Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
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FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA
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Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina –
ITESC, n. 55, Florianópolis, 2010.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
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ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC
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Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC
CoNSELHO CONSULTIVO:
Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS
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Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica
CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs .....................................................
“Economia e Vida”
Luiz Alberto Barbosa ............................................................................................... Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
Antônio Lopes Ribeiro .............................................................................................
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
Roque Favarin .........................................................................................................
Desequilíbrios no sistema econômico: A parábola do administrador
(Lc 16,1-13)
L. Stadelmann, SJ .................................................................................................... Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho
de Mateus
Anderson de Oliveira Lima . .................................................................................... A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios
Ervino Schmidt . .......................................................................................................
Neopentecostalismo e marketing religioso: uma análise das técnicas de
merchandising em instituições religiosas brasileiras
Anderson Jankus de Souza . ..................................................................................... O ensino religioso na pós-modernidade
Antônio Lopes Ribeiro .............................................................................................
Simpósio sobre ecumenismo – Jundiaí, janeiro de 2010: Ecumenismo na
pastoral: Exigências da realidade sócio eclesial
7
11
17
25
41
67
79
93
103
123
Terezinha M. Cruz.....................................................................................................
141
Oração da CFE.............................................................................................. 153
Recensões...................................................................................................... 155
(Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)
Editorial
Vivemos em tempos de “economia globalizada”. Nem sempre conseguimos compreender o significado dessa expressão, o que exige um
apurado discernimento dos seus elementos constitutivos nos âmbitos
social, político e cultural. O fato é que o sistema econômico atual apresenta padrões universais que afetam a vida das pessoas, individual e
socialmente. Esses padrões criam comportamentos, também universais,
nos indivíduos e na sociedade, apresentando o econômico como fator
determinante da vida em todo o planeta.
Não há consenso sobre qual seria o sistema econômico ideal
para as sociedades do nosso tempo. Seja como for, para além dos
conceitos, a economia, globalizada nos critérios do neoliberalismo,
é um fato que caracteriza a atual fase planetária do capitalismo.
Promove a autonomia do indivíduo-sujeito, a especialização dos
diferentes domínios da atividade social, a emancipação da ordem
temporal. Enfatiza a ênfase no progresso a qualquer custo, sobretudo
pelo desenvolvimento científico-tecnológico, a produção acelerada,
a comunicação rápida.
Daqui as mudanças de alcance global, com diferenças e matizes
em cada região do planeta. Tais mudanças “têm consequências em todos
os campos de atividade da vida social, impactando a cultura, a economia, a política, as ciências, a educação, o esporte, as artes e também,
naturalmente, a religião” (DAp 35).
A economia atual é contraditória: amplia benefícios de alguns
poucos, às custas do aprofundamento das desigualdades entre as sociedades e no interior de uma mesma sociedade. Em suas características
globais, a eficácia da técnica e do mercado criam uma nova visão da
realidade, homogeneizando visões de mundo e comportamentos, com a
super-valorização da subjetividade individual, o enfraquecimento dos
vínculos comunitários, a avidez do mercado, a implantação de culturas
artificiais (DAp 45). O econômico se sobrepõe e condiciona as outras
dimensões da vida humana. O mercado tudo absolutiza. Os grandes moEncontros Teológicos nº 55
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Editorial
nopólios internacionais privilegiam o lucro e estimulam a concorrência,
tendo como conseqüência a concentração de recursos físicos e monetários, da informação e da técnica. Nesse sistema, “os excluídos não são
somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” (DAp 65).
Paradoxalmente, sistemas econômicos são construídos também no âmbito da religiosidade que tem como modelo o advento do
Reino. Nesse âmbito a economia encontra condições para criar a
sua utopia, sua oferta de sentido para o homo oeconomicus. E tem
a contrapartida. Quase como que em busca de sobrevivência, muitas
tradições religiosas passaram a adotar a lógica da atual economia
globalizada. Como os monopólios monetários quebram as fronteiras
dos mercados nacionais, também para a religião não há fronteiras.
Elas passaram a utilizar estratégias de marketing para se expandirem e sobreviverem na concorrência do mercado religioso. As idéias
religiosas transformaram-se em produtos mercadológicos. Essas
idéias migram e criam novas identidades, reconfigurando o mapa
do sagrado e do religioso em âmbito mundial.
Economia globalizada, cultura globalizada, religião globalizada.
Tudo parece ligado como fios de uma rede. A questão é: como fica a
vida do ser humano e do planeta nesse contexto? O que as igrejas, as
religiões, a fé, têm a ver com isso?
Isso tem tudo a ver com fé, com igreja, com religião, porque
tem a ver com a vida dos filhos e filhas de Deus. Por isso é também
necessária uma apurada análise, da relação entre economia e religião, economia e igreja, economia e fé, economia e vida, detectando
os elementos de encontros e desencontros, de sintonia e de oposição
entre uma realidade e outra.
Situa-se aqui a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010.
Ela quer mostrar que ter fé, ser membro de uma Igreja, ter uma
religião, exige um posicionamento crítico frente ao atual sistema
econômico. A CF 2010 é ecumênica: convoca as Igrejas para um
compromisso: apontar caminhos para a superação dos problemas
causados pelo atual sistema econômico, superando suas contradições
pela promoção da justiça, da repartição igualitária dos bens, da
equidade nas condições de sobrevivência das pessoas. Conclama os
cristãos de todas as Igrejas a afirmarem a função social da fé, como
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Editorial
criadora de sentido para a vida das pessoas, para além do sentido
oferecido pelo sistema econômico. Todos precisam afirmar uma justa
relação entre vida e economia. Os paradigmas econômicos não podem prescindir dos valores que sustentam a vida em sua totalidade.
Assim cada cristão, cada crente que assumir a CFE 2010, sente-se
chamado/a para promover uma economia diferente, marcada pela
solidariedade, pela justiça e pelo respeito aos direitos humanos. A
justa relação entre economia e vida propicia o serviço da caridade,
a promoção da dignidade da pessoa, a solidariedade, o acesso à
educação, ao trabalho, à terra, à habitação, enfim a todos os meios
para a manutenção da vida.
Tal é o que se propõe a Campanha da Fraternidade Ecumênica
2010, ao relacionar Economia e Vida. O objetivo é nobre: “Colaborar
na promoção de uma economia a serviço da vida, fundamentada no ideal
da cultura da paz, a partir do esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de
pessoas de boa vontade, para que todos contribuam na construção do
bem comum em vista de uma sociedade sem exclusão”.
Em alguns ambientes, o ecumenismo está fortalecendo a ação
conjunta das Igrejas em prol de uma sociedade melhor. Onde cresce o
ecumenismo, há fortalecimento das organizações de resistência ao atual
sistema econômico, propondo modos alternativos para a vida social e
individual, como o Fórum Social Mundial e as propostas de economia
solidária, entre outros.
Será difícil uma ação que erradique os elementos negativos
da economia globalizada como um todo. O seu núcleo é fortemente
anti-humano. Mas a CFE, assumida com garra, permite às Igrejas
influenciarem indivíduos, instituições, grupos, alimentando a utopia
do Reino entre nós: uma outra sociedade, uma comunidade fraterna,
sem fome, miséria, desigualdades e injustiças sociais. Para isso, as
Igrejas precisam assumir juntas, ecumenicamente, o esforço por
humanizar o sistema econômico, promovendo a dignidade humana,
os direitos humanos, a espiritualidade do diálogo, a solidariedade.
As Igrejas podem, juntas, projetar um horizonte de um mundo mais
justo e solidário, de inclusão social. Para tanto é preciso afirmar
ser o humano a razão do serviço que as Igrejas oferecem ao mundo
e a Deus. Se o divino é fim da religião, o humano é o seu meio. A
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Editorial
experiência do Sagrado sacraliza o mundo. E o humano desprezado,
marginalizado, excluído, negado em seus direitos e em sua dignidade, é a expressão maior da contradição de qualquer sistema, seja
religioso, seja social, econômico, político e cultural.
A revista Encontros Teológicos, fiel à opção feita desde seus inícios, de dedicar o primeiro número do ano ao tema da Campanha da
Fraternidade, quer, na presente edição, contribuir para a reflexão sobre
Economia e Vida, afirmando que quem crê em Deus “não pode servir a
dois senhores, a Deus e ao dinheiro”. Esse é o intento dos artigos que
a seguir apresentamos.
O Editor
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Resumo: O artigo, esquemático, apresenta a CFE 2010 em suas linhas essenciais. Depois de expressar os Objetivos, tanto o geral como os específicos,
explica o motivo por que foi escolhido o tema da Economia, relacionada com
a Vida. A seguir, tendo brevemente situado o tema no contexto planetário, desenvolve sua “forte motivação bíblica”. Finalmente, depois de mostrar como o
Senhor Jesus redimensiona a pessoa humana diante do capital, conclui com
um “texto inspirador”: o encontro de Jesus com Zaqueu.
