colônia pode-se constatar no
Brasil a presença de um catolicismo popular, surgido dentro do amplo quadro do
catolicismo tradicional, mas dotado de uma certa autonomia quanto à dimensão
devocional. Essa forma de vivência da fé católica no Brasil colônia traz como
interessante característica o fato de ser administrada "de modo especial pelos leigos, que
trazem de Portugal seus santos e práticas devotas e continuam na colônia as devoções da
tradição familiar"1.Nesse tipo de catolicismo, o povo católico leigo se organiza para
expressar sua devoção, centrada principalmente no culto aos santos, nas procissões, nas
romarias, promessas e ex-votos. As casas, as capelas e os santuários eram os templos
desse tipo de catolicismo que uma quadrinha popular assim descreve:
"Muito santo
Pouco padre
Muita reza
Pouca missa".
Ao lado desses leigos das camadas populares e mesmo, às vezes confundidos e
justapostos, estão também outros leigos do catolicismo tradicional, organizados em
confrarias e irmandades - instituições que, embora enfraquecidas, persistem até hoje.
A organização do catolicismo brasileiro nos primeiros tempos de sua história é,
portanto, marcadamente laical, sendo o protagonismo mais clerical situado em época
mais recente, datada da época da "Questão Religiosa" e do início da Primeira República.
A partir daí somente, é que o rosto da Igreja brasileira passa a se identificar maciçamente,
na vivência de sua fé e expressões religiosas, com o clero e a hierarquia.
A organização laical brasileira no nosso século é, portanto, herdeira de toda esta
longa tradição. Por um lado, a tradição remota de muitos séculos de um catolicismo
marcadamente leigo. Por outro lado, a tradição mais recente , na qual os leigos foram,
progressivamente, passando para uma posição mais dirigida e menos visível. Para
responder a este desafio, a partir da década de 40, surgem no Brasil os primeiros
movimentos visando permitir maior participação do laicato na vida da Igreja. Merecem
destaque, entre estes, o movimento litúrgico e, sobretudo, a Ação Católica.
*
Este texto foi originalmente composto às vésperas do Sínodo sobre os leigos, em 1987 e apresentado à
Assembléia Nacional da SOTER (Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião). Foi publicado
originalmente em Perspectiva Teológica 19 (1987) pp 29-48. Encontra-se aqui ligeiramente modificado.
1
R. AZZI, Evangelização e presença junto ao povo, aspectos da História do Brasil, em: AA.VV. , Religião
e Catolicismo do povo, op. cit. ,p.45
2
Este último, consolidado e referendado mais efetivamente nos anos 60, com a
celebração do VaticanoII, é um dos principais responsáveis pela renovação da Igreja no
Brasil, identificada com as necessidades e anseios da população brasileira, assumindo
uma posição crítica diante do governo militar autoritário e disposta a defender os direitos
dos pobres e marginalizados2.
Não é possível, portanto, hoje, falar de leigos na Igreja do Brasil sem dar
significativo destaque à Ação Católica. Esse movimento, com sua rigorosa e eficaz
formação de quadros, sua "garra" apostólica, dificilmente encontra substitutivo
equivalente em qualidade e importância nas três últimas décadas. Recebendo mandato da
hierarquia, os leigos da Ação Católica3  na sua maioria do meio estudantil, operário e
profissional  eram no mundo seu "braço estendido". Isso propiciava, para a atuação e
posicionamento desses leigos, um reconhecimento oficial. Quando falava o leigo, falava a
Igreja.
A questão do tipo de leigo que a experiência da AC traz ao proscênio eclesial é
também importante. No Brasil de hoje após quase quarenta anos de ditadura militar e o
conseqüente esvaziamento de lideranças dela decorrente, ainda se pode pretender uma
organização de laicato como a da AC? Por outro lado, em que a militância leiga atual
pode aprender desta importante e dolorosa experiência em termos de organização, erros e
acertos?4
O momento pós-conciliar no Brasil, juntamente com a ascensão e queda da AC
traz, ainda, um outro componente importante com relação à reflexão sobre o leigo: o
grande florescimento dos movimentos leigos de classe média. Nascidos e formados em
contexto outro que o brasileiro ou mesmo latino-americano, com sua estrutura e
espiritualidade centralizada nos leigos, apresentam esse movimentos uma filiação,
vinculação e identidade a nível que se poderia chamar "transnacional"5.
Os leigos que compõem esses movimentos não têm uma formação militante e
acurada intelectualmente como os da AC. São leigos porque não pertencem ao clero e
procuram os movimentos acima mencionados como um "lugar eclesial" que os faça
sentir-se bem e com direito de cidadania e inserção dentro da Igreja.
Para o clero, os religiosos e os bispos, os movimentos, por sua vez, vieram
preencher algumas lacunas: o vazio de quadros deixado pelo esboroamento e a dispersão
das lideranças da AC começou a ser preenchido pelos membros dos movimentos, que
com sua alegre disponibilidade, começaram a assumir encargos nas paróquias e dioceses,
e a coordenação das diversas pastorais. Além disso, para muitos padres e religiosos de
ambos os sexos que andavam como que perdidos no que respeita à sua identidade pessoal
e ao sentido de sua consagração, foi aberto um novo espaço de trabalho e sobretudo um
clima afetivo que lhes forneceu novo vigor e redobrado fervor no que diz respeito à
vivência de sua vocação. Apresentando alguns pontos positivos explícitos, além dos já
2
Cf. ibid. ,P. 60.
De agora em diante, nos referiremos à Ação Católica como AC.
4
Veja sobre esse problema dos cristãos na política as reflexões de C. BOFF, F. BETTO, P. RIBEIRO DE
OLIVEIRA, L. E. WANDERLEY, R. A. CUNHA, em: Os cristãos e questão partidária, 1°e 2° cadernos
do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis Cf. ainda a reflexão de L.A. GÓMEZ DE
SOUZA, em Tempo de Presença, CEDI, outubro de 1986.
5
Cf. J. COMBLIN, Os "Movimentos"e a Pastoral latino-americana, em:REB 43(1983) 246-247. Referimonos aqui mais aos movimentos surgidos com grande força no imediato pós-concílio, como os Cursilhos de
Cristandade, os Encontros de casais com Cristo, etc.
3
3
citados (por exemplo, o fato de serem a única porta de entrada do catolicismo na nova e
desevangelizada classe média urbana, a nível de juventude e de adultos; ou ainda, o fato
de darem aos leigos as rédeas da organização e coordenação num espaço onde podem
falar sua linguagem sem se sentirem inferiorizados em relação ao clero), a presença
crescente desses movimentos levanta, no entanto, algumas questões cruciais para a
reflexão da Igreja brasileira hoje.
O cristão leigo em busca do resgate de sua identidade
As já quase quatro décadas que nos separam do Concílio com a
conseqüente e revitalizadora abertura que este trouxe para dentro da Igreja foram
fazendo acontecer a nível pastoral a superação, em alguma medida, do “ocultamento”e da
“não visibilidade”do cristão leigo na Igreja. Surgiram com força as vocações laicais para
exercer serviços e ministérios dentro da Igreja. Multiplicaram-se os leigos, homens e
mulheres que buscaram os cursos de teologia, chegando a obter graus acadêmicos e
recebendo da hierarquia a missão canônica para o magistério e a inteligência da fé, que
antes parecia estar restrito ao clero e aos religiosos.
No campo da espiritualidade a entrada dos leigos se fez de maneira
vigorosa e surpreendente. É cada vez maior o número de leigos e leigas que orientam
espiritualmente pessoas, pregam retiros, organizam celebrações e liturgias e são
referência obrigatória quando se trata da vida espiritual da comunidade. Neste campo no
qual foram sempre receptores às vezes um tanto passivos, cada vez mais os leigos
superam "impossibilidades"e dão demonstrações qualificadas de que, sem negar a imensa
importância que pode chegar a ter sua atuação na esfera temporal, transformando e
influindo sobre a realidade injusta, podem ser chamados e convocados pelo Senhor a
atuar no nível mais propriamente eclesial, ajudando a caminhada dos irmãos no
aprofundamento de sua experiência espiritual. Neste particular, merece especial destaque
a questão da mulher.
Após a grande lufada de ar puro trazida pelo Concílio Vaticano II,
começou a se fazer ouvir sempre mais dentro da Igreja a voz da mulher, reivindicando a
ocupação de espaços dentro da comunidade e realizando-a efetivamente: pelo assumir da
coordenação da comunidade a distintos níveis, pelo exercício de um verdadeiro
magistério espiritual, pela produção de uma reflexão teórica sobre a experiência religiosa
e os conteúdos doutrinários da fé cristã desde sua própria perspectiva de mulher.6 O
desenrolar da história recente das religiões e Igrejas cristãs na América Latina e, muito
especialmente, no Brasil, tem mostrado que o campo religioso cristão brasileiro tem
como atrizes, na sua grande maioria, mulheres. E estas, as mulheres teólogas, com seu
"dizer "diferente e novo das coisas de sempre, têm renovado a face da Igreja e mesmo por que não? - da face da terra.7
6
Cf. a já numerosa e qualificada produção teológica e exegética feminista, sobretudo nos países do
Primeiro Mundo. Na América Latina e no Brasil, esta produção, embora se encontre em estágio ainda
incipiente, começa a crescer consideravelmente nos últimos sete anos.
