ESPANHA
POLÍTICA E CULTURA
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Janete Abrão
(Organizadora)
ESPANHA
POLÍTICA E CULTURA
Porto Alegre
2010
© EDIPUCRS, 2010
CAPA Paloma Férez Pastor
REVISÃO DE TEXTO Rafael Saraiva
DIAGRAMAÇÃO Janete Abrão
E77
Espanha : política e cultura [recurso eletrônico] / org.
Janete Abrão. – Dados eletrônicos – Porto Alegre :
EDIPUCRS, 2010.
96 p.
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Modo de Acesso: World Wide Web:
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ISBN 978-85-7430-998-9 (on-line)
1. Espanha – História. 2. História Contemporânea.
3. Espanha – História Política. 4. Cultura – Espanha.
I. Abrão, Janete.
CDD 946.08
SUMÁRIO
Apresentação .....................................................................................................................6
A Espanha sob o regime franquista: do isolamento à aceitação internacional (1939 –
1953) ..................................................................................................................................8
Valentina Terescova Veleda
O Dois de Maio, a “Guerra de Independência” e a Memória manipulada durante a
Guerra Civil e o Franquismo.............................................................................................18
Janete Abrão
A Imprensa e a Ditadura Franquista................................................................................30
Sara Getino Garasa
Operação propaganda! O cinema espanhol: do Franquismo à Transição Democrática
(1939-1978) .....................................................................................................................41
Daniela Ribeiro Pereira
O Labirinto do Fauno: o embate político-ideológico entre duas concepções de
Espanha ...........................................................................................................................66
Bruno Kloss Hypólito
A Música na Espanha Franquista ....................................................................................79
Marcus Antonio Wittmann
APRESENTAÇÃO
Nas páginas seguintes, os leitores poderão apreciar o resultado das pesquisas
desenvolvidas por alunos do Curso de Graduação e Pós-Graduação em História da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da PUCRS, orientados pela Prof.ª Dr. Janete
Abrão, sobre temas que se constituem em lacuna historiográfica em âmbito nacional: a
fratricida Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e, principalmente, a Ditadura Franquista
(1939-1975). O objetivo da publicação é o de promover debates, divulgar e incentivar
pesquisas relativas a esses temas, além de buscar compreender a História
Contemporânea da Espanha, no que se refere, tanto à política e às relações
internacionais como à sociedade e à cultura.
Nesse sentido, o presente volume reúne as contribuições de vários autores:
Valentina Terescova Veleda que, com o capítulo intitulado: “A Espanha sob o regime
franquista: do isolamento à aceitação internacional (1939-1953)” analisa as relações
internacionais do regime durante a II Guerra Mundial e os anos iniciais da Guerra Fria.
Janete Abrão, a organizadora do volume, discorre sobre os abusos da memória
oficial em seu capítulo: “O Dois de Maio, a ‘Guerra da Independência’ e a memória
manipulada durante a Guerra Civil e o Franquismo”.
No plano cultural, Sara Getino Garasa analisa, em “A imprensa e a Ditadura
Franquista”, a trajetória histórica da imprensa espanhola durante os anos do regime,
com ênfase nas duas Leis de Imprensa (de 1948 e a de 1966) decretadas durante o
franquismo.
Daniela Pereira Ribeiro, em “Operação propaganda! O cinema espanhol: do
Franquismo à Transição Democrática (1939-1978)”, explora as dinâmicas da ditadura
que afetaram diretamente a produção cinematográfica espanhola no período em
análise, assim como evidencia as contradições do regime através dos órgãos
governamentais que controlavam a propaganda na época.
Ainda se tratando de cinema, Bruno Kloss Hypólito analisa a partir do filme “O
Labirinto do Fauno”, dirigido pelo cineasta mexicano Guillermo Del Toro, as
concepções antagônicas sobre o Estado espanhol entre os diferentes grupos
envolvidos durante a Guerra Civil, representados, no filme, em seus diferentes
personagens e situações.
Por fim, Marcus Antonio S. Wittmann, no capítulo “A Música na Espanha
Franquista”, traça um perfil das canções produzidas entre 1939 e 1975, evidenciando
que as mesmas serviram, tanto para a evasão da sociedade e sua adesão ao regime
como forma de protesto contra a ditadura.
Esperando ter cumprido com a tarefa de publicar algumas pesquisas,
atualmente em curso sobre a História da Espanha, desejo a todos uma ótima leitura.
7
A Espanha sob o regime franquista: do isolamento à aceitação
internacional (1939 – 1953)
Valentina Terescova Veleda
Acadêmica do Curso de História – PUCRS, Brasil.
A
Guerra Civil Espanhola começou após o golpe perpetrado pelos militares, em 18
de julho de 1936, contra o governo republicano legitimamente eleito pelo povo,
estendendo-se por três anos e apresentando um saldo de mais de 400 mil mortos.
Como acontece com toda guerra civil, foi uma guerra fratricida, que colocou em lados
opostos pessoas de uma mesma família com pensamentos políticos e ideológicos
dicotômicos, criando uma animosidade que ultrapassou o tempo de guerra e adentrou
os anos posteriores. Segundo Eric Hobsbawm, “[...] a Guerra Civil Espanhola antecipou
e moldou as forças que iriam, poucos anos depois da vitória de Franco, destruir o
fascismo”. 1 O historiador argumenta que a Guerra Civil Espanhola prenunciou a aliança
de frentes nacionais que ia de conservadores patriotas a revolucionários sociais, para a
derrota do inimigo nacional e simultaneamente para a regeneração social. Manuel
Tuñon de Lara, por sua vez, descreve como foi o dia imediatamente posterior ao fim da
guerra, na nota preliminar de seu livro “España Bajo La Dictadura Franquista”:
Milhões de espanhóis que haviam lutado nas fileiras republicanas ou que
haviam se enquadrado sem paixão no exército de Franco, todos cansados de
mais de três anos de guerra, assim como suas famílias, [...] terminaram por
abraçar uma esperança ingênua e pensar, ‘depois de tudo, talvez não seja
tão mal como tinham pintado’. E acreditavam no lema, ‘nenhum lugar sem
lume, nenhum espanhol sem pão’, palavras do Caudillo que podiam ser lidas
2
em edifícios, paredes nas ruas e imprensa diária.
O regozijo popular logo deu lugar às prisões e fuzilamentos sumários dos
“inimigos internos”, termo utilizado por Francisco Franco, em seu discurso de 3 de
abril de 1939, no qual conclama: “Espanhóis, alerta! Espanha segue em guerra contra
1
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos – O breve século XX (1914- 1991). São Paulo: Companhia das
Letras, 1994, p. 162.
2
Millones de españoles que se habían batido en las filas republicanas lo que lo habían hecho sin pasión
encuadrados en El ejército de Franco, cansados de casi tres años de guerra, así como sus familias [...],
habían terminado por abrazar una esperanza ingenua y pensar ‘después de todo, tal vez no sea esto tan
malo como lo han pintado. Y creían en el lema, ‘Ni un hogar sin lumbre, ni uno español sin pan’, palabras
del Caudillo que podían leerse en edificios, paredes callejeras y prensa cotidiana. Cf. TUÑON DE LARA,
Manuel. España Bajo La Dictadura Franquista (1939 – 1975). Barcelona, Editora Labor: 1980, p. 13.
todo inimigo do interior e do exterior”. A propaganda utilizada de forma unilateral
pelos vencedores contra los rojos ∗∗ revestiu-se de atitudes revanchistas, que incluíam a
delação de qualquer desafeto como republicano; filhos de rojos não podiam estudar;
as mulheres de los rojos tinham os cabelos raspados nas praças dos pueblos (situação
semelhante à observada na França após a derrota nazista).
Pode-se afirmar que foi um período aproveitado por aqueles que faziam parte
do lado vencedor para conseguirem mais facilmente acesso a cargos públicos e
diversas sinecuras. O exílio de intelectuais, de técnicos e de mão de obra qualificada,
resultou da mudança do pessoal da Administração Governamental e trouxe à Madri
núcleos populacionais originários das províncias que haviam sido “zona franquista”
durante a guerra, bem como de outras zonas empobrecidas da Espanha. O mesmo
fenômeno também pôde ser observado na formação do aparato burocrático do
Movimento “nacionalista”, em seus diferentes setores, o que criou um segmento
específico da classe média, muito ligado ao regime.
Por sua vez, a base do regime franquista foi o “Nacional-Catolicismo” e o
anticomunismo, criando um imaginário místico de uma “cruzada” dirigida pelo General
Franco, que faria com que a Espanha resgatasse seu passado imperial de glória e
poder, restituindo-a ao seu lugar de direito dentro da Europa. Os nomes de Isabel e
Fernando, os reis católicos, foram bastante lembrados como os promotores dessa “era
de ouro” do país, primeiramente com a expulsão dos muçulmanos e com as
posteriores descobertas na América. O discurso dos apologistas do Caudillo vinculava
Franco ao retorno desse período de prosperidade ou “idade de ouro”.
Outro fato histórico vinculado ao franquismo foi o “Dois de Maio de 1808”,
momento em que os espanhóis, tendo seu território invadido pelas forças de Napoleão
e com o rei e a família real feito reféns em Bayona, se rebelaram contra o inimigo
francês. Esse episódio foi utilizado pela propaganda franquista para criar uma ligação
entre o golpe de 18 de julho, com a expulsão do poder dos inimigos espanhóis,
representantes da derrocada da Espanha, os republicanos, e a tomada de poder pelos
“verdadeiros espanhóis”, os franquistas.
∗∗
A autora considerou que palavras com sentido não traduzível para a língua portuguesa e que
perderiam seu sentido original deveriam ser escritas no idioma original. É o caso de rojos, pueblos, entre
outras palavras presentes no texto.
9
Pode-se acrescentar que a Igreja Católica assumiu uma função legitimadora
dentro do regime, desde o seu princípio. O papa Pio XII, no próprio dia 1º de abril de
1939, remeteu um telegrama a Franco, enviando sua benção apostólica. Após duas
semanas da emissão do referido telegrama, o Sumo Pontífice dirigiu à nação espanhola
uma mensagem, na qual ele afirmava que:
Os desígnios da Providência, amadíssimos filhos, voltaram a se
manifestar mais uma vez sobre a heróica Espanha. A nação eleita por
Deus como principal instrumento da evangelização do novo mundo e
como baluarte inexpugnável da fé católica, acaba de dar aos
prosélitos do ateísmo materialista de nosso século a prova mais
excelsa de que acima de tudo estão os valores eternos da religião e
do espírito. A propaganda tenaz e os esforços constantes dos
inimigos de Jesus Cristo parece que, quiseram fazer, na Espanha, um
experimento supremo das forças dissolventes que possuem a sua
disposição espalhadas pelo mundo, e embora seja verdade que o
Onipotente não permitiu por agora que conseguissem seu intento,
tolerou ao menos alguns de seus terríveis efeitos, para que o mundo
veja como a perseguição religiosa minando as bases da justiça e da
caridade, que são o amor de Deus e o respeito a sua santa lei, pode
arrastar a sociedade moderna aos abismos insuspeitos de uma
3
mesma destruição e apaixonada discórdia.
A participação da Igreja Católica foi intensa na censura, controle educativo,
repressão moral, causando uma confusão entre o âmbito religioso e o civil. Ela
promoveu a anulação dos matrimônios civis realizados durante o período republicano
e de Guerra Civil, anulando inclusive suas inscrições no Registro civil; anulou a
secularização dos cemitérios; restabeleceu a remuneração por haveres eclesiásticos e
a Igreja ficou livre de pagamentos de impostos territoriais; criou assessorias religiosas
em organizações falangistas, ministérios, centros de estudo, etc. 4
3
Los designios de la Providencia, amadísimos hijos, se han vuelvo a manifestar una vez más sobre la
heroica España. La nación elegida por Dios como principal instrumento da evangelización del nuevo
mundo y como baluarte inexpugnable de la fe católica, acaba de dar a los prosélitos del ateísmo
materialista de nuestro siglo la prueba más excelsa de que por encima de todo están los valores eternos
de la religión y del espíritu. La propaganda tenaz e los esfuerzos constantes de los enemigos de Jesús
Cristo parece que han querido hacer en España un experimento supremo de las fuerzas disolventes que
tienen a su disposición repartidas por todo el mundo, y aunque es verdad que el Omnipresente no ha
permitido por ahora que lograran su intento, ha tolerado al menos algunos de sus terribles efectos, para
que el mundo viera cómo la persecución religiosa, minando las bases de la justicia y de la caridad, que
son el amor de Dios y el respeto a su santa ley, puede arrastrar a la sociedad moderna a los abismos no
sospechados de una misma destrucción y apasionada discordia. Tradução sob responsabilidade da
autora.
4
TUÑON DE LARA. Op. Cit., p. 16 -17.
10
Raymond Carr definiu o Estado espanhol franquista como “[...] unipartidarista,
totalitário e imperial [...]”. 5 Franco, e seus correligionários, pregavam um Estado
espanhol baseado em uma “democracia orgânica”, oposta à “democracia inorgânica”,
baseada no sufrágio universal, no sistema de partidos e na responsabilidade
parlamentar dos governos. A “democracia orgânica”, segundo seus apologistas, era
uma verdadeira democracia, em que se viam representados os interesses da nação, e
não os interesses egoístas de eleitores individuais.
No entanto, a política adotada por Franco, na Espanha, após 1939 foi, conforme
Raymond Carr, “[...] uma estrutura bizantina de clãs políticos [...]”. 6 Mesmo que
parecesse um bloco monolítico e coeso aos que assistiam o regime do exterior, o
governo era formado por clãs ou famílias, que disputavam a preferência do caudillo e
os cargos de maior relevo e importância na estrutura governamental. Essas famílias
compunham-se de elementos do Exército, de grupos políticos que representavam a
Igreja Católica, do Movimento da Falange (fascista), dos monárquicos franquistas, dos
tecnocratas e dos funcionários do Estado.
Em termos econômicos, a indústria espanhola do fim da Guerra Civil foi,
segundo Tuñon de Lara, “protoindustrial”. O grande número de baixas pessoais, por
morte, exílio ou desaparecimento, provocou uma queda demográfica que se refletiu
na falta de mão de obra nas indústrias e em um êxodo rural em direção às cidades de
uma população de “ex-combatentes”, que assumiram cargos de segunda categoria,
como porteiros, ordenanças, escriturários, etc.
Em 1940, ocorreu a organização dos “sindicatos verticais”, com vistas a
diminuir disputas de classe entre empregados e patrões, controlados pela Falange. A
economia, nos anos abordados pelo presente texto, caracterizou-se pela adoção da
autarquia, na qual houve uma forte proteção aos produtos internos e o comércio
exterior foi dificultado através de mecanismos distintos. Cabe afirmar que essa
tendência protecionista já fora utilizada durante o período da Restauração Bourbônica,
no século XIX, quando ocorreu uma anulação progressiva do propósito de livre
comércio. Apesar disso, o modelo econômico instaurado, após a Guerra Civil, supôs
uma mudança qualitativa importante, pois, após 1939, não se tratava apenas de
5
6
CARR, Raymond. España 1808 – 1975. Barcelona: Ariel, 2003, p. 667.
CARR, Raymond. Op. cit., p. 665.
11
proteger a produção nacional, mas sim de colocar em marcha uma política econômica
global, através da qual se pretendia alcançar a autossuficiência econômica frente ao
Exterior e onde se refletiu com nitidez a influência do nacional-socialismo alemão e,
sobretudo, do fascismo italiano. Separada do mundo exterior, a Espanha deveria ser
capaz de produzir tudo dentro de suas fronteiras, sem pensar nos custos envolvidos
nessa ação.
A agricultura, na década de 40, era a atividade mais enaltecida pelo regime,
devido, em parte, ao problema de alimentação enfrentado pelos espanhóis ocasionado
por períodos bastante acentuados de seca e, em parte, porque o regime considerava o
camponês como a verdadeira corporificação dos valores da “Cruzada Nacional”, em
oposição ao trabalhador urbano, corrompido pelo marxismo.
Nessa primeira fase do regime, situada entre 1939 e 1945, e marcada pela
Segunda Guerra Mundial, os aliados de Franco na Guerra Civil, Hitler e Mussolini,
iniciaram um conflito armado, primeiramente circunscrito à Europa, mas que, a partir
de 1941, adquiriu características mundiais. Francisco Franco foi obrigado a adequar
sua política – tanto interior como exterior – às mudanças no equilíbrio de forças
Europeias. A Espanha encontrava-se alquebrada econômica e moralmente após três
anos de guerra e Franco preferiu uma política de apoio ideológico ao Eixo, mas sem
uma participação bélica no conflito, optando pela “neutralidade”.
No dia imediato à ocupação de Paris pelas tropas nazistas, em 16 de junho de
1940, o “Diário Informaciones”, dirigido por Victor de La Sema, publicou: “Saudamos a
queda de Paris como um golpe mortal dirigido ao regime democrático”.7 O fato é que
Franco, após a tomada de Paris, mostrava-se favorável à participação espanhola na
guerra e, inclusive, ofereceu tropas a Hitler, mas, em troca, pediu apoio bélico e
estratégico para suas pretensões territoriais no Norte da África. Hitler declinou do
oferecimento, delimitando e restringindo, nesse momento, suas frentes de guerra em
duas direções: o Canal da Mancha e o Leste, em direção à União Soviética. Hitler
imaginava uma capitulação rápida da Grã-Bretanha após a queda da França, e não teve
interesse na oferta de Franco nesse momento. Somente dois meses depois pensou em
7
“Saludamos la caída de Paris como un golpe mortal asestado al régimen democrático”. Tradução sob
responsabilidade da autora.
12
um possível auxílio do ditador espanhol, quando lhe pareceu bastante claro que a GrãBretanha não iria capitular frente ao exército alemão.
Em 1941, a operação alemã denominada “Barbarossa” invadiu a União
Soviética e o exército alemão rapidamente se aproximou das principais cidades
soviéticas, inclusive da capital, Moscou. Diante das vitórias alemãs, o discurso
franquista sofreu uma mudança: utilizando novamente o anticomunismo como
justificativa plausível, Franco adotou uma postura de “não beligerância”, mas enviou
soldados espanhóis, a Divisão Azul, para a frente soviética, como apoio ao exército de
Hitler. Logo ao chegar a Berlim essa tropa jurou fidelidade não a Franco, mas a Hitler.
Esse contingente de soldados fez parte da frente de Leningrado, participando no cerco
à cidade, suportando mais de 900 dias de um clima verdadeiramente inadequado aos
espanhóis, retirando-se em outubro de 1943 do país, antecipando a derrota e
consequente retirada do exército nazista da União Soviética.
Até 1943 a “prudência” de Franco, encarada por seus apologistas como a
qualidade que eles consideravam o dom supremo de sua condição de estadista
providencial, entrou em conflito com suas convicções, impedindo um apoio explícito a
favor do Eixo. Incapaz de adaptar-se à vitória dos Aliados, Franco acreditou que os
vencedores dariam apoio ativo à oposição para acabar com um ditador “fascista”. A
imprensa espanhola, determinada pela política oficial, louvava cada vitória alemã,
enquanto omitia, sempre que possível, as derrotas nazistas para os exércitos aliados, e
apoiava abertamente os aliados da Guerra Civil, além de profetizar insistentemente
sobre a derrota das democracias degeneradas nas mãos de uma ordem totalitária. 8
Esse apoio, mais ideológico do que militar de Franco aos regimes fascistas,
acarretou à Espanha um período de isolamento internacional, marcado pela sua
ausência com relação ao Plano Marshall e pela sua falta de representação na
Organização das Nações Unidas (ONU).
O Plano Marshall (1948) foi um desdobramento da chamada “Doutrina
Truman”, propagada pelo presidente estadunidense Harry Truman, e lançado em
junho de 1947. Baseava-se em um programa de ajuda econômica aos países
diretamente envolvidos na Segunda Guerra, investindo maçiçamente na Europa
Ocidental, com o objetivo de diminuir a influência soviética no pós-guerra,
8
CARR, Raymond. Op. cit.,p. 677.
13
assegurando sua hegemonia na região, bem como reestruturar a economia europeia.
Os investimentos incluíam matérias-primas, produtos e capital, na forma de créditos e
doações. Em contrapartida o mercado europeu evitaria impor qualquer restrição às
indústrias norte-americanas. Entre 1948 e 1952, o Plano Marshall forneceu US$ 14
bilhões para a reconstrução europeia.
Por outro lado, a ONU, criada em 24 de outubro de 1945, com a representação
de 51 países, como sucessora da Liga das Nações, foi formalmente elaborada em
Moscou, na conferência dos países aliados, em 1943. O então presidente dos Estados
Unidos, Franklin Roosevelt, sugeriu o nome de “Nações Unidas”, baseado em
conversas preliminares com o primeiro-ministro inglês Winston Churchill.9
A Espanha desejava fazer parte dessa nova conjuntura mundial. Precisava do
auxílio proporcionado pelo Plano Marshall e a ONU daria respaldo a um regime ainda
não aceito pela comunidade internacional como legítimo. Franco tentou uma
aproximação com Churchill, na expectativa da Espanha ser convidada a intervir numa
futura organização mundial. Nem mesmo a mudança de governo, ocorrida em 1945, fez
com que houvesse uma resposta positiva às aspirações franquistas. A ONU condenou o
regime de Franco, aconselhando a retirada de embaixadores do país, em 1946.
Somente em 1955 a Espanha tornou-se parte da ONU. Já a aproximação com os
Estados Unidos aconteceu antes, em 1953. Esses acontecimentos foram possibilitados
por pequenas “aberturas” proporcionadas pelo regime. A partir de 1946, ocorreu uma
mudança de estratégia da ditadura: ao fim da Segunda Guerra, Franco percebeu que
nem a Inglaterra nem os Estados Unidos desejavam uma mudança brusca na Península
Ibérica, ou seja, Salazar, em Portugal e ele próprio, na Espanha, representavam
possíveis aliados aos dois países e a ideologia que ambos representavam. Os meios
idealizados por Franco para alcançar a simpatia e a proteção dos dois países, e as
consequentes vantagens dessa aliança, incluíam a estabilização da institucionalização
governamental, inclusive através de uma “aproximação” com a monarquia exilada. Era
preciso, também, que o “nacional-sindicalismo” fosse esquecido, de modo que essas
pequenas alterações formais fizessem com que o regime fosse apresentável frente às
potências ocidentais.
9
CHURCHILL, Winston S. Memórias da Segunda Guerra Mundial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998, p. 592, v. 2.
14
Nesse mesmo ano de 1946, ocorreu uma série de acontecimentos, que criou
uma situação preocupante para Franco e para sua equipe, e que resultariam em
mudanças: a condenação pela ONU do regime, a existência do governo Giral no exílio e
o auge da guerrilha. Todavia, o rápido desenrolar da Guerra Fria, com a consequente
polarização em dois blocos, as divisões internas da oposição e uma intensificação dos
mecanismos de repressão, provocaram um reforço das estruturas da ditadura, que
começavam a soçobrar. A monarquia exilada era outro problema para Franco. A
confederação monárquica estruturou-se ainda em 1946 e, Don Juan de Bourbon, saiu
da França em direção a Portugal, onde permaneceu no exílio, articulando a
restauração da monarquia bourbônica na Espanha.
Em 1947, teve início uma propaganda laudatória do regime, com slogans que
promoviam um clima de medo ao comunismo, relembrando sempre os horrores rojos,
além de exaltar as vantagens proporcionadas por Franco aos comerciantes,
proprietários, católicos, mulheres, entre outros. No mesmo ano, Franco outorgou a Lei
de Sucessão, criando o Conselho do Reino e o Conselho da Coroa, e regulando o
mecanismo de sucessão que, em definitivo, dependia inteiramente de Franco, que
podia, inclusive, retificar o nome de seu sucessor designado até seu último dia de vida.
Assim, Franco garantiria uma transição para a monarquia, mas em um futuro incerto,
podendo inclusive destituir aquele a quem designaria como herdeiro. Em agosto de
1948 ocorreu um encontro entre Don Juan, herdeiro legítimo do trono espanhol, e
Franco, a bordo do iate “Azor”, de propriedade deste último. O assunto discutido entre
os dois foi a sucessão pretendida pelos monarquistas e a possível designação de Don
Juan Carlos como herdeiro de Franco. O encontro não teve uma definição nesse sentido
naquele momento, mas, em novembro de 1948, o futuro rei Juan Carlos retornou para
a Espanha para fazer seus estudos em seu próprio país, sob a tutela de Franco.
Na década de 50, a política espanhola sofreu mudanças, ainda que não
essenciais: as econômicas, com a mudança da burguesia agrária pela burguesia
comercial e financeira como bloco dominante; as sociais, um crescimento irregular da
população, o êxodo rural em direção às cidades adquiriu um caráter massivo e a
diminuição demográfica ocorrida em áreas inteiras, como Castilla, Aragón, Galícia
interior, entre outras. Ocorreu um abismo entre os salários reais e a condição de vida da
população, o que ocasionou greves em algumas cidades, como Bilbao, no País Basco.
15
Em 1953, foi firmado um acordo entre o presidente estadunidense Dwight
Eisenhower e Francisco Franco, com a visita de Eisenhower à Espanha, ocorrendo
apenas em 1957. Em troca de ajuda financeira por parte dos Estados Unidos, a
Espanha permitiria a instalação de bases militares (aéreas e navais) norte-americanas
em seu território, como já acontecera na Alemanha Ocidental e na Itália, não ficando
claro se essas bases teriam um caráter nuclear ou se aviões com carga atômica
voariam sobre território espanhol. A primeira base foi a de La Rota, em Cádiz, ponto
estratégico de entrada e saída entre o Mediterrâneo e o Oceano Atlântico. Em seu
aspecto econômico, o acordo previa ajuda ao governo espanhol e aos organismos que
este designasse. Um mês antes da assinatura do acordo entre os dois países, a Espanha
tinha firmado uma Concordata com a Santa Sé, legitimando mais uma vez a Igreja
Católica como uma das mantenedoras do regime no poder.
