Reprodução de documento publicado originalmente em http://www.terravista.pt/PortoSanto/1494/Il_re_ed.html
A Ilusão e a Realidade da Educação
Um estudo da Alegoria da Caverna de Platão (Livro VII da República)
Vitor Cardoso, 1997
Introdução
Escrita por Platão na sua fase da maturidade (Gomes, Pinharanda), A República é o maior dos seus diálogos, com
excepção das Leis, e certamente o mais importante (McClintock, 1968), constituindo um dos marcos fundamentais do
pensamento ocidental.
Platão começa este longo diálogo por discutir a questão da justiça, do que é e não justo, para a identificar com o bem.
Justiça para Platão é, pois, fazer o bem. Mas como distinguir o bem do mal ? O que é justo do injusto ? A verdade da
mentira ? O real das "sombras" ? Na discussão desta difícil problemática a visceral antipatia de Platão pelos sofistas
quase se abate: ele acaba por reconhecer que os sofistas, em vez de corruptores do povo, são a própria imagem do
cidadão comum (Jowett, 1901).
Se generalizadamente é assim, então parece não haver esperança. Mas ... talvez haja uma saída... pela educação!
Fig. 1 - A caverna de Platão (Soccio, 1995)
É na alegoria da caverna que Platão vai por um lado evidenciar as razões por que há tanta confusão acerca da questão
da justiça - e de muitas outras coisas - e por outro justificar a necessidade da educação na criação de um novo cidadão,
com o qual será possível construir um mundo melhor e mais justo: a República.
No texto que se segue vamos analisar esta alegoria com os "olhos de hoje", retirando-a do seu contexto na Grécia antiga
de há 2.400 anos para a colocar na sociedade da informação. Veremos se passados mais de vinte e quatro séculos após
a sua concepção, a obra de Platão continua "viva e com todo o tipo de relevâncias para a vida contemporânea"
(McClintock, 1968).
Vamos correr vários riscos. Mal interpretar o que foi escrito somente para "acumular para si mesmo um tesouro de
rememorações para a velhice" (1) é o primeiro.
Outro risco, pelo menos, é o de não compreendermos suficientemente o actual momento civilizacional. Ainda nos
encontramos na fase em que as tremendas e fascinantes novas possibilidades da sociedade da informação nos
"rebentam" mais vezes nas mãos do que nos alvos, ainda insuficientemente identificados.
A luz ao fundo da caverna
Platão resume nesta alegoria a sua visão de uma humanidade ignorante, prisioneira das sensações, do imediatismo e
inconsciente da sua limitada perspectiva. Os raros privilegiados que conseguem escapar das amarras dessa "caverna",
através de uma longa e difícil caminhada intelectual vão descobrindo outras dimensões mais completas e reais - primeiro
os objectos e a fogueira - e bem lá no fim, já fora da caverna, encontrarão a verdadeira realidade, a origem e a
explicação de tudo o que existe (2).
A concepção arquitectural e cénica da caverna apresentada no início do livro VII da República não é absolutamente
consensual. Talvez devido às "nuances" das diferentes traduções do grego para as línguas vivas actuais, ou por outras
razões, encontrámos algumas diferenças na "visualização" que alguns autores fazem da alegoria da caverna. A que nos
pareceu particularmente "diferente" está publicada na mais conceituada tradução portuguesa da República de Platão, da
Fundação Calouste Gulbenkian. A tradutora, na introdução que faz à obra (Pereira, Maria H. R, 1976), interpreta assim a
cena:
"Homens algemados de pernas e pescoços desde a infância, numa caverna, e voltados contra a abertura
da mesma, por onde entra a luz de uma fogueira acesa no exterior, não conhecem da realidade senão
as sombras das figuras que passam, projectadas na parede, e os ecos das suas vozes."
Sublinhámos a parte da interpretação que nos parece menos sugestiva. Embora Platão nunca diga taxativamente que a
fogueira está dentro da caverna, todo o diálogo assim o dá a entender. De resto não parece fazer muito sentido que uma
fogueira acesa no exterior, iluminado pelo sol, possa projectar luz sobrepondo-se à daquele. Embora à primeira vista
pareça um pormenor isso pode alterar alguns aspectos substanciais da análise.
A caverna é a metáfora para o nosso mundo físico: lá dentro estamos nós, a fogueira também e os outros objectos
(fig.1). Platão não nega que haja alguma luz nas primeiras etapas da nossa "libertação", admite até que possamos
vislumbrar alguns objectos reais à luz da fogueira. Mas para ele a verdadeira luz está no exterior, não é a luz vacilante da
fogueira, mas a luz fulgurante do sol: é a sua metáfora para o mundo das ideias.
A ilusão e a realidade da Educação
A caverna de Platão, uma das mais fascinantes e assustadoras metáforas do pensamento ocidental, é, entre outros
vectores possíveis de análise, uma visão alegórica sobre a educação e a libertação, mas também, em última análise,
uma revelação do potencial de dominação e opressão que a educação pode ter sobre o ser humano.