7
V. sobre isso nosso texto A mulher teóloga, vocação e ministério, in M. FABRI DOS ANJOS (ORG)
Teologia: profissão, SP, Loyola, 1996, pp 73-86
4
Os documentos da Igreja pós-conciliar dão continuidade às intuições do
Vaticano II. Embora bastante fiel ao espírito conciliar e à "divisão de tarefas"que nele
parece predominar, o documento Christifidelis Laici, do Sínodo de 1987 já acena com a
obrigatória participação dos fiéis leigos na missão universal de evangelização dada pelo
Senhor a Sua Igreja. Sendo evangelizador, o leigo pode ser - e efetivamente o é chamado a exercer ministérios de índole espiritual, ocupando-se das "coisas do Espírito"
que antes pareciam apenas adstritas aos ministros ordenados ou aos religiosos
consagrados pelos votos.
Na América Latina, a recente Conferência de Santo Domingo, acontecida
em 1992, assume a questão dos leigos como linha pastoral prioritária, reconhecendo-os
como protagonistas da nova evangelização.8 E a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil lança em 1998 um documento emergente de sua Assembléia Geral inteiramente
sobre a importância do laicato na Igreja brasileira. Certamente está em curso um novo
protagonismo dos leigos e uma vez mais a Igreja do Brasil faz ouvir sua voz neste
particular, tendo a grande oportunidade de resgatar toda uma antiga tradição assim como
inovar e ousar num caminho no qual está empenhado todo o corpo da Igreja. É o futuro
do Reino de Deus que se encontra em jogo quando se dão passos criativos e fecundos na
direção da construção de uma Igreja onde sacerdotes, religiosos e leigos unem forças e
partilham sonhos e realizações.
Os Desafios Que A Pastoral Coloca
A pastoral e a vida e vida concreta da comunidade eclesial sempre foram o terreno
onde as diferentes instâncias do Povo de Deus se moveram e organizaram; onde as novas
tendências e as formas de ser eclesialmente diferentes se fizeram concretas antes de
serem oficialmente assumidas; e onde apareceu, realmente, nas diversas épocas, o
verdadeiro rosto da Igreja. Com os leigos e o laicato não acontece diferente. Para poder
entender um pouco mais o tecido plural e multiforme que constitui o laicato brasileiro em
sua história mais recente, é preciso procurar perceber quais os tipos de organização e
estruturas eclesiais que por ele foram criados ou que lhes foram apresentados pelos
outros segmentos da Igreja, tipos de organização e estruturas estas à quais aderiram ou
nas quais se inseriram.
a) A Ação Católica
Não é possível, hoje, falar de leigos na Igreja do brasil sem dar significativo
destaque à Ação Católica. Esse movimento, com sua rigorosa e eficaz formação de
quadros, sua "garra" apostólica, ainda não encontrou substitutivo equivalente em
qualidade e importância nas duas últimas décadas. Recebendo mandato da hierarquia, os
leigos da Ação Católica  na sua maioria do meio estudantil, operário e profissional 
eram no mundo seu "braço estendido".Isso propiciava, para a atuação e posicionamento
desses leigos, um reconhecimento oficial. Quando falava o leigo, falava a Igreja . O
melancólico e desagregador esboroamento que o movimento conheceu no final da década
de 60, com desbaratamento das lideranças, a formação da Ação Popular (AP) e a
8
Cf. n. 97, 103, etc.
5
conseqüente retirada do apoio por parte da hierarquia trazem grandes questões para a
reflexão teológica e pastoral sobre o laicato hoje.
Por outro lado, o perigo saudosista de querer reeditar a experiência da AC não é
menos real. Sobretudo porque a configuração desta experiência traz não poucos
problemas eclesiológicos reais que se colocam para a reflexão teológica. O tempo passou
e as circunstâncias também. A resposta aos desafios da sociedade e do mundo pedem
criatividade, tornando sempre problemático reeditar uma experiência em moldes
idênticos a tentativas anteriores. A questão do tipo de leigo que a experiência da AC traz
ao proscênio eclesial é de suma importância. No Brasil de hoje após várias décadas de
ditadura militar e o conseqüente esvaziamento de lideranças dela decorrente, ainda se
pode pretender uma organização de laicato como a da AC? Por outro lado, em que a
militância leiga atual pode aprender desta importante e dolorosa experiência em termos
de organização, erros e acertos? 9
b) Os movimentos de classe média
O momento pós-conciliar no Brasil, juntamente com a ascensão e queda da AC
traz, ainda, um outro componente importante com relação à reflexão sobre o leigo: o
grande florescimento dos movimentos leigos de classe média. Nascidos e formados em
contexto outro que o brasileiro ou mesmo latino-americano, com sua estrutura e
espiritualidade centralizada nos leigos, apresentam esse movimentos uma filiação,
vinculação e identidade a nível que se poderia chamar "transnacional"10.
Os leigos que compõem esses movimentos não têm uma formação militante e
acurada intelectualmente como os da AC. São leigos que procuram os movimentos acima
mencionados como um "lugar eclesial” onde possam descobrir sua via de inserção e
cidadania dentro da Igreja.
Eclesialmente falando, esses movimentos vieram preencher algumas lacunas: o
vazio de quadros deixado pelo esboroamento e a dispersão das lideranças da AC
começou a ser preenchido pelos membros dos movimentos, que com sua alegre
disponibilidade, seu bem-humorado entusiasmo, começaram a assumir encargos das
paróquias e dioceses, a coordenação das diversas pastorais. Além disso, para muitos
padres e religiosos de ambos os sexos que andavam como que perdidos no que respeita à
sua identidade pessoal e ao sentido de sua consagração, foi aberto um novo espaço de
trabalho e sobretudo um clima afetivo que lhes forneceu novo vigor e redobrado fervor
no que diz respeito à vivência de sua vocação. É compreensível, portanto, que esse dado
novo na face da Igreja, que cresce sob diferentes denominações, seja olhado com extrema
benevolência por parte de pastores que neles descobriram um novo modelo de
9
Veja sobre esse problema dos cristãos na política as reflexões de C. BOFF, F. BETTO, P. RIBEIRO DE
OLIVEIRA, L. E. WANDERLEY, R. A. CUNHA, em: Os cristãos e questão partidária, 1°e 2° cadernos
do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis; cf. ainda a reflexão de L.A. GÓMEZ DE
SOUZA, em Tempo de Presença, CEDI, outubro de 1986.
10
Cf. J. COMBLIM. Os "Movimentos"e a Pastoral latino-americana, em:REB 43(1983) 246-247.
6
configuração para a motivação pastoral da parcela do povo de Deus que se encontra sob
sua responsabilidade.
Apresentando alguns pontos positivos explícitos, além dos já citados (por exemplo,
o fato de serem a única porta de entrada do catolicismo na nova e desevangelizada classe
média urbana, a nível de juventude e de adultos; ou ainda, o fato de darem aos leigos as
rédeas da organização e coordenação num espaço onde podem falar sua linguagem sem
se sentirem inferiorizados em relação ao clero), a presença crescente desses movimentos
levanta, no entanto, algumas questões cruciais para a reflexão da Igreja, hoje.
Por outro lado, esses novos movimentos parecem fazer despontar um outro ângulo
pelo qual o cristianismo estaria buscando e encontrando uma via de presença na vida do
povo brasileiro, sobretudo pela tentativa não apenas de dialogar com os filhos da
modernidade, que marcados pelas desilusões revolucionárias pós-marxistas, voltam-se
para a via da espiritualidade e da experiência religiosa, como também pelo esforço de
responder à demanda por espaços e experiências mais profundas e gratuitas do mistério e
do divino, demanda que grassa mesmo entre os militantes cristãos mais comprometidos
com a secularização e a transformação política.11
O grande desenvolvimento de movimentos como a Renovação Carismática
Católica; o enorme sucesso que os padres cantores têm obtido nos MCS com uma
proposta onde a oração e a espiritualidade são de importância central, com todo um
revestimento feito pela música e até a dança; a procura por retiros espirituais e jornadas
de recolhimento ali onde antes apenas as análises de conjuntura encontravam êxito e
repercussão lançam interpelações de fundo ao catolicismo brasileiro neste momento em
que o país reflete sobre seus quinhentos anos de existência conhecida pelo público
ocidental letrado.