Abstract: This article is a short version of the theme of the CFE-2010 examining
its essential features and its objectives in general and some more detailed, and
explaining the purpose for selecting the economic field in its relationship with
life on earth. After considering this theme in a wider perspective the pulp of the
article deals with the biblical realm. Finally, after focusing on Christ’s emphasis
on the challenges of human beings as regards capital gains and its multiple
uses concludes with an inspiring text about the friendly meeting between Christ
and Zacchaeus.
Campanha da Fraternidade 2010
Ecumênica
CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 11-16.
Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica
1 Objetivos
1.1 Objetivo geral:
Unir Igrejas Cristãs e pessoas de boa vontade na promoção de uma
economia a serviço da vida, sem exclusões, construindo uma cultura de
solidariedade e paz.
1.2 Objetivos específicos:
– denunciar a perversidade de um modelo econômico que visa em
primeiro lugar o lucro, aumenta a desigualdade e gera miséria,
fome, morte;
– educar para a prática de uma economia de solidariedade, de
cuidado com a criação e valorização da vida como bem mais
precioso;
– conclamar as Igrejas, as religiões e toda a sociedade para a implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça
para todos.
Esses objetivos devem ser trabalhados em quatro níveis: – social
– eclesial – comunitário – pessoal.
2 Por que escolhemos esse tema?
Um olhar, mesmo rápido, sobre o mundo em que vivemos, nos
mostra sinais preocupantes, em relação ao sistema econômico e cultural
em que estamos metidos. Alguns são fatos bem comuns do cotidiano. À
nossa volta estão coisas assim: Diz o anúncio de automóvel: É carro
silencioso, mas fala muito sobre você. – Bill Gates anuncia que o objetivo de seu negócio é “tornar nossos produtos obsoletos, antes que os
concorrentes o façam”. – Tantas vezes se diz: Não vale a pena consertar... é melhor jogar fora. – O anúncio de cartão de crédito promete: “As
melhores coisas da vida passam por aqui.” O jornal narra o dia de uma
coletora de lixo. Ela não tem o mínimo necessário, mas o filho quis e ela
arranjou para ele um videogame e um celular.
Mas vemos à nossa volta também outra vida e outro mundo Gente
sofre nas filas dos hospitais... e o dinheiro que deveria ir para a saúde
tem outros destinos. Crianças estão na escola, mas não aprendem a ler...
Idoso aposentado sustenta a família desempregada.
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
Pense no que está por trás de tudo isso, condicionando os desejos
da população e/ou criando situações desumanas. As necessidades básicas
são atendidas? Como o desejo do supérfluo acaba se tornando mais dominante? Há pessoas enriquecendo a cada dia e pessoas pedindo esmola.
Há corrupção e aplicação de dinheiro público para favorecer os que já
têm demais e falta de recursos para saúde, educação, alimentação. Há
pessoas egoístas e há pessoas generosas e solidárias.
Que sistema é esse? Que política é essa? Enquanto isso, continuamos vendo gente vivendo na rua, migrantes que deixam sua terra com
tristeza, enganados por falsas promessas ou expulsos pelo avanço de uma
indústria que consegue tudo o que quer, serviços públicos funcionando
mal enquanto o dinheiro dos impostos acaba servindo para proteger os
mais poderosos. Multidões não têm o necessário. Mas uma minoria não
consegue nem usufruir o que tem, por excesso de riqueza. E, no meio,
gente de todas as classes está sendo pressionada a se avaliar pelos padrões
do consumo e não por seu valor pessoal.
Criticando com ironia esse sistema que faz das pessoas meras
vitrines do que o mercado exibe, que faz cada um se autoafirmar pelos
objetos que usa, Carlos Drummond de Andrade escreveu o poema “Eu,
etiqueta”, que termina assim:
Por me ostentar assim, tão orgulhoso de não ser eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem.
Meu nome é coisa.Eu sou a coisa, coisamente.
O poeta não queria gente se comportando como coisa, escrava do
mercado. Deus também não quer. O ser humano tem um valor que precisa
estar acima de tudo que é “coisa”, lucro, pressão de mercado.
3 O planeta, uma grande vítima da idolatria
do mercado
Deus criou a vida. O planeta tem o necessário para sustentá-la e
para nos maravilhar com a variedade, a sabedoria e a beleza da Criação.
As montanhas, rios, florestas bonitas que Deus nos deu, não podem ser
sepultadas sob as conseqüências das sobras dos sistemas de produção
que servem ao lucro. Nossa casa planetária precisa ser bem cuidada, é a
única que temos e pertence a todos.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
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Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica
4 Uma forte motivação bíblica
A Bíblia é um livro sagrado muito ligado ao que acontece aqui
neste mundo. Nela fica claro que a maneira fundamental de agradar a
Deus é cuidar bem daquilo que ele criou com sabedoria e amor. É isso
que Deus quer: gente feliz, em segurança e fraternidade, numa terra bem
cuidada que pertence a todos. É por isso que a missão que o ser humano
recebe ao ser criado é “cultivar e guardar” o jardim do Éden (Gn 2,15),
símbolo da vida em harmonia, paz e justiça. Não é difícil imaginar como
é impossível haver “paraíso” para todos, numa sociedade de tão profundas
e injustas desigualdades econômicas. É por isso também que, na descrição
do final feliz da Humanidade, o Apocalipse nos mostra uma cidade em
que as portas não precisam ser fechadas (Ap 21,25) e onde a “árvore da
vida” dá fruto todos os meses (Ap 22,2). É a segurança que vem de uma
vida sem medo, sem injustiças, com fraternidade e partilha.
Um grande fato, centro da memória do registro do Antigo Testamento, é a libertação da escravidão do Egito. Deus não quer seu povo
– como não quer nenhum povo – explorado nos seus direitos e no seu
trabalho. Mas não basta libertar, é preciso educar para a liberdade, a
partilha, a igualdade. Os judeus até hoje dizem: “Foi preciso um dia
para o povo sair do Egito, e quarenta anos para o Egito sair do povo.”
Ou seja: o povo precisou um tempo maior para aprender como deveria
viver, para não repetir o esquema de injustiça do qual havia sido libertado. As leis de Deus são parte importante dessa “educação” para a vida
livre, fraterna e solidária.
Nisso podemos destacar alguns exemplos:
– Até hoje os judeus se destacam pela estrita observância do sábado.
É dia de honrar a Deus de modo especial. Mas, que interessante! Deus se
sente honrado se nesse dia ninguém pensar em lucro (não se trabalha), se
o escravo e o trabalhador tiverem direito ao descanso, se até os animais
puderem repousar. Esse ritmo de vida ligado ao número sete tem outros
desdobramentos. No sétimo ano, o escravo é libertado e não pode ser
jogado na sociedade sem recursos, para virar escravo de novo: deve ser
dispensado com uma indenização, meio de recomeçar a viver com liberdade
(Dt 15,12-15). De sete em sete anos se proclama o perdão das dívidas (Dt
15,1-2). A terra também descansa no ano sabático (Ex 23,10-11). Depois
de 7x7 anos, vem o ano do jubileu, em que cada um retoma a propriedade
que havia vendido em momento de aperto (Lv 25,8-13).
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
– Na caminhada pelo deserto, a distribuição do maná é um símbolo
importante da partilha que Deus deseja para seu povo (Ex 16,4-21). O
maná, como toda a obra de Deus na natureza, é dado de graça para todos.
Cada um tem o direito de recolher o que precisa, mas se pegar demais, o
excesso apodrece. É um retrato simbólico da podridão que acompanha,
ainda hoje, o acúmulo indevido de bens, que lesa o direito dos outros.
– Os profetas clamam por justiça econômica: o órfão, o estrangeiro
e a viúva (símbolo dos mais carentes) não podem ficar desamparados sem
que isso configure uma ofensa a Deus. Eles cobram, dos governantes,
a honestidade e o compromisso com os direitos dos mais fracos. Isaías,
por exemplo, denuncia:
Ai daqueles que promulgam leis injustas, que redigem medidas maliciosas, para tapear o fraco na justiça, roubar o direito de meu povo explorado, para fazer viúvas suas vítimas e roubar dos órfãos (Is 10,1-2)
Deus não aceita nem culto, homenagem, sem a prática da justiça
e da fraternidade que se reflete no uso dons bens materiais. O mesmo
Isaías nos mostra Deus advertindo:
Quando estendeis para mim as mãos, desvio meu olhar. Ainda que multipliqueis as orações, de forma alguma atenderei. É que vossas mãos estão
sujas de sangue. Limpai-vos, limpai-vos, tirai da minha vista as injustiças
que praticais. Parai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem, buscai o que
é correto, defendei o direito do oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei
a causa da viúva. Depois podemos discutir, diz o Senhor (Is 1,15-18).
Em outras palavras: sem a justiça da economia que não desampara
os pequenos, Deus não quer conversa conosco. Muitos outros textos proféticos teriam indicações semelhantes, muitas leis do Pentateuco visam
proteger trabalhadores e pobres, para que um filho ou filha de Deus não
seja sacrificado no altar idolátrico da economia.