CONCLUSÃO
Ao realizar a análise do material historiográfico sobre o período abordado
nesse capítulo é possível constatar o grande número de documentos à disposição,
tanto na forma de livros como em sites na internet, filmes baseados na história da
época, documentários, fotografias e testemunhos orais.
As abordagens possuem divergências: alguns historiadores têm uma visão e
uma posição a favor do franquismo e de Francisco Franco, enquanto que outros
historiadores mostram-se críticos mordazes do regime. Historiadores, como Raymond
Carr, por exemplo, abordam a história do período franquista de forma mais isenta
possível, procurando evitar juízos de valores anacrônicos, baseados em perspectivas
contemporâneas.
De todas as formas, Franco, foi um ditador que governou o país por 36 anos,
ainda que, a partir do final da década de 60, tenha se afastado progressivamente da
vida pública em razão de seu estado de saúde, deixando a direção do governo nas
mãos de colaboradores de confiança e, até mesmo, o Príncipe Juan Carlos ocupou, em
algumas ocasiões, esse cargo. Sua política governamental, ainda hoje, é objeto de
estudo, com autores a caracterizando como totalitária e outros preferindo classificá-la
como uma forma particular de fascismo. Durante os primeiros anos de seu governo, a
Espanha manteve-se isolada do mundo exterior, numa tentativa de proteger o regime
16
recém chegado ao poder e garantir a política autárquica concebida pelo governo. A
Igreja Católica ocupou um papel importante, atuando como suporte do regime no
exterior e dentro da própria Espanha. Com o fim da Segunda Guerra, ocorreu uma
necessidade de mudança de posição por parte de Franco. Ele se utilizou mais uma vez
do anticomunismo para se aproximar dos Estados Unidos, potência militar e política
capitalista erigida depois da II Guerra em contraposição à União Soviética, com sua
ideologia baseada no comunismo materialista, contrária ao “Nacionalismo-Católico”
defendido por Franco. Em 1953, iniciou-se o processo de aceitação internacional do
regime, que culminou com seu reconhecimento entre os membros da ONU, em 1955.
Essa aceitação esteve vinculada à posição estratégica do território espanhol,
seu envolvimento com a causa anticomunista e mudanças em sua apresentação
governamental, o que foi chamado oportunamente de “constitucionalismo
cosmético”.
Por fim, a capacidade de adaptação de Francisco Franco e seu regime
(comprovada pela mudança, senão ideológica, de posição, após a Segunda Guerra); o
medo da população de que uma nova Guerra Civil acontecesse, levando novamente à
morte pessoas de idade plenamente ativa, além de levar ao exílio grande parte da
intelectualidade espanhola, como escritores, professores universitários, artistas, em
geral, e mão de obra especializada; e, a partir dos anos 50, um desenvolvimento
econômico baseado na instalação de indústrias multinacionais e desenvolvimento do
turismo, podem explicar a sobrevivência do regime franquista por tempo tão longo
sem que ocorresse tentativa, por parte de outros países democráticos, em destituir El
Generalísimo do poder.
REFERÊNCIAS
CARR, Raymond. España 1808 – 1975. Barcelona: Ariel, 2003.
CHURCHILL, Winston S. Memórias da Segunda Guerra Mundial. 3ª ed. , v.2. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos – O breve século XX (1914- 1991). São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
TUÑON DE LARA, Manuel. España Bajo La Dictadura Franquista (1939 – 1975).
Barcelona: Labor, 1980.
17
O Dois de Maio, a “Guerra de Independência” e a Memória
manipulada durante a Guerra Civil e o Franquismo
Janete Abrão
Professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da PUCRS, Brasil.
Doutora em História Contemporânea
N
arrar a história é uma forma de operar sobre a identidade nacional, sobre o
conceito de nação e de Estado, assim como sobre a “construção” discursiva
acerca da memória coletiva e da cultura nacional. 1 Segundo afirma Paolo Jedlowski:
No plano teórico, [...] convém entender a memória coletiva como a seleção,
a interpretação e a transmissão de certas representações do passado
produzidas e conservadas especificamente desde o ponto de vista de um
2
grupo social determinado.
Contudo, cabe esclarecer que:
Na medida em que cada sociedade – e em particular cada sociedade
moderna – está constituída por uma pluralidade de grupos, não é possível
falar propriamente de uma única memória coletiva: cada grupo elabora
aquela representação do passado que melhor se adapta a seus valores e a
seus interesses. Assim, mais que um conjunto homogêneo e coerente de
representações do passado, a memória coletiva tem que ser pensada como
o lugar de uma tensão contínua: o passado que ela custodia é posto em jogo
pelos conflitos recorrentes que o formulam e o reformulam
3
incessantemente.
O Dois de Maio de 1808, ocorrido em Madri, é um dos acontecimentos que mais
há sido interpretado, apropriado e manipulado historicamente pelos diferentes
regimes, partidos e ideologias implicadas no processo de “construção”, definição e
consolidação discursiva da nação, da memória coletiva, da identidade e do Estado
nacional espanhol. Nesse sentido, este capítulo tem por objetivo analisar, de forma
1
“Por cultura nacional se designa essa parte do imaginário coletivo (produzido por práticas discursivas)
que se oferece como marco formal de integração simbólica do conjunto da sociedade.” Cf. BOUCHARD,
Gérard. (2003). Gênesis de las naciones y culturas del Nuevo Mundo. Ensayo de historia comparada.
México: Fondo de Cultura Económica, p.35. Tradução sob responsabilidade da autora.
2
JEDLOWSKI, Paolo. La sociología y la memoria colectiva. In: BAKHURST, David, BELLELLI, Guglielmo,
RIVERO, Alberto Rosa (Orgs.). Memoria colectiva e identidad nacional. Madrid: Biblioteca Nueva, 2000,
p. 126. Tradução sob responsabilidade da autora.
3
JEDLOWSKI, Paolo. Op. cit., p. 127. Tradução sob responsabilidade da autora.
breve, as diferentes interpretações sobre o Dois de Maio, bem como sobre a guerra que
a
historiografia
espanhola
convencionou
relacionar
diretamente
com
este
acontecimento: a “Guerra de Independência”(1808-1814). 4 Pretende-se analisar os dois
temas desde a interpretação absolutista e liberal, passando pelas interpretações
elaboradas durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e pelo regime franquista
(1939-1975).
Cabe afirmar que, a partir de 1808, existiram duas interpretações políticoideológicas que buscavam explicar, tanto o Dois de Maio como a “Guerra de
Independência” 5: a absolutista e católica e a liberal.
A interpretação absolutista e católica, de caráter reacionário e tradicionalista,
concebeu o Dois de Maio e a Guerra como um levantamento de toda a Espanha, de
todos os espanhóis que, de forma unânime, se voltam contra o usurpador francês do
trono, contra a ameaça do ateísmo e contra a presença estrangeira em território
espanhol. Segundo essa interpretação, Fernando, príncipe de Astúrias, foi proclamado
rei no dia 19 de março de 1808, depois que o Motim de Aranjuez destituiu a Manuel
Godoy e Carlos IV renunciou à Coroa. Contudo, pouco tempo durou seu primeiro
reinado. Fernando VII foi enganado e conduzido a Bayona, onde o imperador francês,
Napoleão Bonaparte, lhe impôs a renuncia ao trono e, assim, foi proclamado rei da
Espanha José Bonaparte, o rei Intruso. Como reação os súditos espanhóis no dia Dois
4
“É duvidoso que o conflito desatado na península Ibérica entre 1808 e 1814 se ajustara realmente à
categoria de ‘guerra de independência’, segundo ficou consagrado mais tarde pela versão nacionalista.
Se por guerra de independência entendemos uma tentativa de secessão dos habitantes de um território
integrados contra sua vontade em um conglomerado imperial, haverá que reconhecer que Napoleão
não pretendia converter a monarquia espanhola em província de um império radicado em Paris, senão
mudar a dinastia reinante; algo, por certo, nem extraordinário nem repugnante para a tradição
peninsular, já que havia ocorrido cem anos antes, quando os Bourbons substituíram aos Habsburgos,
com resultados considerados em geral positivos e sem originar uma situação de subordinação formal
respeito à França. [...]. Apresentar, portanto, a longa e sangrenta confrontação de 1808 a 1814 como
uma ´guerra de Independência´, ou enfrentamento com ‘os franceses’ por uma ‘liberação espanhola´, é
uma dessas simplificações da realidade tão típicas da visão nacionalista do mundo, o de qualquer outra
visão doutrinária em definitiva, sempre dadas a explicar conflitos complexos em termos dicotômicos e
maniqueístas, graças ao qual conseguem atrair e mobilizar politicamente.” Cf. ÁLVAREZ JUNCO, José.
Mater dolorosa: la idea de España en el siglo XIX. 5ª ed. Madrid: Taurus, 2003, p.119-120. Tradução sob
responsabilidade da autora.
5
Essa relação pode ser considerada uma distorção na medida em que, segundo afirma Alberto Rosa e
outros autores, um dos procedimentos utilizados na distorção das representações do passado para fins
identitários ou político-ideológicos é a manipulação de associações entre acontecimentos. BAKHURST,
David, BELLELLI, Guglielmo, RIVERO, Alberto Rosa (Orgs.).Op. cit., p. 70. De fato, não há evidências de
que o Dois de Maio deu origem à “Guerra de Independência”. O próprio título de “Guerra de
Independência” é uma invenção posterior a 1833. Cf. ÁLVAREZ JUNCO, José. Op. cit., p. 127.
19
de Maio de 1808 se sublevaram contra a usurpação do trono, em defesa do monarca
(Fernando, o Desejado) 6 e da religião católica. Com a dura repressão das tropas
francesas (e o fatídico Três de Maio, pintado por Goya), teve início, em toda a Espanha,
a “Guerra de Independência”. Alguns dos principais representantes desse discurso e
defensores da Espanha tradicional foram: José Joaquín Colón 7 e o frade Simón López.8
Não obstante, inclui-se também nesse grupo o bispo de Orense, Miguel de Lardizábal,
os frades Francisco de Alvarado e Rafael de Vélez, assim como Juan Pérez Villamil y
Paredes, partidário acérrimo do Antigo Regime.
O discurso liberal, por sua vez, interpretou o Dois de Maio como o nascimento
da nação política espanhola, como o nascimento da nação cívica, que sonhava com a
revolução (liberal) por fazer. O Dois de Maio surgiu, assim, segundo o discurso liberal,
em decorrência da “vontade política do povo”, que buscava transformar o regime, as
instituições existentes e alcançar a liberdade. Seus primeiros porta-vozes foram Flórez
Estrada e Romero Alpuente.9 Portanto, para o primeiro liberalismo espanhol, o Dois de
Maio era o mito fundador por excelência, sobre o qual se levantava e se legitimava a
nação moderna espanhola. Segundo esclarece Jorge del Palácio Martín:
[…] o Dois de Maio perpetuava a memória de um episódio histórico em que
se predicavam todos os elementos constituintes de um discurso de
construção nacional. Se predicava a defesa do território, a unidade, a luta da
liberdade contra a tirania política e, sobretudo, a emergência de um sujeito
10
chamado a ser a custódia da soberania: a nação.
Conforme argumenta o liberal Antoni de Capmany y Montpalau, em sua obra
Centinela contra franceses, editada em Madrid, em 1808:
6
LA PARRA LÓPEZ, Emilio. “El mito del rey deseado” En: Sombras de Mayo: mitos y memorias de la
Guerra de la Independencia en España (1808-1908). Madrid: Casa de Velásquez, Colección n. 99, 2007.
7
COLÓN, José Joaquín. España vindicada en sus clases y autoridades de las falsas opiniones.
Alicante/Cadiz: 1811 [s.n.]
8
Para Simón López, autor de um folheto intitulado Despertador Cristiano-Político publicado em
Valência, em 1809, “[...] la conducta de los franceses era ´sacrílega, pérfida, sanguinaria, inhumana,
irreligiosa´ e Napoleão era ´la encarnación moderna del Anticristo´.” Cf. ÁLVAREZ JUNCO, José. Op. cit.,
p.345.
9
FLÓREZ ESTRADA, Álvaro. Introdución para la historia de la revolución de España.,[1810] AL PUENTE,
Juan Romero. El grito de la razón al español invencible. Folheto. Zaragoza, 1808.
10
“[…] el Dos de Mayo perpetuaba la memoria de un episodio histórico del que se predicaban todos los
elementos constituyentes de un discurso de construcción nacional. Se predicaba la defensa del
territorio, la unidad, la lucha de la libertad contra la tiranía política y, sobre todo, la emergencia de un
sujeto llamado a ser el custodio de la soberanía: la nación.” Cf. PALACIO MARTÍN, Jorge del. Madrid, 2 de
Mayo de 1814: la invención de un mito liberal. Disponível em: http://portal.uam.es. Acesso em
4/3/2008.
20
Que importaria a um Rei ter vassalos, se não tivesse nação? Esta é
formada não pelo número de indivíduos, mas pela unidade das
vontades, das leis, dos costumes, e do idioma, que as encerra e
mantém de geração em geração. [...]. Onde não há nação, não há
pátria, porque a palavra país não é mais que terra que sustenta
pessoas e bestas ao mesmo tempo. 11
Entretanto, com a reação absolutista, a interpretação liberal sobre o Dois de
Maio não pode manter o caráter político consagrado à liberdade. Ricardo García Cárcel
assegura que:
Com o retorno de Fernando VII ao poder e a repressão sobre os
liberais se legitima, desde a Corte, a interpretação conservadora da
guerra, como expressão da lealdade ao rei de seu povo. Épica militar,
xenofobia, fernandismo e integrismo religioso. A memória liberal
somente ressuscita – salvo a fugaz experiência do Triênio [liberal] – a
partir de 1837 e será distinta ao projeto que formularam Flórez
Estrada ou Romero Alpuente. A guerra já é passado e sua análise se
dá em função de seus resultados. Os liberais, aqueles velhos radicais
das Cortes de Cádiz, se integraram na política de governo após a
morte de Fernando VII. Toreno escreve sua clássica História do
levantamento, guerra e revolução da Espanha (1836-1837), na qual
enterra o sonho da revolução [liberal] pendente. 12
Portanto, depois de muitas convulsões, o Estado liberal pôde ser implantado,
mas com o forte caráter oligárquico que lhe dava o moderantismo. Para o governo dos
liberais moderados, o Dois de Maio e a “Guerra da Independência”, seriam
interpretados desde a ótica patriótica. Em outras palavras, para o governo dos
moderados, o Dois de Maio não devia ser interpretado e comemorado como a luta do
11
“¿Qué le importaría a un Rey tener vasallos, si no tuviese nación? A ésta la forma, no el número de
individuos, sino la unidad de las voluntades, de las leyes, de las costumbres, y del idioma, que las
encierra y mantiene de generación en generación. […]. Donde no hay nación, no hay patria, porque la
palabra país no es más que tierra que sustenta personas y bestias a un mismo tiempo.” Cf. CAPMANY y
MONTPALAU, Antonio. Centinela contra franceses. Madrid, 1808. Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com Acesso em 10/5/2005.
12
“Con la vuelta de Fernando VII y la represión sobre los liberales se legitima desde la Corte sólo la
interpretación conservadora de la guerra, como expresión de la lealtad al rey de su pueblo. Épica militar,
xenofobia, fernandismo e integrismo religioso. La memoria liberal sólo resucitará – salvo la fugaz
experiencia del Trienio – a partir de 1837 y será distinta al proyecto que formularon Flórez Estrada o
Romero Alpuente. La guerra es ya pasado y su análisis está en función de sus resultados. Los liberales,
aquellos viejos radicales de las Cortes de Cádiz, se han integrado en la política de gobierno tras la
muerte de Fernando VII. Toreno escribe su clasica Historia del levantamiento, guerra y revolución de
España (1836-37), donde entierra el sueño de la revolución [liberal] pendiente.”GARCÍA CÁRCEL,
Ricardo.
“Memoria
de
la
España
indómita”.
Disponível
em
http://www.muyinteresante.es/reportajes/memoria-de-la-espana-indomita.html Acesso em 9/3/2008.
21
povo pela sua liberdade política, mas circunscrever-se ao heroísmo daqueles
“generosos patriotas” de 1808, como Luís Daoíz y Pedro Valverde.13
Transcorridos mais de cento e vinte anos, em 1936, o Dois de Maio e a “Guerra
da Independência” contra a invasão napoleônica repousavam na memória coletiva dos
espanhóis, e as duas facções – republicanos e “nacionais” – recorreram a ela para
motivar seus seguidores a partir da relação estabelecida entre esses fatos históricos
teoricamente “compartidos” e as “causas”, as ideologias e as concepções de nação e
do Estado espanhol que defendiam. Dessa forma, no primeiro terço do século XX, e
durante os breves anos da II República, o Dois de Maio esteve sujeito a várias
interpretações, tanto da esquerda revolucionária como da direita defensora da religião
e das tradições nacionais.
Através da análise de algumas publicações, discursos e propagandas
revolucionárias, surgidas durante a Guerra Civil Espanhola, evidenciam-se várias
alusões ao Dois de Maio e à “Guerra de Independência”. Cabe ressaltar que dentre os
lemas difundidos pelos republicanos, como os de: Liberdade, Frente Popular e
República entre outros, o termo Independência não é o menos reiterado com a
conotação de território invadido que o povo devia defender. Efetivamente, a palavra
independência é exibida em numerosos discursos, panfletos e jornais da época.
Republicanos e comunistas, com frequência, se referem à guerra civil que assolou o
país como a “segunda guerra de independência”. 14 Por exemplo, Manuel Azaña,
presidente de Governo da Segunda República Espanhola, em um discurso pronunciado
em Valência, em 21 de janeiro de 1937, afirmou que
A Guerra de Independência – a qual me remeto muitas vezes, sempre
que falo da atual contenda – guardou e amparou o nascimento de
um movimento político espanhol, o primeiro no qual nossa nação
13
Entretanto, com a Ditadura de Primo de Rivera (1923-1930), a interpretação conservadora se
sobrepõe à liberal. Em 1926, foi publicada a segunda edição da obra Memórias de um setentão, de
Ramon Mesonero Romanos, na qual o autor sublinha os notáveis acontecimentos que “iam
desenvolvendo o terrível drama de 1808, iniciado por aquele alçamento nacional”, no qual o povo dava
“vivas a Fernando, à Religião, à Espanha, e à Virgem de Atocha”, com o objetivo de “mortificar no
possível ao enfadado hóspede [Murat], a quem por instinto cordialmente detestavam”. Cf. MESONERO
ROMANOS, Ramon de. Memorias de un setentón, natural y vecino de Madrid escritas por el curioso
parlante. 2ª. ed. Madrid: Renacimiento. 1926.
14
Boletín de la Biblioteca del AGGCE, n.2, Madrid, março de 2008.
22
tomava consciência de seu próprio ser e começava a alçar vôo a
independência política. 15
Com anterioridade, em dezembro de 1936, Santiago Carrillo, comunista e
membro da Junta de Defesa de Madri, em seu discurso pronunciado, em Valencia, no
Teatro Apolo, havia invocado a juventude para a “luta pela independência da pátria”.16
Em realidade parece que o planejamento da luta como rechaço ao invasor está
presente quase desde o primeiro momento do enfrentamento bélico.
Há que se mencionar também a reedição dos populares Episódios Nacionais, de
Pérez Galdós, escritos entre 1872 e 1912. 17 Em 1936, em plena batalha de Madrid, o
Ministério da Instrução Pública edita alguns fragmentos do “Dois de Maio” e de
“Napoleão de Chamartín”, ambos de Galdós, incluindo aqueles episódios de guerra
que são narrados na novela e que, tal e como se assevera no prólogo, descrevem uma
situação que “guarda grande semelhança [...], inclusive com os pormenores da
situação atual [...]: defendemos o espanhol nas guerras napoleônicas e o defendemos
hoje contra o fascismo internacional”. 18
Dois anos depois, em 1938, foram editados, como especial homenagem ao
Exército Popular, ao menos as três primeiras novelas da série galdosiana, nas quais não
se duvida em apresentar a guerra como a “segunda guerra de independência da
Espanha.” 19
Avançado o conflito, e após os sucessivos reveses sofridos pelo bando
republicano e a progressiva perda territorial, o modelo da guerra do século XIX era
15
“La Guerra de la Independencia – hacia la cual me vuelvo muchas veces, siempre que hablo de la
actual contienda – cobijó y amparó el nacimiento de un movimiento político español, el primero en que
nuestra nación tomaba consciencia de su propio ser y empezaba a aletear con independencia política”.
Cf. AZAÑA, Manuel. “Hacia la victoria: por la libertad y la independencia de España”. Discurso
pronunciado en el Ayuntamiento de Valencia el día 21 de enero de 1937. Madrid: Consejo Nacional de
Izquierda Republicana, 1937.
16
CARRILLO, Santiago. ¡Salud a la heroica juventud española! Toda la juventud en defensa de la
independencia de la patria. Texto taquigráfico del discurso pronunciado el día 16 de diciembre de 1936
en el Teatro Apolo de Valencia. Bilbao: Joven Guardia, 1937.
17
Os Episodios Nacionales trata-se de uma coleção de 46 novelas históricas escritas por Benito Pérez
Galdós que foram redatadas entre 1872 e 1912. Estão divididas em cinco séries e tratam da História da
Espanha desde 1805 até 1880, aproximadamente.
18
“[...] guarda gran semejanza […] incluso con los pormenores de la situación actual […] defendimos lo
español en las guerras napoleónicas y lo defendemos hoy contra el fascismo internacional”. Cf. PÉREZ
GALDÓS, Benito. El 2 de Mayo. Madrid: Ministerio de Instrucción Pública y Bellas Artes, Sección de
Publicaciones, 1936. Ediciones de la Guerra Civil.
19
PÉREZ GALDÓS, Benito. [Prólogo de Enrique Diez-Canedo]. Edición especial en homenaje a nuestro
glorioso Ejército Popular en la segunda guerra de la independencia de España. Madrid: Nuestro Pueblo,
1938 (Barcelona: Sociedad General de Publicaciones).
23
igualmente útil para manter a esperança e, sobretudo, para cultivar o moral da
resistência. No discurso de Santiago Carrillo, pronunciado no Cine Capitol durante a
celebração do aniversário da passada guerra de independência, o Dois de Maio de
1938 recordava aquela epopeia na qual “apesar dos progressos que fez o exército
invasor, o povo soube levantar-se e vencer o inimigo”. 20 Igual perspectiva mantém o
general Mariano Gámir, em 1938, com uma obra que analisa as façanhas do Dois de
Maio, assim como as batalhas de Bailén e Bruc. Para esse militar republicano, foi “o
surgimento espontâneo e formidável do povo o que fez com que aquela guerra de
independência de 1808 e a atual formem dois elos de firme soldadura na corrente da
nossa história pátria." 21
Nesse sentido, a luta pela independência – com o antecedente exemplar de
1808 – era um conceito válido para deslegitimar o bando contrário como exército
invasor, e para denunciar o fracasso da Política de Não-Intervenção, a “política de
apaziguamento”, da Inglaterra e da França com relação à política imperialista da
Alemanha nazista.
O apelo ao sentimento de independência, por exemplo, pôde ser evidenciada
no folheto intitulado A luta por nossa independência, publicado em 1938, no qual se
narra a guerra contra Napoleão e se insiste em que apesar da inicial perda de território
não só se conseguiu expulsá-lo da Espanha, mas também se contribuiu para que ele
deixasse de ser imperador dos franceses.22 Um claro precedente, pois, no qual
vislumbrar a futura expulsão do fascismo da Espanha e sua total derrota no âmbito
internacional.
Cabe afirmar que o mito da “Espanha indomável” de 1808, que se opõe à
dominação estrangeira, teve enorme repercussão durante o regime franquista (19391975). Mas há que se levar em consideração o fato de que, o franquismo, não fez
senão capitalizar, em seu interesse, o discurso romântico nacionalista, tradicionalista e
20
“[…] a pesar de los progresos que hizo el ejército invasor, el pueblo supo levantarse y vencer al
enemigo”. Cf. CARRILLO, Santiago. ¡Fuera el invasor de nuestra patria! Discurso pronunciado en el cine
Capitol, de Valencia, el 2 de mayo de 1938. Valencia: Alianza/ J.S.U, Comité Provincial de Madrid, 1938.
21
“[…] surgimiento espontáneo y formidable del pueblo el que hace que aquella guerra de la
independencia de 1808 y la actual formen dos eslabones de firme soldadura en la cadena de nuestra
historia patria.” Cf. GÁMIR ULIBARRI, Mariano. Tres hechos culminantes de la guerra contra Napoleón en
España. Barcelona: Biblioteca Militar de Catalunya. 1938.
22
SPAIN against the invaders: Napoleón 1808- Hitler and Mussolini 1936. London: United Editorial
Limited/ Madrid: Ediciones Españolas, 1938 apud Boletín de la Biblioteca del AGGCE, n.2, Madrid, marzo
de 2008.