Uma tipologia do laicato brasileiro hoje
Na tipologia que tentamos descrever acima, podemos portanto identificar
algumas classificações que estão longe de ser exaustivas no nosso intento de
compreender melhor os novos movimentos. São apenas tendências que nos ajudam a
compreender o fenômeno em questão: (1. católica progressista <TdL, CEBs, e mais
outros movimentos como os herdeiros do modelo da Ação Católica etc.>; 2. católica
conservadora <movimentos com marcada ênfase intra-eclesiástica, que oferecem acurada
formação a seus quadros, voltando-os sobretudo para o trabalho dentro da Igreja>, 3.
católica neo-conservadora < novos movimentos, RCC, Neo-Catecumenado, Comunhão e
Libertação, que apresenta igualmente sobretudo um compromisso intra-eclesial, porém
com traços mais modernos e uma comunicação mais adequada sobretudo para o público
de classe média, jovem e adulto etc.> ; 4. religiosidade popular evangélico-pentecostal,
que é a vivência da espiritualidade mais propriamente carismática organizada nos setores
populares. Ao lado disso, se pode ainda identificar a presença da chamada New Age, o
Nova Era e seus derivados que penetram também dentro da Igreja, seduzindo vários
11
Cf. sobre isso P. SANCHIS, na introdução ao livro Catolicismo no Brasil atual, SP, Loyola, ISER,
1992; v. tb. J. HORTAL, O que fazer diante da expansão dos grupos religiosos não católicos? , col.
Estudos da CNBB
7
segmentos do povo católico e propondo alguns dos elementos de sua proposta como
integrantes da vivência da fé eclesial.12
Esse olhar para a história recente do laicato no Brasil e essa tipologia que
procuramos descrever ajudam a delinear alguns traços do perfil do leigo no Brasil de
hoje. E lançam um desafio para a pastoral e a reflexão teológica que se vêem, no
umbral do Novo Milênio, chamadas a dizer alguma palavra nova sobre a questão.
No fundo desta explosão religiosa complexa e plural, escondem-se várias questões de
extrema importância, parece-nos, não só para a Teologia católica, como para toda a vida
da Igreja, assim também como para as ciências sociais e humanas que se propõem lidar
seriamente com este problema mais que humano da experiência religiosa ou experiência
do Sagrado.
Por um lado, nesta eclosão plurireligiosa - vai uma velada crítica às Igrejas
históricas tradicionais, entre as quais se inclui a nossa, a Igreja católica - que teriam
perdido boa parte de seu caráter indicativo, mistérico, permanecendo quase que somente
caracterizadas por seu aspecto institucional - articulador da comunidade, ou éticotransformador da realidade. Neste sentido, a força que vem tomando no seio do próprio
Cristianismo institucionalizado o uso de técnicas das tradições orientais, terapias de autoajuda, ou busca de recursos identificados nitidamente com a Nova Era como ajuda na
vivência da espiritualidade, se traz preocupação por um lado, por outro pode ser encarada
como uma sintoma de que está em curso uma nova maneira ou tentativa de recuperar o
Cristianismo iniciático e mistagógico .
A ressacralização do mesmo mundo do qual a razão moderna apressou-se em
proclamar o desencantamento e a secularidade complexifica as perguntas acima
levantadas. O reaparecimento, o reemergir, - mais do que volta - do religioso, do
sagrado, a sede pelo mistério e pela mística em distintas formas aparecendo após o
“banimento”ensaiado pela secularização denota uma volta ( ou uma permanência) da
necessidade contemplativa, um aparentemente novo emergir de valores como a
gratuidade, o desejo, o sentimento e a re-descoberta, em nova dimensão, da natureza e da
relação do homem com o planeta.
A questão que nos fica após estas reflexões , é, no entanto, que não é nada claro
que essa busca quase feroz de nossos contemporâneos por experiências místicas
corresponda a uma real busca por um encontro em profundidade, por um dispor-se a ser
afetado pela alteridade do outro. A busca por sensações mais ou menos religiosas ou
“espirituais”não necessariamente implica desejo de abrir-se à experiência da alteridade, e
pode não deixar brechas ou espaços para que a alteridade e a diferença do outro,
epifânicamente, se manifestem em toda a sua liberdade, inventando a relação a cada
suspiro e a cada passo.
Por outro lado, é fato igualmente que uma excessiva horizontalização das coisas
pode reduzir a experiência da fé cristã a uma preocupação ex clusivamente social, a uma
militância político-partidária, que não necessita ser inspirada nem motivada pela fé para
existir e/ou para ser real.
Em todo caso, parece ser que a riqueza dos carismas que florescem na Igreja hoje
não conseguem dar todo o fruto que poderiam e atingir toda a sua medida em termos de
fecundidade em boa parte devido a radicalismos e polarizações que dividem o corpo
12
Ibid p 13. Cf. para apoiar o que dizemos a grande procura que têm os retiros e livros do dominicano Jean
Yves Leloup, etc.
8
eclesial e se fazem sentir como predatórios em meio a um laicato que precisa mais do que
nunca unir forças, investir nos pontos que podem ajudar sua integração e união, a fim de
fazer presença visível e transformadora dentro do tecido eclesial.
Este parece ser o grande desafio que a teologia hojeenfrenta: o de encontrar um
fio condutor que ajude os cristãos leigos a encontrarem e resgatarem sua identidade sem
dividir-se inutilmente em discussões estéreis que dividem em lugar de unir e fragmentam
em vez de solidificar e integrar.
Tendo em vista isto, apresentamos a seguir algumas pistas que cremos poderem
ajudar a pensar caminhos que ajudem a superar estes impasses de maneira criativa e
eficaz.
Por uma teologia do existir cristão
No que tange ao objetivo do Conselho - e, futuramente, da Conferência dos Leigos
do Brasil – que é articular as associações e movimentos existentes a fim de dar mais força
à atuação do laicato brasileiro, há uma divisão de papéis dentro do corpo eclesial que se
torna um problema de fundo e dificulta a realização deste objetivo: a contraposição
sagrado X temporal ou sagrado X profano. Esta divide a comunidade eclesial em dois
blocos de identificação: um primeiro que situa os leigos na esfera temporal, nas
estruturas sociais, na política, no mundo do trabalho e na família. Esse é seu campo. Já o
clero e os religiosos se ocupam das coisas do espírito, do sagrado. Têm por função
realizar, administrar e distribuir os sacramentos e os diversos "bens" simbólicos dos quais
se vive e se alimenta a comunidade. E dar testemunho, no mundo, do espírito das bem
aventuranças13.
Por outro lado, parece claro que a Igreja do Brasil e da América Latina não deseja
mais centrar suas forças formadoras e pastorais apenas ou mesmo principalmente sobre o
clero e os religiosos mas, pelo contrário, tenciona investir com entusiasmo e força na
formação deste laicato,que constitui a grande maioria de seus membros. E para que isso
aconteça está disposta a colocar os meios, assumindo-os como linha pastoral
prioritária,confiando-lhes ministérios e serviços dentro do corpo eclesial - e não só no
mundo secular - e promovendo-os constantemente.14
Além disso, está disposta a reconhecer as lacunas e falhas que possam ter
havido na formação destes mesmos leigos ao longo dos tempos. Fala-se claramente no
13
Diz expressamente a LG no seu n°31: "Pois os que receberam a ordem sacra, embora algumas vezes
possam ocupar-se de assuntos seculares, exercendo até profissão secular, em razão de sua vocação
particular destinam-se principalmente e ex-professo ao sagrado magistério. E os religiosos por seu estado
dão brilhante e exímio testemunho de que não é possível transfigurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o
espírito das bem-aventuranças. É porém específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de
Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no século, i.é, em todos e em
cada um dos ofícios e trabalhos do mundo. Vivem nas condições ordinárias da vida familiar e social, pelas
quais sua existência é como que tecida. Lá são chamados por Deus para que, exercendo seu próprio ofício
guiados pelo espírito evangélico, a modo de fermento, de dentro, contribuam para a santificação do mundo.
E assim manifestam Cristo aos outros, especialmente pelo testemunho de sua vida, resplandecente em fé,
esperança e caridade. A eles, portanto, cabe de maneira especial iluminar e ordenar de tal modo todas as
coisas temporais, às quais estão intimamente unidos, que elas continuamente se façam e cresçam segundo
Cristo, para louvor do Criador e Redentor."
