p g y p A MODERNIZAÇÃO NO BRASIL COMO PROBLEMA FILOSÓFICO Modernization in Brazil as a philosophical problem Resumo Ao suprimir o aristotelismo do ensino, mediante a expulsão dos jesuítas e a reforma da instrução pública, o marquês de Pombal deu início, na segunda metade do século XVIII, ao processo de modernização no Brasil. A visão do problema da modernização no Brasil como problema filosófico pode ser enunciada em termos de “mudança de princípio”, a saber: a assimilação do cogito cartesiano como princípio da filosofia moderna supõe a conversão religiosa como princípio da formação cultural brasileira sob o aristotelismo. Palavras-chave FILOSOFIA BRASILEIRA – MODERNIZAÇÃO – CULTURALISMO – ARISTOTELISMO. Abstract In suppressing Aristotelism from education, through the banishment of the Jesuits and the reform of public aducation, the Marquis of Pombal started the process of modernization in Brazil, during the second half of the 18th Century. The understanding of the problem of modernization in Brazil as a philosophical matter can be expressed in terms of a “principle change”, that is: the assimilation of Cartesian cogito as the principle of modern philosophy assumes religious conversion as the principle of development of the Brazilian culture under Aristotelism. Keywords BRAZILIAN PHILOSOPHY – MODERNIZATION – CULTURALISM – ARISTOTELISM. impulso nº 29 125 LUIZ ALBERTO CERQUEIRA Doutorado em filosofia pela Universidade Nova de Lisboa. Dedica-se à linha de pesquisa filosofia brasileira e portuguesa no âmbito de um projeto luso-brasileiro de pesquisa filosófica. Professor adjunto da UFRJ e coordenador do Centro de Filosofia Brasileira (CEFIB) [email protected] p g y p E m Portugal, o conflito ideológico entre “antigos” e “modernos” arrastou-se, desde o final do século XVII, para as necessárias reformas pombalinas na segunda metade do século XVIII. No âmbito da educação, muito contribuiu para as reformas realizadas pelo marquês de Pombal a participação do estrangeirado, nome pelo qual ficou conhecida a intelectualidade portuguesa que, ciosa de sua formação “moderna” no estrangeiro, passou a denunciar o método pedagógico dos jesuítas como a causa de decadência da cultura nacional. Entre os estrangeirados distinguiu-se o oratoriano Luís Antonio Vernei, cujo “modernismo” teve forte influência sobre a Junta de Providência Literária, incumbida de redigir o novo Estatuto da Universidade. Com o seu Verdadeiro Método de Estudar,1 ele pôs a descoberto as deficiências do sistema de ensino português em face de uma cultura ocidental já marcada pelo espírito científico-racional. Caracterizando esse espírito como o interesse nos conhecimentos exatos e na educação pela razão, ele fez a crítica do ensino de filosofia em Portugal à luz do ideário iluminista, mas sem nunca por em dúvida a superioridade da revelação e da graça divinas sobre o mecanismo da natureza e da razão humana. A presença desse princípio escolástico no bojo do “modernismo” português é uma prova de que não se pode, impunemente, ver no momento das reformas pombalinas da instrução pública uma atitude filosófica absolutamente contrária à tradição espiritualista portuguesa. Infelizmente, não foi essa a interpretação que prevaleceu na historiografia filosófica brasileira. O simples fato de o pensamento filosófico português ter-se voltado, no século XIX, sobre questões de origem, isto é, questões pertinentes à origem escolástica do seu tradicional aristotelismo, foi suficiente para rotular de tradicionalismo essa atitude, com toda a carga semântica negativa do termo.2 Inversamente, o simples fato de a intelectualidade brasileira, no mesmo período, ter-se socorrido da língua francesa para modernizar-se, assimilando as questões e os temas da filosofia moderna por intermédio de autores franceses, bastou para se constatar, falsamente, uma “diversidade original de interesses” entre as filosofias brasileira e portuguesa. A historiografia filosófica brasileira realmente não distinguiu a modernização inerente às reformas pombalinas como problema filosófico específico, restringindo-se à sua condicionalidade histórica. Do ponto de vista da condicionalidade histórica das reformas pombalinas, a modernização supõe 1 Além do Verdadeiro Método de Estudar, foram importantes no mesmo sentido as Cartas sobre a Educação da Mocidade e o Método para Estudar a Medicina, de Antonio Ribeiro Sanches. 2 “Partindo de uma base comum, nos lançamos à tarefa de elaborar o pensamento autônomo logo no começo do século passado [XIX] primeiro com a mudança da Corte para o Rio de Janeiro, depois com a Revolução do Porto e a Independência. A base comum a que estamos referidos diretamente corresponde ao empirismo mitigado e ao tradicionalismo, ambos criação do momento pombalino. Contudo, o enraizamento das duas vertentes na cultura portuguesa não parece dispor da mesma profundidade. O tradicionalismo conta com o respaldo dos séculos em que vigorou a hegemonia da Segunda Escolástica Portuguesa, enquanto os ancestrais do empirismo mitigado resumem-se aos estrangeirados. E a circunstância de que, por um momento, haja deslocado a Escolástica e assumido o seu lugar deve-se antes a Pombal que a outros suportes histórico-culturais mais consistentes (...). Quando o peso dessa tradição se faz presente de modo claro e insofismável, parece às vezes que nós brasileiros estamos agarrados ao manto de Pombal, enquanto os portugueses aferram-se ao tradicionalismo” (PAIM, 1983, p. 18). 