24
católico de fins do século XIX, com toda a sua carga emocional. Foi nesse sentido que o
franquismo relacionou o Dois de Maio de 1808 ao Dezoito de Julho de 1936.23 Dessa
forma, a historiografia de cunho franquista não duvidou em afirmar que os
acontecimentos históricos de maior transcendência para a “pátria espanhola” eram a
“Guerra de Independência” (1808-1814) e a “Guerra de Libertação”(1936-1939). 24
Cabe ressaltar que um dos principais ideólogos do fascismo espanhol, Gimenez
Caballero, recém finalizada a guerra civil, não vacilou em proclamar “el triunfo del Dos
de Mayo”.25 Já o historiador Ricardo del Arco y Garay, em Grandeza y Destino de
Espana, obra publicada em 1942, em sua apologia ao bando “nacional” e ao exército
de Francisco Franco, de forma anacrônica, compara o alçamento de 1936 com a
revolta popular de 1808”:
O Movimento Nacional há chegado – como chegou o Alçamento de
1808 – pela traição de uns governantes que venderam a nação ao
bolchevismo russo. E a boa Espanha, representada pelo seu Exército,
se há levantado para defender sua vida livre e digna, depois de haver
agüentado toda sorte de atropelos cometidos ou amparados pelo
Poder público, que não se deteve nem pelo assassinato. Por muitas
atrocidades que cometessem desde 1808 até 1813 os franceses
invasores – e foram muitas –, não têm ponto de comparação com os
horrores perpetrados pelos marxistas: mortes violentas de bispos,
sacerdotes e religiosos; martírios, assassinatos [...]; incêndios de
templos, [...], saques e destruição de tesouros artísticos. 26
Outro documento significativo é a LEGISLACIÓN DE LA ENSEÑANZA MEDIA
ditada por Franco em 14 de abril de 1939. Segundo consta nesse documento:
23
CÁRCEL, Ricardo García. El sueño de una nación indomable: los mitos de la guerra de la
Independencia. 2ª. ed. Madrid: Temas de Hoy. 2007.
24
CHAMORRO MARTÍNEZ, Manuel. 1808-1936: dos situaciones históricas concordantes. 6ª. ed. Madrid:
Doncel. 1975
25
GIMÉNEZ CABALLERO, Ernesto. Triunfo del 2 de mayo. Madrid: Los Combatientes. Fe y acción.
Fascículo doctrinal, 3. 1939.
26
“El Movimiento Nacional ha llegado – como llegó el Alzamiento de 1808 – por la traición de unos
gobernantes que vendieron la nación al bolchevismo ruso. Y la buena España, representada por su
Ejército, se ha levantado para defender su vida libre y digna, después de haber aguantado toda suerte
de atropellos cometidos o amparados por el Poder público, que no se detuvo ni en el asesinato. Por
muchas felonías que cometiesen desde 1808 hasta 1813 los franceses invasores – y fueron muchas -, no
tienen punto de comparación con los horrores perpetrados por los marxistas: muertes violentas de
obispos, sacerdotes y religiosos; martirios, asesinatos […]; incendios de templos, […], saqueo y
destrucción de tesoros artísticos.” ARCO Y GARAY, Ricardo del. Grandeza y destino de España. Prólogo
de Federico García Sanchíz. Madrid: Escelicer, 1942, p. 249-250.
25
Se estudará a gloriosa e espanholíssima guerra de Independência [...]
com um sentido espanhol, anti-exótico, tradicional, católico e
monárquico [...]. Não se deve esquecer que a História da Espanha
nesses primeiros anos, ademais, deve senti-la [o aluno] como meio
de sentir a pátria. 27
Do que foi exposto nas páginas anteriores, pode-se afirmar que o Dois de Maio
e a “Guerra de Independência” foram processos bastante complexos, nos quais nem
todos os segmentos da sociedade estavam contra Napoleão e as reformas de caráter
modernizador que ele pretendia estabelecer na Espanha. A “Guerra de Independência”
não se desenrolou de igual forma em todo o território espanhol, nem as elites estavam
de acordo sobre qual regime dariam seu apoio. O Dois de Maio, por sua vez, foi uma
revolta popular, repentina, inesperada, desorganizada e sangrenta, na qual não se
valeu de proclames impressos nem artifícios de oratória para provocá-la. Ninguém
esperava o que ocorreu, nem seus principais protagonistas: criados, operários,
vendedores ambulantes, camponeses dos arredores de Madrid.28 Corroborando com o
escritor espanhol Pérez-Reverte pode-se asseverar que a ira dos revoltosos “era mais
visceral que ideológica”.
29
Nesse sentido, não existia um sujeito coletivo que então
permitira falar da nação como titular da soberania. Tampouco o Dois de Maio foi
resultado de conspirações patrióticas ou de uma vasta conspiração promovida por
parte da nobreza. 30 Foi uma revolta que teve como um dos fatores desencadeadores a
insolência e a rapacidade das tropas de ocupação francesas e, em contrapartida, “a
dose de xenofobia, especificamente anti-francesa, que indiscutivelmente existiu na
reação popular” 31, mas também não pode ser descartado o sentimento de abandono
27
"Se estudiará la gloriosa y españolísima guerra de la Independencia [...] con un sentido español,
antiexótico, tradicional, católico y monárquico […]. No se debe olvidar que la Historia de España en esos
primeros años, además, debe sentirla [el alumno] como medio de sentir la patria." Cf. LEGISLACIÓN DE
LA ENSEÑANZA MEDIA, dictada por el generalísimo Francisco Franco el 14 de abril de 1939.
28
“El recuento de los muertos por los alcaldes de barrio evidencia que la mayor parte de las víctimas
identificadas son obreros, criados, vendedores ambulantes. Las víctimas desconocidas son
numerosísimas, lo que deja suponer que tomaron parte en los combates muchísimos forasteros. Eran, al
parecer, campesinos de los alrededores que habían acudido al mercado del día anterior (domingo, 1º de
mayo) y permanecieron en la ciudad.” Cf. AYMÉS, Jean-René. La guerra de la independencia en España
(1808-1814). 2ª. ed. Madri: Siglo XXI, 1980, p. 17.
29
PÉREZ REVERTE, Arturo. Cólera de un pueblo, certeza de una nación. Disponível em:
http://golfenix2.wordpress.com Acesso em 3/6/2008. Tradução sob a responsabilidade da autora. Ver
também: PÉREZ REVERTE, Arturo. Un día de cólera. Madrid: Alfaguara. 2008.
30
Esta é uma hipótese do historiador Jean-René Aymés. Ver: AYMÉS, Jean-René. Op. cit., p. 17.
31
“[…] la dosis de xenofobia, específicamente antifrancesa, que indiscutiblemente existió en la reacción
popular.” Cf. ÁLVAREZ JUNCO, José. Op. cit., p. 121.
26
do “povo” pelo seu rei 32, pelo seu governo 33, pelas suas forças armadas e pelas classes
acomodadas, que ficaram em suas casas, observando desde as sacadas aquela “turba”
que transtornava a ordem pública. 34 Não se pode negligenciar, portanto, o fato de que
o vazio de poder também possibilitou o desencadear do conflito.35
Cabe matizar que os revoltosos pertenciam a uma sociedade que via o mundo
através dos valores do Antigo Regime, na qual o analfabetismo estava na ordem do dia
e uma das únicas fontes de informação política da maioria da população eram os
sermões. Contudo, não obstante o baixo clero interpretar o Dois de Maio e a guerra
como conflitos desencadeados em defesa da religião católica, assim como não se pode
negar que grande parte da sociedade nutria simpatias pela Coroa, o Dois de Maio e a
“Guerra de Independência” não podem ser considerados conflitos movidos pela
fidelidade ao rei e tampouco podem ser concebidos como guerra de religião. Em
realidade, o Dois de Maio se caracterizou por um conjunto de energias geradas pela
sensação de crise geral, na qual, o mal-estar social existente se transformou em revolta
popular.
O Dois de Maio não foi desencadeado pela lealdade à pátria ou por uma “nação
consciente de si mesma” que queria transformar as instituições e o regime absolutista
existente. Tudo isso veio depois, com os discursos liberais e patrióticos sobre a “nação
em armas”.36 Tampouco a “Guerra de Independência” foi uma guerra de unidade
32
“La partida de Fernando VII poco después de la de Carlos IV, la falta de noticias precisas de dónde se
encuentran, los temores confusos experimentados sobre la suerte que pueden correr. La situación del
país sin soberano y en la incertidumbre, crean una atmósfera de desconcierto y angustia.” Cf. ROUX,
Georges. La guerra napoleônica de España. Madrid: Espasa-Calpe, 1971, p. 50.
33
“Cuando Fernando VII abandonó a Madrid, sometiéndose a las intimaciones de Napoleón, dejó
establecida una Junta Suprema de gobierno presidida por el infante don Antonio. Pero en mayo esta
junta había desaparecido ya. No existía ninguno gobierno central, y las ciudades sublevadas formaron
juntas propias, subordinadas a las de las capitales de provincia. Estas juntas provinciales constituían, en
cierto modo, otros tantos gobiernos independientes, cada uno de los cuales puso en pie de guerra un
ejército propio.” Cf. MARX, Karl. La España revolucionaria. Moscou: Progreso, 1980, p. 18.
34
“Durante o motim se produz uma excisão entre a rua e a casa: [...]. Na rua se morre: é a sorte
reservada aos soldados, aos camponeses. O burguês se protege em sua casa, com a possibilidade de
eleger entre os papéis de ator ou espectador. [...]. O liberal Alcalá Galeano, menino ainda em 1808,
recorda que seus pais – respeitáveis burgueses – lhe proibiram que fosse misturar-se com os insurretos,
‘quase todos das classes inferiores’ – ‘a gente decente [...] não precisa lançar-se à contenda; ´as gentes
de superior classe observam desde as suas sacadas nas zonas [da cidade] onde não havia tiroteio, e
desde ali, vendo e ouvindo, procuravam entender o que passava.” Cf. AYMES, Jean-René. Op. cit., p.18.
Tradução sob responsabilidade da autora.
35
LOVETT, Gabriel H. La Guerra de la Independencia y el nacimiento de la España Contemporánea. La
lucha, dentro y fuera del país. Traducción de José Cano Tembleque. Barcelona: Península, 1975, p. 14.
36
ÁLVAREZ JUNCO, José. Op. cit., p.129.
27
nacional, senão de particularismos ou “patriotismos locais” contra a ocupação
napoleônica.37 O mito de uma reação unânime do povo espanhol contra Napoleão foi
alimentado por escritores, políticos e historiadores conservadores e liberais, no
decorrer do século XIX, visando criar o conceito de uma nação política espanhola e
consolidar, ainda no século XX, um Estado culturalmente homogêneo através da
coesão social, cultural e nacional.
Não obstante, o que se pretende criticar nas interpretações analisadas foi a
omissão da dimensão histórica, social, econômica, cultural e política em que
transcorreu o Dois de Maio de 1808 e a Guerra de Independência, visando atender a
interesses políticos, ideológicos e partidários, muitos dos quais, legitimados pelo
discurso historiográfico.
REFERÊNCIAS
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defensa de la independencia de la patria. Texto taquigráfico del discurso pronunciado
el día 16 de diciembre de 1936 en el Teatro Apolo de Valencia. Bilbao: Joven Guardia,
1937.
37
“¿Qué seria ya de los españoles, si no hubiera habido aragoneses, valencianos, murcianos, andaluces,
asturianos, gallegos, extremeños, catalanes, castellanos, etc.?” Cf. CAPMANY y MONTPALAU, Antonio.
Op. cit. Segundo Álvarez Junco: “Un último aspecto que cuestiona el caráter nacional del levantamiento
antinapoleónico es ‘el predominio del patriotismo local sobre la unidad nacional’, […]; un particularismo
que dotó precisamente de especial fuerza a la resistencia contra los franceses.”Cf. ÁLVAREZ JUNCO,
José. Op. cit., p.125.
28
______. ¡Fuera el invasor de nuestra patria! Discurso pronunciado en el cine Capitol, de
Valencia, el 2 de mayo de 1938. Valencia: Alianza/ J.S.U, Comité Provincial de Madrid,
1938.
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AGGCE, n.2, Madrid, marzo de 2008.
29
A Imprensa e a Ditadura Franquista
Sara Getino Garasa
Acadêmica do Curso de História
Universidad Complutense de Madrid, Espanha.
J
á do título do capítulo depreende-se claramente o objeto de análise que ao longo
destas páginas proponho-me a abordar: A imprensa e a ditadura franquista. No
entanto, a relação entre ambos não é fácil, e isso podemos observar desde um
primeiro momento, analisando o significado desses conceitos.
A imprensa chegou a ser definida como “o quarto poder”, evocando com isso a
capacidade de penetração que os conteúdos informativos têm nos estados de opinião
pública. Ao contrário, uma ditadura é uma forma de governo na qual o poder
concentra-se em torno à figura de um só indivíduo. Um único poder, portanto, que se
não contempla a existência de outros, não o fará tampouco de um quarto, a imprensa.
Mas nessa explicação introdutória ao tema devo aclarar que, em realidade, o que
caracteriza uma ditadura não é a carência de opinião pública senão a tentativa do poder
por suprimir, controlar e manipular a informação. No entanto, é igualmente interessante
observar que nem em todos os sistemas ditatoriais, nem em todos os momentos de sua
existência, verificam-se nem os mesmos mecanismos de controle sobre os meios de
comunicação, nem a mesma intensidade na sua aplicação, nem a mesma eficácia em
seus resultados. Isso é precisamente o que me proponho estudar e analisar: como essas
formas de controle político, que utilizou a ditadura franquista, transformaram-se,
intensificaram-se ou relaxaram em função das necessidades legitimadoras da mesma. E
tudo isso se refletiu claramente na imprensa, que foi sem dúvida, um dos meios em que
mais claramente se exerceu essa tentativa de controle através da censura e da política
de consignas. Contudo, ao mesmo tempo, o regime foi consciente da importância da
imprensa como potencial educador e transmissor de valores.
Dessa forma, ao longo deste capítulo, tentarei explicar a evolução que sofreu a
imprensa nestes 40 anos, mostrando especial atenção às duas leis de imprensa (a de
1948 e a de 1966) que foram publicadas ao longo do regime. Mencionarei também a
história dos principais periódicos espanhóis. Mas não poderíamos começar a falar sem
esclarecer qual foi o verdadeiro significado da imprensa durante o Franquismo.
SIGNIFICADO DA IMPRENSA DURANTE O FRANQUISMO
A imprensa foi concebida como um instrumento imprescindível ao serviço da
construção de um novo estado e de uma nova sociedade. Está claramente
demonstrado que a opinião não se engendra de baixo para cima, senão justamente de
cima para baixo. Com isso, refiro-me que quando os homens creem pensar por conta
própria, em realidade estão pensando através dos meios de informação de que
dispõem e das notícias que recebem do mundo. Assim, os meios de informação
convertem-se ao final em criadores de uma cultura e de uma consciência nacional e,
daí, precisamente a necessidade do franquismo de subordinar a imprensa à autoridade
do Estado, que não era outra coisa que o principal garante da ordem e do bem
comum. A imprensa do franquismo, portanto, não foi mais do que um aparelho a
serviço dos interesses do Estado; ao mesmo tempo, que um veículo de propaganda,
controle da opinião pública, vigilância e castigo. Assim, poderíamos afirmar que
encontramo-nos diante de uma imprensa a serviço da ordem pública. Nesse sentido,
bem poderíamos recolher aqui a seguinte afirmação de Justino Sinova:
El periodismo será concebido como una actividad de servicio al
Estado; el periódico como un instrumento de acción política; y el
periodista como un trabajador más de la administración, aunque su
salario fuera pagado por una empresa privada. 1
Portanto, para reforçar esses argumentos e corroborar com Sinova pode-se
afirmar que “los amos efectivos de toda la prensa fueron las autoridades, que en cada
momento se ocuparon del control y la pusieron (...) a los pies del régimen”. 2
Assim sendo, dedicarei o próximo apartado ao estudo das diferentes
conjunturas da imprensa na Espanha franquista.
EVOLUÇÃO DA IMPRENSA, EVOLUÇÃO DO FRANQUISMO
Para explicar essa evolução é necessário retroceder ao menos até a Guerra Civil.
Na Guerra Civil além da frente bélica, existiu outra, não menos importante: a frente
1
2
SINOVA, J., La censura de Prensa durante el franquismo, Espasa Calpe. Madrid, 1989, p. 17.
SINOVA, J., op.cit, p.162.
31
jornalística. A imprensa e a rádio foram utilizadas como meios de propaganda com tal
intensidade que se pode falar de uma guerra jornalística entre os bandos “franquista” e
“frentepopulista”.3 Mas também no âmbito internacional podemos observar essa
batalha informativa com a chegada de muitos correspondentes de guerra a um ou
outro bando, inclusive de um mesmo jornal. Exemplo disso, encontra-se nos jornalistas
do New York Times. Um desses jornalistas, afim à causa franquista, enviou crônicas que
contradiziam aquelas escritas por seu colega destinado à zona republicana.
Em 19 de julho de 1936, um dia depois de iniciada a guerra, declarou-se a
censura prévia na zona sob o controle da República e nove dias depois o bando
sublevado fez a mesma coisa. De imediato, deixaram de ser publicados os jornais
considerados hostis nas duas zonas e expropriam-se os primeiros periódicos. No caso
do ABC é paradigmático: foi editado simultaneamente em Madri, administrado pelas
autoridades da República; e, em Sevilha, foi publicado para defender a causa dos
sublevados. É, portanto, o mesmo periódico, mas com duas concepções políticas e
ideológicas antagônicas. Nesse contexto, o bando Nacional aprovou a “Lei de Prensa”
de 1938 que passarei a explicar mais adiante.
Nas duas zonas instalou-se, portanto, um modelo de aproveitamento do
sistema informativo para defender seu conceito de Estado, mas de formas muito
diferentes. No bando franquista consolidou-se um sistema centralizado com uma
hierarquia bem estabelecida que obedeceu à lógica da guerra e ao objetivo único de
ganhá-la, dessa forma, suas mensagens apresentavam uma uniformidade. É um
discurso diáfano que foi orientado somente em uma direção: exaltação do Exército,
integração da religião na vida diária, e a consagração de um Estado fascista.
No bando republicano, ao contrário, existiam demasiadas concepções
diferentes de Estado procedentes dos distintos partidos e sindicatos que apoiavam ao
regime, que produziu uma desorientação informativa no bando republicano, em que
cada setor atuou segundo suas próprias convicções. Enfrentaram-se, portanto, dois
sistemas informativos contrapostos que, puderam denominar-se “lo contradictorio
frente a lo compacto”. 4
3
SÁNCHEZ ARANDA, J.J. y BARRERA DEL BARRIO, C., Historia del periodismo español, desde sus orígenes
hasta 1975, Pamplona, EUNSA, 1992, p.357.
4
GÓMEZ MOMPART, J. L. y TRESSERRAS, J.M., La reorganización del sistema informativo durante la
guerra, in: Historia de los medios de comunicación en España, Ariel Comunicación, Madrid, 1989, p. 170.
32
Concluída a guerra, o governo de Franco manteve a “Lei de Prensa” que
supunha um controle total da atividade jornalística. Ao início, a imprensa ficou sob o
controle e a influência da “Falange”, que não só tentou controlar as publicações, mas
também aos profissionais do periodismo. Em 1941, criou-se a “Escuela Oficial de
Periodistas” na que foi imprescindível, para ingressar, ser militante da “Falange”
espanhola y de las JONS.
Após terminar a II Guerra Mundial iniciou-se um período de isolamento
internacional. Aprovou-se o “Fuero de los Españoles”, em 1945, que em seu artigo
número 12 manifestava: “Todo español podrá expresar libremente sus ideas mientras
no atenten a los principios fundamentales del Estado”. Esse último indicava que tudo
continuaria igual com respeito à liberdade de imprensa.
Em 1951, Franco remodelou seu governo e foi se abandonando o referente
formal do fascismo pelo modelo nacional-católico e isso teve consequências também
na política de imprensa franquista. Criou-se, então, o Ministério de Informação e
Turismo, a frente do qual se situou Gabriel Arias Salgado, que anunciou um possível
aperfeiçoamento da “Lei de Prensa” de 1938, mas quando abandonou o cargo, após 11
anos, o esboço da nova lei não tinha passado da fase de anteprojeto. Finalmente, em
1962, e já em pleno processo de industrialização e recuperação econômica, foi
nomeado ministro de Informação e Turismo Manuel Fraga Iribarne, que aprovaria, em
1966, uma nova “Lei de Prensa”, que supunha uma maior flexibilização e liberalização.
Mas essa maior liberalização não significou uma liberdade de imprensa plena, já que
melhor foram os resultados das novas exigências do regime que fizeram necessário um
controle mais sutil da política informativa. Mas não adiantemos conclusões e
continuemos caminhando passo a passo nesta análise da evolução da imprensa
franquista na qual, como já mencionei, possuem um lugar destacado as Leis de
Imprensa de 1938 e 1966 para se entender esse processo.
LEI DE IMPRENSA DE 1938 VERSUS LEI DE IMPRENSA DE 1966
A Lei de Imprensa de 1938 instaurou a censura prévia, e deixou bem claro em
seu preâmbulo qual seria a função da imprensa:
[...] transmitir al Estado las voces de la nación y comunicar a ésta las
órdenes y directrices del Estado y de su Gobierno, siendo la Prensa
33
órgano decisivo en la formación de la cultura popular y, sobre todo,
en la creación de la conciencia colectiva”. 5 Tratou-se, portanto, de
impor o máximo controle a toda informação e de influenciar
diretamente a opinião pública.
A autoria da Lei corresponde ao falangista José Antonio Giménez Arnau, que
relatou um texto baseado na Lei de Imprensa de Mussolini e com influências também
das legislações existentes na Alemanha nazi e, em Portugal, de Salazar. A principal
linha de semelhança observa-se na criação do Registro Oficial de Periodistas (imitação
dos albi professionali italianos e das Berufslisten alemãs), que punham nas mãos da
administração a decisão sobre quem pertence a profissão e quem ficava excluído dela.
Um segundo mecanismo de controle preventivo de enorme importância pode
ser encontrado no Artigo segundo que dava ao governo a possibilidade de “regular el
número y extensión de las publicaciones periódicas”. 6 Assim, a aparição de um novo
jornal estava subordinada a sua inclusão no Registro de Empresas Periodísticas,
administrado pelo governo, que também decidia sobre a extinção de um periódico ou
sobre a nomeação de seu diretor.
Mas, sem dúvida nenhuma, a mais imediata garantia de que os jornais não se
desviariam da vontade dos governantes, foi a instalação da censura prévia para que
não pudessem chegar aos leitores informações ou opiniões contrárias aos interesses
do regime e de sua classe política. Com tudo isso, vemos que o que se estabeleceu em
realidade é que a imprensa foi um serviço público em exclusiva, pois, embora as
empresas privadas editassem jornais, sempre seus fins deveriam estar unidos aos do
Estado. Essa Lei permaneceu em vigor vinte oito anos, até que em 1966 se produziu o
levantamento parcial das limitações impostas sobre a liberdade de expressão. A Lei de
Imprensa de 1966 supôs, portanto, um momento de abertura sobre a qual Raymond
Carr afirmou que “cambió el clima cultural de España”.7 Juan Pablo Fusi acrescentaria
que a Lei transformou “sustancialmente el nivel informativo del país” 8 e, Javier Tusell,
a qualificaria como a disposição “más transcendente” da última etapa do regime. 9
5
BOE, Ley de Prensa de 22 de abril de 1938, preámbulo.
BOE, Ley de Prensa de 22 de abril de 1938, artigo segundo.
7
CARR, R., España 1808-1975, Barcelona: Ariel, 1982.
8
FUSI AIZPURUA, J.P., Franco: Autoritarismo y poder personal, Madrid: Ediciones El País, 1985, p.98.
9
TUSELL, J., Manual de Historia de España, vol. 6, Madrid: Historia 16, 1994, p.748.
6
34
Os motivos que levaram o regime franquista a introduzir mudanças que podiam
provocar (e sem dúvida provocaram) um aumento da crítica pública e, em
consequência, um debilitamento da legitimidade da ditadura foram muito debatidos. A
maioria dos autores acredita que foi o resultado de pressões internacionais e também
de pressões estruturais resultantes do desenvolvimento econômico e da modernização
que tinha experimentado a Espanha desde finais da década de 50. Mais recentemente,
Elisa Chuliá lançou uma tese em que afirma que a “Lei de Prensa” de 1966 foi o
resultado de uma longa e complexa operação promovida por pessoas situadas dentro
do próprio regime. 10 Seja como for, no preâmbulo da Lei, afirmou-se “la necesidad de
adecuar aquella norma jurídica (em referencia à Lei de 1938) a las actuales
aspiraciones de la comunidad española y a la situación de los tiempos presentes”.11
Também nesse preâmbulo se falou da liberdade de expressão, de empresa e de
designação do diretor. Mas se bem é certo que essa lei suprimiu a censura, temos que
afirmar também que o governo, como assim recolhe o Artigo número dois, limitou
essa liberdade concedida a
respeto a la verdad y a la moral; al acatamiento a la Ley de Principios
del Movimiento Nacional y demás Leyes Fundamentales; las
exigencias de la defensa nacional, de la seguridad del Estado y del
mantenimiento del orden interior y la paz exterior; del debió respeto
a las Instituciones y a las personas en la crítica de la acción política y
administrativa; la independencia de los Tribunales, y la salvaguardia
de la intimidad y del honor personal y familiar. 12
Demasiadas exceções, sem dúvida, que fizeram com que os próprios jornalistas
se convertessem em autocensores diante de possíveis sanções ou, como bem afirma
Miguel Delibes: “Antes te obligaban a escribir lo que no sentías; ahora se conforman
con prohibirte que escribas lo que sientes; algo hemos ganado”.13
Desde sua entrada em vigor até 1975 instruiram-se 1.270 expedientes
sancionadores contra jornais e revistas, o que demonstra que sua aplicação
encontrava-se longe das palavras reformistas utilizadas em seu preâmbulo. Mas é bem
10
CHULIÁ, E., La Ley de Prensa de 1966. La explicación de un cambio institucional arriesgado y de sus
efectos virtuosos, in: Revista Historia y Política: Ideas, procesos y movimientos sociales, nº2, 1999, p.
197-220.