14
cf. nn. 42,97,101,103 etc
9
documento de conclusões de Santo Domingo em "leigos nem sempre adequadamente
acompanhados pelos Pastores" ,"deficiente formação", etc. 15 Ao mesmo tempo se
afirma que "os fiéis leigos comprometidos manifestam uma sentida necessidade de
formação e de espiritualidade"; " os pastores procurarão os meios adequados que
favoreçam aos leigos uma autêntica experiência de Deus" . Coloca-se como linha
pastoral principal "incentivar uma formação integral,gradual e permanente dos
leigos".16
Todas estas constatações não se originam, no entanto, do oportunismo de
uma instituição que se assusta com a queda de nível da formação de seus quadros nem
com a possível diminuição quantitativa de seus efetivos. Originam-se, sim, ao invés, de
uma constatação de base que não provém da lógica humana,mas é apenas assimilada por
revelação do próprio Deus: a de que todo o povo de Deus recebe do Senhor mesmo o
chamado à santidade. Afirmada enfaticamente não só pela Sagrada Escritura, como
também, mais recentemente, pelo Concílio Vaticano II, especialmente na Constituição
Lumen Gentium, essa constatação permite ver e conceber a Igreja, na sua totalidade,
segundo aquilo que é comum a todos os fiéis.10 A intenção do Concílio é, aí, "mostrar o
que é comum a todos os membros do povo de Deus, antes de qualquer distinção de ofício
e de estado particular, considerado o plano da dignidade da existência cristã." 11
Mais ainda. Toda esta eclesiologia nova e total inaugura uma diferente
convicção profunda: a de que este chamado maior e primordial a todo um povo é
inseparável da possibilidade de assumir e fazer acontecer o desafio eclesial imenso de
uma nova evangelização e que nele estão incluídos também os fiéis leigos. Em relação a
estes, os pastores se sentem responsáveis, no sentido de ajudá-los a desenvolver sua vida
de fé até o desabrochar pleno de uma autêntica santidade cristã.
Ora, esta santidade não acontece sem uma profunda espiritualidade. Ao
afirmar a busca da santidade como linha pastoral , o documento de Santo Domingo
afirma que é preciso "procurar que em todos os planos de pastoral a dimensão
contemplativa e a santidade sejam prioridade,a fim de que a Igreja possa fazer-se
presença de Deus no homem contemporâneo,que tem tanta sede dele".17 Ao se referir
aos leigos, diz que " a santidade é um chamado a todos os cristãos" e que " os pastores
procurarão os meios adequados que favoreçam aos leigos uma autêntica experiência
de Deus."
E diz ainda:" Favorecerão também publicações específicas de
espiritualidade laical."18
Tendo-se tornado, portanto, uma prioridade pastoral da Igreja latinoamericana a partir de Santo Domingo, parece-nos importante refletir agora sobre a
identidade desta assim chamada "espiritualidade laical" e sobre a pertinência mesma do
termo que assim a qualifica. O que seria ou em que consistiria a "espiritualidade laical"
e em que se distinguiria de outros tipos de espiritualidade, a saber a "clerical" ou a
"religiosa"? Pode-se ou mesmo deve-se falar de uma espiritualidade direcionada
15
cf. nn. 96-97
cf. nn. 95, 99
10
Cf. B. FORTE, A Igreja ícone da Trindade. Breve eclesiologia, SP, Loyola, 1987, pg 30
11
Y. CONGAR, La chiesa come popolo di Dio, in Concilium 1 (1965) pg 30, cit. in B. FORTE, op. cit., pg
31
17
n. 144
18
n. 144,99. O grifo é nosso.
16
10
especificamente para os leigos, diferente daquela da qual vivem outros segmentos da
Igreja? Será ela compatível com a concepção de Igreja re-visitada pelo Concílio, que
restituiu à mesma Igreja o primado da ontologia da graça sobre toda articulação e
delimitação particular e que ressalta a antropologia cristã, a vida segundo o Espírito como
alternativa proposta a toda criatura humana? 14
Todas estas perguntas poderão parecer um tanto supérfluas e suas
respostas, óbvias. Porém, se nos empenharmos em voltar os olhos para algumas noções
de base da identidade do chamado "leigo" no seio da Igreja e sobre o sentido da vida no
Espírito desde tempos mais antigos na história do Cristianismo, veremos que a questão é
menos simples do que parece.
Nos primeiro séculos da experiência cristã, a igreja na sua totalidade era vista em
relação de proposta e alternativa ao mundo. A distinção que havia não era tanto entre
"especialistas do espírito" e "cristãos dedicados aos assuntos temporais", como entre a
novidade cristã comum a todos o batizados e a sociedade (o mundo) que devia ser
evangelizado. A Igreja da primeira hora, tal como é descrita no N.T., não parece
apresentar tampouco, traços daquilo que hoje categorizamos e definimos como leigo.
Nem tampouco de uma realidade qualquer que se pudesse transpor e colocar em
correspondência com o fato leigo contemporâneo19. Existia a comunidade, aqueles e
aquelas que, a partir da experiência do Espírito Santo que lhes era dado fazer, lançavamse inteiramente, de corpo e alma, no seguimento de Jesus Cristo, tendo por única
preocupação a realização da vontade do Pai e a construção de Seu Reino.
A originalidade e o tipicamente cristão, portanto, é que todos estão consagrados a
Deus,e que não há nenhum cristão que tenha uma vida "profana". O batizado, seja qual
for o carisma recebido e o ministério que exerce, foi, mediante o Batismo, incorporado a
Cristo e ungido pelo Espírito e assim constituído membro pleno do povo de Deus.20
O leigo é,pois,o cristão sem acréscimos,sem adjetivações outras que sua pertença a
Cristo pelo batismo. E não existiria, a partir desta fundamentação, espiritualidade própria
dos "leigos", que são chamados simplesmente a viver a vida "em Cristo" e " no Espírito"
como todos os cristãos. O termo "irmãos" designa uma condição comum a todos os que
partilham a mesma fé e praticam o mesmo culto cristão. E se existe uma paternidade dos
ministros do Evangelho,esta produz não filhos,mas irmãos. Esta fraternidade é o bem
mais precioso que os cristãos recebem de Seu Senhor, e aquilo que deve ser protegido e
defendido a qualquer preço. 21
O sentimento dominante - que gera,portanto,uma espiritualidade condizente - é o de que
todos os batizados são Igreja. Esta - a Igreja - é o "nós" do cristão,que lhe abre espaço
para ter parte nos bens celestes,escatológicos. Ao mesmo tempo, a Igreja existe em cada
cristão,e assim é por ele vivida. E todos os cristãos são formados não em termos de
devoções,mas numa mística e numa mistagogia que os introduz sempre mais plenamente
nos mistérios da fé e na celebração litúrgica. A "espiritualidade dos leigos" ( na verdade
14
19
Cf. B. FORTE, op. cit., pg 31
Veja sobre isto. A FAIVRE, Les laïcs aux origines de I'Eglise, Le Centurion, Paris, 1984 (trad. port.
Petrópolis, Vozes, 1993)
20
Ibid. V. tb. J.A.ESTRADA DIAZ, La identidad de los laicos. Ensayo de eclesiologia, Madrid,
Paulinas,1989,pg 117. V. tb. B. FORTE, op. cit., pg 31.
21
Cf. neste sentido as graves advertências que Paulo faz à Comunidade de Corinto, nos capítulos 12,13 e
14 da primeira carta que escreve a esta comunidade.
11
espiritualidade cristã tão somente) consistiria,então,em participar ativamente no mistério
e na vida da Igreja, exercendo cada qual seu carisma e tendo presença e voz inclusive a
nível de decisões. Os leigos, tais como os ministros ordenados, nesta concepção, são
totalmente Igreja e constituem,na assembléia, o sujeito litúrgico total. 22
Assim a Igreja redescobre sua vocação de comunidade batismal englobante, no
interior da qual os carismas são recebidos e os ministérios exercidos como serviços em
vista daquilo que toda a Igreja deve ser e fazer. E a vida espiritual de todo o Povo de
Deus pode beber do mesmo Espírito que não discrimina suas maravilhas segundo as
categorias jurídicas, derramando-as com total prodigalidade e generosidade. E pode, sem
riscos de "inadequação", encontrar pela via da inspiração as diferentes expressões deste
Espírito no mundo e na história, na vida pessoal e comunitária.
Carismático porque ungido pelo Espírito, todo batizado é rei,sacerdote e profeta na
unidade do povo de Deus ("laós théou"). E o povo de Deus, assim formado,não são os
leigos opostos ao clero. Mas sim o pleroma do Corpo de Cristo, onde todos são leigos
(porque povo) e sacerdotes ( em virtude dos sacramentos) e onde o Espírito diferencia os
carismas e os ministérios.23
Se adotamos esta perspectiva, parece-nos impróprio continuar falando em
termos de uma espiritualidade própria aos leigos ou mesmo "leiga" ou "laical". Não teria
sentido nem cabida dentro de tal visão de Igreja. Na verdade, o leigo é o cristão "sem
adjetivos". Sua espiritualidade, portanto, não pode ser outra senão a espiritualidade
mesma da vida cristã. O batizado, incorporado a Cristo e ungido pelo Espírito, é
partícipe das riquezas e responsabilidades que seu Batismo lhe dá. E por isso, não é
menos "consagrado" que outros. O fundamento da vida de todo cristão continua a ser a
consagração batismal e é desta que decorre sua vida espiritual.37
O fato de que nesta única espiritualidade existam diferentes carismas e
vocações não elimina a constatação de que ela encontra sua raiz num único chão: o do
Evangelho de Jesus Cristo, do qual se depreende somente toda e qualquer experiência de
vida no Espírito que reivindique para si o nome de cristã. Conforme esta espiritualidade
for sendo vivida por diferentes categorias de pessoas, em diferentes situações e caminhos,
se poderá falar de multiplicidade de vocações - certamente bem mais numerosas que as
três categorias jurídicas acima mencionadas - para viver o chamado do mesmo Deus.