5 Jesus coloca o ser humano acima da pressão
econômica
Ele adverte: Não ajunteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a
ferrugem destroem e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, ajuntai
para vós tesouros no céu... (Mt 6,19).
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
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Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica
Reconhecendo que nossas escolhas no uso do dinheiro revelam
quem somos de fato, ele observa: Pois onde estiver o vosso tesouro, aí
estará também o vosso coração (Mt 6,21). E se, em vez dos tesouros
do céu, nosso coração estiver com os tesouros da terra, não sobra lugar
para o Deus verdadeiro e instala-se a idolatria de servir a outro tipo de
“deus”. Então Jesus faz a advertência que serve de lema para a nossa
Campanha:
Ninguém pode servir a dois senhores: ou vai odiar o primeiro e amar o
outro ou vai aderir ao primeiro e desprezar o outro. Não podeis servir
a Deus e ao dinheiro! (Mt 6,24)
E Jesus não ficou só no discurso. Toda a sua vida foi um testemunho de simplicidade no uso dos bens materiais, de solidariedade com os
pobres, de distribuição gratuita dos dons de Deus, sem nenhuma ambição
de bens ou glórias mundanas.
6 Um texto inspirador
A equipe que trabalhou na Campanha pensou em destacar uma
passagem bíblica para ancorar a reflexão a ser feita. O grupo escolheu o
encontro de Jesus com Zaqueu (Lc 19,1-10):
Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessou a cidade. Apareceu
um homem chamado Zaqueu, chefe dos coletores de impostos, muito
rico. “Zaqueu todo alegre acolheu Jesus em sua casa. Vendo isso, todos
murmuravam, dizendo: “É na casa de um pecador que ele foi se hospedar”. Mas Zaqueu, adiantando-se, disse ao Senhor: “Pois bem, Senhor,
eu reparto aos pobres a metade dos meus bens e, se prejudiquei alguém,
restituo-lhe o quádruplo”. Então Jesus disse a seu respeito: Hoje veio a
salvação a esta casa.
Endereço do Autor:
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Fone/fax: (61) 33214034 – 33218341
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Resumo: Após a apresentação do tema e do lema desta CFE 2010, o autor faz um
questionamento: trata-se de “Economia e Vida” ou, antes, de “Vida e Economia”,
isto é, essa a serviço daquela? Nesse sentido, lembra que “os bens são para a
Vida, não a Vida para os bens”. A seguir, explica o conceito de “Justiça econômica”
e lembra que a Bíblia se volta constante e decididamente para os pobres, assumindo em nome de Deus a sua defesa. Na tradição cristã, não encontramos apenas
a caridade de indivíduos ou a generosa solidariedade de comunidades inteiras,
mas também buscaram-se insistentemente soluções alternativas às estruturas
econômicas injustas. Hoje, como no passado, as comunidades cristãs devem se
interrogar sobre seu patrimônio, seu uso do dinheiro e seu compromisso com a
transformação econômica e social do país. Concluindo, lembra que a “chave do
sucesso” desta CFE está na organização das pessoas.
Abstract: After a short presentation of the theme and the slogan of this CFE 2010
the author raises a question about the focus on “Economy and Life” or rather on
“Life and Economy”, which is specifying which? In this sense, the material goods are
destined for the benefit of life, and not the other way around. Then an explanation
is given of the expression “economical justice” calling attention to the Bible which is
constantly reminding us the needs of the poor since God himself is taking into his
own hands their protection. In the Christian tradition are to be found not only the
stress on charity for individuals and solidarity on behalf of entire communities, but
also a search for alternative solutions to remedy unjust economic structures. Today
as in the past Christian communities have to question the use of their patrimony,
the spending of their monetary resources, and the duty to the social and economic
transformation of the country. In conclusion a reminder is appended concerning
the “key of success” of this CFE which is held in the hand of the people.
“Economia e Vida”*
Luiz Alberto Barbosa**
*
Texto inspirado e adaptado do Texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica
2010. “Economia e Vida”. Ed. CNBB 2009. ISBN Nr: 978-85-60263-92-9.
** Reverendo Luiz Alberto Barbosa, Presbítero Anglicano, Advogado e Teólogo, com Mestrado em Ciências da Religião pela PUC Goiás e atual Secretário Geral do CONIC.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 17-24.
“Economia e Vida”
Pela terceira vez temos uma Campanha da Fraternidade Ecumênica. A Campanha deste ano de 2010 é promovida em conjunto pelas Igrejas
que fazem parte do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC, como aconteceu em 2000 e 2005. Essas campanhas estabeleceram
dois pilares fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa
e solidária: a Dignidade Humana e a Solidariedade. Essas experiências
anteriores permitem às Igrejas o trabalho em conjunto, sendo que o que
as move a agir é a graça, o amor de Deus e o testemunho de sua fé em
Jesus Cristo, identificado no mais pobre e excluído. As palavras de Jesus
Cristo – “Nisto todos reconhecerão que vocês são meus discípulos: no
amor que tiverem uns para com os outros” (Jo 13,35) – ecoam hoje no
coração dos seus seguidores, que agem em resposta à missão que lhes
vem de Deus em Cristo: a de serem testemunhas da fraternidade, justiça
e paz sobre a terra.
Tema e Lema
Tendo em vista o cumprimento dessa missão, a Comissão Organizadora da Campanha, em maio de 2007, ouvindo as bases das Igrejas,
dos movimentos sociais e da sociedade em geral, teve a árdua tarefa
de escolher o tema e o lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica.
Como uma antecipação profética da crise global econômico/financeira
que se abateu sobre o mundo particularmente em 2008, cujos reflexos
ainda estamos vivendo e cujos efeitos com certeza se prolongarão ainda
pelos anos vindouros, a comissão escolheu o tema: “Economia e Vida” e
o lema “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24) A CFE
tem como objetivo geral: “Colaborar na promoção de uma economia
a serviço da vida, fundamentada no ideal da cultura da paz, a partir
do esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de pessoas de boa vontade,
para que todos contribuam na construção do bem comum em vista
de uma sociedade sem exclusão”. É necessário conclamar a todos e
todas para construir uma nova sociedade, e educar essa mesma sociedade,
afirmando que um novo modelo econômico é possível, e denunciar as
distorções da realidade econômica existente, para que a economia esteja
a serviço da vida. A Campanha da Fraternidade Ecumênica deve propor
alternativas econômicas e sistemas integrados de reformas estruturais,
que permitam a toda a sociedade compartilhar e vivenciar o bem comum,
com dignidade para todos.
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Luiz Alberto Barbosa
Economia e Vida, ou Vida e Economia?
No texto-base desta campanha, a lógica inicial do tema, que é
Economia e Vida, é invertida, partindo da premissa de que a vida está
em primeiro lugar. Movido pela fé em Deus, “que ama a justiça e a
equidade; a terra está cheia da fidelidade do Senhor” (Sl 33,5), o texto
elaborado pelas Igrejas do CONIC não quer limitar-se a criticar sistemas
econômicos. A idéia é que a campanha mobilize igrejas e sociedade a dar
respostas concretas às necessidades básicas das pessoas e à salvaguarda
da natureza, a partir da mudança de atitudes pessoais, comunitárias e
sociais, fundamentadas em alternativas viáveis derivadas da visão de
um mundo justo e solidário.
O primeiro conceito que somos chamados a refletir nesta campanha
é o de que o sistema econômico deve visar o Bem Comum. O Bem Comum abrange a existência dos bens necessários para o desenvolvimento
da pessoa e a possibilidade real de todas as pessoas terem acesso a tais
bens. Isso requer o empenho social e o desenvolvimento de grupos e das
pessoas individualmente, implicando a existência de paz, estabilidade
e a segurança de uma ordem justa. Ao participarem em conjunto desta
Campanha, as Igrejas ganham força para pedir às diferentes instâncias
da sociedade que também se unam pelo bem comum, na defesa da Vida,
como valor mais importante do que os interesses do mercado. Esta
campanha procura mostrar que o ideal de justiça econômica que sirva e
sustente a vida só poderá tornar-se realidade pela ampliação do exercício
da democracia e se forem estabelecidas também metas para se atingir
a plena sustentabilidade. Para se atingir os objetivos da CFE 2010, são
adotadas as seguintes estratégias:
• Denunciar a perversidade de todo modelo econômico que vise
em primeiro lugar o lucro, sem se importar com a desigualdade,
miséria, fome e morte. A política e a economia estão desvinculadas da sua dimensão ética, moral e social. O neoliberalismo
tornou-se um fator de enriquecimento ilícito, corrupto e imoral,
e por isso o modelo econômico vigente deve ser denunciado.
• Educar para a prática de uma economia de solidariedade,
de cuidado com a criação e valorização da vida como o bem
mais precioso. O desafio é a construção de um novo modelo
econômico. De um modelo solidário, onde a riqueza seja disEncontros Teológicos nº 55
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“Economia e Vida”
tribuída e da elaboração de políticas que visem uma mudança
nas condições de vida da população.