11
BOE, Ley de Prensa del 19 de marzo de 1966, preámbulo.
12
BOE, Ley de Prensa del 19 de marzo de 1966, artigo segundo.
13
SÁNCHEZ ARANDA, J.J. y BARRERA DEL BARRIO, C., Historia del periodismo español. Op. cit., p. 411.
35
certo também que as ameaças de sanções que existiam contra os jornalistas e os
jornais não impediram que eles se arriscassem a informar sobre assuntos críticos e
publicar opiniões contrárias aos poderes públicos. O principal incentivo das empresas
ao assumir esses riscos encontrava-se na rentabilidade, já que a oferta de informação
crítica aumentava a demanda de um jornal. Assim, o interesse das empresas
jornalísticas por aumentar a demanda de seus produtos através de uma oferta
atraente para os leitores, unido, também, à vontade dos profissionais por exercer um
jornalismo mais livre, plasmou-se em uma mudança dos conteúdos dos jornais.
Chegados a esse ponto faz-se necessário falar, embora seja brevemente, dos
principais jornais e de sua evolução ao longo do franquismo.
PRINCIPAIS PERIÓDICOS DURANTE O FRANQUISMO:
O número de jornais de informação geral editados na Espanha pode ser
observado no seguinte quadro:
NÚMERO DE PERIÓDICOS DE
INFORMAÇÃO GERAL
Anos
Número de jornais
1944
1954
1966
1971
1975
115
106
107
119
118
Fonte: Anuario de la Prensa española y
Boletines de Información. Estadísticas recogidas
da Sánchez Aranda y Barrera, Historia del
periodismo español, desde sus orígenes hasta
1975: EUNSA, Pamplona, 1992, p.386.
Analisando os dados, pode-se afirmar que o número dos jornais espanhóis de
informação geral foi constante ao longo de quase toda a época de Franco, mas nos
primeiros anos do pós-guerra existiu uma clara diminuição no número de jornais. Isso
foi um dos sintomas da crise geral que sofreu o país nesse período. O setor da
informação não teve uma grande importância devido ao momento de grande carência
das mais elementares matérias-primas em uma economia de subsistência. Ao
contrário, ao chegar os anos 60, primeiros anos de um futuro desenvolvimento
36
econômico, a Espanha iniciou o caminho para uma economia de consumo, e isso se
refletiu no sistema informativo.
Na cena informativa da época existia um convívio entre a imprensa oficial
(formada por aqueles jornais de titularidade estatal) e a imprensa não oficial (de
caráter privado).
1. A Imprensa Oficial: nela marcava-se a opinião do Estado. Continuou assim durante
todo o franquismo, mas nos anos 60 a imprensa oficial sofreria uma profunda crise. Os
principais jornais eram:
- ARRIBA: o jornal mais representativo do sistema da imprensa oficial. Foi fundado por
José Antonio Primo de Rivera, em 1935, como órgão oficial da “Falange Española” e, ao
terminar a Guerra Civil, reapareceu como jornal. Nele, colaboravam os intérpretes
mais autorizados do pensamento franquista, falangista e, desde as suas páginas,
defendia-se ao novo regime ditatorial. As mudanças sociais e econômicas dos anos 60
e a nova legislação de imprensa provocaram uma grande crise no periódico “Arriba”
com uma paulatina perda de leitores. O jornal desapareceu em junho de 1979.
-PUEBLO: o jornal em suas origens integrou-se administrativamente na Imprensa do
Movimento “Nacional”, mas aos poucos anos passou a depender da Delegação
Nacional de Sindicatos, estrutura administrativa integrada na Organização Sindical, por
isso, apresentava uma maior liberdade em determinados temas. O “Pueblo” teve uma
existência um tanto gris e monótona até 1952, quando o jornalista Emilio Romero
ascendeu a sua direção. Romero realizou uma série de mudanças, tanto na sua
estrutura como no seu conteúdo, que levaram a situá-lo como o terceiro periódico de
informação geral da Espanha após o “La Vanguardia” e o “ABC”. O “Pueblo” terminou
em 1984.
2. A prensa não oficial: eram os jornais publicados pelas diferentes empresas
jornalísticas de caráter privado e de outras que não tinham nenhuma vinculação com
as diversas instâncias do Estado. A imprensa não oficial experimentou um grande
avanço durante a década de 60, favorecido por circunstâncias alheias à informação,
37
como o reconhecimento internacional do regime e a nova lei de imprensa. Os
principais jornais eram:
- ABC: falar do “ABC” é falar de quase cem anos da história do jornalismo espanhol. Foi
fundado em Madri, em 1905, e logo ampliou a edição de Madri com outra nova em
Sevilha. Durante a Guerra Civil, como já apontei no início do trabalho, aconteceu uma
singular circunstância. Em Madri, o jornal era administrado pelos republicanos e foi
publicado durante todo o conflito com o nome ABC, Diario Republicano de Izquerdas.
Enquanto em Sevilha continuava saindo de forma habitual. ABC foi um periódico de
ideologia monárquica tradicional e desde os primeiros anos do franquismo apoiou as
pretensões de Don Juan de Bourbon à coroa espanhola, posição que supôs-lhe muitos
enfrentamentos com os poderes políticos franquistas. Na década de 60 foi o jornal
com maior difusão na Espanha. No ano de 1966 o jornal foi proibido de ser veiculado
devido a um artigo intitulado “La monarquia de todos”, numa das primeiras atuações
realizadas pelo Ministério dentro da Lei de Imprensa. Hoje, o ABC continua sendo um
importante protagonista da imprensa diária espanhola.
- LA VANGUARDIA: editado em Barcelona e fundado em 1881. É um dos jornais
históricos da imprensa espanhola e mantém uma situação de privilégio que dura até o
presente momento. Ao terminar a Guerra Civil, o governo de Franco impôs ao jornal
duas condições para sua publicação: acrescentar a palavra espanhola a seu nome e
nomear um novo diretor. Durante a época que nos preocupa, podemos dizer que “La
Vanguardia” foi um periódico dirigido à sociedade catalã, refletindo suas
preocupações, mas sem exceder-se à hora de mostrar seu nacionalismo. A não
ideologia do “La Vanguardia”, em boa medida, foi uma das chaves do seu êxito. Hoje,
em sua linha de nacionalismo moderado, continua contando com elevados índices de
difusão.
- YA: foi o periódico de maior difusão nos anos 60. A linha editorial do jornal inspirouse no humanismo cristão e sempre encontramos em seus conteúdos um grande
espírito conciliador que se reflete em sua colaboração com os diferentes governos
franquistas. O jornal “YA” contou durante toda sua existência com o apoio e a
colaboração da Igreja Católica, o que lhe evitou ter graves problemas com o governo.
38
CONCLUSÃO
Faz-se complexo resumir a história da imprensa espanhola de quarenta anos
em apenas dez páginas. Sem dúvida, muito mais poderia ter sido dito e muito mais
analisado, mas acredito que ao longo do trabalho consegui mostrar como a imprensa
espanhola evoluiu e mudou ao mesmo tempo em que evoluiu e se transformou o
regime franquista.
Mas, ao mesmo tempo, gostaria de sublinhar que se olharmos com
profundidade essa evolução, tanto do regime como da imprensa, não resultou em
mudanças significativas. Embora a recuperação econômica e a industrialização tenham
mudado a imagem interna do país, isso não supôs uma mudança real, pois o Estado
continuou com suas ideias e práticas repressivas, tanto contra os operários como
contra os estudantes, ou contra qualquer um que mostrasse a mínima resistência ao
regime. Nesse sentido, entende-se a abertura da Lei de 1966 que, contudo, não trouxe
uma liberdade completa de expressão. Foi mais uma mudança ou “limpeza de face”
que, poderíamos dizer, substituiu os controles preventivos pelos repressivos. No
entanto, essa abertura significou um aumento de opiniões críticas veiculadas pelos
jornais e fez com que o regime se encontrasse entre o dilema de sancionar ou tolerar,
o que provocou um processo de distanciamento crítico da imprensa com relação ao
regime. Esse distanciamento privava aos governantes da tranquilidade que tinham até
esse momento. Por isso, pode-se afirmar que os jornais tiveram um papel muito
importante no processo de transição política iniciada nos últimos anos do franquismo
e pressionaram aos diversos governos para impulsionar a abertura democrática.
Finalmente, em 1º abril de 1977, promulgou-se um Decreto-Lei sobre a liberdade de
expressão que abolia o Artigo 2º da Lei de Imprensa e outros conteúdos que limitavam
a liberdade de expressão. Apesar de que, se a censura é um conceito que caracteriza
as ditaduras, condiciona também, de forma sutil, as democracias.
REFERÊNCIAS
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CHULIÁ, E., La Ley de Prensa de 1966. La explicación de un cambio institucional
arriesgado y de sus efectos virtuosos, in: Revista Historia y Política: Ideas, procesos y
movimientos sociales, nº2, 1999.
39
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Prensa, política y opinión pública en la España Contemporánea, Madrid: Síntesis, 1982.
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1985.
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durante la guerra, in: Historia de los medios de comunicación en España. Madrid: Ariel
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desde sus orígenes hasta 1975. Pamplona: EUNSA, 1992.
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Balances. Alicante: Publicaciones UA, 1999.
SINOVA, J., La censura de Prensa durante el franquismo. Madrid: Espasa Calpe, 1989.
TUSELL, J., Manual de Historia de España. Madrid: Historia 16, 1994
40
Operação propaganda! O cinema espanhol: do Franquismo à
Transição Democrática (1939-1978)
Daniela Ribeiro Pereira
Mestranda do Curso de Pós-Graduação em História–PUCRS, Brasil.
O
propósito deste capítulo é explorar as dinâmicas políticas do regime
franquista que afetaram diretamente a produção cinematográfica espanhola
de 1939 a 1978, período da transição democrática na Espanha, assim como
analisar as contradições do regime através dos órgãos governamentais que
controlavam a propaganda. Para tanto, se faz necessário compreender o
desenvolvimento de uma tradição no cinema espanhol direcionada ideologicamente,
que se consolidou durante a Guerra Civil, intensificou-se com a ditadura de Franco e
manteve-se durante a abertura política.
Entre os muitos aspectos que podemos destacar da primeira metade do século
XX, um dos principais é a utilização dos meios de comunicação de massa pelas forças
políticas mundiais. Se observarmos o desenrolar dos conflitos desde a Primeira Guerra
em diante, é possível constatar que as nações bem sucedidas detinham o controle da
maior parcela dos meios de comunicação, e os utilizaram da maneira mais estratégica
e abrangente possível. A propaganda política se caracterizava como meio, cuja
finalidade é o exercício de poder. Com o avanço tecnológico dos meios de
comunicação e o surgimento dos regimes fascistas, a partir de 1919, as ideias e
conceitos vinculados à mídia ganharam força devido ao aperfeiçoamento técnico das
nações nas quais o fascismo se encontrava em ascensão, e à eficácia na persuasão
ideológica de seus governos. 1
Ao pensarmos na adaptação da mídia para a propaganda política, é possível
prever que, alinhada com o Estado, e mais especificamente, com um Estado totalitário,
ela iria exercer um “rigoroso controle sobre o conteúdo das mensagens, procurando
bloquear toda atividade espontânea ou contrária à ideologia oficial”. 2 Nos regimes
1
PEREIRA, W.P. Cinema e propaganda política no fascismo, nazismo, salazarismo e franquismo in:
História: Questões & Debates. n.38. Curitiba: UFPR. 2003, p. 102. Disponível em:
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/view/2716/2253>. Acesso em 26/3/2009.
2
Idem.
democráticos, essa Propaganda viria de forma mais sutil e travestida, e não
necessariamente em nome do Estado.
As primeiras décadas do século XX e a eficácia da propaganda política não
podem ser desassociadas do amadurecimento de uma indústria cultural e da ascensão
do cinema como meio de comunicação definitivo. A invenção dos irmãos Lumière, em
1896, compôs o quadro de desenvolvimento da Belle Époque que refletiu poucos anos
depois na disputa por zonas de influência político-econômica e cultural dos espaços
globais.
O cinema pode ser dividido entre o cine de ficção e o cine documental. A
propaganda política atua em ambas as esferas, sendo que no período de 1920 a 1940,
o cine documental destaca-se principalmente em forma de noticiários. Lênin, em
tempos de Revolução Russa, afirmou que “o cinema é para nós o instrumento mais
importante de todas as artes”. A afirmação permanece documentada, através das
obras primas de Sergei Eisenstein: O Encouraçado Potemkim (1925) e Outubro (1927).
O cinema espanhol durante o franquismo, alternando entre repressão,
abertura e retrocessos, possui suas peculiaridades no que tange ao caráter do controle
governamental da produção cinematográfica, e da consequente formação de uma
mentalidade que resultou na manutenção das ideologias propagadas pelo Estado. Uma
das características do caso espanhol, é que “as diferenças que marcaram a sociedade e
a política espanhola sob o franquismo podem ser percebidas no âmbito
cinematográfico”.3 Logo, a intenção deste capítulo é elucidar as diversas fases e
contradições do regime franquista, através da história do cinema na Espanha,
confrontando a bibliografia do período e a atualizada, e baseando-se em fontes
variadas, como documentários, filmes e artigos recentes. Optou-se por uma
organização linear para melhor compreensão, assim como salientar os aspectos
principais de cada período.
No primeiro momento, abordaremos a instauração da ditadura de Franco, os
órgãos institucionais e censores da cultura, o NO-DO e a produção cinematográfica no
que é considerada a primeira fase do governo, assim como a mais repressiva (19391950).
3
Ibid., p.123.
42
O período de 1950 até aproximadamente 1965 foi representativo pela entrada
de capital estrangeiro na Espanha, e no que concerne ao cinema, significa a instalação
da produção Hollywoodiana no país, que influiu, tanto nas questões culturais quanto
nas questões político-econômicas. Da década de 60 em diante, assistimos o que foi
considerado como a abertura do regime, ou apertura, como é dito em espanhol; nesta
sessão analisaremos o caráter da abertura política, como foi intensamente divulgada
pelo cinema, que ao mesmo tempo sofria com grandes baixas financeiras e
intelectuais.
A fim de aproximar esse estudo de uma análise eminentemente histórica, não
serão feitas incursões diretas sobre os conteúdos dos filmes, uma análise fílmica –
exceto em casos extraordinários –, mas sobre os atores dessa sociedade que influíram
no meio cinematográfico, sobre a produção humana, uma História Social do Cinema.
José Florit afirma que é significante de uma sociedade todo o processo
cinematográfico: roteiro, montagem, produção, sistema de financiamento, o êxito, o
fracasso, os silêncios, etc. 4
O cinema já nos contou diversas histórias, a maioria das pessoas possui uma
visão fílmica da História.5 Elizabeth Taylor como Cleópatra; Charlton Heston como El
Cid; a Idade Média em si; ou ainda a história americana. No que diz respeito aos
posicionamentos de autores e estruturas por trás de ambas as produções,
cinematográfica e historiográfica, nos deparamos, em qualquer caso, com
representações, ou seja, visões subjetivas da realidade. Contudo, a grande maioria
reconhece o caráter explícito da censura de Franco.
O PRIMEIRO FRANQUISMO E O CINEMA FANTÁSTICO * (1939-1950)
O Fantástico é produzido em uma obra de ficção, quando um acontecimento
inexplicável é relatado ou apresentado, e quando o destinatário da obra hesita entre
duas interpretações: ou o acontecimento é fruto da ilusão e da imaginação, e as leis do
4
FLORIT, José apud PLA VALLS, Enric. Na época do artigo, que cremos que seja recente, José Florit era
catedrático de História Contemporânea da Universidade de Barcelona.
5
FERRO, Marc. Perspectivas en torno a las relaciones Historia-Cine. Revista Film-Historia da Universidade
de
Barcelona.
vol.1.
1991.
Disponível
em
<http://www.publicacions.ub.es/bibliotecadigital/cinema/filmhistoria/Art.M.Ferro.pdf>. Acesso em
1º/6/2009.
*
O cinema fantástico, como gênero cinematográfico, diz respeito a todas as obras que fogem da
realidade. Geralmente representado pela ficção científica, pela fantasia e pelo horror.
43
mundo continuam as mesmas; ou o acontecimento ocorreu realmente, o que supõe
que ele se produziu em um mundo regido por leis desconhecidas. 6
Aqui utilizamos a expressão, ironicamente, para ressaltar os propósitos da
cinematografia franquista em sua primeira década, período de maior repressão. Com
essa analogia procuramos aludir as estratégias propagandísticas do regime ao
fantástico, no sentido de que as construções de Franco (ou as construções permitidas
na película em geral) extrapolaram o território mítico, e (re)inventaram a memória
coletiva no Pós-Guerra Civil. 7 O cinema é o meio em que o “acontecimento
inexplicável” – a Guerra Civil e sua resolução antidemocrática – foi representado entre
“a ilusão e a realidade” e, na maioria das vezes, como no cine fantástico, conduziu o
espectador a nenhuma resposta. O agravante do cinema espanhol durante o
franquismo foi o fato de que, em primeiro lugar, não se permitiu a pergunta.
Raymond Carr, denominando o período de “Época Azul”, aponta para a
dominação da vida social e política em todos os níveis, sob a tutela das “autoridades”:
o bispo, o governador militar e o prefeito falangista, ou seja, elementos que
constituíam a força trípode da nação, e que possuíam poltronas reservadas, separadas
das restantes por cordas, nas salas de cinema. 8 O cinema estava presente como prática
oficial e, consequentemente, como um modelo a ser seguido.
A princípio, se faz necessário compreender as bases institucionais pelas quais se
articulou o controle dos meios de comunicação. A nova censura, já em fase de
reorganização desde 1937, pretendia com a futura instauração do governo, centralizar
os poderes e impedir a censura eclesiástica privada exercida anteriormente. Em 2 de
novembro de 1938, ainda durante a Guerra Civil, criou-se a “Comisión de Censura
Cinematográfica” e a “Junta Superior de Censura Cinematográfica”. O decreto de 1938
declarava:
6
TODOROV apud AUMONT, Jacques & MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas:
Papirus, 2006. p.118.
7
Jacques Le Goff esclarece que a memória coletiva, a partir do século XX, com a constituição das
Ciências Sociais, se estabelece como “conversão do olhar histórico (...) partilhada pelo grande público,
obcecado pelo medo de uma perda de memória, de uma amnésia coletiva”. Conversão essa cujo
controle é aspiração das “classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da História são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva”. LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. Campinas:
UNICAMP, 1996. p. 423-477.
8
CARR, Raymond. España 1808-1975. Barcelona: Ariel, 2003, p.685.
44
Es innegable que el cinematógrafo ejerce una gran influencia en la
difusión del pensamiento y en la educación de las masas; es, pues,
indispensable que el Estado lo vigile en todos sus dominios. 9
Em 1939, a censura se estendeu aos roteiros e em 1941 a obrigatoriedade da
dublagem em castelhano. A dublagem se reverteu em um dos pilares da
“espanholização”, sendo, inclusive, obrigatório aos estabelecimentos comerciais
alterar qualquer nome estrangeiro. 10 Essa ordem resultou na criação do “Crédito
Cinematográfico” e nos prêmios do “Sindicato Nacional del Espectáculo”, que
pretendeu, por um lado, alavancar o cinema e afastá-lo das constantes crises
anteriores, organizando a indústria a partir do Estado; e estimular a produção de obras
alinhadas com a propaganda nacionalista.
Por essas razões, o cinema dos anos 40 ganhou um caráter didático, e defendeu
os valores do fascismo: apologia a raça, a pátria, ao caudillo, a família, a tradição
religiosa e moral. Os temas políticos desapareceram, e se favoreceu a evasão. Os
espetáculos populares tinham o objetivo de “divertir al pueblo español (y hacerle
olvidar momentáneamente las precariedades de la postguerra)”. 11
O mecanismo censor atendia às instâncias oficiais (coordenadas pela Falange),
eclesiásticas e comerciais. Um filme, a partir da sua idealização, seria supervisionado nos
conteúdos políticos (e analisado se oferecia o engrandecimento da nação); éticos e
morais; e na sua capacidade de entreter sem se estender demasiadamente (controle de
duração). Os órgãos controladores se multiplicaram na estrutura burocrática do regime,
ligados normalmente ao Ministério da Indústria, que atuou na parte material; ao
Ministério do Interior, dirigido à censura (este coordenado pelo cunhado de Franco,
Ramón Serrano Suñer); e a Delegação Nacional de Propaganda, que por sua vez, estendeuse a “Vice Secretaria de Educación Popular”, presidida por Gabriel Arias Salgado. 12
9
MINGUET i BATLLORI, Joan M. La regeneración del cine como hecho cultural durante el primer
franquismo. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2000. Disponível em
<http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=8273>. Acesso em 31/5/2009.
10
TORRES, Augusto M. Cine español, anos sesenta. Barcelona: Anagrama, 1973. p. 12.
11
MINGUET i BATLLORI, Joan M. La regeneración del cine como hecho cultural durante el primer
franquismo. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2000. Disponível em
<http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=8273>. Acesso em 31/5/2009.
12
Por ser um emaranhado de instituições, exemplo da burocratização do regime, atentaremos ao longo
do texto nas que possuem conexão direta com os processos em análise. É importante ressaltar, na
presente abordagem, quais são os personagens, e a que grupos fazem parte, relegando uma análise
aprofundada das instituições a outros pesquisadores. Para estudos dessa natureza, a obra de Emetério
Diez Puertas, anteriormente citada, é uma valiosa fonte.
45
Em 1942, foi inibida a possibilidade da produção de documentários, com a
criação do No-Do, os “Noticiarios y Documentales”, idealizado por Arias Salgado. A
exibição do No-Do era obrigatória em todas as sessões de cinema, proibindo-se a
projeção de outro curta metragem. 13 Dessa forma, criou-se uma produção oficial de
documentários,
que
impedia
quaisquer
outros
aportes
sobre
os
temas
contemporâneos. É possível mesmo enxergar o No-Do como uma agência de
publicidade, com seus múltiplos formatos, além do jornalístico, como a “Revista
Imágenes” e especiais de variedades. O No-Do, em essência, era a divisão oficial da
propaganda franquista, conforme assinala no preâmbulo do Regulamento:
También se hizo imprescindible desarrollar una producción de
documentales al servicio de nuestros organismos de propaganda que
refleje de modo exacto, artístico y con una técnica perfecta, los
diferentes aspectos de la vida de nuestra patria y que del modo más
ameno y eficaz posible, eduquen e instruyan a nuestro pueblo,
convenzan de su error a los aún posiblemente equivocados y
muestren al extranjero las maravillas de España, el progreso de
nuestra industria, nuestras riquezas naturales, los descubrimientos
de nuestra ciencia y, en fin, el resurgir de nuestra Patria en todos sus
aspectos impulsados por el nuevo Estado. 14
Fica clara a intenção de utilizar o noticiário como ferramenta de propaganda,
incluídos os esforços em refletir os “aspectos da vida espanhola” de modo “exato,
artístico e com uma técnica perfeita”. A tecnocracia franquista foi uma pragmática que
cresceu dentro do regime intimamente conectada à cinematografia; desse modo,
podemos falar numa racionalização das forças de produção, uma especialização da
mão de obra com fins econômicos, visando à consolidação da indústria, mas também
em aspectos políticos, no que se refere à manutenção do poder centralizado através
de um “exército” de técnicos sem autonomia. As diversas instâncias da indústria
cinematográfica geraram empregos, cursos técnicos e teóricos, e novos campos de
negócios apoiados na burocracia. Educar, instruir, convencer os “ainda equivocados”, e
apresentar ao mundo as maravilhas da Espanha eram os objetivos do No-Do.
Álvaro Juristo, numa análise mais atenta da legislação do No-Do, reitera o fato
de que não foram proibidas outras produções documentais, entretanto, o monopólio
13
TORRES, Augusto M. Op. Cit., p.12.
Regulamento de criação do No-Do (29/9/1942) apud JURISTO, Álvaro Matud. La incorporación del cine
documental al proyecto de No-Do. Revista Historia y Comunicación Social. Madrid, 2008. Disponível em
<http://revistas.ucm.es/inf/11370734/articulos/HICS0808110105A.PDF>. Acesso em 30/3/2009. p. 111-112.
14
46
da produção oficial lhes absorvia com financiamentos que condicionavam a livre
iniciativa. 15 Por sua vez, Rafael Tranche e Vicente Biosca afirmam a natureza barroca, a
acumulação desnecessária de adjetivos e o pedantismo que caracterizavam os
discursos do noticiário, concluindo que “El No-Do es, en verdad, un excelente resumen
de lo que fue el régimen a lo largo de su existencia”.16 Os autores ilustram essa
conclusão, com trechos das primeiras edições do No-Do. O primeiro, com a
apresentação do novo chefe de Estado da Espanha, e o segundo, sobre a derrota dos
“comunistas” republicanos.
A “apresentação” do “caudillo vitorioso” estreou nos cinemas. A visão fílmica
da História, mencionada por Marc Ferro, ganhou roupagem oficial, instruindo aos
espanhóis sobre a paz vigilante de Franco e a missão que lhe fora encomendada. Um
dos primeiros informativos do noticiário trabalha a propaganda em direção do aspecto
heroico do regime, e de sua aceitação. Se, por um lado, é preciso ilustrar a chegada de
tempos venturosos; por outro, é preciso assegurar o fim das ameaças. O No-Do, nesse
caso, mantém a propaganda nacionalista utilizada durante a Guerra Civil, justificando a
vitória sobre a “opressão marxista”. A exaltação à Falange e ao fascismo foi uma
constante no cinejornal, uma vez que era controlado pelo grupo e manteve o ideário
fascista até o final da Segunda Guerra.