Buscar e encontrar a Deus em todas as coisas: o desafio de ser de Deus no meio do
mundo
Hoje não menos que ontem o cristão - seja ele clérigo, religioso ou leigo - é
chamado a viver sua fé em Deus e o seguimento de Jesus Cristo que ela inclui sempre
mais no meio do mundo. Mundo este que não é o mundo idílico,perfeito, completo e
reconciliado que parecem descrever muitos dos modernos discursos. Pensamos, em
particular, naqueles marcados pelo otimismo dos progressos e conquistas da
22
Ibid col. 81
Ibid. Importa no entanto fazer a ressalva que já mesmo na teologia do Ocidente se encontram tendências
nessa direção. V., por exemplo, a afirmação de B. FORTE, op cit., pg 31, no sentido de que a eclesiologia
que emerge de uma concepção não "compartimentada" do Povo de Deus é uma eclesiologia total e a
laicidade passa a ser assumida como dimensão de toda a Igreja presente na história.
37 Cf. B. FORTE, op. cit., pp 31. 35
23
12
modernidade, assim como nos que se encontram atravessados de lado a lado pela
interpelação legítima mas nem sempre objetiva da questão ecológica. A inserção nas
realidades temporais ou terrestres é específica para cada um e todos os batizados,
podendo acontecer sob variadas formas mais ligadas a carismas pessoais.39
No entanto, é em meio a este mundo que o cristão, - leigo,religioso ou
sacerdote, - é chamado a viver o que se chama experiência de Deus, a descobrir o fato
grande e ao mesmo tempo tão simples de que Deus é um Deus que se revela e,mais do
que isso, que se deixa experimentar. E essa experiência não é unilateral (o homem
experimenta Deus) ,mas tem duas vertentes e duas vias (Deus mesmo se deixa
experimentar pelo homem que o busca e o experimenta) . Assim, ao mesmo tempo em
que propicia que o homem sinta o gosto e o sabor de Sua vida divina, Deus entra por
dentro da realidade humana,mortal e contingente,na encarnação,vida,morte e ressurreição
de Jesus Cristo. Experimentando-a visceralmente,até o fim, "aprende" de sua criatura o
jeito de ,pelo amor, "kenoticamente" despojado, viver cada vez mais seu modo próprio
de existência que é o de ser o Deus Amor. A revelação de Deus em Jesus Cristo é, pois, o
fundamento teológico da relação do homem com o mundo, pois concede dimensão
crística a tudo que é criado e ressalta a dimensão cósmica da encarnação.40
A esta experiência de Deus, fruto do dom pleno e radical do mesmo Deus,
só pode suceder,por parte do cristão, a oblação total e radical da vida, único e mais
precioso bem, em culto espiritual agradável a Deus . À entrega divina total só pode
corresponder uma resposta e uma entrega igualmente totais por parte do ser humano.
Quanto a esta exigência, não existe distinção de categorias,segmentos ou níveis de
pertença dentro do povo de Deus. Oferecer-se inteira e totalmente, "oferecer seu corpo
como hóstia viva ,santa , imaculada e agradável a Deus" (cf. Rom 12,1) é o culto
espiritual de todo e qualquer cristão, seja ele quem for e pertença ele a que estamento da
organização eclesial pertença.24
Há que ver, no entanto, como esse desejo e essa entrega feita de totalidade
se configurará na vida de cada um. Segundo o gênero de vida ou espaço onde está
situado, o cristão deverá viver a oblação de sua vida com ênfases,destaques e tendências
diferentes. No entanto, há alguns elementos comuns que estarão presentes sempre, desde
que a espiritualidade vivida seja a cristã.
A oração: não há espiritualidade cristã possível sem uma vida densa e intensa de
oração. Por trás dos "slogans" "Tudo é oração", "Oração que nos tira do trabalho e leva
para uma casa de retiro corre o risco de transformar-se em alienação" , "A oração é
importante para a luta ser mais eficaz" e outros, esconde-se uma mal disfarçada
superficialidade que banaliza o chamado de Deus e a experiência dos grandes santos.
Esses sim, fizeram da vida inteira uma oração . Porém aí aportaram já na sua
maturidade, após lutarem e sofrerem esperas,demoras,noites escuras e outras provas
39
40
24
Cf. ibid pg 41
Ibid pg 39
Há que ver, a esse respeito, a frase do célebre jesuíta brasileiro Pe. Leonel Franca SJ, cujo centenário ora
celebramos e que resume bem o que acabamos de dizer: "Com o absoluto não se regateia. Quem não deu
tudo ainda não deu nada.Todo sacrifício tem que ser holocausto." V. tb. o que sobre isso diz B. FORTE, op.
cit., pg 31 comentando LG 10.
13
espirituais, buscando o encontro com o Senhor na oração explícita e gratuita , gozosa,
sim, mas não menos laboriosa e padecida, sem imediatismos nem utilitarismos.25
Sem esse tempo "perdido" diante do Senhor, buscando conhece-lo como se
é conhecido, abrindo-se e entregando-se ao Seu mistério incompreensível e
imanipulável,que não é diferente de Seu Amor que aquece o coração e consola o espírito;
sem outro desejo mais imediato que não seja louvá-Lo e extasiar-se diante da beleza e da
maravilha de sua criação e da doação suprema de sua redenção que se tornam
santificação operada pelo Espírito; não há condições de haver qualquer tipo de
espiritualidade e muito menos a cristã. E isto para ninguém, não apenas para o leigo. E
neste particular,como em outras áreas, há um importante elemento de ajuda que não pode
deixar de estar presente: a direção ou acompanhamento espiritual.
A direção espiritual: neste sentido, o documento de Santo Domingo
emite uma sábia observação em seu n. 42,ao dizer:" É notória a perda da prática da
"direção espiritual",que seria muito necessária para a formação dos leigos mais
comprometidos..." Infelizmente, nos tempos mais recentes, esta é uma triste verdade.
Enquanto em épocas mais antigas, a presença de alguém "mais velho" ou mais
experiente, que acompanhava qual pedagogo paciente os avanços e recuos do cristão nos
caminhos da oração e da vida no Espírito, que sofre com as provações e se alegra com as
consolações era parte integrante da caminhada de fé, hoje isto se torna uma realidade
cada vez mais rara.
A assim chamada - própria ou impropriamente,pouco importa - direção
espiritual foi substituída pelas partilhas comunitárias,pelas revisões de vida e outras
formas de compartilhar coletivo. Porém cada vez mais se constata que o diálogo a dois é
insubstituível para que o cristão possa abrir seu coração, na confiança e no desejo de
crescer nos caminhos do Senhor, narrando a história de Deus em sua vida. Isso feito com
alguém discreto que, mistagogo experimentado, ajude a superar obstáculos e desfazer
nós; alguém que, teógrafo refinado, auxilie a decifrar a escrita divina gravada "não com
tinta, mas com o Espírito Santo nos corações"(cf. 2 Cor 3,3); alguém que, diácono
humilde, saiba não se interpor entre a pessoa e Deus, mas alegrar-se como o amigo do
Esposo ao ouvir a voz d'Este (cf. Jo 2,29-30) e retirar-se quando "o Criador está agindo
diretamente com a criatura e a criatura com seu Criador e Senhor."26
A antropologia subjacente ao exercício da direção espiritual é uma
antropologia intersubjetiva, que coloca a experiência de Deus no terreno das mediações
humanas. O diálogo com o outro ou outra - no caso, do diretor (a) ou orientador (a)
espiritual garante a dimensão comunitária e social tão característica da experiência
espiritual cristã. Abrindo ao outro os caminhos da Palavra de Deus e da vida eclesial e
25
Cf. por exemplo as experiências de uma Santa Teresa de Jesus ou de um Santo Inácio de Loyola. Uma
chega ao chamado matrimônio espiritual após passar por muitos caminhos e moradas. Outro, ao ditar suas
confissões para o Pe. Luis Gonçalves da Camara no final de sua vida, admite que nesta época "toda vez que
queria encontrar Deus,o encontrava" (cf. Autobiografia n. 99 )
26
Cf. Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola <15> V. sobre isso, o excelente trabalho de U.
VAZQUEZ MORO SJ, A orientação espiritual e seu processo, Belo Horizonte, mimeo, 1987, a sair
brevemente pelas Ed. Loyola,SP.