• Conclamar as Igrejas, as religiões e toda a sociedade para
ações sociais e políticas que levem à implantação de um modelo
econômico de solidariedade e justiça para todas as pessoas.
Os bens para a Vida e não a Vida para os bens
Nós recebemos os bens para a vida e não a vida para a riqueza. Está
escrito na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento: “Não só de
pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”
(Dt 8,3 e Mt 4,4). Como seguidores de Jesus Cristo e participantes da
vida social, somos chamados a construir uma justiça econômica maior
diante da persistência da indigência, da pobreza e das grandes desigualdades sociais. Toda a vida econômica deveria ser orientada por princípios éticos. A medida ética fundamental para qualquer economia é um
sistema que deveria criar reais condições de segurança e oportunidades
de desenvolvimento da vida de todas as pessoas, desde os mais pobres
e vulneráveis aos mais ricos. Em contraposição, a discussão dominante
nas recorrentes crises do capitalismo se restringe a estas questões: “Que
correções importa fazer para salvar o capitalismo e regular os mercados?
Quanto posso ganhar com o menor investimento possível, no lapso de
tempo mais curto e com mais chances de aumentar o meu poder de
competição e de acumulação?” Não importa se isso leva à destruição
da natureza e torna sistêmica a miséria de muitas famílias. A economia
não é uma estrutura autônoma. Ela faz parte das prioridades políticas. As
políticas econômicas e as instituições devem ser julgadas pela maneira
de elas protegerem ou minarem a vida e a dignidade da pessoa humana,
sustentarem ou não as famílias e servirem ao bem comum de toda a sociedade. A sociedade, incluindo a ação governamental, tem a obrigação
moral de garantir oportunidades iguais, satisfazer as necessidades básicas
das pessoas, e buscar a justiça na vida econômica. A atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num
vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança
no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além
de uma moeda estável e serviços públicos eficientes.
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Encontros Teológicos nº 55
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A organização da ordem social necessita que todos estejam em
comunhão, com interdependência e auto-interessados, procurando
viabilizar a satisfação das necessidades de todos, em vez de uma vida
auto-suficiente. As relações realizadas no exercício da atividade produtiva seguem padrões de comportamento determinados por uma estrutura
institucional que procura otimizar os resultados, levando em consideração
a escassez de recursos. No entanto, não se pode esquecer, que o processo
produtivo é uma construção social, e suas diretrizes se legitimam na
medida em que atendem aos anseios de cada membro da sociedade. A
isso dá-se o nome de Justiça Econômica.
Justiça Econômica
Ao falarmos de justiça econômica, também estamos falando da
necessidade de todos nós cuidarmos da Criação. O planeta Terra não
passa de um grão de areia na imensidão do universo. Mas é um grão de
areia habitado, onde pulsa um coração vivo e vibrante. Nele, o ciclo da
vida se reproduz há bilhões de anos. É o único planeta conhecido onde
a vida viceja exuberante. A mulher e o homem são chamados a habitar
essa grande casa, a manter viva a sinfonia da criação, a cuidar, respeitar
e conviver com a variedade e pluralidade das formas de vida. O ser
humano foi colocado neste planeta como em um jardim do qual deve
cuidar. A vida em nosso planeta está ameaçada. Pessoas sem acesso à
água, como direito humano e bem público, pessoas sem moradia, sem
alimentação, sem terra para trabalhar. Uma cultura de consumismo, com
um desenvolvimento desequilibrado. Tendo em vista isso, o Conselho
Mundial de Igrejas tem chamado as Igrejas e a sociedade a encararem a
realidade do mundo a partir da perspectiva da pessoa, particularmente
das pessoas oprimidas e excluídas. Somos chamados a ser comunidades
não-conformistas e transformadoras.
O lema desta Campanha da Fraternidade Ecumênica: Mateus 6, 24
“Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro”, nos remete novamente
para a necessidade de termos um sistema econômico inclusivo, para todas
as pessoas. O lema nos propõe uma escolha entre os valores do plano de
Deus e a rendição diante do dinheiro, visto como valor absoluto dirigindo
a vida. O problema não é o dinheiro em si, mas o uso que dele se faz.
É útil como instrumento destinado ao serviço e intercâmbio de bens de
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“Economia e Vida”
uso, mas não pode ser o supremo comandante dos nossos atos, o critério
absoluto das decisões dos indivíduos e dos governos. Deve ser usado
para servir ao bem comum das pessoas, na partilha e na solidariedade.
Nossa atitude diante do dinheiro mostra muito o tipo de pessoa que somos. Por isso Jesus diz: “Onde estiver o teu tesouro, ali também estará o
teu coração” (Mt 6,21). Se o enriquecimento e a acumulação continuam
a ser o sonho de nossa sociedade, os valores se invertem e colocamos
em segundo plano a pessoa, sua vida, sua dignidade e seu bem-estar. A
relação com Deus e todas as demais aspirações humanas acabam por
serem rebaixadas a valores secundários. Vemos assim que a acumulação,
o não repartir, tem profundas consequências espirituais.
Defesa dos pobres
Na história humana, marcada por ambições, explorações, injustiças
e ganância, a Bíblia se volta decididamente para a defesa dos pobres:
“Não falsificarás o direito do pobre no seu processo” (Ex 23,6). Contra
a acumulação da riqueza, que deixa os ricos mais ricos e os pobres mais
pobres, Isaías, como outros profetas, dá seu grito de protesto: “Ai dos que
juntam casa a casa, campo a campo, até ocuparem todo o lugar e serem
os únicos a morar no meio da terra” (Is 5,8). O respeito ao direito do
pobre, nos textos bíblicos, é uma exigência básica da fidelidade a Deus.
Ao sermos Iluminados pelos ensinamentos bíblicos, devemos trabalhar
as realidades do nosso tempo: direito ao trabalho, à saúde e educação
públicas e de boa qualidade, saneamento urbano e outras estruturas que
hoje podem promover o bem-estar de todos.
As Igrejas do CONIC, ao conclamarem as outras igrejas cristãs,
outras religiões e as pessoas de boa vontade em geral, para assumirem
esta campanha da fraternidade “Economia e Vida”, querem lembrar
que a solidariedade faz da humanidade uma família onde todos se protegem mutuamente. Assim, problemas que pareciam insolúveis podem
ter soluções surpreendentes. A partilha faz milagres. É o que Jesus nos
sugere no texto que narra como cinco mil homens mais as mulheres e
crianças foram alimentados com cinco pães e dois peixes (Mc 6,30-44).
Os milagres de Jesus têm uma função pedagógica: eles nos convidam a
fazer como ele fez, mesmo através de meios bem naturais. Se soubermos
partilhar, certamente vai haver pão, casa, cura, saúde, educação e parti-
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cipação para muito mais gente. A pregação de Jesus sobre o juízo final
mostra bem que Deus quer ser amado e servido nos pobres: “Tive fome, e
me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; eu era estrangeiro,
e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na
prisão, e viestes a mim...” (Mt 25,31-40). Graças a Deus, ao longo desta
campanha, vamos nos deparar com milhares e milhares de experiências
de solidariedade por todo este país.
A parceria entre a sociedade civil e o governo tem sido de fundamental importância para o exercício de uma solidariedade transformadora. Mas existe muito mais a ser feito, conceitos e projetos a serem
mudados, com o Estado assumindo de fato o seu papel fundamental de
solução dos problemas sociais. A ação do Estado e do direito não pode excluir os mais fracos, é importante que os governantes ouçam os diferentes
setores da sociedade, não só aqueles que costumeiramente têm poder de
pressão. 2010 é um ano muito importante para o Brasil, um ano eleitoral.
Como Sociedade e como Igrejas, devemos estar vigilantes, defendendo
a vida plena para todos os brasileiros e brasileiras, encontrando modelos
alternativos aos que até agora estão vigentes no mercado.
Na tradição cristã, não encontramos apenas a caridade de indivíduos ou a generosa solidariedade de comunidades inteiras. Também
buscaram-se insistentemente soluções alternativas às estruturas econômicas injustas: criação de hospitais, construção de escolas, organização
de economia comunitária, organização de sindicatos e partidos. Hoje,
como no passado, as comunidades cristãs devem se interrogar sobre seu
patrimônio, seu uso do dinheiro e seu compromisso com a transformação
econômica e social do país.
Conclusão
A Campanha da Fraternidade Ecumênica conclama, portanto,
Igrejas, religiões e toda a sociedade para ações sociais e políticas que
levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade e
justiça para todas as pessoas. Para alcançar essa meta, a Campanha da
Fraternidade ecumênica destaca a importância da ação coletiva para
a transformação social. O diálogo permanente e a articulação das
forças sociais, a colaboração entre Igrejas e sociedade, a formação de
militantes, uma política sindical que lute pelos direitos não somente dos
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trabalhadores empregados, mas dos pobres sem trabalho, sem moradia,
sem garantias de sustento para si e suas famílias. A cooperação é urgente
em uma sociedade que sofre pelo individualismo e a desarticulação. As
pessoas, não isoladamente mas organizadas, nas Igrejas, nos movimentos
sociais e na sociedade em geral, são a chave para o sucesso desta campanha, para mudar o Brasil e a vida de cada um de nós e principalmente
das futuras gerações.