Após a queda da Alemanha e Itália, o No-Do apresentou outras duas facetas ao
longo da ditadura: a primeira, até o fim dos anos 40, mais evasiva em relação aos
acontecimentos exteriores, e enfática nas realizações do governo; e após os anos 50,
com a influência americana, ganhau um caráter mais midiático, comercial e
espetacular.
Remetendo-nos aos longas-metragens, é importante compreender como se
deu a nacionalização na política cinematográfica. A partir de 18 de maio de 1943
houve uma regulamentação para as licenças de importação de filmes estrangeiros, a
dizer, só teriam essa licença empresas que produzissem filmes nacionais. Em 1944,
instituiu-se a obrigatoriedade de exibição de um dia para filmes espanhóis, em razão
de cinco para estrangeiros, e foi criada a categoria “Interesse Nacional”, que deu novos
15
Idem.
TRANCHE, R.R. & BIOSCA, V.S. NODO: el tiempo y la memória. Resenha do livro homônimo. Madrid,
2000. Disponível em <http://www.lapaginadefinitiva.com/cine/biblioteca/nodo.htm>. Acesso em
30/3/2009.
16
47
privilégios às produções escolhidas. Em dezembro de 1946, instituiu-se a licença para
dublagem, que também se restringiu a produtores de filmes espanhóis. Essa medida
procurava regulamentar o mercado de dublagem, que em si já era uma organização
terceirizada.
Havia
laboratórios
especializados
na
área,
que
lucravam
consideravelmente, em vista da obrigatoriedade do idioma, contudo, o decreto de 46
terminou com essa terceirização, mas criou um novo mercado, o de venda de licenças,
uma vez que essas não eram intransferíveis. 17
Com essa dinâmica, não é difícil constatar que a produção espanhola tornou-se
praticamente um “imposto a mais” na importação de filmes, em grande parte norteamericanos. Aliado ao filtro acirrado da censura, tal condição mercadológica do
cinema o transformou numa produção numerosa, porém medíocre. Repetem-se aqui
os “telefones brancos” italianos, cinecomédias de entretenimento evasivo, que
Vizcaino Casas classifica como “ternura circense”. Nesse gênero, se destacou Juan de
Orduña.18
Além dos épicos falangistas, como no caso ímpar de Raza (1941), dirigido por
José Luis Sáenz de Heredia sobre o roteiro de um certo Jaime de Andrade, na verdade,
pseudônimo de Franco, havia uma facilidade em passar pela censura, com adaptações,
os clássicos literários. As guerras da Reconquista, as histórias de santos e as obras do
século XIX relacionadas à Restauração – exaltação do cristianismo e aceitação de uma
ordem hierárquica que combatia o liberalismo – eram muito caras às juntas censoras
(eliminados os aspectos problemáticos da obras) que, assim, acumulavam argumentos
ideológicos e morais para legitimar o regime. 19
Mais grave que o filtro para se conseguir lançar um filme, era o
condicionamento provocado pela censura. Durante todo o regime de Franco, películas
eram completamente alteradas ainda no roteiro, recebiam cortes despreocupados
com qualquer estética, continuidade ou sentido, e a obrigatoriedade da dublagem
deliberadamente criava novos diálogos, novas trilhas sonoras e até novas histórias.
17
TORRES, Augusto M. Op.Cit., p. 14.
VIZCAINO CASAS, F. La Cinematografia Española. Madrid: Publicaciones Españolas, 1970, p. 8.
19
BOWIE, Pérez apud MARTINEZ-CARAZO, Cristina. Novela española y cine a partir de 1939. Alicante:
Biblioteca
Virtual
Miguel
de
Cervantes,
2008.
Disponível
em
<http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=29293&portal=177>. Acesso em 31/5/2009.
18
48
Em efeito, o cerne da transição da mentalidade cinematográfica nasceu da
contradição. Em 1947, foi criado o I.I.E.C. (Instituto de Investigaciones y Experiencias
Cinematográficas), em que a formação de “técnicos de cinema” resultou no
desenvolvimento de uma reflexão teórica e crítica que ainda não existia no cinema
espanhol, salvo algumas tentativas impressas. 20
Em 1949, sob influência francesa, é criada a “Asociación Española de
Filmologia” (AEF) e, em 1950, se formou a primeira turma do I.I.E.C.. Os tempos
começam a mudar.
BEM-VINDO, MR. MARSHALL: FRANCO, OS FESTIVAIS INTERNACIONAIS E OS EUA
(1950-1960)
A década de 50 assistiu a transformações na estrutura de governo, e
consequentemente, na sociedade espanhola. Raymond Carr aponta para dois começos:
os cautelosos primeiros passos de uma política econômica capitalista; e a tentativa de
uma abertura política desde dentro. Segundo Carr, tais sinais de abertura partiram de
uma maior distribuição de licenças de importação pelo Ministro do Comércio, Manuel
Arburúa; e da posição liberal-católica do Ministro da Educação, Joaquín Ruiz Gimenez.
Gestões que reforçariam as contradições da ditadura até o seu término, de modo que
enquanto havia uma liberalização, a Falange criava medidas restritivas de contenção às
ameaças da “essência do Estado”, com uma considerável rotatividade nos ministérios.
Pela primeira vez, o público passou a conhecer as divergências nas lutas pelo poder. Foi
durante o período que se reorganizam os grupos de estudantes, intelectuais, operários,
e o Partido Comunista espanhol lançou sua política de reconciliação nacional.21 A
militância e os protestos não extravasaram a rede censora de Arias Salgado, mas em
alguns grupos surgiu a consciência de que a sociedade espanhola não poderia mais ficar
subjugada à “camarilla reaccionaria”. Essa conscientização começou a ser sentida nos
meios de acesso possíveis e, sem dúvida, no cinema.
A partir de 1951, os formandos do I.I.E.C. realizaram suas primeiras
experiências, que não se limitaram à produção de películas. Foram criados os
cineclubes que, por serem privados, possibilitavam a exibição de filmes proibidos pelo
20
21
Idem.
CARR, Raymond. Op. Cit., p. 687-689.
49
regime; e as revistas especializadas, a fim de promover discussões teóricas. Cabe
salientar que Luis Berlanga e Juan Antonio Bardem formaram a dupla mais prolífica e
polêmica do grupo, inaugurando a influência do neorrealismo com Esa pareja feliz
(1951), sobre as ilusões da classe trabalhadora; Bienvenido Mr.Marshall! (1953), sobre
a influência americana no país; e Muerte de un ciclista (1955) que retrata a história de
um casal de amantes que atropelam um ciclista e não lhe oferecem ajuda com receio
de expor a relação. Todos atuaram sob uma base teórica que repudia a evasão anterior
e se aproximaram dos temas cotidianos e dos problemas reais da sociedade.
Em julho de 1952, uma ordem conjunta dos Ministérios de Comércio; e de
Informação e Turismo, implantaram um novo sistema de proteção ao crédito
cinematográfico, regulamentado pela “Junta de Clasificación y Censura”.22 As
categorias ficaram divididas em: “Interés Nacional” com uma subvenção de 50%; 1ªA
(40%); 1ªB (35%); 2ªA (30%); 2ªB (25%); 3ª (0); e a 4ª categoria, geralmente nos
pareceres eclesiásticos, que representavam “obras completamente imorais e pecado
mortal”.23 A intenção era que se mantivesse o modelo agradável ao governo.
Bardem e Berlanga estavam presentes quando foram convocadas, em maio de
1955, as “Conversaciones Cinematográficas de Salamanca”, na qual Juan Antonio
Bardem definiu o cinema espanhol como “politicamente ineficaz, socialmente falso,
intelectualmente ínfimo, esteticamente nulo e industrialmente raquítico”. Nas
conclusões das “Conversaciones”, pediu-se principalmente um código de censura, um
novo sistema de proteção mais justo e eficaz
24
, uma federação de cineclubes; ajuda
estatal ao I.I.E.C.; e o final do monopólio do No-Do. No mesmo ano, Perón foi deposto
pelo golpe militar na Argentina, e uma série de diretores se exilaram na Espanha, o que
trouxe outros olhares para o cine espanhol. Olhares que também vivenciaram um
regime nacionalista, controlado pelo Exército e pela Igreja Católica e que acabara de
ser derrubado.25
22
TORRES, Augusto M. Op.Cit., p.15.
Comentário de Antônio Dopazo em Tertulias de Historia. Historia del cine: la censura cinematográfica
durante
el
franquismo:
4-12-2001.
Disponível
em
<http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=6939>. Acesso em 31/5/2009.
24
Até então não havia um controle fiscal sobre as bilheterias, que ainda eram mecânicas, e ocasionavam
fraudes principalmente quando se tratava de filmes nacionais.
25
TORRES, Augusto M. Op.Cit. p. 17-18.
23
50
A censura aos roteiros, os cortes e dublagens deliberadas se mantiveram.
Berlanga chegou a oferecer a um sacerdote censor a coautoria do roteiro de um filme,
devido às excessivas manipulações introduzidas na obra.26 É importante frisar que os
gêneros surgidos na década de 40 não desapareceram, a exemplo de Marcelino, pan y
vino (1954) e novos “sucessos” de Juan de Orduña.
Em 14 de julho de 1955, mudou a razão de filmes em exibição: um dia de
exibição nacional para cada quatro dias de filmes estrangeiros. Os EUA protestaram,
impedindo a distribuição de filmes norte-americanos no país. As relações
internacionais entre os dois países só se restabeleceram em 1959. 27
Para abordar a relação Espanha-EUA, nos atentaremos ao filme Bienvenido, Mr.
Marshall! (1953), com direção de Berlanga e roteiro em coautoria com Bardem. A
organização de ajuda norte-americana à Europa – o Plano Marshall – no período do
pós-guerra e início da Guerra Fria é o mote da história. Em 1946, a Espanha se via
excluída do Plano, devido ao caráter da ditadura franquista e seus esforços junto às
potências do Eixo. Com o avanço da Guerra Fria, o país se revelou um ponto
estratégico para o estabelecimento de bases militares estadunidenses, e como
“reserva espiritual” anticomunista. Entre 1952 e 1953, o Congresso americano e a ONU
rescindiram a resolução anterior com a promessa de um “préstamo sustancial”.28
Podemos considerar que essas duas características são inexoráveis para compreender
o panorama em que Franco se conservou no poder até 1975.
A película se passa em Villar del Rio, um pueblo fictício
29
, que ao receber a
notícia de que um grupo de americanos visitará a cidade, transforma seu entorno
montando uma cidade folclórica de papelão, material comprado a crédito para receber
a delegação, que traria a esperança financeira. Os americanos passam e não param. Os
moradores retornam à vida cotidiana, mas contribuem com suas parcas economias
para pagar a dívida adquirida.
26
DOPAZO, Antonio. Tertulias de Historia. Historia del cine: la censura cinematográfica durante el
franquismo: 4-12-2001. Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=6939>.
Acesso em 31/5/2009.
27
TORRES, Augusto M. Op.cit., p.19.
28
CARR, Raymond. Op. Cit., p. 683.
29
Que na verdade é um município real, Guadalix de la Sierra.
51
A história fictícia, em parte, confunde-se com a realidade, quando sabemos que
o filme foi encomendado para o lançamento da protagonista (Lolita Sevilla, uma
cantora andaluza) e ao deparar-nos com o depoimento de Berlanga sobre o filme:
La primera sinopsis que escribimos Bardem y yo era un drama rural,
al estilo del cine del Indio Fernández. 30 Los productores nos dijeron
que por qué no hacíamos algo más divertido. Entonces la primera
idea que tuvimos fue hacer algo sobre la Coca-Cola y el vino.
Posteriormente, siguiendo el planteamiento de la kermesse héroe
que, nos decidimos por la historia de un pueblo que soporta la
invasión a base de halagar a los invasores, hasta ir evolucionando
hacia lo que finalmente es la película (...). 31
Nesse caso, constatamos a típica contradição do cinema com o regime franquista, em
que os cineastas realizaram as premissas dos produtores e, de alguma forma, aderiram
à campanha nacionalista (trabalhando com personagens que possuem opiniões
divergentes entre prós- e contra-americanismo); e, consequentemente, exportaram o
“tipo espanhol” exaltado pelo regime; mas em contraponto teceram suas críticas. Foi a
sutileza com que Berlanga e Bardem trabalharam suas histórias e o humor negro que
terminaram por agradar aos censores, muitas vezes não se dando conta das críticas
aprofundadas, ou contando que o público, já condicionado com os gêneros partidários,
não teriam o nível pretendido de reflexão para decodificá-las. De qualquer modo, o
filme não escapou da censura, sendo cortada uma das cenas finais, em que uma
bandeirola dos EUA aparece afundando numa corrente d’água. Berlanga declarou
ainda que seus filmes (e os de Bardem), de alguma forma, acirraram a censura: “Con
nuestra actitud, provocamos el reforzamiento de una institución – la Censura – que
hasta ese momento había existido sólo de forma muy latente (...)”. 32
30
Emílio “El Índio” Fernandez (1904-1986) foi um cineasta, roteirista e ator mexicano que tratava
problemáticas rurais em forma de comédia. Exilou-se em Los Angeles (EUA) e trabalhou em Hollywood
após ter participado do movimento revolucionário de Adolfo de la Huerta contra Álvaro Obregón Salido
(1920-1924), e retorna anistiado por Lázaro Cárdenas (1934-1940).
31
CAPARRÒS-LERA, J.M. & ESTEVE, Llorenç. Aproximación a Bienvenido Mr. Marshall (1952) y Calabush
(1956).
Revista
Film
Historia.
vol.
3.
Barcelona,
1991.
Disponível
em
<http://www.publicacions.ub.es/bibliotecadigital/cinema/filmhistoria/Caparros-Esteve.pdf>. Acesso em
31/5/2009.
32
BERLANGA apud CERÓN GOMEZ, Juan Francisco. El cine de Juan Antonio Bardem y la censura
franquista (1951-1963): las contradicciones de la represión cinematográfica. Alicante: Biblioteca Virtual
Miguel
de
Cervantes,
2003.
(fonte
oficial:
1999).
Disponível
em
<http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=10209>. Acesso em 30/3/2009.
52
Outro aspecto contraditório da “relação de amor e ódio” dos censores com
alguns cineastas é o fato que a partir dos anos 50, com o crescimento das coproduções
e uma exportação maior de filmes espanhóis, esses filmes passaram a concorrer em
festivais internacionais (em destaque Cannes e Veneza), e obtiveram bons prêmios.
Esse processo obrigou os órgãos censores a fazerem concessões, a fim de usar o
sucesso das obras para prestigiar internacionalmente o regime. Temos o exemplo de
“Calle Mayor” (1956), que foi cogitado à indicação do Oscar, e em correspondência
entre os embaixadores da Espanha e EUA, e o Diretor-Geral de Cinematografia lê-se:
“La ocasión es única para desarrollar en los Estados Unidos una excelente propaganda
de cosas que nos interesan a este efecto”.33 Encontramos comentários de mesma
natureza na obra de Vizcaino Casas:
Con “Bienvenido, míster Marshall”, el cine nacional salta las
fronteras y, lo que es aún más importante, demuestra las infinitas
posibilidades que le aguardan cuando sabe poner en juego una
inteligencia clara, un fino espíritu irónico y una contemplación entre
tierna y optimista, entre satírica y comprensiva, de los problemas
actuales. (...) Berlanga-Bardem será definido como “las dos palmeras
en el desierto del cine español”. 34
É possível refletir, com essa asserção, sobre o cinema fantástico que fizemos
analogia anteriormente. Quando a exaltação dos cineastas, os mesmos que
“reavivaram a censura”, é conveniente para a propaganda franquista, não há titubeios.
Vamos analisar o porquê, então, dessa movimentação da cinematografia interna em
vista do “cine para exportação”.
O CINEMA NOVO, HOLLYWOOD, E A CARICATURA DO MESMO PROCESSO (1960-1978)
Os anos 60 caracterizaram-se principalmente por uma velada abertura política
e econômica que foi refletida na censura, bem como na indústria cinematográfica. O
movimento de aperturismo, como denominado pela maioria da literatura espanhola,
destacou-se pelo “milagre econômico” alcançado através do abandono da política de
autarquia e pela adoção de um modelo que Raymond Carr classifica como “neo-
33
Cerón Gomez, idem. Fonte citada pelo autor: La carta se fecha el 26 de diciembre de 1957 y está
recogida en ACM C/ 13.833, Expte. 202.
34
VIZCAINO CASAS, F. Op.Cit., p.11. [Grifo nosso].
53
capitalismo”.35 Tal modelo foi garantido pela conjugação administrativa organizada a
partir da década de 50: o ascenso de ministros e funcionários públicos com formação
universitária e mão de obra especializada deu origem ao caráter tecnocrata do regime,
reiterando a necessidade do país retomar as relações exteriores a fim de gerar
recursos e, como consequência, manter o regime nas mãos de Franco e dos grupos de
interesse agregados.
O que consideramos como “caricatura do processo” é o fato de que conforme
se dispõe de medidas em direção a uma liberdade maior, inclusive às manifestações
críticas ao governo, são as mesmas medidas que vão operar e fortalecer a legitimidade
do regime. Como, por exemplo, aponta Carr que, para Franco, não existia mais a luta
de classes, então não havia motivo para greves e manifestações, que permaneciam
classificadas como atos criminosos.
O maior poder de consumo gerado pelo “milagre econômico” agiu
contraditoriamente numa tímida tomada de consciência cujas bases refletiram a
possibilidade de possuir “coisas” em contraponto ao cerceamento das liberdades,
enquanto em algumas instâncias reforçou a apatia da opinião pública. O advento da TV
aumentou a matriz de controle da indústria cultural estabelecida pelo regime, bem
como a utilização dos esportes dentro da propaganda nacionalista, aspectos que
sinalizaram para uma queda de popularidade do cinema. Com isso, a estratégia voltada
para a cinematografia ganhou outros rumos, consistindo, internamente, num maior
poder de expressão; e com fins externos, no apoio das produtoras americanas para a
realização de películas de alta distribuição. Ficou patente a política de investimentos
no turismo, que terá o cinema como maior aliado.
Dentro do espectro de premiações cinematográficas no estrangeiro, tem-se o
episódio polêmico de Viridiana (1961), de Luis Buñuel, como expressão máxima da
atitude do regime no controle da censura. Viridiana passou pela censura e ganhou a
Palma de Ouro em Cannes; porém, logo em seguida, foi criticado pelo Vaticano, o que
gerou a dissolução da produtora encarregada e a proibição de exibição na Espanha, só
liberado juntamente com outros filmes do cineasta, na década de 70.
A “reforma” do cinema espanhol ficou a cargo de José María García Escudero,
liberal-católico, que assumiu o posto da Direção-Geral de Cinematografia entre 1962 e
35
Carr, op.cit. p.690.
54
1967. Escudero promoveu o primeiro código de censura, em 1963, que se traduziu
ineficaz no sentido que persiste a censura prévia de roteiro, as melhorias se
caracterizaram pelo controle maior de bilheteria de filmes nacionais, e pela liberação
de alguns filmes previamente proibidos. No entanto, as Normas do Boletín Oficial del
Estado (BOE), de 1963, revelam a proibição de alguns temas como: o suicídio; o
homicídio; vingança e duelo; divórcio e adultério; aborto; relações sexuais ilícitas;
prostituição; e “en general, de cuanto atente contra la institución matrimonial y contra
la familia”. Entre os filmes proibidos, foram revisadas, em 1964, 68 películas e
autorizadas 53 delas. 36
Ainda em 1963, houve a conversão do I.I.E.C. em Escola Oficial de
Cinematografia (EOC), passando agora ao controle direto de Escudero. Foi nesse
contexto de “liberalização” que se tornou possível o movimento do Novo Cinema
Espanhol (NCE). O Cinema Novo abriu espaço para reflexões sobre a sociedade
espanhola, enfaticamente, nas críticas à burguesia e às instâncias políticas que a
controlavam, como, por exemplo, o repúdio ferrenho ao monopólio do No-Do na
produção de documentários, e o pessimismo que já se encontrava em outras
expressões artísticas menos supervisionadas, como a música e a literatura. O objetivo
maior do Cinema Novo era empreender um filme de qualidade que tivesse chances de
atingir simultaneamente um patamar comercial.
37
Um dos precursores desse
movimento foi sem dúvida Carlos Saura. O documentário Los Golfos (1959) e o longa
La Caza (1966), apesar de ganharem prêmios no exterior, receberam a menor
classificação de financiamento e tiveram suas exibições retardadas por muitos anos.
Assim, sucedeu-se com diversos filmes da dupla Berlanga e Bardem, que no apogeu de
suas carreiras internacionais, viram-se cada vez mais “neutralizados” pelo processo de
apertura. Mas de maneira alguma, Vizcaino Casas deixou de mencionar que o cinema
espanhol encontrou seu alicerce maior nos Tres Bes y una Ese
38
– Buñuel, Bardem,
Berlanga e Saura.
Vale frisar que concomitante ao Cinema Novo continuou a se produzir filmes de
estrita propaganda política, como Franco, ese hombre (1964), do recorrente Sáenz de
36
Comentário de Camino Gutiérrez em Tertulias de Historia.
TORRES, Augusto M. Op.cit., p.21.
38
VIZCAÍNO CASAS, Op. cit., p.24.
37
55
Heredia, mesmo autor de Raza; e Juan de Orduña manteve sua temática no cinema, e
produziu zarzuelas para a televisão.
39
O que resultou dessa movimentação foi o
surgimento de dois tipos de produção: uma de baixa qualidade e forte comercialidade;
e outras qualitativas e de baixos rendimentos, com uma mínima repercussão interior.
Conforme se refere Torres: “la situación continúa siendo la misma y el porvenir
aparece tan negro y falto de posibilidades como entonces”. 40
É preciso compreender que o aparente “fracasso” do Cinema Novo deveu-se
diretamente a instalação das produtoras americanas em território espanhol. Como
dito anteriormente, de 1955 a 1959 a relação da indústria cinematográfica entre os
dois países era instável em questões de distribuição, contudo, isso não impediu que, os
primeiros investimentos nessa indústria, fossem consentidos, em vista de um plano
estratégico maior e muito bem estruturado.
Desde 1948, o acirramento das leis antitrustes e a popularidade da televisão
provocaram o desmantelamento das grandes produtoras de Hollywood. Com isso, os
estúdios californianos passaram a se apoiar em produções independentes que
diminuíam os custos, realizando filmagens no exterior. A parceria entre EUA e Espanha
se tornou óbvia a partir do momento em que Franco pretendia abrir espaço para a
entrada de dólares no país, em forma de investimentos num cinema que iria enaltecer
as belezas naturais e históricas da Península e, no mesmo curso, impulsionar o
turismo; enquanto produtores norte-americanos teriam inúmeras facilidades para
filmar na Espanha, por sua vez, a locação mais barata e vantajosa que poderiam
encontrar.
Assim como Hollywood, outras companhias ocidentais eram bem-vindas no
país de Franco no final da década de 50 e durante os anos 60, como ficou registrado
principalmente nas coproduções italianas. A política de incentivo ao turismo estava
prevista secretamente num plano de 1960, denominado “Operación Propaganda
Exterior”.41 Tal plano consistia – além da busca pelos dólares – no reconhecimento da
Espanha franquista como uma grande nação repleta de recursos; na formação técnica
39
Ibid., p. 19-21.
TORRES, Augusto M. Op. cit., p.35.
41
ROSENDORF, Neal Moses. Hollywood in Madrid: american film producers and the Franco regime,
1950-1970. Historical Journal of Film, Radio and Television, 27:1, p. 77-109. Disponível em
Acesso
em
<http://uscpublicdiplomacy.com/pdfs/H-wood_In_Madrid_article--Final--HJFRT.pdf>.
4/5/2008.
40
56
e artística proporcionada em grande escala pelos norte-americanos; e na apropriação
do que Joseph S. Nye determinou como soft power, ou seja, um processo de:
[...] cooptação pelo qual um país pode obter os resultados que
pretende na política mundial porque outros países – admirando seus
valores, emulando seus exemplos, aspirando por seu nível de
prosperidade e liberdade – queiram [...] Soft power [ou poder sutil]
assentar na habilidade de moldar as preferências de outrém. 42
Em contrapartida, os estúdios estadunidenses pretendiam baratear suas
produções, o que era conseguido através de tais produções externas; aproveitar os
subsídios locais e outras regalias (como as coproduções e absorção das companhias
locais); e ter acesso a “fundos congelados”, isto é, fundos que provinham de
negociações em moeda local dos estúdios, ou negociações americanas que sofriam
restrições econômicas e não poderiam sair do país de origem.
Esse último fator se expressou na parceria dos produtores independentes com
grandes empresas americanas, também prejudicadas com as políticas de
regulamentação econômica pelos EUA, instituídas desde o governo de Franklin
Roosevelt, como foi visto nos patrocínios de Rockfeller; General Motors; Kodak;
Firestone; e DuPont
43
às produções de Samuel Bronston. Uma vez que não poderiam
retirar esses “fundos congelados” dos países originais, poderiam lucrar com a moeda
convertida em negativos cinematográficos.
Esclarecidas as circunstâncias, e somadas ao contexto da Guerra Fria, é
compreensível que na década de 60, o Ministério de Informação e Turismo, liderado
por Manuel Fraga Iribarne, deixara de lado o receio anterior promovido por Arias
Salgado, relativo à propaganda “judia e comunista” do cinema hollywodiano, para
empenhar o negócio mais promissor já realizado pela Espanha (judeus incluídos,
porém milionários), que entraria no circuito mundial da produção cinematográfica.
Nem que fosse só pela paisagem. Isto é, as primeiras parcerias significativas surgiram
ainda na década de 50, com a United Artists e as produções de Robert Rossen e
42
NYE, Josep apud ROSENDORF, Neal Moses. Hollywood in Madrid: american film producers and the
Franco regime, 1950-1970. Historical Journal of Film, Radio and Television, 27:1, p. 77-109. Disponível
em <http://uscpublicdiplomacy.com/pdfs/H-wood_In_Madrid_article--Final--HJFRT.pdf>. Acesso em
4/5/2008.