14
ajudando-o a interpretar seus desejos e impulsos, medos e fugas, o orientador (a)
desempenha na Igreja um verdadeiro serviço, um importante (embora humilde e discreto)
ministério.44 O crescimento de uma espiritualidade cristã total e não setorizada poderá
certamente, com a ajuda de Deus, permitir que este ministério seja sempre mais
desempenhado por leigos e leigas. Já há sinais animadores neste sentido acontecendo na
Igreja em todo o mundo.45
A oração assim vivida e guiada será, então, verdadeiro discipulado já
que coloca o orante na escuta de Deus e de sua vontade e se transforma em verdadeiro
aprendizado de seguir e servir o Senhor no meio do mundo, onde tantas diferentes
solicitações, provenientes não sempre do mesmo Espírito, se cruzam e muitas vezes
dividem, confundem, enganam.
Já desde o Novo Testamento aparece claro que para o cristão, qualquer
que seja a situação em que se encontre, é necessário um certo desprendimento e
indiferença em relação às coisas,no sentido de que nada é absoluto ou indispensável.
Tudo é meio, e portanto relativo para atingir o fim que se pretende, que é sempre a maior
glória de Deus. Realizar isso na própria vida, no entanto, não se faz sem tensões e
conflitos. Embora a Bíblia seja pródiga em valorizações daquilo que é histórico, real,
concreto, palpável e humano 27, o que mais fica patente em sua mensagem é uma tensão
sempre presente e sensível entre o absoluto escatológico e o pleno engajamento nas
tarefas do mundo.
E a grande pergunta do discípulo, daquele que quer seguir Jesus Cristo e
viver segundo seu Espírito continua a ser, hoje como sempre: "Como estar no mundo
sem ser do mundo?" "Como usar das coisas do mundo como se delas não fizesse uso?"
Como seguir Jesus tal como ele exige ser seguido, com todas as radicais exigências que
coloca aos seus discípulos, e ao mesmo tempo viver humanamente a vida desta terra?28
Trata-se, afinal, de usar do mundo ou de transformá-lo? Fugir dele ou
construí-lo? Aqui, na América Latina, neste momento pós Santo Domingo, é inevitável
que, olhando para os últimos trinta anos, a pergunta se coloque: a busca apaixonada pela
libertação e a transformação da realidade implicou numa diminuição ou mesmo num
resfriamento da vida de oração, da liturgia, do culto, do louvor propriamente dito? E se
isto aconteceu, foram os leigos os mais afetados por este estado de coisas, militantes
atirados na voragem de um ativismo sem quartel, perdendo nesse processo referencial
eclesial, litúrgico,comunitário,etc.?
44
V. sobre isso M.C.BINGEMER, Em tudo amar e servir, SP, Loyola, 1990, pg 269
V. a esse respeito M. C. BINGEMER, CVX. Leigos vivendo o carisma inaciano, SP, Loyola, 1992,
onde se podem encontrar testemunhos de leigos que exercem esse ministério. Trata-se, porém, de leigos
ligados à espiritualidade inaciana. Gostaríamos de frisar que não é o único caso de leigos que se ocupam
da direção espiritual dentro do conjunto da Igreja.
27
, Cf. Y. CONGAR, op. cit., col 103-104: "O próprio AT carrega outros valores aos quais se gosta hoje de
fazer referência: vocação histórica e mensagem social dos profetas, plano de salvação se realizando na
história humana, antropologia não dualista do homem inserido no mundo,existindo com ele,construindo-se
com ele."
28
Ibid col 104
45
15
Ora, já desde os tempos neo-testamentários o cristão é uma pessoa que
vive a cavaleiro entre tempo e eternidade; ou melhor, é alguém que experimenta em sua
carne e em sua vida a eternidade que atravessa o tempo histórico e por dentro o trabalha e
configura. É ele portanto, um "vivente escatológico", ao mesmo tempo cidadão de um
futuro absoluto e da cidade celeste e, por isso, estrangeiro neste mundo, dentro do qual
sempre se encontra como que exilado e "fora" de lugar. E no entanto, experimenta assim
o belo paradoxo de que esta terra, que não é sua pátria definitiva, lhe é dada por Deus
como dom e missão: como domínio a gerir, como obra a acabar, como plenitude a
consumar.29
Neste sentido, todo cristão batizado, pela consagração mesma do seu
Batismo, é um "posto à parte", um "separado" de dentro do mundo. O NT não poupa
expressões fortes e radicais para significar a entrada na vida cristã: selo do Espírito (cf.
Heb 1,13-14); imersão na morte de Jesus (Rom 6,1ss) etc. Não é de admirar que a Igreja
tenha, em sua doutrina,declarado que o batismo é um sacramento que "imprime caráter",
ou seja, marca indelevelmente aquele ou aquela que o recebe de uma marca que
permanece para sempre.49Assim sendo, o batizado é chamado a oferecer constantemente
o sacrifício espiritual da vida consagrada a Deus, não se conformando com este mundo
mas discernindo dentro dele o que é melhor, o que é perfeito,o que é de Deus (Cf. Rom
12,1-2). O cristão leigo, cristão 'sem adjetivos nem acréscimos' , que por muito tempo foi
definido como aquele que não celebra o sacrifício ritual, é no entanto protagonista
indiscutível deste sacrifício existencial que consiste na oblação da própria vida a Deus
para o serviço do mundo e dos irmãos.
A espiritualidade que cabe portanto - hoje mais que nunca - a todo
cristão, é uma espiritualidade de discernimento, ou seja, de busca da vontade de Deus
dentro do horizonte de Seu plano de amor. Em meio a essa busca, cada um e cada uma
vai se encontrar com as tentações e as ilusões próprias das situações diferentes e variadas
em meio às quais se vir colocado. Mas a todos, leigos, religiosos ou clérigos, será pedido
vislumbrar e sentir, através de toda a floresta de diferentes "espíritos" que sopram,
convidam e solicitam em todas as direções, o Sopro do verdadeiro Espírito divino,
Espírito Santo único que santifica e conduz ao seguimento de Jesus Cristo e à vontade
do Pai, desmascarando o mundo e suas falácias e mostrando a verdadeira face do
verdadeiro Deus.
Em decorrência disto, todo cristão está engajado e comprometido na
missão da Igreja, forma histórica da vontade de salvação de Deus: como testemunha da
fé e da caridade de Cristo e portanto como enviado em missão apostólica, fazendo
brilhar no meio do mundo Deus e o Evangelho. Todo batizado é enviado,e carrega
consigo, seja qual for sua situação ou estatuto canônico, a responsabilidade da Boa Nova
do Evangelho de Jesus. A vida de qualquer cristão é levada a testemunhar que, a partir
29
Ibid
V. a bela reflexão que a esse respeito faz J. M. R. TILLARD, Le "caractère" baptismal, in Initiation à la
pratique de la théologie vol III, pg 425
49
16
de Jesus Cristo, só é profano o que é profanado pelo pecado e tudo pode ser consagrado
porque o Espírito santifica o uso que das coisas se faz. 30
Enviado no meio do mundo, impulsionado pela força do Espírito, o cristão
vive sua própria identidade não dividida em termos de contraposições como clero X
laicato, mas na chave de uma antropologia ela mesma comunitária e, por conseguinte,
eclesial e trinitária. A espiritualidade cristã é uma espiritualidade do eu em
comunhão,portanto, do nós opondo-se assim a todos os individualismos e isolamentos.
Ser "pneumatórofo" (portador do Espírito) portanto, para o cristão, significa ser ao
mesmo tempo "eclesiofânico" (manifestador da Igreja) e, mais ainda, "teo-morfo" (que
tem a forma de Deus) e "teóforo" (portador de Deus), irradiando no meio do mundo a
semelhança entre seu próprio ser (pessoa-Igreja) e o Deus Trindade.31
Sendo a Igreja, no dizer da teologia oriental, "a humanidade em vias de
'trinitarização', e o universo em vias de transfiguração 32 , a eclesiologia é inseparável dos
mistérios que estão no coração da revelação cristã e,portanto, inseparável da
espiritualidade cristã em si mesma. A espiritualidade cristã é para ser vivida nessa
comunidade chamada Igreja, onde os diferentes carismas e ministérios, suscitados pelo
mesmo Espírito, não se opõem ou contrapõem entre si; mas, ao contrário, se
complementam na liberdade, tendendo todos , juntos e cada um com sua originalidade
própria, para aquele que é o fim último do projeto cristão : a santidade.