Como os prisioneiros nem sequer podem ver o seu próprio corpo ou o das outras pessoas, inevitavelmente confundem
as sombras e os ecos reflectidos na parede à sua frente com a própria realidade, pois não conhecem outra (3).
Que situação sem nexo, diremos nós. Como é que alguém pode ser tão estúpido e parvo que se deixe enganar por
sombras numa parede? (4)
Ao seu interlocutor no diálogo, Gláucon, que lhe faz uma observação semelhante, Platão responde:
"Eles são como nós !"
A situação dos prisioneiros na caverna retrata, para Platão, precisamente a condição humana. Nós nascemos numa
confortável escravatura de ignorância e é extremamente difícil, sem ajuda, tomar consciência dela e distinguir a realidade
(a verdade) da ilusão. E vai mais longe, afirmando que a maioria de nós se sente tão confortável na sua vidinha ignorante
que não quer sequer mudar.
Se alguém agarrar no prisioneiro, diz Platão, e o voltar para os próprios objectos, de que ele só conhece as sombras,
sentirá dores no corpo muito tempo imobilizado e o deslumbramento das figuras em contraluz que o cega
temporariamente impedi-lo-á de ver direito qualquer coisa, até as próprias sombras que até aí ele podia ver e eram a
única coisa que tinha. Neste estado de confusão e ... martírio ele vai querer voltar à segurança das amarras e à
simplicidade das sombras a que estava habituado.
Este desejo de regresso à escravidão da ignorância - esta resistência à mudança, diríamos hoje - é tão forte, afirma
Platão, que o prisioneiro tem mesmo de ser arrastado à força para fora da caverna e para a verdadeira realidade. O
sofrimento físico e a angústia são consideráveis, mas é a única maneira, diz Platão. Uma vez fora da caverna ele
experimentará inicialmente os mesmos problemas de deslumbramento, mas pouco a pouco ir-se-á habituando à luz do
dia e começará a ver as coisas à sua volta e a descobrir a verdadeira realidade. Com o tempo até o próprio sol será
objecto da sua atenção e compreensão.
Embora esta odisseia do conhecimento não seja tarefa fácil, pensa Platão, ela faz parte do ser Homem. Todos
desejamos o conforto e a segurança de um mundo simples com poucos problemas, de solução fácil, compreensiva,
universalmente aceite e aparentemente correcta, como nesse "paraíso original" dos prisioneiros. Mas esta situação é
ilusória e, se é paraíso, bem ... é o paraíso dos tolos!
A condição humana é inicialmente de auto-escravatura que as pessoas confundem com liberdade. Na alegoria as
pessoas (os prisioneiros) pensam que são livres; pensam que compreendem o seu mundo. Nós que os observamos de
fora podemos ver quão enganados estão, mas eles, para nosso espanto, agarram-se desesperadamente às suas
amarras convencidos de que o que experimentam é a própria realidade.
A educação é, em Platão, um processo lento e doloroso em que se vão expondo as pessoas à verdade. O primeiro
passo é o reconhecimento da natureza incompleta deste mundo de ilusões. No contexto das suas limitações iniciais os
prisioneiros tinham uma forma de olhar para o mundo e, pelo menos para eles, esta forma de ver a realidade fazia
sentido. Mas pouco a pouco, e na medida em que são libertados e levados a ver o mundo fora da caverna, com mais luz
e com outra luz, vão percebendo que esta nova forma de ver tem ainda mais sentido. Tornam-se então seres mais
conscientes do mundo que os rodeia.
Para Platão educação é liberdade. A experiência da educação liberta-nos da condição de ignorância (5). É uma das
mensagens bonitas que Platão nos transmite com esta alegoria.
Há um outro lado mais negro, menos visível na alegoria: o potencial de dominação e opressão de umas pessoas por
outras que a educação pode pretender legitimar. O prisioneiro, quando inicialmente é libertado, fica confuso e quer
regressar à sua condição anterior, mas já não pode. É arrancado dali à força e arrastado até à luz do sol.
Quem teria interesse nisso ? Quem seria capaz, por força, persuasão ou influência de levar outros para fora da caverna ?
Essa pessoa tinha de saber qual o caminho a seguir para os levar em direcção à luz. Subentendendo Platão, só podia
(ou devia) ser um filósofo.
É a ideia do messias, com tudo o que tem de bom (terá ?) e de mau ! Todos os grandes iluminados têm em comum esse
objectivo: querem educar o povo, levá-lo a ver a verdade, a sua verdade, à força se necessário. Até inventaram a
educação obrigatória ! Nem os actuais regimes democráticos são excepção.
Os actuais sistemas educacionais estão , aparentemente, concebidos para que entremos cada um de nós, com a sua
verdade e saiamos todos com a verdade do mestre (ou do sistema)!
