QUEM LÊ O LEITOR?
Affonso Romano de Sant’Anna
Você pensa que está lendo esta crônica, mas está também sendo lido, não por
mim, um cândido
e ingênuo escriba crônico, mas você está sendo lido
por
instrumentos espertíssimos que vêm você e você não os vê.
Calma. Não entre em pânico. Ou melhor: entre logo em pânico, pois a
ingenuidade acabou. Primeiro com aquela maçã no paraíso. (Aliás, para ajudar a
acabar com a ingenuidade paradisíaca, segundo o etnomicologista Gordon Watson,
Adão e Eva se aproximaram da Árvore do Conhecimento e consumiram, não a maçã,
mas um cogumelo alucinógeno).
Continuo. Estamos sendo vigiados 24 horas, dia e noite. O que George Orwell
, no seu “ 1984”, debitava a um regime comunista totalitário, agora tornou-se
realidade graças à internet. Me explico melhor: a imprensa acaba de revelar que os
hábitos dos leitores são pesquisados detalhadamente pelas grandes editoras
eletrônicas. Mas não se trata mais, como no passado, de fazer uma enquete porta à
porta para saber quais os autores mais lidos, quais as os gêneros preferidos. Isto é
coisa do passado remotíssimo, antes de 1992, antes de Tim Berners-Lee criar a World
Wide Web e tudo veio depois como um tsunami comunicacional.
Hoje a Barnes & Nobles, a Amazon, e no Brasil, já a Saraiva e a Cultura
sabem exatamente em que página você largou a leitura de um livro. Sabem ainda
mais: sabem que trechos do livro eletrônico lhe interessavam mais pois
você os
marcou de amarelo enquanto ia lendo, e isto fica registrado.
Existem aplicativos espiões que o leitor desconhece, mas que transmitem às
editoras esses e outros dados seus de leitor. Com isto, as editoras tentam saber como
seduzir aquele que compra e lê livros. Não apenas podem fazer estatística de quantos
leitores abandonam a leitura de uma obra,
mas sabem até em que página eles
desistiram. Sabem também quanto tempo você dedica à leitura. E num futuro muito
próximo saberão a cor de sua roupa, que comida você comeu em que parte da casa ou
da cidade leu o livro.
Não estou inventando nada. Estou somando essa informação dos jornais a uma
outra (igualmente espantosa) que li no “Le Monde”: existe agora um modo de
espionagem eletrônica que parece filme de ficção cientifica. Conseguiram criar um
vírus/espião que entra no seu computador. Você não está sabendo de nada, mas ele
está de olho em você. Não só de olho, ele vê o que você está fazendo e grava suas
conversas, à sua revelia. Assim, se seu computador estiver no quarto ou na cozinha,
vai trasmitir para alguém, o que ou quem você anda comendo.
Acabou aquela era do espião que ia para o Cairo ou Amesterdã acompanhar o
suspeito e tinha que o perseguir pelas vielas e cabarés. Acabou a era ( já sofisticada e
recente) quando os homens da KGB, da CIA e o MOSSAD (isralaense) penetravam
nas casas e gabinetes para botar “bugs”na parede, atrás dos quadros e telefones.
Somos vigiadíssimos. Não só em Londres, onde existem milhares de câmeras
pelas ruas transmitindo o que o cidadão comum está fazendo. Desconfio que nos
supermerdados têm ( ou terão) câmeras para saberem o tempo que o cliente gasta
diante de certos produtos, quais suas indecisões, que roupa usa, etc.
Uma vez vi Michel Foucault dissertar na PUC/Rio ( 1974) sobre o panóptico:
um sistema de vigilância nos presídios que permitia ver o que todos os prisioneiros
faziam em suas celas. Bom, isto já foi superado: os presos nos vigiam e nos assaltam
lá dos seus presidios.
A sociedade do Deus Mercado ( esse Bezerro de Ouro bíblico) quer saber tudo
dos clientes. Pois agora, essa devassa da vida privada, , chegou até ao ato da leitura.
Ato que antes era íntimo, pessoal, solitário.
Não sou contra o progresso. Em termos de leitura, vocês sabem, tenho até
aquele livro –LER O MUNDO, cujo título fala por si. Mas não posso deixar de alertar
o meu leitor que, de agora em diante, ele não é mais um simples leitor, mas um leitor
que está sendo lido por outro leitor oculto.
Resta saber se o leitor eletrônico que nos lê, está interessado na leitura ou
interessado em nos vender algo. De resto, para acabar com qualquer eventual
ingenuidade deixo com vocês uma frase que li há dias: se você está na internet e
ninguém está tentando lhe vender algo, é sinal de que você é o produto.
(Estado de Minas/Correio Brasiliense/22.07.2012)
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