Endereço do Autor:
CONIC – Secretaria Executiva – SCS
Quadra 01 Bloco E Edifício Ceará 713
70303-900 Brasília, DF
Fone/fax: (61) 33214034 – 33218341
[email protected]
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Resumo: O autor começa seu artigo convidando a “conhecer um pouco mais”
sobre o Ecumenismo. Já é a terceira Campanha da Fraternidade Ecumênica
(CFE), e pouco se fala a nível paroquial sobre o tema. A seguir, descreve os
“primeiros passos rumo à realização de uma ação ecumênica conjunta”. Recorda, então, a primeira CFE, no ano 2000, “primeira realização do sonho”. Faz
memória também da CFE 2005: “uma ação em busca da solidariedade e da
paz”. Voltando-se agora para esta CFE 2010, apresenta-a como uma Campanha
“voltada aos desafios e perspectivas em prol da Vida”. Nesse sentido, chama
a atenção para “a economia brasileira em tempos de globalização” e, comentando a “queda das ideologias”, acena para a “possibilidade de mudanças”. Na
conclusão, autor insiste na espiritualidade de comunhão, e na própria unidade
entre nós, para que esta CFE 2020 atinja seus objetivos.
Abstract: The author begins by raising the readers’ interest to get acquainted with
Ecumenism. In fact it is the third approach to Ecumenism in the last two Campanha de Fraternidade (CFE), although not many publications on this subject have
circulated on a parochial level. Just to remember in the year 2000 appeared an
article on “the first conversion of a dream”. Later on in 2005 mention was made in
the CFE of a “quest for solidarity and peace”. In this year of 2010 a new approach
comes to the fore in terms of “challenges and perspectives for the benefit of life on
earth”. In this sense, attention is given to “the Brazilian economy opening up to a
global dimension”. Implied in this perspective pertinent comments are added on the
“erosion of ideologies” hinting at a “possibility of more changes”. In the conclusion
the author offers a new insight on a spirituality of communion and unity among social
groups so that the CFE of 2020 may achieve the goals already envisaged.
Campanha da Fraternidade:
uma ação ecumênica conjunta
em prol da vida
Antônio Lopes Ribeiro*
* O autor é Graduado em Pedagogia, Teologia, pós-graduado em Diálogo Ecumênico
e Interreligioso pelo ITESC/SC e mestrando em Ciências da Religião, na PUC/GO.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 25-40.
Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
Introdução
Tornou-se comum no meio ecumênico ouvir-se esta máxima: “O
que nos une, é maior do que o que nos separa”. Para que haja diálogo
entre cristãos católicos e protestantes, é preciso valorizar aquilo que se
tem em comum, deixando de lado as diferenças e os rancores. Se pararmos
no nível das diferenças e não procurarmos ir além, jamais alcançaremos
o caminho que leva para o diálogo e à descoberta da fé comum.
Embora seja um desejo do próprio Cristo, expresso em sua oração
sacerdotal, “para que todos sejam um” (Jo 17,21), infelizmente muitos
não conseguem, não procuram ou não querem romper as barreiras que
dividem cristãos católicos e protestantes. Dom Eurico dos Santos Veloso
(2007), Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora, MG, sabiamente nos
ensina que “o ecumenismo não é uma convivência social. É uma afirmação nos fundamentos da verdadeira Igreja, independente de denominações
adjetivas, que se procuram superar no afã de realizar o desejo ardente de
Cristo ‘que todos sejam um’”. O ecumenismo, diz Dom Eurico, deve ser
a “expressão dessa unidade. Superando as divisões, frutos do pecado,
deixemo-nos impregnar do Espírito Santo e, unidos pela força redentora
do Amor, transformemos o mundo, antecipemos e vivamos o glorioso
dia do Senhor”.
1 Conhecendo um pouco sobre o ecumenismo
Atualmente, apenas uma pequena minoria católica sabe o que seja
ecumenismo. Estamos já na terceira CFE e pouco se fala a nível paroquial sobre esse movimento. Essa ignorância lamentavelmente se deve
ao pouco interesse por parte de nossos párocos, e até mesmo de bispos,
por esse movimento. Embora haja diversos documentos do Magistério
da Igreja que conclamam os católicos em geral ao diálogo ecumênico
com as outras Igrejas Cristãs, pouco se faz no sentido não só de sua
divulgação, como também de sua prática.
Etimologicamente, o termo ecumênico tem sua raiz no grego
“oikouménê”, significando “‘o mundo habitado’ ou seja, o mundo ‘civilizado’, oposto ao ‘bárbaro’” (VERCRUYSSE, 1998, p. 13). Porém,
esse termo sofreu evolução, assumindo hodiernamente um sentido bem
diferente do etimológico. Esse adjetivo atualmente é usado em dois
sentidos diferentes. No sentido tradicional da linguagem eclesiástica, é empregado em expressões tais como: “patriarca ecumênico” ou
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Antônio Lopes Ribeiro
“concílio ecumênico”. Nesse sentido, a palavra ecumênico significa
“a universalidade e a catolicidade externa da Igreja” (ibid, p. 12). No
sentido novo, que se tornou comum, a palavra ganha outro significado. Durante a Primeira Guerra Mundial, o Arcebispo luterano Natahn
Söberblom (apud NAVARRO, 1995, p. 11), sugeriu “a criação de uma
‘reunião internacional de Igrejas’ com a designação de ‘ecumênica’,
para procurar resolver o problema da paz”. Propôs também a criação
de uma espécie de Conselho Ecumênico das Igrejas, cuja idéia só veio
a se concretizar bem mais tarde, em 1948, com a criação do Conselho
Mundial de Igrejas. Somente em 1937 o termo ‘ecumênico’ designa já
com toda clareza as relações amistosas entre as diferentes Igrejas com
o expresso desejo de realizar a Una Sancta e de estreitar a comunhão
entre todos os fiéis em Jesus Cristo (NAVARRO, 1995, p. 12). Ainda
em Navarro, encontramos, dentre tantas outras, a que a nosso ver é a
melhor definição para o termo:
O ecumenismo é uma atitude da mente e do coração que nos impele a
olhar nossos irmãos cristãos separados com respeito, compreensão e esperança. Com respeito, porque os reconhecemos como irmãos em Cristo
e os consideramos antes amigos do que oponentes; com compreensão,
porque buscamos as verdades divinas que compartilhamos, embora
reconheçamos honestamente as diferenças na fé que há entre nós; com
esperança, que nos fará crescer juntos num conhecimento e num amor
mais perfeitos de Deus e de Cristo (ibid, p. 13).
Antes do Concílio Vaticano II, a palavra ecumenismo era algo
praticamente impossível de constar no vocabulário católico. Até então
a Igreja mostrava-se muito reticente em seu uso. Vejamos uma definição
dada pela Enciclopédia Católica, em 1950 (apud VERCRUYSSE, 1998,
p. 13): “Em sentido próprio, ecumenismo é a teoria mais recente inventada pelos movimentos interconfessionais, especialmente protestantes,
para chegar à união das Igrejas cristãs... Para os católicos, estão fechados
os caminhos do ecumenismo, no sentido original do termo...”. Isso tinha
um motivo: a forte rejeição mútua mantida entre protestantes e católicos, que se condenavam e impediam qualquer diálogo, principalmente
devido às diferenças doutrinárias. Embora nos bastidores pré-conciliares
existissem teólogos do naipe de Karl Rahner e Yves Congar, que não só
estudavam a respeito do ecumenismo, mas já o praticavam, porém, de
fato e oficialmente, somente com o Concílio Vaticano II abriram-se em
definitivo as portas da Igreja Católica para o ecumenismo. Mesmo assim,
os avanços no sentido do diálogo têm sido muito lentos de ambas as
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Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
partes, inclusive com a persistência de vários grupos cristãos contrários
à prática ecumênica, o que tem dificultado muito.
A evolução do movimento ecumênico, cujos princípios são a unidade e o diálogo, se deu muito mais a nível institucional do que a nível
interpessoal. O ideal ecumênico parece não atingir o fiel em si, tamanha
a resistência em aceitar o ecumenismo. Poucos sabem que “participar do
movimento ecumênico não significa uma falta de identificação confessional. Nenhuma Igreja precisa renunciar a suas convicções eclesiológicas
para trabalhar em prol da unidade cristã” (SÁNCHEZ, 1989, p. 18).
