Lei
n º1
Nada de telefone celular
antes do sexto ano
Nossos vizinhos da frente estão passando uma semana em
um cruzeiro, então me pediram para buscar o jornal e a
correspondência todos os dias, enquanto estivessem fora.
Esse trabalho exigia uma enorme responsabilidade.
Mas não deixei de fazê-lo nenhum dia. Nem quando
choveu tanto que a parede de dentro do armário de Mark
começou a estalar, depois surgiram bolhas e, por fim, um
estouro por causa de toda a água que escorria lá dentro,
vinda de um vazamento no telhado da nossa casa.
Naquele dia, eu simplesmente vesti minha capa de
chuva e minhas botas, e fui buscar o jornal e a correspondência dos Aronoff na chuva, como se nada fosse.
Então imagine minha surpresa quando os Aronoff
chegaram em casa depois do cruzeiro e me deram dez
dólares, pois ficaram impressionados com o excelente trabalho que eu havia feito, empilhando cuidadosamente seus
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jornais e correspondências no hall de entrada enquanto
estiveram fora.
Sinceramente, eu teria feito de graça. É importante
ser gentil com os vizinhos, porque, assim, quando por
acaso atropelar as azaleias deles enquanto pratica manobras com sua bicicleta, parando bruscamente como se
fosse uma corredora de motocross, eles não ficarão tão
zangados com você.
Essa é uma lei.
De qualquer forma, aqueles dez dólares somados aos
26 que eu havia economizado por fazer minhas tarefas
de casa davam 36 dólares.
E 36 dólares é o bastante para comprar um monte de
coisa.
Tipo um celular.
— Pensei que seus pais tivessem dito que você não
poderia ter um celular antes do sexto ano — comentou
meu tio Jay, quando perguntei se ele poderia me buscar
em casa para ir ao shopping comprar um celular novo.
— Mas é com meu próprio dinheiro — expliquei. —
Posso comprar o que eu quiser com meu dinheiro.
Essa é uma lei. Ou pelo menos deveria ser.
Quero ter um telefone celular desde sempre. Eu conhecia várias crianças do quarto ano — como minha amiga
Rosemary — que tinham os próprios celulares.
Meus pais não me deixavam ter um, porque achavam
que eu era nova demais e ainda não havia demonstrado
ser responsável o suficiente para isso (principalmente considerando o que havia acontecido com meu Nintendo DS).
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Mas não é como se eu tivesse gostado tanto assim de
meu Nintendo, para começo de conversa. Gosto de jogos
que exigem mais imaginação que polegares.
Meus pais disseram que Perder eletrônicos é irresponsabilidade. Se perdermos algo assim, teremos de comprar
outro com nosso próprio dinheiro.
Meus dois irmãos têm sido extremamente cuidadosos
com seus Nintendos desde que ficaram sabendo dessa lei.
Mas, se quer mesmo saber, essa lei não é justa. Mamãe
e papai nem mesmo nos comunicaram sobre essa regra até
que eu perdi meu Nintendo DS. Avisaram depois.
Eu disse:
— Dizer a alguém sobre uma regra depois que a mesma já foi quebrada sem que ninguém soubesse disso não
é justo.
Mas meu pai argumentou:
— Desconhecer a lei não é desculpa.
Seja lá o que isso signifique.
De todo modo, não acho que eu não seja suficiente­
mente responsável para ter um celular. Cuidei de um
ga­tinho — meu gato, o Miau — praticamente à beira da
morte até que ele se tornasse um gato jovem e saudável.
E, tudo bem, é verdade. Eu perdi meu Nintendo.
Mas é só um jogo portátil! Eu não perderia algo importante como um telefone celular. Na verdade, eu preciso
de um celular (embora minha mãe diga que não). Tenho
muitas ligações importantes a fazer.
Como, por exemplo, para minha mãe se meu irmão
mais novo, Kevin (que preciso acompanhar na ida e na
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volta da escola todos os dias), por acaso cair em um duto
de ventilação num acidente bizarro e quebrar a perna ou
algo assim.
Isso é totalmente possível.
E ter dinheiro para comprar o telefone com certeza
prova que sou responsável o suficiente para ter um!
— Acho que nem dá para comprar um celular com 36
dólares — argumenta meu tio.
— Sim — respondo. — Dá sim. Vi outro dia na loja
por menos que isso.
— Mas é o valor do telefone apenas — explica tio Jay.
— Você também precisa pagar pelo plano.
— Pelo quê? — Eu não fazia ideia do que ele estava
falando.
— Você precisa pagar por cada ligação que faz e por
cada mensagem que manda, além de pagar pelo telefone.
Olhe, não ligo de levar você no shopping — continuou tio
Jay—, mas preciso ter certeza de que seus pais concordam
com isso antes de irmos.