126 impulso nº 29 p g y p as idéias de “atraso” e “decadência” da cultura de língua portuguesa em face de uma nova mentalidade, um “novo espírito científico”, cuja origem remonta ao século XVII e em razão do qual se deu a definitiva substituição do aristotelismo escolástico por uma nova ciência da natureza. Qual a novidade desse espírito até então “mais recente”? A novidade estava no método como se elevava a razão concreta e histórica do indivíduo em nível de universalidade da “lei ontológica” que rege a existência de todas as coisas. Aqueles que viam a pessoa do legislador humano maior que a lei consideravam a “lei ontológica” como a expressão de uma vontade criadora, única e livre, imutável e eterna, a “lei de Deus”. Mas os que enxergavam a pessoa do legislador humano também submetida à regularidade uniforme e impessoal da experiência concebiam a “lei ontológica” como expressão das “leis da natureza”. No século XVII, o conhecimento da natureza está dentro do alcance da inteligência humana. A partir de Descartes, o sujeito comum já não depende da ajuda de outro (a intermediação do sacerdote) para aceitar a jurisdição universal de leis que determinam a existência das coisas. Eis a novidade do método cartesiano, razão pela qual ele é considerado, com justiça, o fundador da filosofia moderna: pela própria razão o homem revela-se como uma inteligência, como sujeito de conhecimento, ao mesmo tempo em que conhece a si mesmo como objeto submetido a leis necessárias e universais, sem necessidade de outro que lhe sirva de espelho.3 Desse modo, a filosofia se liberta da tutela da teologia. Em outras palavras: em lugar da conversão religiosa, a autoconsciência do cogito cartesiano. Mas à mesma época em que Descartes estabelecia, com suas Meditações, o moderno princípio ontológico de que a própria existência tem o seu fundamento na consciência de si como pensamento (ou inteligência, isto é, a “visão interior” da essência das coisas), no Brasil se mantinha inalterável, sob o método pedagógico dos jesuítas, o Ratio Studiorum. É o antigo princípio teológico de que a própria exis- tência se funda na universalidade da conversão, entendida como a visão interior de si mesmo mediante o auxílio do pregador. Para que não haja dúvidas sobre o que quero dizer, eis como, em meados do século XVII, se representava na cultura de língua portuguesa o sentido de universalidade da conversão: Para uma alma se converter por meio de um Sermão há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem ver a si mesmo são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento.4 Ao final do século XVIII, não obstante o caráter revolucionário das reformas pombalinas na instrução pública, como que abrindo as portas da universidade à ciência “até então proibida em Portugal, por motivos religiosos” (como alegou o marquês), o problema da modernização como problema filosófico consistia em reconhecer a necessidade das “leis da natureza”, sem que para isso fosse preciso renunciar à “lei de Deus”. Longe de ser uma posição meramente “tradicionalista”, essa problematização na modernidade refletia uma visão de mundo originária, como bem observou Arnold J. Toynbee: A crença de que toda a vida do universo estava governada pela “lei de Deus” era uma herança do judaísmo compartilhada pelas sociedades cristã e muçulmana e que ficou expressa em duas obras de gênio notavelmente parecidas, embora totalmente inde- 3 Na cultura medieval, os religiosos exerciam essa função de “espelho do rei” (speculum regum), levando os governantes a refletirem moralmente sobre sua condição pessoal de estarem originariamente submetidos à universalidade da “lei de Deus”. impulso nº 29 4 Sermão da Sexagésima, III, in: VIEIRA, 2000. 127 p g y p pendentes: De civitate Dei, de Santo Agostinho, e os Prolegomena a uma História dos Bárbaros, de Ibn Jaldún. A versão agostiniana da concepção judaica da história foi considerada como coisa óbvia pelos pensadores cristãos ocidentais durante mais de mil anos e encontrou sua última expressão, cheia de autoridade, no Discours sur l’Histoire Universelle, de Bossuet, publicado em 1681.5 Tanto no Brasil como em Portugal, os primeiros autores oitocentistas que procuraram garantir a autonomia do pensamento filosófico assumiram o mesmo problema como a condição de entrada no compasso da História sem prejuízo da própria historicidade. A prova disso são os estudos filosóficos do brasileiro Domingos José Gonçalves de Magalhães, sobretudo com