43
Interessante atentar para a natureza das empresas: General Motors e Firestone, ligadas a indústria
automobilística; Rockfeller e DuPont, verdadeiros impérios da produção e distribuição petrolífera até os
anos 1970; e Kodak, um dos nomes mais lembrados no que diz respeito à história do cinema.
57
Stanley Kramer. Durante esse período foram filmados na Espanha Alexandre, o Grande
(1956) e Orgulho e Paixão (1957), respectivamente, dos produtores supracitados.
É importante ressaltar que Stanley Kramer desenvolveu um modus operandi
com as entidades governamentais de Franco, que serviu de modelo para a maioria das
produções realizadas no país. Kramer trabalhava com roteiros que geralmente faziam
menção à história espanhola, e mantinha contato integral com Arias Salgado e com o
próprio Franco, aberto a “sugestões e consultorias”. 44
A utilização de tropas do exército espanhol e figurações de outras naturezas
não se limitavam a essa única película e se repetiram em outras ocasiões. O que se
revela é que a partir de Kramer os produtores, que davam a preferência por filmes que
envolviam o universo espanhol, recebiam “carta branca” do governo em diversos
aspectos, contanto que prestassem conta aos “interesses nacionais”.
Outras produções eram barradas ou desfavorecidas, como no caso de
Spartacus (1960), que perdeu locações devido a um herói do proletariado; e Naked
Maja (1959), que fazia alusão à “Maja Desnuda” de Goya – um retrato da duquesa de
Alba – produção vetada pela própria família Alba. Esse episódio reflete o aspecto de
“sociedade cortesã” do regime franquista, ao qual Jesús Gonzáles de Chávez 45se
refere, utilizando-se do modelo de Norbert Elias. Entendendo a ditadura de Franco
como um sistema aproximado a uma monarquia absolutista – legitimado pelo “trono e
altar”, bem como é considerado por outros autores a exemplo de Raymond Carr e Paul
Preston – Chávez apreende o conceito de Elias no que diz respeito à liberdade que
algumas elites poderosas possuem em determinados governos autoritários
contemporâneos no sentido de que
uno se encuentra en la sociedaded cortesana con muchos fenómenos
todavía por completo abiertos que, hoy en día, están con frecuencia
ocultos y encubiertos bajo organizaciones muy burocratizadas. 46
Outro fator que destaca o comportamento de uma “sociedade cortesã” se
encontrava na disposição da governança de Franco, baseada nos moldes de uma
44
Idem.
CHÁVEZ, Jesús González de. Apostilla sobre el régimen de Franco. Revista Vegueta, n.6, 2001-2002.
Disponível em <http://www.webs.ulpgc.es/vegueta/num_ant_vegueta/downloads/06-097-105.pdf>.
Acesso em 22/3/2009.
46
ELIAS apud Chávez, idem.
45
58
política colonialista (herdeira da experiência do general no Marrocos), cujo caráter do
regime não se distinguia por uma ideologia, mas pela arbitrariedade de “governar
dividindo” as forças políticas preexistentes. 47
Fechando esse parêntese necessário, e ainda dentro dessa ótica, num contexto
global, analisemos as produções de Samuel Bronston, que se destacou no cenário
cinematográfico por cultivar relações influentes no empresariado. Um de seus
primeiros parceiros de produção foi então James Roosevelt, filho de F. D. Roosevelt, e
durante o período de coproduções espanholas, assistimos a participação das empresas
citadas anteriormente. Entre elas, a DuPont figurou o cartão de visitas de Bronston,
para obter a concessão de filmagem de King of Kings (Rei dos Reis, 1961) com Franco e
com o Papa João XXIII. Com o primeiro projeto aprovado, e outros que se seguiriam, a
maior exigência de Franco era que estivesse enfático que a produção havia sido
realizada na Espanha.
Seguindo os passos de Stanley Kramer, Bronston se empenhou em realizar o
que se tornaria o seu maior sucesso de vendagem e crítica, e consolidaria sua relação
com o regime por tempo indeterminado. El Cid (1961) definitivamente abriu as portas
da Espanha para o mundo, e vice-versa.
Nenhum outro roteiro poderia ser mais agradável a Franco do que o de El Cid, o
herói da reconquista – a principal analogia de seu governo e já filmada diversas vezes,
nunca com essa visibilidade – que deu um apoio sem precedentes à produção,
contando inclusive, com a consultoria de um ilustre historiador, Ramón Menéndez
Pidal. O acontecimento chega a um episódio do No-Do:
En Madrid tiene lugar parte de rodaje de una superproducción
histórica, embasada en un héroe español muy al gusto del régimen.
En los estudios de Sevilla Films, de Madrid, se ruedan algunas
secuencias de la película El Cid, que dirije Anthony Mann.
Acompañado por la equipo de prensa de la productora de José Luis
Peña y directora de la entidad, visita a los estudios el ilustre
historiador y erudito Ramón Menéndez Pidal, que ao pesar de haver
cumplido recientemente 92 años, se hay en pleno vigor físico y
mental, conversa con los artistas, y puede ver corporeizada la
realidad de la Edad Media y la época feudiana, a cuyo estudio dedicó
gran parte de su vida. Charlton Heston interpreta o papel principal,
otros personajes son el Conde Ordoñez, ---- y Doña Urraca, todos
47
Idem.
59
ellos viejos conocidos de Don Ramón, a quien se obsequia con una
fiel reproducción realizada en Toledo de la famosa--- . 48
Jonathan Phillips, em resenha para o site Channel 4
49
, alegou que o épico
cometeu alguns equívocos e omissões em grande parte devido à consultoria de Pidal,
em essência por dois motivos: primeiro por Pidal ter se baseado nos poemas épicos do
Cantar de mio Cid
50
e por consequência, ter omitido as relações mercenárias que Cid
mantinha, tanto com cristãos como muçulmanos. O segundo motivo reside no fato de
Pidal ter usado o anseio de uma Espanha unificada em favor de uma percepção
histórica de sua própria época, como é visto no grito de guerra do herói interpretado
por Charlton Heston: “For Spain!”. O que na época deveria ter sido em nome de
Castela, no épico transmuta-se numa variante de “Arriba España!”.
Outros sucessos de Bronston rodados na Espanha são 55 dias em Pequim
(1963) e A queda do Império Romano (1964). Todos subsidiados em parte pela DuPont.
É curioso observar no mesmo documentário citado acima, uma matéria sobre a crise
de uma empresa petrolífera espanhola. Com o fim do apoio da DuPont ao agora “Don”
Samuel Bronston (condecorado pela Ordem de Isabel, A Católica, em 1963), o reinado
do produtor não se estendera muito, devido a denúncia de gastos ilícitos, porém, se
manteve na Espanha até 1973, quando é enviado a Boston, sem ter pago suas
dívidas. 51
Além Bronston, outras coproduções foram filmadas, como Lawrence da Arábia
e Cleopatra (1963) e Dr. Jivago (1965), mas nenhuma delas teria a parceria firmada
com o regime Franco como no caso anterior. Ainda em 1964, a Espanha rompeu
relações com a produtora Columbia, e tentou proibir o lançamento mundial de Behold
a pale horse (A Voz do Sangue), que trata de um refugiado da Guerra Civil que retorna
à Espanha 15 anos depois. 52
Em uma nota final, Rosendorf deixou um questionamento em aberto que se
aparenta relevante. O que se refere à abertura, dentro de um governo autoritário de
48
Transcrição livre. Os espaços marcados com “----“ não foram compreendidos. É possível visualizar a
matéria na íntegra no documentário Los Años del No-Do (2006), volume referente a 1961.
49
PHILLIPS, Jonathan. Disponível em < http://www.channel4.com/history/microsites/H/history/e-h/filmelcid.html >. Acesso em 14/6/2009.
50
Edição em facsímile disponível em <http://www.cervantesvirtual.com/bib_obra/Cid/index.shtml>.
51
Rosendorf, op.cit. 79.
52
Torres, op.cit. p. 37.
60
extrema direita, para uma política voraz de mercado consumidor e turismo, que pode
ter sido um fator considerável para o desmantelamento do governo.
O final dos anos 60 demonstrou a entrada dessas ideias através da
reestruturação de grupos regionalistas catalães e bascos em essência, em alguns casos,
extremistas, como o ETA. No cinema, tal reorganização se reverteu na formação da
Escola de Barcelona, um grupo de cineastas que começaram a realizar películas em
16mm, e por não existir nenhuma legislação que a controle, atuavam fora da Junta de
Classificação e da prévia apresentação de roteiro. Tratava-se de um cine independente
que tentava se desligar das estruturas burocráticas e administrativas que controlavam
o livre acesso à profissão. Frente a essa manifestação, o controle se acirrou novamente
e, em 1967, foram criadas as salas de “Arte y Ensaio”, uma manobra para absorver os
independentes em que se estipulava que estas devem funcionar em no máximo 500
cidades, com a razão de um filme de interés nacional para cada três estrangeiros. A
burocracia para a criação dos cineclubes se intensificou com a intenção de dirigir os
grupos frequentadores para as salas de arte e ensaio, e teve-se reiterado o controle
das películas, dos cineastas (maior supervisão da E.O.C) e do espectador (reduzindo a
capacidade das salas de exibição). 53
Se considerarmos a conjuntura geral do cinema na Espanha durante a década
de 60, e o trabalho de evasão já realizado nas décadas anteriores, constata-se a
complicada situação do cineasta espanhol que pretende renovar, tanto em estética
como em discurso, por três aspectos fundamentais: ele se deparou com um grande
público já absorvido pelo espetáculo de puro entretenimento; ele foi formado desde o
início por matrizes arraigadas ao sistema; sua liberdade foi cerceada de modo velado,
muito mais pela falta de apoio e da possibilidade de uma resistência homogênea do
que pela repressão, por fim, a própria repressão moral inerente às ditaduras.
Com isso, é conclusiva a crise que se sucedeu no cinema espanhol dos anos 70
e durante a transição. O desdobramento das sucessivas gerações que viveram sobre “o
medo e o desejo de esquecer a loucura e o horror de uma guerra fratricida em que
poucos combatiam por convicções próprias”. 54 O regime franquista conseguiu
53
Idem.
HABRA, Hedy. Deconstrucción del tejido mítico franquista. Espéculo. Revista de estudios literarios.
Universidad Complutense de Madrid, 2004. Disponível em
<http://www.ucm.es/info/especulo/numero28/mitofran.html>. Acesso em 22/3/2009.
54
61
penetrar em todos os aspectos da sociedade, se apoderando da consciência coletiva,
anestesiando “não só a crítica social, como também impossibilitando (ou retardando) a
introspecção”. 55
O ato comum dos mais intransigentes que atravessavam as fronteiras do país,
como, por exemplo, para assistir O Último Tango em Paris (1972), na cidade francesa
de Perpignan, gerando recorde de bilheteria e alvoroço no local, só reflete a
impossibilidade de “ser resistência” em seu próprio território. Uma crise identitária
profunda, marcada pela autocensura.
De acordo com Torres, o único que alcançou destaque desse conjunto, pela
produção incansável e pela frequência de êxitos, foi Carlos Saura, que conseguiu
desenvolver um estilo próprio, e tecer críticas, mesmo que em elipses ou metáforas.
Estas, perceptíveis na grande maioria de seus filmes, bem como os seus próprios
traumas pessoais que remetem ao fantasma constante da Guerra Civil, com destaque
para Mamá cumple cien años (1979) que cria um retrato da própria Espanha na forma
de uma família decadente:
Una vieja mansión rodeada de peligrosos cepos que sólo conocen sus
habitantes. Um hermano muerto que fue fanático aficionado a los
uniformes militares y que sobrevive en el personaje de una sobrina
cerril y antipática. Un marido que huye del lugar por la frigidez de su
mujer. Un viejo aficionado a monje que intenta ejercicios de vuelo
para huir y seducir a la antigua institutriz que regresa a la mansión
donde todo – o casi todo – continúa “como antes”. Una niña
marginada que trata de encontrar en juegos misteriosos un lazo con
la vida. Y sobre todo una vieja y eterna madre – que cumple cien
años – capaz de estar en todas partes, de hablar con todo el mundo
sin moverse de su amplia cama, de esa habitación que es como un
útero, como un despacho, como un tribunal, como un confesionario.
Um intento de asesinato, una imposibilidad de que la vida cambie y
una firmeza de que el cambio no esta motivado por intereses
distintos a los que se pretenden eliminar. 56
Tanto a película como o trecho da sinopse exigem um grau de abstração
considerável para codificar todas as relações representadas. Mas é possível enxergar
alguns dos personagens principais da nossa história: uma casa, um país, com
armadilhas que só seus habitantes conhecem; o irmão morto; a Falange; a Igreja; a
“estrangeira”; a permanência; a “mãe eterna” e onipresente; o iminente assassinato
55
56
Idem.
GALÁN, Diego. Revista Triunfo. 22/9/1979. Disponível em <http://gredos.usal.es>.
62
que não elimina interesses anteriores, etc. Ao final, a “estrangeira”, mas também
incondicionalmente filha, impede a morte da mãe, que por um instante, parecia
realmente morta, mas reanima-se, de volta a sua onipresença.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final do livro de Augusto Torres, encontra-se uma pesquisa organizada pelo
autor, antes de escrever o livro, que pergunta a vários “atores” da história do cinema
espanhol o que achavam do cine realizado na década de 60-70; qual havia sido sua
postura; onde se encontrava a crise do final desses dias; e quais as medidas para a
superação da crise. A introdução do apêndice, creditada a Joaquín Jordá, inicia falando
da própria dificuldade de considerar o cinema espanhol como um epifenômeno –
“fenómeno que acompaña a los sintomas de una enfermedad sin ser característico de
ella” – no sentido de que o autor crê que o cinema espanhol se traduz na “opacidade
sociológica”, num “espelho que reflete o nada”.
Quarenta anos depois de escrita essa obra, nos damos ao direito de contestar
essa afirmação, pois são justamente nos silêncios que se apresentam num sistema
repressor que encontramos suas razões.
O que fica explícito com a crise do cine espanhol nos anos 70 é que, ao
contrário do que seus brilhantes teóricos e críticos (e o adjetivo não consiste em
ironia) afirmam e lastimam-se, houve uma tomada de consciência da situação
vivenciada nas décadas anteriores.
Constatou-se o didatismo e imobilização que davam a tônica da produção nos
primeiros anos do franquismo; foram reconhecidos os esforços de artistas como
Bardem e Berlanga nos anos 50, apesar de todas as forças contrárias e
ensurdecedoras, bem como o papel alienante da experiência americana em terras
espanholas ao longo dos anos 60, o que desencadeou o profundo desinteresse da
população por um cinema nacional autêntico, de “qualidade”, contexto do qual Luis
Buñuel e Carlos Saura surgem como heróis ofegantes.
As discussões teóricas, que ocorrem a partir dos anos 70 e da transição
democrática, apesar de refletirem essencialmente um resgate de um passado a partir
de novas perspectivas e, com isso, talvez, um novo momento de evasão do passado
recente e a retomada de traumas anteriores – consistem no esforço em tomar as
63
rédeas, pela primeira vez, de um cinema que partia da criação subjetiva de suas
experiências. Muitas delas, provavelmente ideológicas, mas fruto de uma reflexão
mais cuidadosa e aprofundada. Nacionalistas, por supuesto, mas assumindo um
espectro transculturador, que admite as diferenças culturais internas, incluídos os
produtos da imposição de serem a Espanha “una y grande”, historicamente almejada
pelos líderes absolutistas.
Por fim, consideramos que o cinema espanhol é, de fato, o epifenômeno de
maior expressão da história espanhola. Mas talvez não seja ao cinema como entidade
a quem nos referimos, e sim aos que ainda acreditam em suas forças transformadoras.
REFERÊNCIAS
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65
O Labirinto do Fauno: o embate político-ideológico entre duas
concepções de Espanha
Bruno Kloss Hypólito
Acadêmico do Curso de História – PUCRS, Brasil.
La guerra civil constituyó la más cruel de las educaciones políticas.
Los españoles aprendieron lo que puede hacer el gobierno militar en el tejido
de la vida civil, y cómo algunos hombres se convierten en puros asesinos bajo
la influencia de lemas abstractos y “virtuosos” (Gabriel Jackson).
O
presente capítulo tem como objetivo o estudo da obra cinematográfica do
cineasta mexicano Guillermo Del Toro, O Labirinto do Fauno (2006). A análise do
filme mostrará o período inicial da ditadura de Franco (1939-1944) e como os
conceitos antagônicos da Espanha entre os diferentes grupos envolvidos nos conflitos
durante a Guerra Civil (1936-1939) são representados em seus diferentes personagens
e situações.
A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) foi resultante de divergências políticas e
ideológicas que dividiam a sociedade em relação às reformas sociais e econômicas
propostas e algumas efetivadas ao longo da Segunda República (1931-1936); separou
famílias e criou animosidades em nome de uma sangrenta batalha que durou três
anos, e que teve repercussões internacionais.
O conflito é considerado um dos mais violentos da história da Península Ibérica,
na qual a luta ideológica entre duas frentes – Popular (composta pela esquerda:
comunistas, anarquistas, liberais-democratas, nacionalistas da Galícia, País Basco e
Catalunha) e “Nacionalista” (composta por monarquistas, falangistas, militares de
extrema direita, latifundiários e setores da Igreja Católica) – dizimou boa parte da
população, deixando um rastro de morte, destruição e miséria, empobrecendo a
Espanha e fazendo-a estagnar por várias décadas.
Cabe esclarecer que, o regime franquista, tomou o poder com o final da Guerra
Civil, em abril de 1939. Por sua vez, o General Franco se autoproclamou “Caudillo de
España por la Gracia de Dios”, ao ter conseguido sufocar os republicanos, com o auxílio
externo, e ter tomado as principais cidades esquerdistas espanholas (Madri, Barcelona,
Valencia, Murcia e Alicante). O regime possuía características fascistas peculiares que o
aproximava da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini, sintetizando o que ficou
conhecido por “franquismo”. 1
Ao longo da década de 40, o regime praticou uma forte repressão contra os
opositores da ditadura. Manteve uma política econômica de mercado, porém,
autárquica, provocada pela Segunda Guerra Mundial e pelo isolamento posterior da
Espanha – promovido pela ONU, devido à simpatia espanhola pelos regimes nazifascistas e sua política de “não beligerância”. Entretanto, o regime do generalíssimo
Franco perdurou por mais algumas décadas, tendo de se adequar às novas realidades
mundiais e aliar-se com outras potências, até seu fim em 1975. Conforme Santos Juliá
assevera:
Matar campesinos era la prueba irrefutable del restablecimiento del
orden; matar curas demostraba que la revolución estaba en marcha y
ningún paralelismo que iguale responsabilidades y reparta culpas,
sino sencillamente de constatar un hecho: en la zona insurgente, la
represión y la muerte tenían que ver con la construcción de un nuevo
poder. 2
Mas, foi o grande número de vítimas e o apelo popular que gerou uma áurea
romântica em torno do conflito. Muitos homens e mulheres comuns que sequer
possuíam qualquer treinamento militar pegaram em armas para lutar em nome de
seus ideais, deixando-se atingir por rajadas de metralhadoras e tornando-se mártires
da guerra.
Além da enorme quantidade de trabalhos jornalísticos e acadêmicos gerados
acerca da Guerra Civil, a arte, enquanto reflexo da sociedade, viu-se representando os
combates fratricidas das “Espanhas” em conflito. A comunidade cinematográfica
também se fez presente nesse sentido, produzindo uma grande quantia de
documentários e filmes, abordando o conflito entre “republicanos” e “nacionalistas”.
Pode-se afirmar que a Espanha é um país cujo passado trágico ainda se faz
refletir em seu presente. A Guerra Civil e, por consequência, o regime ditatorial do
general Francisco Franco foi o último exemplo de que divergências político-ideológicas
entre grupos em oposição podem deflagrar uma campanha de terror, perseguição e
1
SALVADÓ, Francisco. A Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 243.
JULIÁ, Santos. (coord.). Víctimas de la guerra civil. Madrid: Temas de Hoy, 1999. p. 25.
2
67
ódio. A sociedade espanhola atualmente oscila entre a lembrança e o esquecimento
desses episódios, muitas vezes trazendo à tona velhos ressentimentos entre alguns
grupos.
Mais recentemente, o cineasta mexicano Guillermo Del Toro realizou dois
trabalhos de ficção que exploram essa temática para ambientar suas histórias. O
primeiro filme, de 2001, chama-se El Espinazo Del Diablo que narra a história de um
menino que se vê assombrado pelo fantasma de uma criança em um orfanato em
meio à Guerra Civil. O segundo filme, de 2006, intitula-se El Laberinto Del Fauno e,
mais uma vez, utiliza a ótica de uma criança em uma trama ambientada nos primeiros
anos do regime franquista, cuja repressão aos grupos opositores foi a mais violenta.
Este último, fez com que Del Toro fosse aclamado pela crítica mundial como um
promissor diretor da nova geração, ao mesmo tempo em que chamou a atenção para
toda sua simbologia e representação sobre o período ao qual o filme remete.
Nesse sentido, O Labirinto do Fauno será o objeto de análise, pois, partindo do
pressuposto que Del Toro utiliza elementos objetivos (técnicos) e subjetivos
(simbólicos) – tanto em cenas como nos personagens – para representar a complexa
conjuntura política e ideológica dos primeiros anos da ditadura de Francisco Franco
(1939-1944), podemos questionar de que forma o filme representa o embate entre as
concepções antagônicas da “Espanha” no período em análise.
O “LABIRINTO ESPANHOL”
O escritor britânico Edward Fitgerald Brenan viveu na Espanha durante anos e
descreveu o país – sob o pseudônimo de Gerald Brenan – como um “labirinto”.
3
Brenan referia-se à complexidade política e aos conflitos armados da década de 30,
que culminaram com a ditadura franquista até 1975. O “labirinto” é a forma mais
simbólica para representar um lugar aparentemente sem saída, sem rumo certo.
Devido a isso, talvez não soe estranho que um filme de produção espanhola, com esse
contexto como pano de fundo, tenha sido intitulado El Laberinto del Fauno.
O Labirinto do Fauno se passa no ano de 1944, apenas um ano antes do fim da
Segunda Grande Guerra e cinco após o término da Guerra Civil. Conta a emocionante
fábula de uma menina de 13 anos, chamada Ofélia (Ivana Baquero), fugindo da dura
3
BRENAN, Gerald apud SALVADÓ, Francisco. Op. Cit., p. 9.
68
realidade que assola sua infância recorre a sua imaginação e se transporta ao mundo
dos contos de fada. Nesse mundo é uma princesa com a missão de retornar ao seu
reino e governá-lo ao lado de seu pai (falecido no início da Guerra Civil). Junto à mãe,
Carmen (Ariadna Gil), que se encontra em um delicado estado de saúde devido a sua
avançada gestação, Ofélia viaja até uma pequena vila na qual se encontra o capitão
Vidal (Sergi López), um capitão franquista da Guarda Civil, e seu padrasto. Porém, o
que interessa não é contar a história do filme, e sim identificar nele os elementos que
remetem aos conflitos entre os personagens participantes da trama, fazendo um
paralelo constante com os acontecimentos da Guerra Civil e da ditadura de Franco.
RELAÇÃO DOS PERSONAGENS
Dentro da trama que se desenrola, o espectador é apresentado a personagens
que possuem características peculiares e, através deles, pode-se elaborar uma relação
entre sua personalidade e a representação simbólica e ideológica dada pelo diretor do
filme. Esse procedimento é compreendido como a ligação entre o Objeto (personagens
e cenas) e o Modelo (contexto histórico) de maneira análoga ou em forma de mimese.
Como explica Aumont: “Mímesis é, no fundo, um bom sinônimo de analogia. Nós o
adotamos aqui para designar o ideal de semelhança ‘absoluta’”.4
A protagonista é a menina Ofélia e, como foi dito, tem 13 anos. Sendo assim,
teria nascido em 1931 – ano da proclamação da Segunda República. Em sua primeira
cena aparece morta, representando o fim da República.
Ao longo do filme, a jovem mostra-se fortemente ligada à mãe e está sempre
contestando o padrasto, o que pode ser entendido como a relação da própria
República com sua “mãe” Espanha e a negação de um governo usurpador. Simpática à
governanta do casarão (Mercedes, interpretada por Maribel Verdú) e avessa às
normas rígidas do vilarejo, Ofélia representa uma forma de governo popular e livre. É a
única personagem do mundo “real” que interage com os seres mágicos – o que pode
ser interpretado como uma celebração à imaginação, o que não acontece em um
regime de orientação totalitária.
Carmem, a mãe da menina, é representada como uma mulher fraca e
impotente. Não possui vontade própria e aceita submeter-se às ordens de seu marido
4
AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 2005. p. 200.