— Não se preocupe —garanti. — Eles vão concordar.
Só havia um problema: minha mãe não concordaria.
— O quê? — Ela colocou uma mecha de cabelo atrás
da orelha.
Preciso admitir que minha mãe estava meio distraída.
Porque segurava uma lanterna para meu pai enquanto
ele enfiava a cabeça no buraco do armário de Mark, examinando a madeira roída que encontraram por dentro,
que no fim das contas vinha a ser toda a madeira encostada nas paredes no andar de cima da casa.
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— Eu tenho 36 dólares, é meu dinheiro — expliquei
de novo, rapidamente. — Então tio Jay vai me levar ao
shopping para comprar um celular. Eu volto a tempo do
jantar. Tchau!
— Ai! — disse meu pai ao bater a cabeça, quando
tentava sair engatinhando do buraco.
— Posso entrar no buraco da próxima vez? — Quis
saber Kevin.
Ele estava sentado com Mark na cama de baixo do
beliche que os dois costumavam dividir na casa antiga,
mas que agora havia sido separado em duas camas, já que
eles dormiam em quartos diferentes.
— Não — disse minha mãe, desligando a lanterna.
— Mas eu sou menor — disse Kevin.
— Ele é — concordou Mark. — Ele poderia ver até
onde a madeira está corroída.
— Ninguém — disse meu pai, rastejando para fora do
armário — vai entrar na parede. Essa é uma lei.
— Vi caramujos quando olhei aí mais cedo — avisou
Mark. — E cogumelos.
— Meu Deus — disse mamãe.
— Podemos fazer um cozido — sugeriu tio Jay.
— Tá — falei. — Bem, vejo vocês depois.
— Espere — pediu mamãe. Seus olhos se concentraram
em mim, e não de um jeito bom. — Onde você disse que
estava indo?
— Eu te disse — expliquei. — Ao shopping para comprar um celular. E você não pode dizer não porque vou
comprar com meu dinheiro.
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— Ei — disse Kevin. — Também quero um celular.
— Eu também — disse Mark. — Não é justo.
— Chega — explodiu mamãe.
Mães não costumam perder o controle.
Mas, quando perdem, é melhor parar o que quer que
esteja fazendo de errado se sabe o que é melhor para
você. É uma lei.
— Todos vocês — disse minha mãe. — Apenas parem.
— Ela apontou para mim. — Você conhece as regras.
Nada de celulares antes do sexto ano.
— Mas, mãe!
Eu não podia acreditar. Bem, na verdade acho que
podia sim, devido às circunstâncias. Mas ainda assim.
— Combinamos que você não poderia ter um telefone celular até estar no sexto ano — disse ela. — E,
ainda assim, você precisa mostrar que é responsável o
suficiente.
— Mas, mãe! —repeti. — Eu provei ser responsável! É
meu dinheiro. Eu ganhei pegando a correspondência e os
jornais dos Aronoff, e fazendo as tarefas da casa. Se eu
ganhar o dinheiro, posso gastá-lo com o que eu quiser.
Essa é a lei.
Ou, pelo menos, essa deveria ser a lei.
— Não se você for gastar em uma coisa sobre a qual
já discutimos e que você não pode ter até ser mais velha
— argumentou mamãe. — Tentar enganar seu tio para te
levar na loja a fim de comprar algo que te proibimos de
ter só ratifica o que eu já disse. Dificilmente eu chamaria
isso de comportamento responsável.
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Isso era verdade? Eu não tinha certeza. Quero dizer...
era meu dinheiro.
E eu pedi permissão.
Tio Jay olhou para mim. Eu sabia que não poderia
culpá-lo só porque todos os meus sonhos de ter um telefone celular foram massacrados e destruídos. Ele tinha me
apoiado, se oferecendo para me levar até a loja no carro
dele — que vem a ser o carro no qual ele entrega pizzas e
por isso sempre tem cheiro de pepperoni — e tudo mais.
Ainda que ele tenha dito que só faria se minha mãe e meu
pai dissessem que sim.
— Desculpe, garota — disse tio Jay. — São as regras.
— É, bem — murmurei. — Às vezes regras são estúpidas.
— O que você disse, Allie? — perguntou minha mãe
num tom de voz perigoso.
— Nada — respondi.
Mas era verdade. Aparentemente, não era o bastante
buscar a correspondência do seu vizinho durante um
temporal, nem criar um gatinho ou levar e buscar seu
irmão na escola.
Como eu podia ser responsável para fazer todas essas
coisas, mas não para gastar meu próprio dinheiro (que
eu ganhei) nas coisas que eu queria... nas coisas que eu
precisava?
Quando meus pais achariam que eu era responsável o
suficiente? No sexto ano?
Mas isso seria daqui a dois anos.
Era mais fácil eles terem dito “nunca”.
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