Fatos do Espírito Humano (1858) e A Alma e o Cérebro (1876), e do português Pedro de Amorim Viana, com a sua Defesa do Racionalismo ou Análise da fé (1866). Essa idéia de que não há incompatibilidade entre a “lei de Deus” e as “leis da natureza” reflete, por sua vez, uma visão da História que está na base da cultura ocidental: mista dos filósofos índicos e helênicos, que viam que “a penosa roda da existência” girava eternamente in vacuo. Na vida real não encontramos rodas que não tenham sido fabricadas nem fabricantes que as façam sem que alguém os tivesse encarregado de sua fabricação e que fossem instaladas em carros para que as revoluções repetidas das rodas pudessem levar os carros aos destinos a que queriam chegar os condutores. As “leis da natureza” teriam sentido quando concebidas como as rodas que Deus colocou em seu próprio carro.6 Nessa perspectiva de entendimento, não podemos dissociar a cultura da religião. Foi por intermédio do culto religioso que o homem aprendeu a preservar o sentido interno da consciência, o reino da intencionalidade, em que a vida se rege pela causalidade final e gira exclusivamente em torno da inteligência e da vontade. Em Magalhães, podemos ver claramente que ao mecanismo da natureza se sobrepõe o mundo da cultura como prova de necessidade do ser livre e criador, isto é, como prova da necessidade de Deus: A idéia de uma “lei de Deus” foi elaborada pelas almas dos profetas israelitas e iranianos em resposta às incitações da história babilônica e siríaca, enquanto que a exposição clássica do conceito de “leis da natureza” foi elaborada por observadores filosóficos da desintegração dos mundos índico e helênico. Mas as duas escolas de pensamento não são logicamente incompatíveis e bem se pode conceber que estes dois tipos de lei operem conjuntamente. A “lei de Deus” revela uma única e constante finalidade que requerem a inteligência e a vontade de uma personalidade. As “leis da natureza” mostram a regularidade de um movimento reiterado, como o de uma roda que gira em torno do seu eixo. Se pudéssemos imaginar uma roda que nascesse sem o ato criador de um ferreiro e que logo passasse a girar eternamente sem nenhuma finalidade, tais repetições pareceriam de fato vazias; e era esta a conclusão pessi- Refletindo o homem sobre si mesmo, viuse mutável, e sujeito a um crescimento e a modificações que malgrado seu se operam; e concentrando-se em sua consciência, não lhe foi possível duvidar que a forma exterior, sujeita às alternativas do tempo, ocultava uma substância permanente, e dela distinta; a esta substância referiu ele o seu Eu. A dualidade foi ainda mais manifesta pela luta das duas naturezas; e o conhecimento do que em si se passava confirmou-lhe a idéia do que fora de si descobrira. A sua força interna chamou ele alma, e a força do Universo denominou Deus. Desde logo entre a alma e Deus se estabeleceu uma relação toda especial. O homem assim erguido ao Ente Supremo, a ele sua existência devendo, dele dependendo para sua conservação e aperfeiçoamento, como poderia sufocar os transportes de sua admiração, e de seu reconhecimento, vendo-se colocado no mais sublime grau dos seres criados, e dotado de uma força es- 5 TOYNBEE, 1971, p. 186. É interessante observar que a referida obra de Bossuet teve boa repercussão em língua portuguesa, sendo editada pela Universidade de Coimbra no início do século XVIII. 128 6 Ibid., pp. 185-186. impulso nº 29 p g y p piritual que o alçava acima do mundo físico, e o comunicava até ao princípio de tudo? (...) Mas ficou porventura o homem no estado da natureza? (...) Não (...). As belezas da natureza, as necessidades humanas, e todas as circunstâncias da vida podiam desviar o homem dessa fonte luminosa, desse Ser invisível, que ele desejava perpetuar, e ter sempre presente à sua inteligência, como aos seus sentidos (...). Que faz o homem? Além do mundo conhecido cria um mundo para seu Deus, onde ele exista distinto de tudo; e neste mundo terrestre cria uma forma material que o represente, e o manifeste continuamente aos seus sentidos. Tendo assim fixado sua idéia, fazendo-a sensível, e, por assim me explicar, materializando-a; não podendo ela escapar nem à sua inteligência, nem a seus sentidos, o instinto vago que a Deus o elevara se converte em culto, adquire permanência, e nada haverá capaz de o destruir.7 O mundo da cultura assim concebido, como o conjunto das atividades humanas orientadas para a significação (os rituais do culto), religa por dentro, isto é, no âmbito da consciência, o que a natureza diversifica e separa externamente. Nesse sentido, a atitude filosófica moderna não excluiu a religiosidade do seio da cultura. Pelo contrário, sem o sentido dessa ligação espiritual corremos o risco de perder a verdadeira significação do cogito cartesiano, uma vez que a arte, a poesia, a ciência, ao proporem aos homens valores, verdades, ideais comuns, contribuem eficazmente para uni-los por dentro e expressam em si mesmos