69
para proteger seu filho, ainda no ventre. Pode-se relacionar a personagem com a
figura da Espanha – um país economicamente debilitado e sujeito às vontades de um
ditador. Casou-se pela segunda vez para poder sustentar os filhos, como aconteceu
com muitas mulheres que enviuvaram durante a guerra. 5
O capitão Vidal é o comandante do destacamento do velho moinho, além de
ser o poder máximo da região. Em uma esfera menor, representa a ditadura franquista
e a perseguição contra seus opositores. Seu ideal de vida é facilmente observado na
decoração do Moinho: linhas retas, poucas e antigas mobílias e nenhuma cor. Seu
escritório é um misto de engrenagens e papéis, simbolizando a disciplina e a
burocracia. A personagem é mostrada como um homem extremamente violento, aos
moldes de alguns militares franquistas e militantes falangistas. Ele não se vê como um
indivíduo, mas como um instrumento a serviço da Nação e, em última análise, devido a
sua obsessão por seu filho, aponta a importância da família como núcleo fundamental
e célula base da sociedade no movimento nacionalista de Franco.6 Segundo afirma
Josep Solé i Sabater: “La violencia fue un elemento estructural del franquismo. La
represión y el terror subsiguiente no eran algo episódico, sino el pilar central del nuevo
Estado, una especie de “principio fundamental del Movimiento”.7
A governanta da casa chama-se Mercedes (Maribel Verdú). É uma mulher
corajosa e secretamente envia provisões aos rebeldes das montanhas. Ela desafia o
controle do regime e fomenta secretamente a rebelião. Durante a Guerra Civil e nos
anos posteriores, muitas mulheres acobertaram seus filhos e maridos para que não
fossem presos e assassinados pelas tropas franquistas, e a personagem faz isso por seu
irmão, mas também por pensar de forma diferente no que se refere aos destinos do
país.
O irmão de Mercedes chama-se Pedro (Roger Casamajor) e é o líder do grupo
de guerrilheiros. Sua importância para o filme é a representação do Maquis – grupo de
resistência antifranquista que operava nas regiões de fronteira entre Espanha e
França. Nesse bando pôde ser observada a presença de um francês e a expectativa de
5
DÍAZ-PLAJA, Fernando. La Vida Cotidiana en España de la Guerra Civil. Madrid: Edaf, 1994.
PICAZO, Carlos A. Viva España! El nacionalismo fundacional del régimen de Franco. 1939-1943.
Granada: Comares, 1998.
7
SOLÉ I SABATÉ, Josep; VILLARROYA, Joan. Mayo de 1937- abril de 1939. In: JULIA, Santos. (coord.). Op.
Cit., p. 248.
6
70
ajuda da União Soviética, mostrando o caráter universalista do comunismo e a união
das Brigadas Internacionais na luta contra os fascismos durante a Guerra Civil. 8
Ainda existe o Dr. Ferrero (Álex Angulo), um médico dedicado a ajudar ambos
os lados. Ele representa a humanidade por trás do conflito, pois não faz distinção entre
os “vermelhos” e os “nacionalistas”. O médico tenta permanecer neutro, embora
reconheça que precisa posicionar-se.
Dentro da esfera mítica do filme, a personagem do Fauno (Doug Jones)
representa a liberdade. Encontra-se no fim do labirinto e tem a missão de auxiliar
Ofélia a encontrar seu reino, orientando-a na tentativa de burlar as normas e a lutar
contra a opressão. Pode-se entender essa relação como a busca de libertação da
República através da luta consciente, quebrando as barreiras impostas pelo governo.
Cabe esclarecer que o Sátiro (ou Fauno) é uma divindade do campo e dos
bosques, metade homem e metade cabra. Celebra a natureza, a liberdade, a
sexualidade e expõe o conflito do ser humano enquanto ser racional e ser animal.
Devido à perseguição da Igreja Católica, sua figura foi associada ao demônio,
representando-o como um dos símbolos pagãos. 9 Esse elemento do paganismo versus
o cristianismo é outro embate que se encontra representado no filme, pois de um lado
está Ofélia e o Fauno e de outro Vidal e a sociedade tradicional católica espanhola.
O EMBATE: CENAS E SEQUÊNCIAS
É possível observar o constante duelo entre “republicanos” e “nacionalistas”
em praticamente todas as passagens e sequências do filme. Pode-se exemplificar com
algumas cenas a intenção do diretor Del Toro em quadros simples, porém de grande
simbologia.
Nos primeiros minutos do filme, Vidal espera sua esposa e enteada chegarem,
sempre cuidando o horário rigorosamente. Assim que as duas chegam, Ofélia – que
segura um livro de contos de fada na mão direita – estende a mão esquerda para
cumprimentar seu padrasto e este, automaticamente, a corrige, solicitando a outra
mão. Essa sequência representa respectivamente a disciplina militar, a Constituição
8
SERRANO, Secundino. Maquis – Historia de la guerrilla antifranquista. Madrid: Temas de Hoy, 2001.
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia – História de Deuses e Heróis. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001. p. 204.
9
71
republicana como um “conto de fadas”, a mão esquerda de Ofélia como alusão ao
socialismo, e a direita de Vidal como menção ao franquismo e as forças que o apoiam.
Na primeira noite no moinho, Ofélia assusta-se com os barulhos da casa. Sua
mãe a tranquiliza, dizendo que ali no campo as coisas são diferentes da cidade. A cena
representa as discrepâncias entre o atraso das zonas rurais e o progresso das cidades.
Para Francisco Salvadó:
A transição do feudalismo para a produção capitalista moderna não
conseguiu mudar efetivamente o setor agrário, [...] o
desenvolvimento econômico foi um processo desigual que exacerbou
as diferenças sociais entre norte e sul, cidade e campo. 10
Porém, se a cena apresenta o atraso do campo em relação à cidade, devemos
salientar a importância do meio rural para o novo regime, pois a sociedade agrária
desde sempre foi a mais tradicional e católica, e principal aliada na luta contra a
esquerda durante a Guerra Civil. O campo era idealizado pelos franquistas, uma vez
que era a essência da Nação, enquanto a cidade representava as mentalidades
corrompidas pelas ideologias esquerdistas e pelo ateísmo. 11
Em seguida, para acalmar seu irmão, que ainda não era nascido, Ofélia narra a
história de uma rosa que oferecia o dom da imortalidade a quem ousasse atravessar o
terreno repleto de espinhos venenosos. Pode-se interpretar a rosa como a libertação
do estado espanhol e os espinhos venenosos como o exército de Franco.
Mais adiante, Ofélia, a fim de retornar ao seu reino encantado, tem a obrigação
de livrar uma velha figueira do monstro oportunista que se instalou sob ela, deixandoa doente e impedindo-a de gerar frutos. A velha figueira simboliza a Espanha e o
monstro oportunista representa Franco, que impede o país de desenvolver-se, pois,
“La economía española”, segundo o hispanista Raymond Carr, “siguió siendo pobre
durante los años cuarenta, y no hubo en ella producción ni consumo. Fueron los ‘años
del hambre’”. 12
Existe uma sequência na qual o Capitão Vidal – que representa o poder máximo
franquista no filme – promove um jantar em sua casa, no qual os convidados são
membros da classe média, um padre e demais oficiais da Guarda Civil. Durante a ceia,
10
SALVADÓ, Francisco. Op. cit., p. 28-29.
PICAZO, Carlos A. Op. Cit., p. 111.
12
CARR, Raymond. España 1808-1975. 12ª. ed. Barcelona: Ariel, 2003. p. 704.
11
72
ficam claras as intenções dessa união entre as classes dirigentes e dominantes
tradicionais para a unificação do Estado Espanhol e a ideia de uma “Nação Limpa”, ou
seja, uma nação na qual não haja nenhuma oposição ao governo, o que pode ser
constatado no discurso do personagem Capitão Vidal: “a guerra terminou e nós
[nacionalistas] ganhamos e eles [republicanos] perderam. Não somos todos iguais. Se
tivermos que matar todos os desgraçados é o que faremos!”. Sobre esse aspecto,
Raymond Carr afirma que:
Aun cuando la legitimad de la victoria se convirtiera en la legitimad
de la hazaña, Franco nunca permitió que las divisiones de la guerra
civil se apartaran de la memoria de sus súbditos. Su visión siguió
siendo maniquea: España y anti-España, vencedores y vencidos. 13
Em termos de intenções e propaganda do regime franquista contra os
guerrilheiros, existe uma sequência no filme que faz alusão à distribuição restrita de
pães por parte dos soldados do moinho. Um deles pega um pão e grita repetidamente:
Este é o pão de cada dia na Espanha de Franco que guardamos nesse
moinho. Os vermelhos [anti-franquistas] mentem porque na Espanha
Nacionalista, Una, Grande e Livre, não há um único lar sem lenha ou
sem pão.
O propósito desse racionamento era acabar com a colaboração da população no
abastecimento de provisões aos Maquis ou qualquer grupo de resistência armada.
Por sua vez, a mãe de Ofélia morre em decorrência de complicações no parto
de seu irmão. Desesperada com sua morte, a menina refugia-se nos braços de
Mercedes, mais uma vez mostrando a proximidade entre a República e a luta popular
armada.
Ao receber a visita do Fauno, a menina tenta fugir com seu irmão para dentro
do labirinto a fim de executar sua última tarefa e poder voltar para o seu reino
encantado. Porém, Vidal segue Ofélia enquanto os Maquis atacam de maneira
fulminante as forças da Guarda Civil alojadas no moinho. Após retirar o bebê dos
braços da irmã, Vidal dispara sua arma contra ela, deixando-a morta diante do portal
mágico – retornando para a cena inicial do filme. Na volta do labirinto, Vidal é
13
Ibid., p. 664.
73
abordado por Pedro e Mercedes que tomam posse do menino e, antes de assassinar o
capitão, juram-no que a criança jamais saberá quem foi seu pai.
A sequência final do filme representa a morte da República e o renascimento
de uma nova Espanha – representada pelo bebê. O juramento que Mercedes faz ao
capitão, de jamais contar ao menino quem foi seu pai, nos remete à década de 50 em
que a Espanha ingressa nas Nações Unidas e, a partir daí, dá-se início a uma campanha
política pelo esquecimento das atrocidades cometidas nos anos anteriores. Ao passo
que, nos dias de hoje, o povo espanhol tenta dar conta de apagar o governo franquista
de sua memória. 14
ESTÉTICA DO FILME E A INTENÇÃO DO DIRETOR
A preocupação do historiador que utiliza o cinema como objeto de análise
deve-se pautar pela compreensão dos motivos que levaram às omissões, adaptações e
distorções que o diretor e roteirista optaram em fazer, e não se pauta pela busca da
“fidelidade” à História. A produção do filme é repleta da mensagem de quem o fez e
do momento no qual foi feito, fazendo-se refletir na recepção do grande público.
Se a montagem faz sucesso, quer dizer que está de acordo com o momento
histórico-social de sua exibição. 15 Isso caracteriza a escolha do tema pela produção do
filme, pois existe um movimento de revisão dos documentos que tratam da Guerra
Civil e da ditadura de Franco. Além disso, o grande sucesso, bem como as indicações a
prêmios nas academias de cinema que o filme recebeu, reafirma o êxito conferido pelo
público.
Segundo o historiador Marcos Napolitano, para analisar um filme existe “a
necessidade de articular a linguagem técnico-estética das fontes audiovisuais (ou seja,
seus códigos internos de funcionamento) e as representações da realidade histórica ou
social contidas (ou seja, seu “conteúdo” narrativo propriamente dito)”. 16 Uma vez
analisado o segundo aspecto, seguiremos com a linguagem técnica do filme.
Nessa montagem há um choque entre o mundo mágico (simbólico) e a
realidade, e ambos são assombrosos, caracterizados em cores cinza e tons pastéis,
14
JULIÁ, Santos. Op. Cit., p. 43.
FERRO, Marc. O filme, uma contra-análise da sociedade?, In: História e Cinema. São Paulo: Paz e Terra,
1992. p. 79-115.
16
NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla (orgs.). Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2006. p. 237.
15
74
criando uma atmosfera repleta de perigos, incertezas e tensão. A opção pelo terror,
maquiagem realista, atmosferas densas e simbolismo dos cenários, personagens e
diálogos reflete as influências artísticas de Del Toro, podendo-se perceber em outras
de suas produções, como Hellboy, O Orfanato e A Espinha do Diabo.
A câmera movimenta-se constantemente, configurando uma característica
“voyerística”. Esse recurso aproxima o espectador da trama, fazendo com que ele se
sinta um personagem do filme. Ao mesmo tempo, ela pode remeter um olhar curioso
de uma criança, enfatizando mais uma vez a opção do diretor pelo ponto de vista
infantil da história e na História.
Além disso, existe certo anacronismo no filme, pois apesar de estar situado no
ano de 1944, os conflitos da trama remetem diretamente à Guerra Civil. Del Toro
optou por esse viés para representar os traumas e sentimentos do povo espanhol que
ainda acreditava que o conflito não havia acabado.
Com o final da guerra, muitos espanhóis que tiveram condições de fugir para
outros países optaram pelo México, pois esse era um dos poucos países que apoiava a
República espanhola abertamente. Isso explica o fato de um diretor mexicano abordar
a Guerra Civil e o Franquismo em duas de suas obras:
Entre 1939 y 1948 llegaron a México 22.000 exilados españoles. […]
El miedo a las represalias de los vencedores motivó, en gran medida,
aquel exilio masivo de españoles. 17
Guillermo Del Toro cresceu ouvindo histórias de descendentes espanhóis que
foram vítimas da guerra. Um desses refugiados espanhóis que optou pelo
repatriamento mexicano foi o cineasta Emilio García Riera (1931-2002). Com ele, Del
Toro aprendeu técnicas de direção de curtas-metragens e iniciou-se na carreira de
diretor. Sobre o filme O Labirinto do Fauno, o criador comenta que
[...] a Guerra Civil espanhola é uma guerra que foi muito romantizada
nas imaginações dos escritores. Muito preto ou branco, e como a
última batalha entre o bem e o mal. Não é assim! Obviamente é
muito mais complexa. É uma guerra sobre o qual se pode falar muito.
Então era interessante para mim. Cativou muito minha imaginação. 18
17
MORENO, Francisco. La represión en la posguerra. In: JULIÁ, Santos. (coord.). Op. Cit., p. 283.
Em entrevista ao documentário sobre a produção do filme El Laberinto del Fauno que se encontra nos
extras do DVD.
18
75
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Passado setenta anos do término da Guerra Civil, a sociedade espanhola ainda
preserva traumas provenientes da época. E foi somente com o término do governo de
Franco, em 1975, que houve um imenso movimento de contestação por parte de
grupos políticos e não políticos. Segundo elucida Raymond Carr:
Hasta su muerte, en noviembre de 1975, el general Franco siguió
siendo, como lo proclamaban sus monedas, ‘Caudillo de España por
la gracia de Dios’ y responsable, según sus apologistas, sólo ante Dios
y ante la Historia. 19
Os acontecimentos da Guerra Civil e os piores anos de repressão do franquismo
são desconhecidos pelo grande público, pois as gerações que vieram após a década de
60, não conviveram com as mortes e o medo, apenas ouviram histórias que, aos
poucos, foram tornando-se lendas no imaginário. Nessa perspectiva, obras literárias e
artísticas, como o famoso painel de Pablo Picasso Guernica (1937), e filmes podem
trazer esse lado reflexivo do passado a partir do momento em que trazem o assunto
para debate novamente.
O câmbio interdisciplinar da área cinematográfica com as pesquisas das
Ciências Humanas pode facilitar o acesso e a compreensão de inúmeros processos de
transformações na História. Nesse sentido, o historiador pode utilizar o cinema não
apenas como recurso pedagógico, mas como um objeto de análise mais profunda,
pois, para Marcos Napolitano, “A linguagem não-escrita, apoiada em registros
mecânicos, é uma linguagem como outra qualquer, que precisa ser decodificada,
interpretada e criticada”.20
O Labirinto do Fauno dialoga com os mundos da Historiografia e da Arte, de
modo que o espectador consegue observar através da trama como se desenvolveu o
conflito político e ideológico na Espanha durante as décadas de 30 e 40 e a incansável
repressão do exército espanhol contra os grupos opositores ao governo.
Como já foi mencionado, muito elogiado pela crítica, o filme ganhou três Oscar,
nas categorias de Direção de Arte, Fotografia e Maquiagem, além de uma série de
indicações em muitas outras premiações. Guillermo Del Toro consolidou sua carreira
19
20
CARR, Raymond. Op. cit., p. 663.
NAPOLITANO, Marcos A. Op. cit., p. 266.
76
cinematográfica e projetou-se como um dos mais célebres e renomados diretores de
Hollywood – em parte, graças a esse filme, no qual a fantasia e a brutal realidade
mesclam-se, dando lugar a uma história em que a fantasia ao redor de Ofélia serve para
fugir da crueldade de um regime em que se encontra imersa. A vivência da menina
pode ser comparada, em alguns aspectos, à história real de Anne Frank que viveu vinte
e cinco meses em um anexo no sótão do escritório de seu pai com mais oito pessoas,
escondendo-se dos alemães nazistas, tendo como refúgio apenas o seu diário.
Nesse sentido, o filme O Labirinto do Fauno mostra a perspectiva das ideologias
conflitantes dos grupos antagônicos que guerrearam na Espanha ao longo dos anos 30
e 40, sobre os quais ainda hoje se debate. 21 Produções como essa se propõem a
repensar qual noção a sociedade possui sobre os horrores da guerra, da repressão, do
ódio, mas também sobre a memória coletiva e suas representações.
REFERÊNCIAS
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BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia – História de Deuses e Heróis. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2001.
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1994.
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______. Entre La reforma y La revolución 1931-1939. Barcelona: Crítica, 1980.
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Franco (1939-1943). Granada: Comares, 1998.
NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla (orgs.). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 235-289.
21
MORAL, Félix. Veinticinco años después. La memoria del franquismo y de la transición a la democracia
en los españoles del año 2000. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas, 2000.
77
MORAL, Fálix. Veinticinco años después. La memoria del franquismo y de la transición a
la democracia en los españoles del año 2000. Madrid: Centro de Investigaciones
Sociológicas, 2000.
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1939-1943. Granada: Comares, 1998.
PRESTON, Paul. España en crisis – Evolución y decadencia del régimen de Franco.
Madrid: FCE, 1977.
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SERRANO, Secundino. Maquis – Historia de la guerrilla antifranquista. Madrid: Temas
de Hoy, 2001.
78
A Música na Espanha Franquista
Marcus Antonio Wittmann
Acadêmico do Curso de História – PUCRS, Brasil.
O
Presente capítulo pretende traçar um perfil das canções produzidas na Espanha
durante o regime franquista (1939-1975), mostrando não apenas a utilização de
canções pelo regime ditatorial como forma de coagir e alienar o povo, mas também
como a sociedade espanhola se expressava através do canto, da música, usando-a,
geralmente, como uma válvula de escape para a situação que vivia, como meio de
protesto contra o regime ditatorial e o status quo, apesar da censura e da repressão
governamental.
Assim como toda a arte, a música pode e é usada para satisfazer a necessidade
de assimilação e transformação da realidade. As canções tendem a aparecer ainda
mais quando essa cultura de massa é manipulada por um poder regente, que tenta
suprimir toda e qualquer forma de expressão e troca de ideias, pois podem gerar
oposições, temidas pela ditadura franquista que assolou a Espanha. Essas obras são
sinais da sentimentalidade, da moralidade, dos valores vigentes e em transformação
de um povo, 1 exprimindo o erotismo, o heroísmo e, ao mesmo tempo, exaltando a
religião, a juventude, a família e a mulher.2
Um dos exemplos de como a música, durante a ditadura franquista, foi usada
como um instrumento doutrinário foram as ensinadas nas Frentes de Juventudes,
organizações criadas pelo ditador Francisco Franco para formar jovens que seguissem
sua doutrina. As canções aprendidas por esses jovens, – no acampamento, na hora das
refeições ou nas marchas (exemplo de como eles viviam com a música quase todo o
tempo.) –, eram de diferentes gêneros: religiosas, militares, regionais, de gênero (a
mulher), festivas, etc. 3 Como afirma Manuel Rodriguez, em seu Cancionero Juvenil,
para as Frentes havia as mais variadas canções para todo tipo de situação e caráter:
1
MONTALBÁN, Manuel Vázquez. Cancionero General del Franquismo 1939-1970. Barcelona: Crítica,
2000. p. X.
2
MONTALBÁN, Manuel Vàsquez, Op. cit. p. XXI.
3
CELAYA, Manuel Parra. Pedagogia del Frente de Juventudes. Disponível em:
<http://www.rumbos.net/cancionero/pedag_c.HTM> Acesso em 7/5/2009.
Um cancioneiro para a solidão e para a camaradagem, para o gozo e
para a adversidade, para o sério e o humorístico; para a escola e a
rua, para o repouso e o avanço, para a marcha e o acampamento,
para a casa e o quartel, para as aulas e as trincheiras. 4
Cabe assinalar que o Plano de Formação das Falanges Juvenis de Franco, criado
em 1955, mostra, no capítulo Trato Social de Flechas, a importância e a necessidade do
canto e da música com temas falangistas para a doutrinação dos jovens:
Sua necessidade apóia-se em ser a válvula de escape para pregar
uma fé, uma ilusão e uma esperança; fé em Deus, na Espanha e em
nós mesmos, ilusão na tarefa de servir a Deus, a Pátria e a Justiça;
esperança em um futuro mais digno e mais justo para o povo
espanhol. É útil porque aquele que canta arrasta a seu favor os
indecisos, excita os desanimados e sacode os preguiçosos. É
formativa porque contribui eficazmente a se superar as próprias
fraquezas e debilidades, injetando ilusão decidida e otimismo
esperançoso, saúde da alma e fortaleza do espírito, e, sobretudo,
porque o jovem que não canta é triste, doente, rancoroso e
incrédulo. 5
Logo, a música é elevada ao pedestal da ideologia, ou seja, de algo a ser
seguido. Pregando a fé, o nacionalismo e a justiça, pelo menos na visão do regime, ela
“arrasta” os indecisos; faz com que eles superem as próprias fraquezas e debilidades,
levando-os a apoiar os valores pregados pelo regime. A música como “lavagemcerebral” para os jovens que vão construir essa “nova” Espanha. O principal hino das
Frentes de Juventude, e da Falange, é Cara al Sol, com a mensagem de ressurgimento
da Espanha, vinda de uma Guerra Civil:
Cara al sol con la camisa nueva
que tú bordaste en rojo ayer,
me hallará la muerte si me lleva
y no te vuelvo a ver.
Formaré junto a mis compañeros
que hacen guardia sobre los luceros,
impasible el ademán,
y están presentes en nuestro afán.
Si te dicen que caí,
me fui al puesto que tengo allí.
Volverán banderas victoriosas
al paso alegre de la paz
4
RODRIGUEZ, H. Manuel apud CELAYA, Manuel Parra. Pedagogia del Frente de Juventudes. Disponível
em: <http://www.rumbos.net/cancionero/pedag_c.HTM>. Acesso em 7/5/2009.
5
CELAYA, Manuel Parra. Pedagogia del Frente de Juventudes. Disponível em:
<http://www.rumbos.net/cancionero/pedag_c.HTM>. Acesso em 7/5/2009.
80
y traerán prendidas cinco rosas:
las flechas de mi haz.
Volverá a reír la primavera,
que por cielo, tierra y mar se espera.
Arriba escuadras a vencer
que en España empieza a amanecer. 6
Esse hino falangista composto em 1934, de autoria de José Antonio Primo de
Rivera, fundador da Falange, que escreveu a letra, e Juan Tellería, que fez a melodia,
invoca imagens da Guerra Civil espanhola, cujos soldados do “bando nacional” não têm
medo da morte e com suas camisas recém bordadas, camisas azuis com o símbolo da
falange, as cinco flechas em vermelho no peito, encontrarão, como recompensa, o tão
sonhado posto no céu, onde podem finalmente descansar. Esse sacrifício é visto como
necessário para que as bandeiras da vitória voltem a tremular, marchando ao lado da
paz. Essa bandeira levando as cinco rosas, as cinco flechas da falange. E, por último, o
hino invoca os soldados a lutar, a vencer, pois uma “nova Espanha” está surgindo,
amanhecendo, iluminada pelos raios do sol da Falange, da Espanha franquista.
Outras canções que mostram os ideais da Falange, cantadas pelas Frentes de
Juventudes são, por exemplo, Arriba España e Juventud Española:
Somos las flechas la guardia del mañana,
que en los luceros su puesto tienen ya.
Los camaradas caídos nos esperan;
el santo y seña, Falange nos lo da.
¡Arriba! ¡Arriba España!,
donde siempre quiero verte;
serás Una, Grande y Libre,
te lo juramos hasta la muerte.
¡Arriba! ¡Arriba España!,
¡Siempre imperial! 7
(Arriba España! - Dionisio J. Negueruela e Aurelio González)
Juventud española,
descendiente de Fernando y de Isabel,
ha nacido el Imperio
de los yugos, de las flechas y la fe.
Bajo un sol de justicia,
de la luz que nos alienta y da valor,
forjaremos la historia
poniendo en la Falange nuestro amor.
6
Disponível em: <http://www.rumbos.net/cancionero/ant_001.htm>. Acesso em 14/5/2009.
Disponível em: <http://www.rumbos.net/cancionero/3942_002.htm>. Acesso em 14/5/2009.
7
81
Somos luz de amanecer
de la España que ha empezado a resurgir,
y los flechas sembraremos de laurel
los caminos de nuestro porvenir.
Y a los rayos de esta luz,
con los brazos extendidos marchará,
decidida y con ardor, la juventud
nacionalsindicalista e imperial.
José Antonio nos guía;
Franco nos dirige la consigna fiel,
y es Una, Grande y Libre
la España que ha empezado a renacer.
Bajo un sol de luceros
del Divino y Eterno resplandor,
por la ruta del Imperio
marcharemos, juventudes, hacia Dios 8.
(Juventud Española – Artista desconhecido)
Essas duas canções evocam imagens semelhantes a Cara al Sol, as cinco flechas,
a morte, o cargo no céu para o soldado caído, o surgimento de uma nova Espanha
através do esforço dos falangistas. Adicionam também o espírito Imperial dessa “nova”
Espanha, já que a juventude espanhola é concebida como descendente de Fernando e
Isabel, os Reis católicos, formadores do Estado. É importante salientar que o caráter
imperial Franco exaltou em seus discursos, bem como o desejo de que a Espanha fosse
culturalmente homogênea, contasse com uma só religião (a católica), um partido, um
governante; uma Espanha livre das ameaças separatistas e republicanas.