Porém, apesar de todo o esforço das instituições em busca do diálogo, inclusive com a realização da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos,
parece não se estar dando grandes passos. Os ideais do Vaticano II, cujas
setas indicam o caminho da unidade dos cristãos, não ganharam força,
e nem mesmo João Paulo II, um grande defensor da causa ecumênica,
cujo pensamento está exposto de forma bastante evidente na sua Carta
Encíclica Ut Unum Sint, de 25 de maio de 1995, e que passou toda sua
vida lutando em prol da unidade dos cristãos, conseguiu fazer com que os
católicos abraçassem de vez o ecumenismo. Mesmo assim, tanto a Igreja
Católica quanto as Igrejas que compõem o Conselho Nacional de Igrejas
Cristãs - CONIC - estão sempre se esforçando e se lançando ao diálogo
ecumênico, o que não deixa de ser um passo muito importante, pois a
expectativa é de que, embora lentamente, o diálogo venha a acontecer
em larga escala no seio das instituições cristãs.
2 Primeiros passos rumo à realização de uma
ação ecumênica conjunta
O primeiro aceno na direção de uma ação ecumênica concreta foi
dado pelo Papa Leão XIII, quando da promulgação da Encíclica Provida
Mater, estabelecendo uma novena, “entre as celebrações da Ascensão e
de Pentecostes, pela reconciliação dos cristãos” (BIZON, 2004, p. 115).
Esse mesmo papa deu um caráter perpétuo a essa novena, ao decretar,
na Encíclica Divinum illud múnus, de 1897, que a novena deveria ser
feita sempre pelos católicos. Posteriormente, dois integrantes da Igreja
Episcopal Anglicana, Paul James Wattson e Spencer Jones, propuseram
no ano de 1908, em Graumorr, estado de Nova York, uma Oitava de
Oração pela Unidade dos Cristãos (cf. p. 115). No ano de 1935, o Pe.
Paul Couturier, promoveu em Lion, na França, “uma Semana de Oração
pela unidade cristã de forma a ultrapassar a abrangência das iniciativas
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anteriores, fundamentada na fórmula ‘que chegue a unidade visível do
Reino de Deus tal como Cristo a quer, pelos meios que Ele quiser!’”
(ibid). Por ocasião dessa semana de Oração, Yves Congar fez um discurso que seria o embrião da obra “Chrétiens desunis”, de sua autoria, a
qual denominou de teologia de ecumenismo católico. Em 1966, iniciase um trabalho conjunto entre o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e
o Pontifício Conselho pela Unidade dos Cristãos (PCPUC), no sentido
da elaboração de um texto que culminaria na Semana da Oração pela
unidade dos cristãos, em 1968, a qual se realiza entre a celebração da
cátedra de Pedro e a conversão de São Paulo (ibid), no mês de janeiro, que,
por conveniência, devido a se tratar de um período de férias, no Brasil
acontece entre as celebrações da Ascensão e de Pentecostes. O material
elaborado conjuntamente pela PCPUC e CM, apresentou pela primeira
vez, em 1968, o tema “Para o louvor da sua glória” (Ef 1,14).
A realização de um trabalho conjunto de maior expressão, na
área do ecumenismo, só viria a acontecer na virada do milênio, com
a realização da primeira Campanha da Fraternidade Ecumênica,
colocando em prática o sonho de um trabalho conjunto, no sentido da
promoção humana, do teólogo luterano Oscar Cullmann (1902-1999),
que antes do Concílio Vaticano II havia proposto uma “coleta ecumênica mútua: os católicos romanos fariam uma coleta para os protestantes
e vice-versa” (SINNER, 2007, p. 69). Cullmann, que em sua teologia
propunha a “unidade pela diversidade”, acreditava que isso ajudaria a
vencer o clima de desconfiança mútua entre católicos e protestantes e
também que sua proposta fosse “abraçada por irmãos e irmãs dos dois
lados, mesmo sabendo que poderia levar muito tempo” (ibid). Esse sonho
tornou-se realidade, com a realização da CFE.
Desde 1964, a Igreja Católica vem realizando a Campanha da
Fraternidade, sempre por ocasião da Quaresma. É o tempo que a Igreja
reúne seus fiéis para uma vivência mais profunda da vocação cristã e da
prática da caridade. Atendendo aos apelos da Igreja para a promoção do
diálogo com as igrejas cristãs, a CNBB quis dar uma dimensão ecumênica à Campanha da Fraternidade, por ocasião da celebração do Grande
Jubileu da Encarnação, confiando ao CONIC a organização da CF de
2000, a primeira ecumênica, com o envolvimento de várias Igrejas no
planejamento e na execução de tão importante movimento.
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Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
3 Campanha da Fraternidade ecumênica 2000:
o sonho se realiza
A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2000 tornou-se um
marco histórico único, concretizando uma idéia que já vinha sendo
fomentada há mais tempo, significando um avanço extraordinário do
ecumenismo, no século que findava. Era também o símbolo do compromisso de marcar o futuro (cf. BRAKEMEIER, 1999, p. 163), e o principal: sinal de que “a condenação mútua das Igrejas cedera espaço para
o espírito da fraternidade e a disposição de cooperar” (ibid). Com dois
mil anos de cristianismo, tornou-se simbólica essa campanha ecumênica,
no sentido da união entre cristãos católicos e protestantes. De fato, não
se poderia celebrar dois milênios da vinda de Cristo, sem algo concreto
que significasse a unidade dos cristãos.
O tema escolhido para a primeira Campanha da Fraternidade Ecumênica em 2000 foi “Dignidade humana e paz”, tendo como lema um
“Novo milênio sem exclusões”, cujo compromisso era resgatar a dignidade
humana “ferida nos porões da vida, à luz do sol e nos bastidores da política” (CONIC 2009, p. 16). Seu objetivo era “assumir a preocupação e o
esforço de superar a violência e promover a dignidade humana e a paz,
no centro da vida e do testemunho das Igrejas, organismos ecumênicos,
redes, organizações não-governamentais, movimentos sociais populares,
de modo a construir uma cultura de paz” (BINGEMER, 2003, p. 343).
Vale lembrar que o tema escolhido para aquele ano encontrava eco em
várias religiões e movimentos humanistas, estando presente também em
correntes filosóficas tais como: Estoicismo e Renascença, Humanismo da
Reforma e do Iluminismo, do Existencialismo, dentre outras (cf. BRAKEMEIER, 1999, p. 165). Portanto, não era um tema novo, mas que, embora
sendo antigo, continuava atual e continua ainda hoje, principalmente na
agenda de organizações que lutam pela paz, justiça e cidadania, tendo
como bandeira e ponto de referência máxima a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948.
O tema dignidade humana é de abrangência universa,l e como tal
não “admite atributos nacionais, raciais ou religiosos” (ibid, p. 167), o que
leva consequentemente aqueles que se lançam a essa causa, a buscarem
aliança entre si, não importando se sejam cristãos ou não. Ao escolher
esse tema, que aparentemente não implica conotações religiosas, o CONIC tinha em vista sua similaridade com o Evangelho, principalmente
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naquilo que se refere à criação do homem à imagem e semelhança de
Deus, o que por si só o reveste de toda dignidade.
Sem dúvida, foi um grande desafio aquela primeira campanha
ecumênica, principalmente no sentido de se abordar um tema tão importante como “dignidade humana e paz”. Quando se fala em paz, lembrase sempre da guerra, como uma solução inevitável para alcançá-la. No
entanto, onde houver a prática de qualquer ato de violência, mesmo que
seja o menor possível, ali deixa de haver a paz. A pós-modernidade é
marcada por um corolário de transformações que afetaram sobremaneira
toda a humanidade. Embora pessoas no mundo inteiro tomem cada vez
mais consciência sobre o respeito que se deve ter à dignidade da pessoa
humana, por outro lado, nunca a humanidade esteve tão ameaçada, frente
a tamanho poder para destruir a vida sobre o planeta. Em alguma parte
do mundo, basta alguém apertar um pequeno botão e destruirá, senão o
mundo inteiro, pelo menos grande parte dele. É a vida que está por um
“click”. Paz parece ser algo praticamente inalcançável, apenas um sonho
cada vez mais distante, pois não se pode ter paz enquanto alguém morre,
principalmente de fome, em alguma parte do mundo. É dever de todos
nós, cristãos, lutarmos pela paz, lembrando-nos sempre de que Cristo é
a verdadeira paz. Quanto ao lema “novo milênio sem exclusões”, vale
lembrar aqui a analogia do corpo: se uma unha encravada no dedo do pé
dói, o corpo inteiro sofre. Assim também é no que se refere à dignidade
humana: se alguém, em qualquer parte do mundo, é excluído, tal exclusão
afeta a dignidade de toda a humanidade, pois “dignidade” é um valor
universal. Vivemos numa sociedade de consumo, cujo desejo irrefreável
de ter sempre mais, por si só já leva à exclusão.
4 CFE 2005: uma ação em busca da
solidariedade e da paz
A segunda Campanha da Fraternidade Ecumênica, 2005, teve como
tema “solidariedade e paz” e como lema “Felizes os que promovem a
paz”. A iniciativa na organização e realização da CFE coube novamente
ao CONIC, auxiliado por todas as Igrejas que dele faziam parte, inclusive
a Católica. Os principais aspectos abordados na CFE daquele ano foram
a violência, a solidariedade e a paz. Mais uma vez a Igreja Católica, e as
Igrejas do CONIC uniram suas forças para, de forma solidária e ecumênica, conscientizarem todos os cristãos e não cristãos a lutarem juntos
pela superação da violência e construção da paz.