esta unidade interna; é uma espécie de meio espiritual através do qual os sujeitos se comunicam e em relação ao qual a personalidade de cada um se situa, uma vez que penetro a personalidade do outro quanto mais assimilo seu universo ideal.8 totélico do modo próprio de agir em conformidade com a razão),9 visto que acidentalmente ou por natureza a racionalidade já lhe é inerente. Assim, em Magalhães, a busca de verdades necessárias e universais (a investigação ou a pesquisa) excede o modo natural do ser e não se justifica senão em função do modo essencial do ser homem, cujo “amor da verdade” deve ser entendido exatamente nos termos em que Aristóteles explicara que aqueles que filosofaram para fugir da ignorância, é claro que buscavam o saber em vista do conhecimento, e não por alguma utilidade. Pois esta disciplina começou a buscar-se quando já existiam todas as coisas necessárias [sendo] evidente que não a buscamos por nenhuma outra utilidade, senão que, assim como chamamos homem livre àquele que é para si mesmo e não para outro, assim consideramos esta [sabedoria] como a única ciência livre, pois só esta é para si mesma.10 Nesse sentido, o pensador brasileiro afirmou que a filosofia “está hoje pouco mais avançada do ponto em que a deixaram Platão e Aristóteles”.11 Nesse sentido também, Magalhães, embora distinguindo a importância do trabalho qualificado na vida moderna, insiste que o homem, mais do que transformador da natureza, tornou-se o intérprete da natureza, talvez dando a entender, enquanto romântico, que assim como na mitologia grega a dignidade do trabalho de Hermes está na comunicação ideal que por meio dele se estabelece entre os deuses, a dignidade da atitude filosófica moderna está no uso indiferenciado que o homem faz da própria razão como uma abertura para o absoluto: Admiráveis são na verdade todos esses esforços da indústria, todas essas invenções das artes, todos esses triunfos da inteligência humana, aplicada sem repouso a vencer a resistência da inerte matéria. Mas não creio que nesse trabalho assíduo de Ciclopes se revele a dignidade do homem, nem que deva o rei da criação exaurir essa inteligência A moderna exigência de uma educação fundada no uso teórico da razão visa a orientar o homem para o modo essencial do seu ser (no sentido aris9 7 8 MAGALHÃES, 1865, pp. 274-275 (grifos acrescentados). FINANCE, 1962, § 169. impulso nº 29 Aristóteles, Ética a Nicômaco I, cap. 7, 1098a. Aristóteles, Metafísica I, cap. 2, 982b. MAGALHÃES, 1858, p. 15. 10 11 129 p g y p (...) no exclusivo estudo e afano de prover as suas necessidades físicas, como se ele fosse um mísero escravo do corpo, a vítima da natureza, e não o seu intérprete.12 Então o que procura o homem com tanto afã e constância? (...). A verdade, por amor da verdade! Eis o fim das suas investigações, o objeto do seu amor intelectual, e o ídolo do seu culto (...). Ele quer conhecer o mundo em que vive, as forças que o animam, e as leis gerais que o regem; quer descobrir a unidade do princípio que permanece no meio da infinita diversidade de fenômenos que passam (...); quer penetrar a essência das coisas, achar as causas, compreender o mecanismo do imenso universo, e vê-lo como um todo harmonioso, movendo-se perpetuamente por simples e poucas leis, dependentes de um só princípio imutável, dirigido por uma só força, uma só causa primeira, uma só substância infinita, na qual o bem, o belo, a verdade, a vida se identificam na absoluta necessidade do Ser Eterno!13 noscente e razão de ser da lei de causalidade universal, como algo que não tem causa nem se pode explicar por nenhuma coisa ou princípio a ela estranho, de modo a se estabelecer uma relação de equivalência entre inteligência e liberdade, como as duas faces de uma mesma moeda: O que limita o nosso poder é o corpo animal, essa imagem, esse complexo de fenômenos sensíveis, sujeito a leis necessárias, independentes da nossa vontade (...). Sem esse corpo, sem as relações sensíveis com outros espíritos, e com os objetos pensados por Deus, e postos ao nosso alcance, não poderíamos efetuar as intuições puras de justiça, de dever, de virtude e do belo no meio de todas as lutas da liberdade e da inteligência, de que a história, essa consciência do gênero humano, conserva a lembrança para nosso ensino. Só com esta triste condição poderíamos ser entes morais (...). Só tem liberdade neste mundo quem é inteligente; só tem inteligência quem é livre e obra por si mesmo; e quem tem inteligência e lberdade tem consciência de si mesmo, é de necessidade um ente moral.14 A MUDANÇA DE PRINCÍPIO Tendo em mente o texto de Vieira referido acima e a “Meditação Segunda” de Descartes, não é excessivo dizer que Fatos do Espírito Humano caracteriza uma atitude filosófica propriamente brasileira. Isso porque o modo como Magalhães introduziu o princípio de autoconsciência na cultura brasileira corresponde à mesma superação cartesiana do mecanismo da natureza e do dogmatismo como uma experiência atual. Assim, foi necessário que a introdução do princípio de autoconsciência se impusesse em relação ao passado, e no interior da tradição filosófica portuguesa, como um aperfeiçoamento de método na formação espiritual. O aperfeiçoamento de método diz respeito ao modo como, em face do cogito cartesiano, tornou-se inteiramente dispensável o concurso do pregador como fator externo (o “espelho”) para “entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo”. O método psicológico cartesiano revela a necessidade da inteligência como essência do sujeito cog12 13 Ibid., pp. 2-3. Ibid., pp. 6-7. 