O CERCO À
MENINGITE
Chega ao Brasil a primeira vacina eficaz contra o meningococo B,
uma das poucas bactérias por trás da doença que ainda não
contava com imunização adequada. Será o fim desse mal?
por MARÍLIA MARASCIULO | design ROBSON QUINAFÉLIX e ANA COSSERMELLI | ilustrações ERIKA ONODERA
D
ONDE
ENCONTRAR
A nova vacina está
disponível em clínicas
particulares. Mas há uma
boa possibilidade de,
no futuro, ela integrar o
Programa Nacional de
Imunizações (PNI)
or de cabeça, febre e vômito. Esses
são sintomas comuns a uma série de
infecções — e várias, como a gripe,
dificilmente trazem consequências
muito sérias. Mas tais sinais também podem
acusar a meningite bacteriana, um problema grave e que ameaça em especial crianças
e adolescentes. Em poucas horas, o quadro
evolui para perda dos sentidos, gangrena de
pés, pernas, braços e mãos e até morte. No
Brasil, sua letalidade está na casa dos 20% (e
ainda dois em cada dez sobreviventes têm
de conviver com sequelas, como surdez ou
paralisia). Tudo porque micro-organismos
nocivos invadem as meninges, membranas
que revestem o cérebro, e, aí, começam a
afetar toda a região e a dificultar o transporte de oxigênio às células do corpo.
Sim, estamos falando de um mal agressivo e de difícil diagnóstico. Portanto, a
melhor maneira de controlá-lo é evitando o contágio. “Por ser transmissível pelas
vias respiratórias, o jeito mais seguro de se
proteger sempre é a vacinação”, afirma a
infectologista Regina Succi, da Sociedade
Brasileira de Pediatria. Acontece que, até
pouco tempo atrás, não havia um imunizante eficiente por aqui contra o meningo-
coco B, o principal causador da meningite em crianças brasileiras com menos de
5 anos de idade em 2014. Mas isso acaba de
mudar com a chegada da vacina adsorvida
meningocócica B recombinante.
É verdade que já existiam imunizantes
contra alguns poucos sorossubtipos dessa
bactéria (ou seja, contra uma ou outra variação dela). No entanto, eles são pra lá de limitados por dois motivos. O primeiro é que
esse vilão tem milhares de irmãos, segundo
Felipe Lorenzato, gerente médico da GSK,
laboratório que trouxe a novidade para o
país. Em outras palavras, as opções anteriores só impediam o contágio de poucos sorossubtipos do meningococo B.
Além disso, diferentemente de outras
bactérias, boa parte das moléculas presentes na cápsula externa do micróbio —
os alvos das vacinas anteriores — é similar às encontradas em nossos neurônios.
Logo, o sistema imunológico, mesmo
após a picada, dificilmente vai iniciar a
produção de anticorpos. Já a nova opção,
graças à tecnologia e ao esforço de anos
dos cientistas, blinda o organismo contra 80% dos sorossubtipos. É um avanço e
tanto no cerco à meningite. HÁ TIPOS E TIPOS
MENINGITE VIRAL
É bem menos grave
que as outras. O
tratamento, em geral
feito em casa, consiste
em aliviar sintomas.
BACTERIANA
Ela acarreta um
risco considerável
de morte e sequelas.
Ao desconfiar dos
sintomas, corra para
o hospital. A terapia
requer internação
e antibióticos.
FÚNGICA
Mais rara, costuma
acometer pessoas
com o sistema imune
comprometido. É tão
grave quanto a meningite
bacteriana e o tratamento
varia muito de acordo
com o paciente.
S A Ú D E É V I TA L • J U N H O 2 0 1 5 • 5 9
TIRO CERTEIRO
Conheça o método, batizado de vacinologia reversa, que
culminou em um imunizante efetivo contra o meningococo B
DNA
RASTREADO
Em primeiro lugar,
os cientistas
mapearam o
genoma inteiro do
meningococo B.
A partir daí,
identificaram
2 158 proteínas
passíveis de serem
alvo de uma vacina.
2 158
PROTEÍNAS
ENCONTRADAS
NO GENOMA
1 588
RESTARAM APÓS
A COMPARAÇÃO
COM O DNA
HUMANO
DEFESAS
INCITADAS
Os experts, então,
usaram várias
técnicas para
chegar a 28
proteínas que
estimulavam o
sistema imune a
produzir anticorpos
contra elas.
28
PROTEÍNAS
CAPAZES DE GERAR
RESPOSTA DO
SISTEMA IMUNE
3
PROTEÍNAS
VITAIS PARA O
MENINGOCOCO B
NadA
fHbp
6 0 • S A Ú D E É V I TA L • J U N H O 2 0 1 5
DIFERENTE DE NÓS
Após compararem o
DNA da bactéria com
o de seres humanos,
eles descartaram
570 proteínas que
também marcavam
presença no nosso
corpo. Sobraram
1 588 alvos.