Encontros Teológicos nº 55
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Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
Por certo, só se alcança a paz por meio da solidariedade. O substantivo “solidariedade”, de acordo com o Dicionário Houaiss (HOUAISS,
2001, p. 138), passou a fazer parte da língua portuguesa por volta do
ano 1840. Claramente implícita no universo bíblico, o significado dessa
palavra encontra referências em Maria, quando de sua visita à prima
Isabel (cf. Lc 1,39-47); na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37);
no episódio da cura de um paralítico que chegou até Jesus, com a ajuda
de amigos que o desceram pelo teto da casa em que se encontrava (cf.
Mc 2,1-12); na descrição do Apóstolo Paulo, sobre o “corpo de Cristo”
(cf. Rm 12). Esses são excelentes exemplos de solidariedade. Porém, o
referencial máximo de solidariedade, encontramos no gesto eterno de
Jesus de Nazaré, ao solidarizar-se com a humanidade até “à morte na
cruz” (Fl 2,8).
De acordo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (nº
193), a solidariedade “se apresenta sob dois aspectos complementares:
o de princípio social e o de virtude moral”. Enquanto princípio social, a
solidariedade deve ser vista como “princípio social ordenador das instituições, em base ao qual devem ser superadas as ‘estruturas de pecado’, que
dominam as relações entre as pessoas e os povos; devem ser superadas
e transformadas em estruturas de solidariedade, mediante a criação ou a
oportuna modificação de leis, regras do mercado, ordenamentos” (ibid).
Enquanto virtude moral, a solidariedade não se constitui num “sentimento
de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos
por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação
firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo
bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente
responsáveis por todos” (ibid). Ao colocar-se na dimensão da justiça, a
solidariedade eleva-se ao grau de virtude social fundamental, pois ela se
orienta ao bem comum, em prol do bem do próximo, o que num sentido
evangélico significa “’perder-se’ em benefício do próximo em vez de o
explorar, e ‘servi-lo’, em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt
10,40-42; 20,25; Mc 10,42-45; Lc 22, 25-27)” (ibid).
5 CFE 2010: desafios e perspectivas em prol da vida
Para 2010, a terceira edição da CFE traz como tema “Economia e
Vida” e o lema “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24),
tendo como objetivo geral “Colaborar na promoção de uma economia
a serviço da vida, fundamentada no ideal da cultura da paz, a partir do
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Encontros Teológicos nº 55
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Antônio Lopes Ribeiro
esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de pessoas de boa vontade, para
que todos contribuam na construção do bem comum em vista de uma
sociedade sem exclusão” (CONIC, 2009, p. 9). Com apoio nas palavras
de Jesus: “Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde as traças e
os vermes arruínam tudo, onde os ladrões arrombam as paredes para
roubar. Mas acumulai para vós tesouros no céu” (Mt 6,19-20ª), o CONIC
conclama todos para a construção de uma nova sociedade, educando-a na
crença sobre a possibilidade de um novo modelo econômico, bem como
denunciando “as distorções da realidade econômica existente, para que
a economia esteja a serviço da vida” (ibid).
No intuito de atingir seus objetivos, a CFE 2010 adota como metodologia as seguintes estratégias: denunciar a perversidade do modelo
econômico atual, educar para a prática de uma economia solidária que
valorize a vida, e conclamar não só as Igrejas Cristãs e outras religiões,
mas também toda a sociedade para desenvolver ações sociais e políticas
“que levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade
e justiça para todas as pessoas” (p. 18). Tanto os objetivos, quanto as
estratégias, serão trabalhados durante a realização da Campanha, em
quatro níveis, a saber: social, eclesial, comunitário e pessoal.
Desde a primeira CFE, o CONIC vem trabalhando com temas
significativos voltados à “valorização da pessoa, o cuidado da natureza
e os grandes direitos dos seres humanos, compreendidos como filhos
preciosos e amados do Criador” (p. 16). Para o ano de 2010, apresenta um
tema que com certeza causará muita polêmica pois mexe com o coração
(e com o bolso!) da sociedade pós-moderna, profundamente enraizada
num modelo econômico injusto e opressor, responsável pela exploração dos mais fracos, em prol dos mais fortes, que acumulam cada vez
mais, sem se preocupar com a dignidade da pessoa e o devido respeito
aos direitos humanos. Longe de ser uma economia na forma idealizada
pelo pensamento social cristão, “como atividade realizada por pessoas,
devendo orientar-se ao serviço das pessoas, como o centro, protagonistas
e razão de ser da vida econômica e social” (p. 17), orientada ao Bem
Comum, o modelo atual é perverso, visando em primeiro lugar sempre
o lucro, sendo responsável pela miséria, fome e morte que assola o país,
principalmente no norte e nordeste brasileiro.
Encontros Teológicos nº 55
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Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
5.1 A economia brasileira em tempos de globalização
Vivemos numa era de incertezas, num mundo globalizado, em
constantes transformações, dominado pelos meios de comunicação, pelo
progresso da técnica, pelo cientificismo. Distâncias desaparecem, fronteiras são abertas e as culturas se mesclam e qualquer problema já não é
mais tratado a nível local, mas a nível global. Um exemplo recente disso
foi a crise econômica dos Estados Unidos, que se refletiu nas economias
do mundo inteiro. A nossa economia, segundo a autoridade máxima do
Executivo e vários cientistas políticos, saiu “fortalecida” dessa crise.
Porém, se assim o foi, resta-nos perguntar: a que custo?
Dizer que a economia brasileira se sustenta perante as crises
mundiais é uma forma de ludibriar a população, afirmando que tudo vai
bem. Paga-se um custo muito alto na tentativa de que o Brasil passe de
um país emergente de terceiro mundo, para um país de primeiro mundo, pois as riquezas deste País se concentram cada vez mais nas mãos
de poucos, fazendo com que a pobreza aumente mais e mais, e o pior:
nunca o Brasil esteve num estado de anomia tão grande como agora:
o sistema de saúde está falido; o setor político-administrativo nunca
esteve tão desacreditado como agora, devido à corrupção, desde o mais
baixo ao mais alto escalão dos três poderes da República; a violência
urbana cresce assustadoramente e pessoas são assaltadas, violentadas e
mortas a cada instante, sem contar com a prática do aborto, que parece
ter-se legalmente sido institucionalizada. O homem tornou-se predador
do próprio homem. Matam-se por motivos fúteis, banais, sem qualquer
explicação. A vida tornou-se algo obsoleto, sem qualquer valor. Tira-se
a vida do ser humano como se estivessem tirando a vida de um animal
qualquer; o narcotráfico, que se infiltra escandalosamente no Brasil,
principalmente originário da Colômbia, é o principal responsável pela
violência que, além dos grandes centros urbanos, já atinge pequenas cidades antes tidas como lugares tranqüilos e de paz. A falta de segurança se
deve principalmente à não aplicabilidade das verbas públicas no combate
à violência. O baixo salário pago aos policiais faz com que muitos deles,
embora não se justifique, sejam atraídos pelo dinheiro fácil oferecido
pelos narcotraficantes, preferindo vender-se a sobreviver com um salário de fome. Pode-se considerar como causa desse estado de anomia, a
perda de valores éticos e morais, antes ensinados pela religião, mas que
agora são trocados por valores impostos por uma sociedade de consumo
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Encontros Teológicos nº 55
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que desumaniza e massifica os indivíduos, fazendo com que eles sejam
valorizados por aquilo que têm e não pelo que poderiam vir a ser.
Como dizer que a economia do Brasil vai bem, se estudos científicos recentes apontam para um futuro catastrófico e, se algo não for feito
no sentido de se preservar o meio ambiente, a raça humana poderá ser
varrida do globo terrestre? Importantes temas tais como: aquecimento
global e efeito-estufa, destruição da camada de ozônio, poluição do meio
ambiente, dentre outros, fazem parte da pauta de debates e das mesas de
negociações de países e organismos internacionais que se preocupam
com a preservação da vida no Planeta. Ora, o Brasil, o que tem feito nesse
sentido? O mundo inteiro se volta para a região Amazônica, e o que o
Brasil tem feito de concreto para combater o crescente desmatamento
dessa floresta considerada o coração do mundo? É com tristeza que vemos
o nosso Presidente da República declarar na imprensa que “mesmo se
o Brasil fosse careca, haveria alguém em algum lugar cortando alguma
coisa”, quando entrevistado sobre a questão de desmatamento zero, meta
essa a ser atingida segundo ele somente em 2020 e não em 2015 como
querem os ambientalistas do mundo inteiro.