130 Cumpre observar que em sua adesão ao cogito, proclamando a “necessidade transcendental do espírito humano”15 mediante a supressão de toda a dependência da alma em relação ao corpo e aos sentidos, Magalhães não deixa de revelar o sentido de historicidade da consciência, assumindo atitude filosófica sem incompatibilizar-se com Aristóteles, em nome do qual se estabelecera, no passado, o ensino de filosofia no Brasil sob o Ratio Studiorum.16 Portanto, sua afirmação de que “recolhendo-se no santuário da sua consciência [a alma] poderá penetrar nesse mundo espiritual da metafísica”17 não repugna a Metafísica do estagirita. Pelo contrário, é evidente, nesse aspecto, a simetria do pensamento de Magalhães com o de Aristóteles, segundo o qual Ibid., pp. 367-368 (grifos acrescentados). Ibid., pp. 367-368. 16 Nas Regras do Professor de Filosofia recomenda-se o seguinte: “Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé” (FRANCA, 1952, p. 160). 17 MAGALHÃES, 1858, p. 291. 14 15 impulso nº 29 p g y p a metafísica, como contemplação desinteressada da verdade,18 supõe o modo livre do ser “aquele que é para si mesmo e não para outro”,19 no mesmo sentido em que Descartes vê na dúvida metódica, que suspende e anula todas as certezas recebidas de outro, um exercício da liberdade. Seria essa anulação de todas as determinações particulares a essência do espírito em Magalhães? Seria o “mundo espiritual da metafísica” pura negatividade e vácuo? De modo algum. Em Magalhães (assim como no fundador da filosofia moderna), o procedimento abstrativo é apenas condição de considerar em separado os elementos necessários que concorrem na percepção externa. Isso quer dizer que a essência do espírito pensante ou sujeito cognoscente não é o nada vazio, mas a inteligência como uma abertura para todas as coisas, permitindonos ver em separado não só a essência das coisas, como também as “leis da natureza” e a “lei de Deus”. Se suprimirmos com o pensamento todas as coisas que no espaço e no tempo se sucedem, não poderemos por nenhuma abstração suprimir o espaço, o tempo, o ser e a causa; e se concebêssemos que todas essas coisas necessárias e absolutas se reduzissem ao nada, seríamos do mesmo modo obrigados pela razão a dar atributos a esse nada, e convertê-lo em ser, dizendo que esse nada era eterno, infinito, substância e causa de todas as causas. Mudaríamos o nome às coisas reais, absolutas, chamar-lhe-íamos nada, e elas, sem desaparecer um só instante do nosso entendimento, nos obrigariam a reconhecê-las, e afirmá-las. Suponhamos mesmo que deixamos de existir, que tudo se aniquila, absolutamente tudo, e ainda assim nos parece que a razão eterna fica concebendo todas as coisas. O pensamento do nada é absurdo (...) o que é de razão absoluta permanece, e com ela o espírito que a contempla, e não há abstração que o destrua (...) a realidade das coisas de percepção e de razão 18 Magalhães diz: “O espírito humano (...) na contemplação desse mundo ideal da razão pura (...) acha ele um encanto inefável, a que nada se pode comparar, que nada pode substituir; porque esse é o seu mais belo emprego, nisso está o complemento da lei que o rege” (ibid., p. 291). 19 Cf. citação da nota 10. impulso nº 29 é que obriga o espírito a concebê-las como pode, e não as leis do entendimento que obrigam o espírito a pensar nelas.20 Se supusermos leis necessárias a que sujeito esteja o entendimento humano, seremos obrigados a supor também um ser necessário que lhe imponha essas leis.21 Desse modo, Magalhães não exclui as fontes de espiritualidade do aristotelismo português vigente no passado. Tanto em Santo Tomás como em Aristóteles, o espírito, para chegar a ser tudo, deve antes não ser nada, chegando o primeiro a afirmar que o espírito é na ordem intencional o que não é na ordem real, de sorte que o mundo constituído pelo pensamento é até mais rico do que o mundo real.22 Posteriormente a Magalhães, o cearense Farias Brito, mesmo sem fazer qualquer referência à obra filosófica de seu antecessor no processo de modernização da cultura brasileira,23 avançará, depois de uma distinção entre a inteligência divina e a inteligência humana, para uma “fenomenologia” da consciência de certo modo baseada na mesma compreensão da “lei ontológica”, apresentada pelo autor de Fatos do Espírito Humano: Em nós a inteligência está, por necessidade natural, ligada a um organismo, do qual depende e do qual dificilmente poderá fazer inteira abstração. Por isto tem dois aspectos: um aspecto individual, e neste sentido chama-se vontade, e um aspecto geral e universal, e neste sentido chama-se pensamento. Como vontade a inteligência tem por destino próprio promover o bem do indivíduo e é por isto que a vontade se manifesta precisamente como consciência ou indicação das nossas necessidades. Como pensamento a inteligência tem por fim colocar-nos em relação com a totalidade das coisas, dandonos o sentido de nossa existência, e encami20 MAGALHÃES, 1858, pp. 284-285. Ibid., pp. 284-285. 