Radicalidade evangélica e santidade
Uma das originalidades e peculiaridades do Cristianismo é que, nele, a
qualidade de discípulo e de servidor coincidem. Pois o discípulo não escuta apenas o
mestre. Ele procura imitar suas atitudes e assimilar seus critérios, segui-lo onde quer que
vá e partilhar sua vida e seu destino. Assim fazendo, no entanto, o discípulo sabe que
jamais será como o mestre, que é um só (cf Mt 23, 7-8; Lc 6,40 ) e que não lhe cabe outro
lugar senão aquele que seu mestre sempre quis ocupar. Ora, Jesus de Nazaré foi
reconhecido e identificado pelos seus contemporâneos como o Servidor. Ele o foi
assumindo em sua vida a solidariedade com os males do mundo e com os homens
mesmos que desejava servir.33
A espiritualidade, portanto, para o cristão, é não apenas uma maneira de
comportar-se diante de Deus, um estilo de rezar, mas uma maneira de conceber a própria
existência enquanto serviço oferecido ao outro. O serviço do cristão, derivado de sua
oração e de sua intimidade com o Senhor, se deseja ao mesmo tempo fiel ao Deus Santo e
Transcendente e às realidades humanas. E essas realidades humanas têm alcance maior
do que simplesmente as relações interpessoais ou micro-comunitárias. Mas alcançam as
30
Cf. Y. CONGAR, op. cit., col 105
Cf. O. CLÉMENT, op. cit., pg 59, n. 8
32
Ibid pg 63
33
Y.CONGAR, op. cit.,col 105
31
17
próprias estruturas que condicionam a vida dos homens e podem favorecer ou contrariar
o reino de Deus.
Se o destino de todo cristão, pertença ele a que segmento eclesial
pertencer, é a santidade, essa santidade tem sua pedra de toque encontrada no exercício
da caridade até o fim, de maneira total, plena e sem busca de si mesmo. Ora, a caridade
não encontra sua fonte no homem,mas em Deus. Se a vivência da espiritualidade hoje é
percebida como tendo tal importância, poderia ser, sem sombra de dúvida, porque se faz
mais aguda a consciência de que o cristão não tem acesso aos frutos do Espírito por sua
própria iniciativa, mas deve dispôr-se a recebê-los humildemente das mãos de Deus. E
isso só poderá faze-lo exercitando-se em criar dentro de si uma atitude de abertura, escuta
e entrega de amor oblativo.
É assim que o serviço de caridade que for prestado no mundo pelo cristão
batizado se distinguirá de outros serviços porque será efetivamente um serviço cristão, na
esteira e na imitação do Servidor de Javé, o Santo de Deus, que se entregou a si
mesmo,obediente até a morte de Cruz. O cristão que deseja caminhar numa
espiritualidade movida pelo Espírito Santo, no seguimento de Jesus, ao encontro da
vontade do Pai manifestada hoje no mundo e na história deverá sempre estar em tensão
entre o desejo de plenitude que o habita e uma certa tentação que o "arrasta" de encontro
a um temporal que pode acabar por ser demasiado carnal ou puramente humano. Para
lutar contra esta e outras tentações, há algumas coisas às quais todo cristão que se quer
"pneumatórofo", pessoa de Deus e portador do Espírito, deverá estar sobremaneira
atento:34
- a necessidade de atividades religiosas específicas e explícitas,e de uma
vida teologal em exercício permanente. Se "tudo é oração", há o risco, real e sério,de
acabar nada sendo-o. Não se encontra a Deus imediatamente e por encanto no meio do
mundo, apesar de que o mesmo Deus é soberanamente livre para fazer acontecer o
milagre da experiência de seu amor e da união mística com sua pessoa a qualquer
momento e em qualquer tempo e lugar. A ordem da redenção não acha perfeita
correspondência ou justaposição à ordem da criação. Ou seja, tudo que é humano não é
automaticamente nem se torna magicamente santo ou divino. E o mundo visto desde
uma perspectiva cristã não suporta uma visão idílica, romântica ou idealizada, como se já
estivesse plenamente reconciliado. A dimensão teologal da vida é nutrida e se exprime
na leitura orante da Palavra de Deus,na oração em momentos selecionados apenas para
isso; na atividade litúrgica, celebrativa e de louvor, assim como na vida sacramental,
fundamentalmente a comunhão eucarística. Estes são elementos indispensáveis e de
primeira importância para que aconteça a unidade entre contemplação e ação. E ainda
para que esta seja transformada em união e participação no mistério de Cristo. Quem
contempla recebe do Senhor mesmo que é o objeto de sua contemplação a ação que
deverá realizar. E,consequentemente, essa ação será para ele não menos contemplação, já
34
Na enumeração destes marcos de atenção necessários, seguimos basicamente Y. CONGAR, art. cit.,col
106-107
18
que estará prenhe e grávida do mesmo Senhor que a suscitou, a moveu e a fez
acontecer.35
O lugar e a dimensão da cruz é fundamental aí como em tudo que
reivindica o nome de cristão. Seja para purificar a utilização que se faz de meios
relativos no serviço do absoluto; seja sob a forma de provações que purificam e levam o
cristão a assemelhar-se mais a seu Senhor; seja para reestabelecer no fio da vida a
verdadeira relação entre fins intermediários e fim superior. Na economia cristã, importa
não esquecer que o sacrifício é expressão de liberdade, que o fracasso é preciosa
pedagogia da provisoriedade de nossa contingência e que não há jamais tradução
adequada ou completa do Evangelho num programa de realizações terrestres. Quando
mais não fosse, a cruz, iluminada pela luz da Páscoa, é a condição da plena e verdadeira
comunhão do cristão a seu Senhor Jesus Cristo. Por aí deve passar, necessariamente,
todo desejo e toda tentativa de construir e viver uma espiritualidade.56
- a santidade cristã não se dá na tranqüilidade e no repouso. Optar por
Jesus significa aventurar-se por uma estrada onde está de atalaia não a paz, mas a espada
(Mt 10,34-36). O discípulo deve saber que a palavra de Jesus é um fogo e que caminhar
no seu encalço provoca conflitos e divisões.57Há na espiritualidade cristã algo de
dramático. O que é pedido supera as forças humanas. E no entanto, o ser humano se vê
inexplicavelmente capacitado por esse Outro mesmo que o chama a dar a esse chamado
uma resposta que ele mesmo sozinho não teria forças para dar. A exigência é precedida
pelo dom e pela graça, não tirando nada, porém, da gravidade do seu radicalismo. O que
está em jogo quando se fala de vida espiritual e santidade é a vida ou a morte, a salvação
ou a perdição. E dessa alternativa radical nenhuma categoria de cristão está excluída. E
muito menos os leigos, vivendo, como vivem, expostos a todas as solicitações mais
diversas diariamente; e devendo, desde aí, desde dentro, dar testemunho de Jesus Cristo,
o Cordeiro de Deus.
-
essa santidade, como tudo que diz respeito à vida cristã, não pode ser
vivida solitariamente. O cristão é necessariamente um solidário. E se por um lado
experimenta que o mal por ele produzido com o pecado é difusivo e deslancha um
processo de espiral que vai atingir a outros além dele, por outro, sente também e não
menos que os outros seus irmão são não só seus companheiros de jornada, como também
sua condição mesma de possibilidade de viver o ideal proposto pelo Evangelho. Dogma
de fé hoje um tanto esquecido, a comunhão dos santos é a condição mesma de que ainda
possa haver santidade no mundo. Assim como só se peca porque se é precedido no mal,
assim também a santidade é como um útero que recebe sempre mais e mais filhos,
nutrindo-os da seiva vital que faz a própria vida da Igreja de Cristo. Onde um falha, o
outro persiste; onde um desanima, o outro permanece na entrega; onde muitos desistem,
um só é fiel e carrega em sua cansada mas vitoriosa fidelidade a fadiga dos irmãos que
35
V. sobre a contemplação e ação M. FRANÇA MIRANDA, Espiritualidade inaciana e sociedade
secularizada, in M.C.BINGEMER (org.) As "letras" e o espírito (Espiritualidade inaciana e cultura
moderna), SP, Loyola, 1993, pp 105-123
56
Cf. Y. CONGAR, op. cit., col. 107
57
Cf. T. MATURA, Dos conselhos de perfeição ao radicalismo evangélico, in T. GOFFI e B.
SECONDINI, Problemas e perspectivas de espiritualidade, SP, Loyola, 1992, pg 266
19
por sua vez o carregarão mais na frente, com sua oração, seu sacrifício, seu amor. A
santidade exige a comunhão. E, em se tratando da comunidade eclesial, a santidade do
clérigo supõe a do leigo; a santidade do bispo exige a entrega humilde e anônima da mãe
de família; a santidade do profissional jogado nas fronteiras da tecnologia de ponta é
devedora a não sei que obscura carmelita perdida no fundo de algum mosteiro; a
santidade do religioso necessita da militância apostólica daqueles que, desde sua
condição leiga, escolheram a política ou a luta sindical como lugar de expressão de
vivência plena do Evangelho. Nesta perspectiva, não há vida cristã que não seja
consagrada. Mais ainda: falar de uma vida consagrada que seja melhor ou mais
excelente que outras; que seriam, portanto, menores e menos exigentes, é desconhecer o
dinamismo espiritual cristão que não se radica nas respostas humanas, mas no dom de
Deus e na economia da redenção que transforma tudo em graça e em ação de graças e
tece como precioso cipoal o que existe de santidade em cada humilde e obscura vida para
formar a figura do Reino que deseja ver realizado neste mundo.