Este potencial de dominação e opressão que a educação pode ter sobre o ser humano é uma crítica importante que
podemos fazer ao platonismo. Mas será justo fazê-la ao próprio Platão ?
Pensamos que ele estava consciente desse problema e nos procurou alertar para ele:
"Educação não é o que alguns apregoam que ela é... introduzir ciência numa alma em que ela não
existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos."
Platão insiste que educar não é "impingir" ciência. É essencialmente a arte de motivar para aprender ("a arte desse
desejo"), "dar-lhe os meios para isso"(5) e ser companheiro de percurso. Não é transformar a carne em salsichas, é
motivá-la a transformar-se num organismo vivo, ele saberá depois ...encontrar o divino.
Estamos conscientes de que há alguns aspectos contraditórios nesta argumentação, mas pensamos que o próprio Platão
não respeita aqui o princípio da não-contradição (é se calhar da própria natureza da educação não o respeitar). Nem
sequer resiste a apresentar receitas sobre os conteúdos curriculares... mas pensamos que aqui o nosso comentário tem
de ser tão circunstancial como o de um médico de hoje que analisa uma receita de Hipócrates para tratar uma
determinada doença: esta receita já não se aplica!
NOTAS
1
- Fedro, pág. 129 edição da Galeria Panorama.
- Essa realidade é Deus. Para Platão o fim do caminho, verdadeiramente, nunca se atinge nesta existência terrestre,
apenas se pode chegar muito perto e vislumbrá-lo. Só do outro lado, na morte, isso pode ser plenamente conseguido.
2
- Não deixa de ser interessante notar que a forma como Platão coloca a fogueira - num plano elevado e com um
pequeno muro à frente - nos permite conjecturar que a luz nunca atinge os prisioneiros por trás, passando acima das
suas cabeças. Este facto impede-os de verem a sua própria sombra reflectida na parede e a possibilidade de terem
algum tipo de interactividade com ela que lhes permitiria estabelecer uma ponte entre a realidade e as sombras na
parede.
3
- Não resistimos à ideia de referir os artistas mágicos, que sempre fascinaram as plateias com as suas realizações
aparentemente impossíveis, levando por vezes as pessoas a acreditar que eles têm poderes sobrenaturais. Com as
novas tecnologias a magia tornou-se uma verdadeira ciência das ilusões e a realidade virtual ... corre o risco de tornar o
mundo num palco permanente de magia.
4
- Para Platão já nascemos com a sabedoria, apenas "vemos mal", por isso ignoramos que já a temos (é a teoria da
reminiscência, uma questão controversa que não cabe no âmbito deste trabalho).
5
Referências
CAVE Overview (1996) - In
<http://evlweb.eecs.uic.edu/EVL/VR/CAVE.overview.html>
Gomes, Pinharanda - Nota bibliográfica à sua tradução do Fedro de Platão. Lisboa, Galeria Panorama.
Jowett, Benjamin (1901)- Introdução à República de Platão. New York: P. F. Collier & Son. The Colonial
Press. In 1995 Institute for Learning Technologies - In
<http://daemon.ilt.columbia.edu/academic/digitexts/plato/the_republic/book00.html>
McClintock, Robert (1968) - Prefácio a "The theory of Education in the Republic of Plato" de
R.L.Nettleship. Teachers College, Columbia University. In1995 ILT Digital Classics. In
<http://daemon.ilt.columbia.edu/academic/CESdigital/plato/republic/toc.html>
Pereira, Maria H. R. (1976) - Introdução a "A República - Platão". Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian.
Platão - A República - Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. Obra de onde foram retiradas as frases
de Platão referidas no texto do presente estudo.
Platão - Fedro . Lisboa, Galeria Panorama.
Soccio, Douglas J.(1995), Archetypes of Wisdom, Belmont, Wadsworth Publishing Co. In Plato's Cave,
<http://www.buffnet.net/~harrsnow/PHILASST/PLATOCAV/CAVE.HTM>
Obs.: Todas as páginas da Internet referidas foram consultadas em Janeiro de 1997
Agradecimentos
Embora a responsabilidade pelas eventuais gralhas ou incorrecções pertença exclusivamente a si
próprio, o autor pretende registar o seu agradecimento às pessoas abaixo referidas:
o
o
o
Ao Prof. Doutor. Joaquim Coelho Rosa da ESE João de Deus, pela inspiração deste trabalho.
Ao Dr. Bartolomeu Valente, pela sua disponibilidade em ler a versão prévia deste texto
À Drª Vitória G. Martins Cardoso, minha esposa, pela sua preciosa ajuda na correcção e estilo do texto.
Reprodução de documento publicado originalmente em http://www.terravista.pt/PortoSanto/1494/Il_re_ed.html (1978)
Actual source (2005): http://www.univ-ab.pt/~vcardoso
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