22 Cf. Santo Tomás, Summa theologica, I, q. LXXV, a. II, e Aristóteles, De anima III, cap. 4, 429a-429b. 23 É pouco provável que Farias Brito desconhecesse a obra de Magalhães depois da crítica demolidora de Tobias Barreto a Fatos do Espírito Humano e da imagem negativa de seu autor em Sílvio Romero, tanto em A Filosofia no Brasil (1878) como na História da Literatura Brasileira (1888). Entretanto, é possível que não a referisse pela mesma razão. 21 131 p g y p nhando-nos (...) para a identificação de nossa consciência com a consciência universal. A vontade, por um lado, isola e separa o indivíduo do todo (...). O pensamento não: participa da luz, é luz interior, e como tal liga-se não a qualquer forma individual, não ao que passa e desaparece, mas ao que é universal e eterno.24 são do mundo da vida em que os homens estão ligados exclusivamente por força dessa necessidade, e não de sua inteligência ou de sua vontade. Tratavase, enfim, de reconhecer que essas duas formas da vida não se excluem. Tudo reconhecido, como três premissas de um mesmo argumento, Magalhães conclui que é natural a coexistência de homens vivendo em liberdade e outros vivendo na escravidão: A DOUTRINA DA CONCILIAÇÃO Entre as questões filosóficas suscitadas por Magalhães no âmbito da modernização, a de maiores implicações com a idéia de filosofia brasileira, a estabelecer uma linha de pensamento que leva a Tobias Barreto e, daí, a Farias Brito e a Miguel Reale, certamente é aquela relacionada com a existência da escravidão na sociedade brasileira desde a sua formação. Ela aparece no capítulo XV de Fatos do Espírito Humano e poderia ser apresentada sob a seguinte formulação: uma vez fundada a existência do indivíduo na consciência de si como inteligência e liberdade, como justificar no seio da sociedade brasileira recém-emancipada a existência de homens vivendo em regime de escravidão? Em outras palavras: a existência de uma sociedade fundada no homem livre, como aquele “que é para si mesmo e não para outro”, excluiria a existência de outros homens que, privados da consciência de si, e por isso mesmo sem inteligência nem liberdade, são obrigados à necessidade da lei por determinações estranhas à própria vontade? Para Magalhães, os fatos da vida comprovam que não. Tratava-se, portanto, de reconhecer em primeiro lugar que existe uma sociedade de homens capazes de agir em conformidade à própria liberdade, tanto quanto existe a dimensão do mundo vivido em virtude da consciência do saber e do dever, enfim, a dimensão moral da ação humana. Em seguida, tratava-se de reconhecer, em razão da necessidade a priori de leis absolutas (as “leis da natureza” ou a “lei de Deus”) que regem a mecânica do universo e o próprio mecanismo dos deveres morais “a cumprir neste mundo, para complemento dos altos desígnios do seu criador”,25 que existe uma dimen24 25 BRITO, 1914, § 88. MAGALHÃES, 1858, p. 392. 132 Demos que desaparecessem todas as virtudes, e todas as ciências, desaparecendo todas as suas ocasiões, todos os vícios, e todos os males humanos; essa sociedade de máquinas vivas, pouco mais ou menos como a das abelhas, impossível seria com a inteligência e a liberdade; porque bastariam estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito; e cada qual pensando, e querendo operar a seu grado, não haveria acordo, não haveria sociedade, seria a guerra o estado permanente, e viveriam os homens em um estado muito pior do que o atual. Supondo porém uma sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa, uma tal sociedade é possível, e talvez exista em qualquer outro sistema planetário; mas sendo também possível uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra, nem é por ela excluída, esta sociedade existe de fato no nosso planeta, e dela somos membros, livres graças a Deus, a fim de que sejamos justos por nós mesmos, virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana.26 Poderíamos, assim, distinguir numa ordem essencial dois modos do ser: 1. o modo do ser pela necessidade, em que a coexistência não depende da própria inteligência, nem da própria vontade; 2. o modo do ser pela liberdade, em que a coexistência é uma construção da inteligência com a finalidade última de garantir o livre-arbítrio. Nesse sentido, o segundo modo excede o primeiro, de tal forma que 26 Ibid., p. 370. impulso nº 29 p g y