Conclusão: nem “engajados” nem “alienados” mas concidadãos do mesmo Reino e
servidores da mesma missão
Neste momento da história da Igreja que se está gestando no continente
latino-americano , o protagonismo a que são chamados os cristãos leigos se reveste de
especial significado. E este significado é, parece-nos, sobretudo de cunho espiritual.
A Igreja da América Latina emerge com olhos ainda ofuscados dos duros
embates das últimas três décadas. Foram anos de muita luta, luminosas conquistas e
grandes descobertas. O eixo exigente e verdadeiro da opção preferencial pelos pobres,
gestado como linha-força desde Medellin e explicitado com força profética na
Conferência de Puebla forjou nesta Igreja homens e mulheres de todos os perfis e
procedências, que brilharam e brilham ainda como testemunhos luminosos ou como
heroísmos anônimos, cuja entrega e testemunho de vida são, hoje como ontem, força no
caminho de tantos.
Não se pode negar, porém, que esta mesma Igreja emerge golpeada por
duras provas e difíceis obscuridades. O caminho em direção à margem, ao encontro das
lutas dos oprimidos, implicou em conflitos, tensões, necessidade de alianças não isentas
de ambigüidades. Além disso, o vento da secularização faz sentir mais fortemente seus
efeitos por sobre o povo do continente, antes definido mais homogeneamente como
"pobre e crente".
É hora, portanto, de lucidez e coragem no enxergar as lacunas e as
alternativas que se descortinam à frente. Hora de empenhar-se por ser fiel e atento às
inspirações do Espírito que não cessa de soprar e gestar futuro por entre as experiências
do passado e as esperanças do presente. É hora de abrir espaço e fazer lugar para os
protagonistas de um novo momento eclesial.
O documento de conclusões da IV Conferência de Santo Domingo
menciona expressamente os leigos como os primeiros destes protagonistas. Menciona e
coloca na linha de frente aqueles que são chamados a ser personagens principais do que
está se passando daqui por diante no continente.
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Se tal é a palavra e a expectativa dos pastores que expressam, no
documento de Santo Domingo, as expectativas de toda a Igreja latino-americana, esse
protagonismo não pode, porém, acontecer sem um empenho de toda a comunidade
eclesial. Pastores e fiéis, todo o povo de Deus, enfim, é chamado a colocar o melhor de si
mesmo para que aconteça uma real emergência dos cristãos batizados na construção de
um novo momento para a Igreja da América Latina.
Como já dissemos aqui e procuramos demonstrar ao longo deste texto,
esse protagonismo deverá estar solida e profundamente ancorado numa espiritualidade
que dê razão dos fundamentos mesmos da fé cristã. Uma espiritualidade que não setorize
os diversos segmentos do povo de Deus, diminuindo força e mordência, ousadia e arrojo
àquilo que pode resultar da experiência que os cristãos latinoamericanos fazem hoje de
Deus e Seu Espírito. Uma espiritualidade que redescubra suas raízes no conteúdo
sacramental e teologal do Batismo, permitindo originar e desenvolver, a partir daí, novas
formas de vida consagrada e novas modalidades de entrega e serviço a Deus e a Seu
povo. Uma espiritualidade que seja inseparável da missão. Mais ainda: que seja, ela
mesma, missionária em sua essência, incompreensível sem o conteúdo de envio
evangelizador e anunciador de Boa Nova, que é o da missão do próprio Jesus e, por
conseguinte, da missão de toda a Igreja.
Uma espiritualidade, enfim, que ajude os batizados de todo o continente a
fazer acontecer por toda parte o milagre de uma nova evangelização: nova em suas
expressões, em seus métodos, sim. Mas, sobretudo, nova em seu ardor. Ardor que não
pode ser controlado e programado pelas categorias que, juridicamente, classificam os
fiéis dentro do povo de Deus. Mas que queima e envolve em seu fogo todos aqueles e
aquelas que se abrem e se colocam, atentos e disponíveis, diante do Mistério que desde a
experiência mais primordial do povo de Israel, foi identificado como um fogo que" arde e
não se consome" (cf. Ex 3).
É apenas este Mistério maior, ao qual Jesus Cristo ensinou a dar o nome de
Pai, que poderá fazer com que a nova evangelização seja personagem não somente de
documentos e discursos, mas realidade vital inspirando e animando a vida do povo de
Deus. Neste processo de vida, onde a santidade é desejo real e realidade possível, possa
o protagonismo dos batizados, daqueles que foram incorporados a Cristo e que vivem a
dolorosa e alegre vocação de "estar no mundo sem ser do mundo" ser, mais que nunca, o
protagonismo do Espírito que os habita, os inspira e os conduz.
21
***
A todas essas questões, problemas e desafios que a pastoral e a teologia colocam,
não temos a pretensão de responder e propor soluções nos limites deste texto. Apenas
desejamos tentar, a seguir, colocar algumas pistas abertas para que a reflexão possa
prosseguir e trazer novas luzes ao tema.
4. POR UMA TEOLOGIA DO EXISTIR DO CRISTÃO36
O que há em comum entre leigos, clérigos e religiosos é o fato eclesiológico de
serem todos batizados. Ou seja, o de serem todos, pelo Batismo, introduzidos num novo
modo de existir: o existir cristão. O Batismo é, pois, o compromisso primeiro, a primeira
e radical exigência que se coloca na vida de uma pessoa diante do Mistério da Revelação
de Deus em Jesus Cristo. A opção por um ou outro estado de vida, por este ou aquele
ministério ou serviço na Igreja é posterior, vem depois. Antes de mais nada, primeiro que
tudo, está o fato de "sermos todos batizados em Cristo Jesus . . . sepultados com ele na
sua morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela Glória do Pai,
assim também nós vivamos vida nova" (Rm 6, 3-4).
Aí está o sentido da existência não só do leigo mas de todo cristão. Primeiro, uma
ruptura radical com o passado e suas velhas alianças, seus secretos compromissos com a
iniqüidade. Essa ruptura se dá - no dizer de São Paulo, colocando em paralelo o cristão e
Jesus Cristo - “por uma morte semelhante à sua . . . a fim de, por uma ressurreição
também semelhante à sua, possamos não mais servir ao pecado, mas viver para Deus" (
Rm 6, 5-11). Viver para Deus significa começar a comportar-se no mundo como Jesus se
comportou. Existir não mais para si, mas para "fora de si" — para Deus e para os outros (
cf. 2 Co 5,15).
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A expressão teologia do existir cristão é tomada emprestada — com a devida licença — do mestre e
amigo C. PALACIO. O contexto e o sentido em que ele a usa e emprega difere fundamentalmente do nosso
aqui ( cf. Pers.Teol. 16 [1984] 167-214). Como nos parece, no entanto, de extrema felicidade e grande
adequação ao que aqui desejamos dizer, insistimos em usá-la.
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Esse novo modo de existir não acontece, no entanto , sem conflitos. Para Jesus, o
conflito desembocou na Cruz. Para os batizados que seguem a Jesus, isso implica assumir
um destino semelhante ao seu. Implica estar disposto a dar a vida, a sofrer e morrer pelo
povo, como Jesus o fez. Implica, ainda, deixar para trás apoios e seguranças outras para
compartilhar com Jesus as situações humanas-limite, que pontilharam seu existir:
incompreensão, solidão, sofrimento, fracasso, incerteza, perseguição, tortura, morte. Mas
também — e não menos — amizade, amor, comunhão, solidariedade, paz, alegria,
ressurreição e exaltação.
É deste pascal mistério do batismo e do novo modo de existir que ele inaugura que
deve brotar, hoje, a nosso ver, qualquer reflexão sobre o leigo, o laicato, a laicidade e
outros temas teológicos conexos. Porque é essa a única perspectiva que tem condição e
possibilidade de iluminar e integrar, a um tempo, os desafios que a pastoral coloca e as
questões que a teologia reflete. É também, além disso, o único ponto de arranque
adequado para que a reflexão prossiga sobre as pistas abertas que tentamos levantar na
terceira parte deste artigo.
Uma teologia do Batismo séria e solidamente fundamentada pode não apenas
ajudar diretamente a esclarecer os problemas que a pastoral do Batismo enfrenta nas
paróquias e comunidades. Pode, também e sobretudo, para que a teologia do laicato, dos
ministérios, dos estados de vida, etc. se torne cada vez mais uma teologia do existir
cristão que integre, sem suprimi-las, mas também
sem
hierarquizá-las, as
enriquecedoras diferenças dos carismas e ministérios com que o Espírito Santo agracia
sem cessar o Povo de Deus.
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RIQUEZA DOS CARISMAS: FUTURO DA IGREJA DO NOVO