A música Juventud Española, por sua vez, mostra relação com Cara al Sol na
penúltima estrofe, em que José Antonio Primo de Rivera, fundador da Falange e
letrista de Cara al Sol, irá guiá-los e Franco dirigi-los, e na última estrofe temos a
influência da Igreja Católica, pois as juventudes “marcharão até Deus”.
Para uma melhor análise das canções populares da Espanha, durante o regime
franquista, analisaremos o livro de Manuel Vázquez Montalbán, Cancionero General
del Franquismo (1939-1975). Assim, veremos algumas canções, seguindo a
classificação que o autor usa para tipificá-las, que o povo espanhol ouviu no rádio, do
qual a principal transmissora, a Radio Nacional, era comandada pelo governo, porém,
mesmo que nesse capítulo só possamos analisar as letras das músicas, há de se ter em
mente que o canto é a personalização do sentimento do cantor, logo, a leitura que o
8
Disponível em: <http://www.rumbos.net/cancionero/3942_010.htm>. Acesso em 14/5/2009.
82
ouvinte tem é subjetiva. Como afirma Montalbán: “[...] às vezes tem que se buscar a
chave em um acento, em um tom, em um silêncio entre duas palavras”. 9
O autor mostra o nascer de uma música nacionalista, de exaltação da pátria,
como modo de reerguer a Espanha dos anos de Guerra Civil, mas também como
afirmação do poder de Franco. Existe também a música sentimental, como um modo
de evasão, a música de testemunho, narrando fatos da época, como o racionamento
de comida, e, em um período mais tardio do franquismo, a música de protesto,
motivando a Espanha para a redemocratização.
Na primeira etapa proposta por Montalbán, que começa em 1939 e se estende
até 1954, a Espanha se via as voltas com canções condicionadas pela etapa autárquica
da organização político, econômica e social do regime, em que se procurou a criação
de um sentido para o “ser” espanhol propagado pelo franquismo. São canções
voltadas para as peculiaridades do país, que nesse espaço temporal era vinculada à
face agrícola, provinciana, bucólica, tentado criar uma Espanha pacífica, muito
diferente dos anos de conflito civil. São canções de cunho nacionalista, que ao mesmo
tempo em que erguem a autoestima dos espanhóis promovem Franco como um
caudillo, um salvador da pátria.
Essa exaltação de tudo que é espanhol inclui, principalmente, a mulher que, em
algumas letras, representa a própria Espanha que Franco diz construir; ou se refere ao
passado glorioso da Espanha, arquitetando, assim, uma imagem ideal do que Franco,
junto com a Igreja Católica, planejava para o país: uma Espanha (e uma mulher)
moralista, pudica, religiosa, uniforme, seguindo cegamente a direção para onde o
governo apontasse. Isso pode ser constatado em canções:
Como en España, ni hablar
Maravillas tiene el mundo
de belleza singular,
y cada país se empeña
en el suyo resaltar.
Yo que he corrido el mundo entero
y les puedo asegurar
que en mujeres, vino y música,
9
MONTALBÁN, Manuel Vázquez. Crônica Sentimental de España. Madrid: Espasa Calpe, 1986. p. 35-36;
SILVA, Regina Célia de Lima e. Canção popular e franquismo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
HISPANISTAS, 2002, São Paulo. Disponível em <http://www.proceedings.scielo.br/scielo>. Acesso em:
7/5/2009. Tradução sob a responsabilidade do autor.
83
como en España, ni hablar.
Como en España, ni hablar,
y esto lo digo yo aquí, en la China
Y en Madagascar.
Tiene un tesoro mi España
Que nadie puede igualar,
Tiene un tesoro mi España
Con su sol y sus mujeres,
Con su vino y su cantar. 10
(Como en España, ni hablar – Laredo, V. Mari y F. del Cerro)
Assim como na letra de Levanta los ojos:
Levanta los ojos, mujer española,
y mira qué tienes delante de ti:
tienes a tu España, que es decirlo todo,
tienes lo más grande que puede existir.
Ese sol ardiente que quema tu cara
y de bronceado te da a ti el color,
eres propiamente la Maja desnuda
la que Goya con arte pinto.
Mujer española, de cara morena,
que luces por gala um rojo clavel,
por trono una reja cuajaíta de flores
y sirves de musa al mago pincel.
Por algo tú tienes en el mundo fama
y a nada ni a nadie tienes que envidiar,
al Dios poderoso, que el te lo dio todo,
a Él solamente, a Él solamente
la grasia hás de dar.
De tierras lejanas a España han venío
pintores famosos pa ver si es verdá
que eres como el lienzo que te hizo famosa,
si es verdá que tienes el alma embrujá.
Y al ver el misterio que encierra tu cara
y al ver los destellos de sol y de luz
dicen admiraos: Esto es España, el embrujo del cielo andaluz.
Y dicen que eres así
porque eres de raza mora,
y yo digo que eres bonita
por ser mujer y española. 11
(Levanta los ojos – Godoy y J. Lito)
Ou ainda, em Isabel de Castilla:
Un oscuro navegante solicita
de la Reina conquistar un mundo nuevo
y la Reina que adivina en la Conquista
10
11
MONTALBÁN, Manuel Vázquez. (2000). Op. Cit., p. 7.
MONTALBÁN, Manuel Vázquez. (2000). Op. Cit. p. 56-57.
84
se sus prendas los joyeles lê da enteros.
La morisma de Granada es española
de Isabel e Fernando bajo el yugo,
mientras lejos sobre el trono de lãs olas
para España el Genovês descubre un Mundo.
Y la historia abrió sus puertas
a Isabel de par en par
y a la Santa que ya es muerta
un romance va a cantar 12.
(Isabel de Castilla – S. Guerrero e F. Merenciano)
Há também, o madrileñismo, a exaltação da capital, do centro políticoadministrativo e financeiro da Espanha. O mais importante desse movimento é que ele
pretendia criar uma nova imagem de Madrid, pois durante a Guerra Civil ela foi o
símbolo da resistência republicana; agora Franco a transforma em um símbolo do seu
governo. Cabe esclarecer que durante a ocupação republicana da capital criou-se uma
música de protesto intitulada No pasarán, em que se exaltava a força do exército
Republicano frente à Falange, como pode ser constatado em sua letra:
Los moros que trajo Franco
en Madrid quieren entrar.
Mientras que haya un miliciano
los moros no pasarán.
Si me quieres escribir
ya sabes mi paradero
Tercera brigada mixta
primera línea de fuego.
Aunque me tiren el puente
y también la pasarela
me verás pasar el Ebro
en un barquito de vela.
Diez mil veces que lo tiren
diez mil veces que lo haremos.
Tenemos cabeza dura
los del cuerpo de ingenieros.
En el Ebro se han hundido
las banderas italianas
y en los puentes sólo quedan
las que son republicanas. 13
(No Pasarán)
Porém, após a conquista de Madri por Franco, ela se tornaria, através das
canções, uma cidade nobre, casta, religiosa, e as mulheres espanholas (representação
12
13
Ibid., p. 57.
Disponível em <http://lacucaracha.info/scw/music/index.htm>. Acesso em 28/5/2009.
85
da Espanha franquista) só querem dar seus corações para os seus homens, os mais
castos que existem. Como podemos ver nas duas canções que seguem: Canto a Madrid
e Madrileño es:
Um corazón noble y bueno
Es la villa de Madrid,
Verbena, celos, amores,
Mujeres guapas sin fin.
Así lo descubrió Arniches
Y Ricardo de la Veja,
Que Madrid tan solo hay uno
En la extensión de la tierra.
Viva Madrid, porque tiene
lo mejor del mundo entero,
sus manolas, sus chisperos,
sus madroños, sus toreros,
sus mujeres dan la vida
cuando brillan sus quereres.
Así es mi Madrid castizo,
lo mejor que España tiene. 14
(Canto a Madrid – José Sanz y Gordillo)
Madrileño es
El hombre a quien más quiero yo,
Y solo, solo para él
Será mi corazón.
Madrileño es
Y me ha dejado chalada a mí
El hombre más castizo que hay
En to Madrid. 15
(Madrileño es)
Montalbán insere nessa primeira seção do livro algumas canções que, em suas
letras, não fazem referências diretas à Espanha, porém, como foi dito anteriormente, a
música não é feita apenas através de sua letra, mas também a partir de sua
interpretação. Logo, músicas como Tatuaje, que faz alusão a uma mulher e sua
constante busca por seu amor perdido, no caso, um marinheiro. Essa canção foi um
grande sucesso durante os anos 40 e 50, na voz de Concha Piquer. As canções,
portanto, podem ser interpretadas como uma crítica de setores da sociedade com a
situação do país, cujo espanhol, como o personagem da letra, está numa constante
procura pela felicidade que havia perdido.
14
15
MONTALBÁN, Manuel Vásquez. (2000). Op. Cit., p. 415.
Ibid., p. 415-416.
86
Outra metáfora interessante é a tatuagem, marca de um tempo que, tanto a
mulher quanto a Espanha, não conseguem apagar:
Él se fue una tarde
Con rumbo ignorado
En el mismo barco
Que le trajo aquí,
Pero entre mis labios
Se dejó olvidado
Un beso de amante
Que yo le pedí.
Errante lo busco por todos los puertos,
A los marineros pregunto por él
Se está vivo o muerto
Y sigo en mi duda buscándole fiel.
Y voy sangrando lentamente
De mostrador en mostrador
Ante una copa de aguardiente
Donde se ahoga mi dolor.
Mira su nombre tatuado
En la caricia de mi piel,
A fuego lento lo he marcado
Y para siempre iré con él. 16
(Tatuaje – Leon,Valério e Quiroga)
Talvez esse tenha sido um dos motivos pelo qual o livro tenha sido alvo da
censura franquista, quando, em 1972, ano de sua primeira edição, o Ministério de
Informação e Turismo da Espanha retirou várias seções e canções da edição que seria
vendida. Apenas em 2000 o livro foi relançado, completo e com mais uma divisão de
assuntos, versão essa utilizada no presente capítulo.
Pode-se afirmar também que os temas religiosos eram muito comuns nas
canções populares, já que a Igreja Católica era um dos alicerces do regime franquista.
Tanto Franco quanto essa instituição tinham uma preocupação em comum: a de
restaurar a moral, os bons costumes, a família e o comportamento irrepreensível,
principalmente da mulher, como já foi mencionado, ou seja, moldar comportamentos.
Foi nesse sentido, de restauração, que o próprio Papa Pio XII elevou a Espanha à
salvadora da fé católica:
A nação eleita por Deus como principal instrumento de evangelização
do novo mundo e baluarte inexpugnável da fé católica acaba de dar
aos precursores do ateísmo materialista do nosso século a maior
16
Ibid., p. 8.
87
prova de que, acima de tudo, estão os valores da Religião e do
espírito. 17
Para isso, foi usado o rádio como propagador desses ideais, veiculando as
seguintes canções: Su primera comunión e Canta con nosotros, respectivamente:
Mi niña ya está de mi casa
llena de gracia de Dios,
como la mira su madre
y cómo la miro yo.
Cariño de mi cariño,
alegría de su amor,
la nieve y el blanco armiño
copiaron de tu candor.
Para un padre e una madre
no hay alegría mayor
que ver hacer a sus hijos
la primera comunión 18.
(Su Primera Comunión – Serrapi, Escobés e J. Valderrama)
Óyeme, tu que eres joven,
Tú que sabes comprender,
Tú que guardas en tus manos
Tanta fe.
Tú que buscas las verdades,
Tú que tienes corazón,
Tú serás como nosotros,
Cantarás nuestra canción.
Canto a la flor del campo,
canto al viento, canto al mar,
canto a la luz que muere en el trigal,
canto al amor sincero,
canto al fuego de hogar,
canto a la verdadera libertad.
Canto a los verdes prados,
canto al aire, canto al sol,
canto al azul del cielo y al amor,
canto a la gente humilde
que me mira sin rencor,
canto a la paz del mundo,
canto a Dios. 19
(Canta com nosotros – Pablo Herrero e José Luis Armenteros)
17
PIO XII, 16 de abril de 1939 apud PETSCHEN, Santiago. La Iglesia en la España de Franco. Sedmay:
1977. Cf. SILVA, Regina Célia de Lima e. Canção popular e franquismo. Disponível em:
<http://www.roceedings.scielo.br/scielo>. Acesso em 7/5/2009.
18
MONTALBÁN, Manuel Vásquez. (2000). Op. Cit., p. 259-260.
19
MONTALBÁN, Manuel Vázquez. (2000). Op. cit., p. 262.
88
O segundo período, de 1954 a 1970, foi marcado pela “invasão” cultural
estrangeira na cultura popular da Espanha, devido à abertura do país ao capital
estrangeiro, a entrada da Espanha na ONU (1955) e os acordos com os Estados Unidos.
As novas canções absorvidas pelos jovens espanhóis eram, na maioria das vezes, em
inglês, língua que a maioria não entendia, por serem alfabetizados em espanhol e
francês (uma elite). Porém, eles usavam essas novas canções como forma de rebelião,
de evasão, frente a um mundo autoritário. Contudo, representavam também o
escapismo através da expressão corporal, através da dança, já que essas músicas
tinham ritmo, proveniente dos Estados Unidos, em que o Rockabilly e o Rock and Roll
eram os mais famosos. Algumas canções, escritas por espanhóis ou traduções de
músicas estrangeiras, que expressavam esse novo sentimento da juventude frente a
um novo mundo que se abria para eles são, por exemplo, Cómprame un Juke Box:
Oh, oh, papá,
porque mi sueño es
un Juke Box.
Si me lo compras
yo te prometo
que me quedaré
de noche siempre en casa
y mis deberes
haré escuchando
a los Dinámicos, a Presley,
Connie Francis y Halliday. 20
(Cómprame un Juke Box – C. Nicolas y G. Garvarentz)
Um exemplo dessas traduções feitas nesse período é Los dos tan felices, versão
espanhola da música So happy Together, do grupo norte-americano The Turtles:
No dejo de pensar em ti
y quiero al despertar sentir tu corazón.
Qué hermoso debe ser vivir una pasión
los dos tan felices!
Poderte preguntar con ansiedad
y oírte responder mi amor, con ilusión,
tenerte junto a mi, soñar y recordar
los dos tan felices. 21
(Los dos tan felices – Happy Together)
20
21
Ibid., p. 169.
Ibid., p. 225.
89
Cabe ressaltar que, com o advento da TV e a propagação do rádio, devido à
abertura da Espanha para o mercado internacional, as músicas ditas “nacionalistas”
também se modificaram através da influência de novos ritmos. Segundo Montalbán,
pode-se constatar nas letras uma mudança de linguagem, um desejo maior de
expressão, bem como de evasão. 22 Como, por exemplo, em Leímos en la prensa:
Leímos en la prensa
que en cierta playa
pusieron un bikini de pabellón,
que en vez de la bandera
allí ondeaba
y que representaba nuestra nación.
Yo no acuso a la patria de tal gamberro,
que no tiene la culpa de aquella acción.
Sólo le digo al tipo que puso el trapo,
que su mujer sin duda pasó un mal rato
buscando inútilmente su bañador. 23
(Leímos en la Prensa – Paco Alba)
E Y viva a España:
Entre flores, fandanguillos y alegría
nació mi España, la tierra del amor.
Solo Dios pudiera hacer tanta belleza
y es imposible que pueda haber dos.
Y todo el mundo sabe que es verdad
y lloran cuando tiene que marchar
Por eso se oye este refrán:
!Que viva España!
Y siempre la recordarán
!Que viva España!
La vida tiene otro sabor
y España es la mejor 24.
(Y viva a España – Caerta e Rozenstraten)
Nesse período, surgiram músicas sobre os paraísos terrestres, canções nas
quais países estrangeiros, geralmente tropicais, são idealizados. Mostrando um
sentimento de fuga da realidade espanhola, tais como José Carioca e Honolulu:
En el Brasil hay pájaros mil
pululando por la selva,
el araré, al kakapó,
22
Ibid., p. XXII.
Ibid., p. 175.
24
Ibid., p. 163.
23
90
con gritos que te enervan.
Mas hay um lorito cortés,
que charla por los codos,
caballero juncal por su trato jovial,
de lo más original.
José Carioca,
José Carioca,
el más simpático lorito del Brasil.
José Carioca,
José Carioca,
un personaje nuevo y muy gentil. 25
(José Carioca – F. Carreras)
Honolulu,
tierra inmortal,
tus encantos
quiero contemplar.
Yo me voy a Honolulu
a cantar el hula embriagador,
bajo un cielo muy azul
cantaré mis sueños de ilusión. 26
(Honolulú - Laredo)
A canção José Carioca faz alusão à imagem de um Brasil bucólico, tranquilo,
simbolizado pelo personagem da Disney, Zé Carioca. Já Honolulu mostra as qualidades
desse país e o personagem quer ir para lá, cantar a hula e seus sonhos de ilusão. Então
há, nessas duas canções, um sentimento de evasão, de fuga para um lugar “melhor”
onde se pode escapar de uma Espanha ditatorial para um país tropical, um paraíso
terrestre.
As canções de testemunho têm sua importância, pois narram fatos ocorridos na
época, porque transitam de jogos de futebol (Futbolerias) a metáforas sobre o regime
(Es cuestión de cara dura), mas também sobre a racionalização de comida (Cocidito
Madrileño), quando o povo espanhol passou por uma extrema precariedade de
recursos. Nessa época, surgiram as cartillas para la comida. Sobre esse período afirma
Gaite: “O mais importante era economizar, tanto dinheiro como energias: guardando
tudo, não desperdiçar, não exibir, não gastar saliva em protestos e críticas baldias,
reservar-se, tolerar.” 27 Algumas dessas canções são:
25
Ibid., p. 265.
Ibid., p. 269.
27
GAITE, Carmen Martín. Usos amorosos de la postguerra española. Barcelona: Anagrama, 1987. p. 13
apud SILVA, Regina Célia de Lima e. Canção popular e franquismo. Acesso em: 7/5/2009. Tradução sob
responsabilidade do autor.
26
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Futbolerias:
Fútbol, fútbol, fútbol,
¡es el desporte
que apasiona a la nación.
Fútbol, fútbol, fútbol,
en los estadios ruge
nardecida la afición.
si gana el Barcelona Club
o pierde en el encuentro el Español
es el enigma que alimenta
la expectación.
Fútbol, fútbol, fútbol,
hoy todo el mundo está pendiente de balón. 28
(Futbolerías – I. Castelltort)
E Cocidito Madrileño:
No me hable usted
de lo banquete que hubo en Roma,
ni del menú del hotel Plaza en New York,
ni de faisán,
ni de los foiegrases de paloma,
ni lê hable usted la langosta al thervidor.
Porque es que a mi sin discusión me quita el sueño,
y es mi alimento y mi placer,
la gracia y sal que al cocidito madrileño
le echa el amor de una mujer. 29
(Cocidito Madrileño – Quintero, Leon e Quiroga)
Assim como Es cuestión de cara dura:
Se acabó la valentía,
el trabajo y la bravura,
para darse la gran vida
es cuestión de cara dura.
No hace falta ser muy listo
ni tener mucha cordura,
para ser siempre el primero
es cuestión de cara dura
En negocios, cara dura;
en amores, cara dura;
es la vida la que enseña
a navegar. 30
(Es cuestión de cara dura – Ramón Evaristo)
28
MONTALBÁN, Manuel Vázquez. (2000). Op. Cit., p. 71.
Ibid., p. 79-80.
30
Ibid., p. 75.
29
92
O tipo de canção, que é a menos conhecida desse período, é a de protesto,
devido ao Ministério de Informação e Turismo da Espanha, que controlava as
apresentações ao vivo e o conteúdo das músicas antes e depois de serem gravadas.
Essas músicas tratam, em sua maioria, da liberdade, do fim do regime franquista, mas
há também canções contra a religião católica. Mesmo com toda a censura algumas
sobreviveram, como La Saeta:
Dijo una voz popular
¿quién me presta una escalera
para subir al madero,
para quitarle los clavos
a Jesús el Nazareno?
Oh, la saeta, el cantar
al Cristo de los gitanos,
siempre con sangre en las manos,
siempre por desenclavar.
Cantar del pueblo andaluz,
que todas las primaveras
anda pidiendo escaleras
para subir a la cruz.
Cantar de la tierra mía
que echa flores
al Jesús de la agonía
y es la fe de mis mayores.
Oh, no eres tu mi cantar,
no puedo cantar, ni quiero
a ese Jesús del madero,
sino al que anduvo en la mar. 31
(La saeta – Antonio Machado y Joan Manuel Serrat)
La Saeta (que significa flecha em espanhol, mas é também o nome de canções
religiosas na Espanha) mostra a fé do povo espanhol, fazendo alusão ao ato metafórico
de subir a cruz para tirar os pregos de Jesus e retirá-lo de lá. O autor pergunta como o
povo pode cantar a religião de seus idosos, de seus governantes, de seus ditadores, a
esse Jesus da agonia, que sempre tem sangue em suas mãos:
E Canto a la Libertad:
Habrá un día en que todos
al levantar la vista
veremos una tierra que ponga libertad.
Haremos el camino
en un mismo trazado
uniendo nuestros hombros
31
Ibid., p. 432.
93
para así levantar
a aquellos que cayeron gritando libertad.
También será posible
que esa hermosa mañana
ni tu, ni yo, ni el otro
la lleguemos a ver
pero habrá que empujarla
para que pueda ser. 32
(Canto a la Libertad – José Antonio Labordeta)
Canto a la Libertad lembra Cara al Sol, mas com o ideal inverso, trazendo a
imagem da morte, do sacrifício, como algo necessário para uma nova manhã, um novo
ressurgimento da Espanha. Significava também a união do povo, como essencial, pois
todo o povo espanhol deveria unir-se, ombro a ombro, como uma barricada, e
empurrar a velha Espanha para que a nova tenha seu lugar. Nesse sentido, uma das
principais músicas de protesto da época, isto é, da década de 70, foi Libertad sin Ira:
Dicen los viejos que en este país hubo una guerra
que hay dos Españas
que guardan aún el rencor de viejas deudas.
Dicen los viejos que este país necesita
palo largo y mano dura
para evitar lo peor.
Pero yo solo he visto gente
que sufre y calla, dolor y miedo
gente que solo desea
su pan, su hembra y la fiesta en paz.
Libertad, libertad
sin ira, libertad
guárdate tu miedo y tu ira
porque hay libertad
sin ira, libertad
y si no la hay sin duda la habrá.
Dicen los viejos que hacemos lo que nos da gana
y no es posible que así pueda haber
gobierno que gobierne nada.
Dicen los viejos que no se nos dé rienda suelta
que todos aquí llevamos
la violencia a flor de piel.
Pero yo solo he visto gente
muy obediente hasta en la cama
gente que tan solo pide vivir su vida
sin más mentiras, y en paz.
Libertad, libertad
sin ira, libertad
guárdate tu miedo y tu ira
32
Ibid., p. 449-450.
94
porque hay libertad
sin ira, libertad
y si no la hay sin duda la habrá. 33
(Libertad sin ira – R. Balades, Armeteros y Herreros)
Libertad sin ira, cantada pelo grupo espanhol Jarcha, que remete a uma poesia
hispano-muçulmana, foi o hino da redemocratização da Espanha, em 1975. A canção
traça, através da visão dos velhos contraposta a dos jovens, a história do país desde a
Guerra Civil (os velhos dizem que houve uma guerra e que há duas Espanhas que ainda
não resolveram seus problemas e, para evitar o pior, é preciso um governo duro, uma
ditadura, porém os jovens só notam pessoas que sofrem e calam, com dor e medo) até
o Regime Franquista (os velhos, símbolos dessa ditadura, dizem que os jovens fazem o
que querem e levam a violência a flor da pele, então é preciso encurtar suas rédeas,
como se fossem animais, mas eles só veem pessoas obedientes de mais que só querem
viver suas vidas sem mentiras e em paz). A canção acaba com um grito, talvez um
pouco contido, sem ira, mas também sem medo, de Libertad.
Do que foi exposto anteriormente, pode-se afirmar que o regime Franquista
usou a música como forma de consolidar os seus ideais autoritários, os de uma
Espanha forte, Imperial, sob o comando do general Franco. Mas também uma Espanha
religiosa, casta, pura, já que a Igreja Católica apoiava o regime. Para isso, foram criadas
canções veiculadas com frequência no rádio, assim a população as ouviria
seguidamente, como os jovens das Frentes de Juventudes o faziam. Num primeiro
momento, houveram músicas nacionalistas e religiosas, que reerguem a “velha”
Espanha dos destroços da Guerra Civil, elegendo as mulheres como símbolo máximo
desse novo país. “Construiu-se”, assim, a imagem feminina da castidade, da pureza, da
religiosidade. Essas canções foram uma das principais armas para legitimar o regime
de Franco frente à população espanhola. No período de abertura ao capital
estrangeiro, entre as décadas de 60 e 70, houve a entrada de músicas estrangeiras,
notadamente norte-americanas, e o surgimento de canções com o tema de paraísos
terrestres, ou seja, países estrangeiros geralmente idealizados. Isso mostra o
sentimento de evasão do povo espanhol, isto é, é melhor fugir através dos ouvidos do
que olhar para a dura realidade vivenciada. Porém, não só de alienação viveu a música
33
Ibid., p. 450.
95
espanhola durante esse período. As canções de testemunho, que variavam seus temas
de jogos de futebol à racionalização da comida, e as de protesto, muita censuradas
pelo regime, conseguiram deixar acessa a chama do grito de liberdade do povo
espanhol. Em 1975, com a morte de Franco, a Espanha iniciou sua transição para o tão
sonhado regime democrático.
REFERÊNCIAS
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Barcelona: Crítica, 2000.
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http://lacucaracha.info.htm
http://www.rumbos.net/cancionero
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