p pode haver o primeiro modo sem o segundo,27 mas não o segundo sem o primeiro: Quem nega a liberdade cai em uma contradição manifesta; porque, negando-a, prova que sabe o que é liberdade; que quis, e deixou de querer alguma coisa em oposição à outra; que fez esforços para resistir; que pensou sobre os meios de subtrair-se à necessidade; que foi livre na sua resolução, na sua intenção, no seu querer, e que só deixou de executar o que livremente quis, porque a execução depende de coisas estranhas à sua livre vontade. Se esse poder de efetuar fosse tanto como o de querer, imagine-se que ordem haveria neste mundo! (...) A liberdade de muitos só era possível com algum elemento fatal, que os reunisse, e os harmonizasse; e a coexistência da liberdade e da necessidade prova que tudo foi previsto e ordenado com maior sabedoria que a ordem de todo esse imenso universo. E como de fato existe esta harmonia da liberdade e da necessidade, nenhuma dificuldade temos de admitir o livre-arbítrio, e a presciência divina (...). Eu creio que, reconhecendo-se bem no que consiste o livre-arbítrio, distinguindo-o do elemento fatal e previsto que lhe resiste, e da oposição mesma de todas as vontades livres que se combatem, coordenam e harmonizam perante a razão absoluta e a necessidade das coisas que não dependem da nossa vontade, possa tudo estar previsto, sem que deixem os homens de ser livres.28 fe, e o que é capaz de fazer coisas com seu corpo é naturalmente súdito e escravo”.29 Quanto à conciliação de necessidade e liberdade, vemos claramente a ressonância do “agostinismo político”, em que Agostinho se questiona se está sujeita a alguma necessidade a vontade humana: Se por necessidade nossa entendermos o que não se encontra em nosso poder, mas, embora não queiramos, exercita seu poder, como, por exemplo, a necessidade da morte, é evidente que nossa vontade, com que vivemos bem ou mal, não se encontra sob o domínio de tal necessidade. Porque fazemos muitas coisas que, se não quiséssemos, não faríamos. A esse gênero pertence, em primeira plana, o próprio querer, pois, se queremos, existe, e, se não queremos, não existe, visto como não quereríamos se não quiséssemos. E, se se define a necessidade, como quando dizemos ser forçoso que algo seja assim, se faça assim, não sei por que tememos que nos tire o arbítrio da vontade. Nem pomos, tampouco, sob o domínio dessa necessidade a vida de Deus e sua presciência, se dizemos ser necessário que Deus viva sempre e saiba de antemão todas as coisas, assim como não lhe diminuímos o poder, se dizemos que não pode morrer nem enganar-se. De tal maneira não pode, que, se pudesse, seria, sem dúvida, menor seu poder. Com razão se diz onipotente quem não pode morrer, nem enganar-se. Chama-se onipotente porque faz o que quer, não porque padece o que não quer; se isso acontecesse, não seria onipotente. Donde se segue não poder algumas coisas, justamente por ser onipotente. Assim também, quando dizemos: é necessário que, se queremos, queiramos com livre-arbítrio, indubitavelmente dizemos verdade e não sujeitamos, por isso, o livre-arbítrio à necessidade, que suprime a liberdade.30 Quais as fontes dessa compreensão? Quanto aos modos do ser, tudo indica que a fonte é a tradição filosófica do aristotelismo português. Aristóteles distingue como forma da vida entre os homens, segundo a necessidade, aquela “união do que naturalmente é governante e do que naturalmente é súdito, pois o que é capaz de prever as coisas com sua mente naturalmente é governador e senhor ou che27 Julgo que por essa razão, e fortemente apoiado nos argumentos do seu contemporâneo FLOURENS (De la vie et de l’intelligence, secção II, cap. VIII, pp. 45-49) e de PLOTINO (Enéades I, L. I, § 7), Magalhães cometeu na filosofia um erro médico: extraiu cirurgicamente a sensibilidade da consciência, tentando assim dar um golpe fatal no sensualismo, no que atraiu para si o mau humor de Tobias Barreto e de toda a historiografia filosófica brasileira. 28 MAGALHÃES, 1858, p. 371. impulso nº 29 A importância da doutrina da conciliação em Magalhães para a história da filosofia brasileira não está apenas no fato de ela justificar a forma da vida 29 30 Aristóteles, Política I, cap. 2, 1252b. Santo Agostinho, A Cidade de Deus, V, X. 133 p g y p brasileira sob a monarquia, mas, sobretudo, por ser imediatamente superada pela teoria da cultura de Tobias Barreto, por sua vez, o ponto de partida do culturalismo de Miguel Reale. Não temos dúvida de que, se Magalhães não tivesse concebido como natural a sociedade escravista brasileira, Tobias Barreto não teria afirmado, com tanta ênfase, ainda no âmbito da modernização, que a “cultura é (...) a antítese da natureza”,31 especialmente se considerarmos que ele argumenta da seguinte forma: “se alguém hoje ainda ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos para escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim, é natural a existência da escravidão (...) porém é cultural