+1
NHBA
PorA
PROTEÍNA
TIRADA DE
OUTRA VACINA
O RESULTADO FINAL
Das 28 moléculas, as
três mais vitais para a
bactéria (fHbp, NadA e
NHBA) foram incluídas
na vacina. E a proteína
PorA, componente
de uma vacina da
Nova Zelândia, foi
acrescentada à fórmula.
“Tradicionalmente, uma vacina é feita na
base da tentativa e do erro”, explica Lorenzato. Uma versão é criada a partir de um componente do micro-organismo e, então, testada para ver se confere proteção diante dele e
de suas variações. Só que todas as tentativas
no caso no meningococo B terminavam em
erro por causa de seus milhares de sorossubtipos e da cápsula externa da bactéria, parecida
com a superfície das nossas células nervosas.
A solução para desenvolver o imunizante hoje disponível no Brasil foi encontrada
pelo médico italiano Rino Rappuoli, que
desde o final da década de 1980 trabalha
com diferentes meningococos. “Entre eles,
o B sempre foi um desafio. Eu inclusive tentei, em vão, criar uma vacina por várias vezes”, recorda. “Então, em 1995, Craig Venter
[geneticista americano] traçou o genoma da
mosca-das-frutas. Pensei: se isso é possível,
por que não mapeamos os genes do meningococo B?”, completa Rappuoli. Sua ideia
era achar, no DNA do bichinho, um calcanhar de aquiles capaz de derrubar diversos
tipos numa tacada só. E aqui cabe um parêntese: segundo o infectologista Julio Croda,
da Fundação Oswaldo Cruz, cada uma das
versões dessa bactéria tem suas particularidades, porém todas apresentam o mesmo
código genético. Em última instância, isso
quer dizer que elas compartilham elementos
primordiais à sua sobrevivência. Mas quais?
Voltando à história, Rappuoli convenceu
Venter a ajudá-lo. Enquanto o pesquisador
americano sequenciava o genoma, o italiano realizava análises no computador. Das
2 158 proteínas flagradas a partir do estudo
do DNA, eles chegaram a três muito promissoras para a criação de um imunizante de
cobertura ampla (saiba mais à esquerda). A essas, acrescentaram outro antígeno que havia
sido utilizado em uma vacina neozelandesa
com eficácia acima da média. Feitos os testes,
bingo! Após anos de luta, o meningococo B
finalmente ganhou um adversário à altura.
“A ideia é caminharmos em direção à eliminação da meningite bacteriana, mas isso
é difícil, porque requer bastante gente vacinada”, analisa o cenário o pediatra Renato
Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). E não vale tomar
picada só para debelar o meningococo B. É
fundamental se proteger contra o Streptococcus pneumoniae, o Haemophilus influenza tipo
B e os meningococos A, C, W e Y — os outros
principais deflagradores da doença que podem ser afastados com vacinas.
No fim das contas, conquistar altos índices de imunização contra todos esses agentes no mundo inteiro é um desafio enorme,
que envolve questões estratégicas e financeiras. “As pessoas se deslocam cada vez mais
pelo mundo e, ao entrar em contato com
certas bactérias, acabam espalhando-as”,
observa a infectologista Thaís Guimarães,
vice-presidente da Sociedade Brasileira de
Infectologia. Além disso, em alguns poucos
casos, a meningite bacteriana pode ser ocasionada por outros micróbios, como o meningococo X, atualmente restrito a certas
regiões da África e que também não possui
um imunizante. Mesmo assim, Rappuoli
acredita ser possível erradicar essa doença
do planeta. O desafio, agora, é unir as diversas vacinas em uma. E ele e sua equipe
já começaram a estudar essa possibilidade.
Quem deve tomar?
IMPORTAÇÃO
FRACASSADA
Quem tem mais
de 40 anos
talvez encontre
na carteirinha de
vacinação um registro
de que foi imunizado
contra o meningococo
B. Contudo, isso é
só a herança de uma
tentativa frustrada de
conter um surto de
meningite na década
de 1970, quando uma
vacina produzida
em Cuba foi trazida
para o Brasil. Só que
ela teve uma eficácia
baixíssima. Isso
porque nem sempre
provocava uma
resposta do sistema
imune e levantava
as defesas somente
contra apenas um
dos milhares de
sorossubtipos de
meningococo B.
Por enquanto, a vacina da GSK está disponível apenas na rede privada (cada uma sai
340 reais para as clínicas, o que pode ficar
mais caro para o consumidor final), e a necessidade de uma dose de reforço deve ser
discutida com o médico. A recomendação
da SBIm é priorizar a imunização de crianças a partir dos 2 meses de idade e de adolescentes, embora sua indicação se estenda
para adultos de até 50 anos. Quem for visitar regiões com alta incidência de meningite
também precisa tomar as picadas — recentemente, houve um surto em duas universidades americanas, nas cidades de Princeton
e Santa Bárbara. É de agulhada em agulhada
que podemos vencer a doença.
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