que a escravidão não exista”.32 Se considerarmos o modo como Farias Brito, em O Mundo Interior, aprofunda o estudo da filosofia moderna em torno à concepção da consciência como um absoluto, mais evidente se torna a importância de Magalhães para o estudo da filosofia brasileira. Eis a concepção de liberdade em Farias Brito: “para alcançar o verdadeiro sentido da liberdade é preciso considerar o eu profundo, o eu na sua significação interna, o eu independentemente de qualquer influência proveniente do conhecimento das coisas exteriores”.33 CONCLUSÃO O reconhecimento de Magalhães como responsável pela mudança de princípio da cultura brasileira por si só lhe justifica o crédito, concedido por Tobias Barreto, de ter sido o primeiro, com Fatos do Espírito Humano, a querer, “em nome da civilização e do progresso, naturalizar entre nós a filosofia”.34 Acresce que, além da mudança de princípio, sua doutrina da conciliação abre caminho para a idéia de filosofia brasileira. Pois foi com base em sua visão do problema da escravidão como problema filosó31 Sobre uma nova intuição do direito, cf. BARRETO, 1990, p. 247. Glosas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações anti-sociológicas. Ibid., p. 304. 33 BRITO, 1914, § 45. 34 “Todos sabem que esta obra [Fatos do Espírito Humano], escrita por um homem afeito ao movimento da política e das letras européias, constitui, ela só – tal é o nosso atraso – toda a biblioteca filosófica do Brasil. Foi uma tentativa louvável do seu autor [D. J. Gonçalves de Magalhães] querer assim, em nome da civilização e do progresso, naturalizar entre nós a filosofia, conceder-lhe direito de cidade; porquanto não havia, como não há ainda a par dele, obra digna de atenção” (BARRETO, 1990, p. 83). 32 134 fico, e não apenas como um problema jurídico, econômico ou político, que Tobias Barreto avançou para uma concepção ontológica da cultura como antítese da natureza, já então no âmbito do neokantismo alemão e da própria filosofia de Kant, como posteriormente ressaltou Miguel Reale. Além de Tobias Barreto, Farias Brito poderia também ser introduzido partindo-se de Magalhães, particularmente no que diz respeito à concepção da consciência como um absoluto e à importância do método psicológico para a filosofia. Esta maneira de ver os estudos filosóficos de Magalhães, especialmente Fatos do Espírito Humano, como uma abertura para trabalhos de maior envergadura e originalidade nos oferece a possibilidade de uma verdadeira história da filosofia brasileira que, nesse sentido, ainda está por escrever. Refiro-me, evidentemente, à possibilidade de uma história da filosofia brasileira sem preconceitos contra o passado ou contra o aristotelismo português inerente à nossa formação cultural, apenas com base no princípio de historicidade do saber, conforme a referida compreensão heideggeriana desse princípio.35 A revisão do significado da obra filosófica de Magalhães, particularmente em face do seu proclamado “tradicionalismo”, passa a ser um ponto essencial se quisermos dar qualidade filosófica à historiografia filosófica brasileira, superando em definitivo aquela perplexidade introduzida por Sílvio Romero, quando confessa que no Brasil “o espírito público não está ainda criado e muito menos o espírito científico. A leitura de um escritor estrangeiro, a predileção por um livro de fora vem decidir da natureza das opiniões de um autor entre nós. As idéias dos filósofos, que vou estudando, não descendem umas das outras pela força lógica dos acontecimentos”.36 Quero crer que depois que Miguel Reale redimensionou a doutrina da cultura de Tobias Barreto, inaugurando o culturalismo brasileiro, no seio do qual renovaram-se os estudos historiográficos, com a História das Idéias Filosóficas no Brasil, de Antonio Paim, tornou-se evidente a necessidade de 35 36 HEIDEGGER, 1999, § 6. ROMERO, 1969, p. 32. impulso nº 29 p g y p considerar o processo de modernização cultural, iniciado pelas reformas pombalinas da instrução pública, como o ponto de partida da filosofia brasileira. Ora, mais do que qualquer outro que o tenha antecedido, incluindo-se o Frei Francisco do Mont’Alverne e o português Silvestre Pinheiro Ferreira, que em seu curso das Preleções Filosóficas, no Rio de Janeiro (1813-1816), refletiu a influência do moderno sensualismo, Gonçalves de Magalhães não foi só o primeiro a pensar a modernização da cultura brasileira como problema filosófico, mas, sobretudo, o primeiro a propor uma resposta ao problema. Nessa perspectiva de entendimento, a reflexão filosófica de Magalhães em Fatos do Espírito Humano tem efetivamente um caráter fundador. Referências Bibliográficas AZEVEDO, F. A Cultura Brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1943. BARRETO,T. Estudos de Filosofia. Obras Completas. Rio de Janeiro: INL/Record, 1990. BRITO, F. O Mundo Interior. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1914. CAEIRO, F.G. 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