Se a economia do Brasil vai bem, o que dizer de milhares e milhares de pessoas desempregadas? Da prostituição, principalmente a
infantil, que aumenta mais e mais, quando adultos e crianças se prostituem para sustentar uma família inteira? O que dizer do trabalho escravo
em que pessoas saem de seus lares em busca de uma vida melhor para
suas famílias e caem nas mãos de fazendeiros inescrupulosos, que os
exploram e os submetem a uma vida de servidão subumana? E o que
dizer do trabalho infantil, em que crianças deixam a escola, para ganhar
o pão para si e para a família, trabalhando também em condições subumanas? Com relação à pobreza no País, até mesmo as ações que o
Governo tem praticado, embora sejam benéficas , não se constituem em
ações de solidariedade, pois a intenção não é outra senão a do voto de
cabresto. Ao oferecer cestas básicas para aliviar a fome da população
deste país, por detrás disso, espera-se, como feedback, sucesso nas urnas
eleitorais, em que aquele que recebe a cesta básica se torna um eleitor
cativo daquele que a oferece. O medo de perder o sustento sem o qual
não se pode sobreviver, faz com que o eleitor que vive da cesta básica
vote pela sua continuidade.
Não, a economia do Brasil não vai bem. A mesma não tem-se voltado aos reais problemas que atingem nossa sociedade, principalmente
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Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
no que se refere ao desemprego, aos diversos tipos de violência, à fome,
à saúde e ao meio ambiente. É preciso mudar esse quadro. Por isso, as
propostas da Campanha da Fraternidade para 2010 vêm em boa hora e
de forma ecumênica. Mas, pergunta-se: é possível mudar a economia
brasileira?
5.2 A queda das ideologias: possibilidade de mudanças
Sabe-se que as grandes ideologias que dominaram o mundo no
segundo milênio, desde a idade média, principalmente nas sociedades
do Ocidente, jamais estiveram a serviço da vida, do Bem Comum, da
dignidade da pessoa humana. A começar pelo feudalismo, com características político-religiosas, que se tornou “um brutal instrumento para a
usurpação de direitos e a servidão humana” (VIEIRA, 2004, p. 43), até
o capitalismo selvagem que domina o mundo de hoje, jamais estiveram
a serviço do bem-estar comum e da dignidade do ser humano. Vivemos
uma era de queda de grandes ideologias: “a ideologia do progresso ilimitado, a ideologia da revolução, a onipotência da ciência e da técnica”
(LEXICON, 2003, p. 363), ou caíram ou estão passando por um processo
de declínio irreversível.
O século XX foi marcado por uma bipolaridade entre duas variantes ideológicas, dominadas de um lado pelo sistema comunista,
o “socialismo-marxista” e, por outro lado, pelo sistema capitalista ou
“capitalismo-liberal”. De acordo com o grande economista Ives Gandra
(2004, p. 92), a primeira ideologia pretendia “ manter em mãos do Estado
o controle de todos os meios de produção para que não houvesse desperdícios e a economia fluísse nos moldes das necessidades da sociedade”.
A outra, pretendia que o Estado “fosse um mero regulador do mercado
e que a economia fluísse exclusivamente de acordo com os interesses
privados, sendo o livre comércio, nacional e internacional, a consagração
de um regime de liberdade de agir ou escolher” (ibid, p. 93). A primeira
veio abaixo quando da queda do muro de Berlim, com a União Soviética
abrindo suas portas para a entrada do capital estrangeiro; e o que restou,
foi uma nova configuração ideológica neocomunista, representada pela
China. A segunda sofreu uma evolução: com o advento do neoliberalismo, o Estado acabou perdendo sua função reguladora do mercado.
Portanto, atualmente observa-se a seguinte bipolaridade: A ideologia
neoliberal, “que celebra a globalização da economia, a integração de
países em grandes blocos econômicos e a formação de Estados-regiões”
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Encontros Teológicos nº 55
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Antônio Lopes Ribeiro
(VIEIRA, 2004, p. 52) e, contracenando com essa ideologia, o neocomunismo chinês, “em nova configuração ideológica, abrindo horizontes de
parceria com o capitalismo, ingressando na OMC e investindo pesado
no desenvolvimento científico e tecnológico [...] com produção, moeda
forte, tecnologia e um avanço científico espacial” (ibid).
Essas ideologias, como vimos, embora sofram oposição em seus
princípios, na prática se unem a fim de se fortalecerem e se constituírem
numa grande economia global. Portanto, ao se falar em mudanças na
economia brasileira, não se pode deixar de lado o fato de que vivemos
num mundo globalizado em que não existem mais fronteiras para o comércio e que a economia Brasileira está atrelada à economia mundial.
Qualquer alteração que possa querer realizar na economia local, tem que
ser pensada a nível global.
Ao se trabalhar a CFE 2010, deve-se considerar que vivemos num
mundo pós-moderno, globalizado, e não se tomam mais decisões pequenas, a nível local, mas tomam-se grandes decisões, a nível mundial. De
fato, como vimos, no que se refere à economia, a mesma está globalizada,
e qualquer mudança, nesse sentido, não acontecerá da noite para o dia.
Será antes, um processo demorado, e quaisquer mudanças verdadeiras
jamais virão de cima e sim de debaixo, das bases. Nesse sentido, procede
a preocupação do CONIC quando se questiona “como fazer para que
essas preocupações (os desafios propostos) não sejam transitórias, mas
se tornem, de fato, balizamento moral permanente” (p. 11). Chegou a
hora de sensibilizar todos os cristãos para que os objetivos propostos
pelo CONIC, para a CFE 2010, possam ser concretizados. Devemos tomar consciência de que, se não houver uma mobilização geral de nossa
sociedade como um todo, por meio do diálogo, envolvendo não somente
as igrejas cristãs, mas também outras religiões, bem como outros setores
da nossa sociedade, diga-se pessoas ou organismos nacionais e internacionais ligados ao tema da Campanha, jamais será possível realizar
aquilo que ora se propõe.
Conclusão
Chegou o momento de deixarmos de lado as diferenças. Ficar
atacando um ao outro é um comportamento que já não se sustenta mais.
Pensar somente em si ou em sua instituição religiosa é pensar pequeno.
Vivemos momentos por demais difíceis. Nós, cristãos, não podemos nos
focalizar e nos apaixonar por nossa própria imagem, a exemplo de NarEncontros Teológicos nº 55
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Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
ciso. É preciso nos focalizarmos no outro, embora esse outro possa ser
diferente. Dom João Brás, arcebispo de Brasília, afirmou recentemente,
numa palestra proferida numa convivência diaconal, que “pensar somente
enquanto indivíduo não dá mais. A pessoa não existe sem a pessoa do
outro. Se cada indivíduo é regra de si mesmo, não dá mais para sobreviver”. Viver para si é negar todos os ensinamentos de Cristo, que jamais
pensou em si próprio. Na prática ecumênica, é preciso que aconteça um
esvaziamento de si mesmo, uma quênose, colocando-se a serviço do
outro, no exercício da caridade. O indivíduo que pensa somente em si,
aos poucos vai construindo sua própria religião, sem voltar-se para os
problemas da humanidade. É preciso pensar grande, pois afinal a salvação
oferecida por Cristo, numa visão teológica ecumênica, tem um sentido
de integralidade e de universalidade.
João Paulo II, em sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte,
escrita por ocasião do Jubileu do ano 2000, alerta os fiéis: “Antes de
programar iniciativas concretas, é preciso promover uma espiritualidade
de comunhão [...] com o coração voltado para o mistério da Trindade,
que habita em nós e cuja luz há-de ser percebida também no rosto dos
irmãos que estão ao nosso redor” (nº 43). Segundo o Papa, espiritualidade
de comunhão é ainda “ver o que há de positivo no outro, para acolhê-lo
e valorizá-lo como dom de Deus: um ‘dom para mim’, como o é para o
irmão que diretamente o recebeu. Por fim, espiritualidade da comunhão
é saber ‘criar espaço’ para o irmão, ‘levando os fardos uns dos outros’
(Gal 6,2) e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos insidiam e
geram competição, arrivismo, suspeitas, ciúmes” (ibid). Este é o caminho
a ser seguido: promover, por ocasião desta CFE, uma espiritualidade
ecumênica de comunhão, sem a qual, tudo o que se fizer em conjunto
serão meras ilusões, cujos instrumentos exteriores para realização das
metas propostas se revelarão “mais como estruturas sem alma, máscaras
de comunhão, do que como vias para a sua expressão e crescimento”
(ibid). É preciso resgatarmos o ponto central de nossa identidade como
criaturas criadas à imagem e semelhança de Deus, verdadeiramente
irmãos e irmãs uns dos outros.
Em tempos de Campanha da Fraternidade Ecumênica, é preciso
sobretudo, resgatarmos a fé na Santíssima Trindade onde tudo é união,
não havendo qualquer divisão. Se quisermos lutar por uma economia
justa, voltada para a vida, para o bem-estar social, para a dignidade da
pessoa humana, para a preservação da natureza, é preciso sairmos de
nosso comodismo, de nosso individualismo, de nossa ética minimalista
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Encontros Teológicos nº 55
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Antônio Lopes Ribeiro
e excludente e nos lançarmos a esta ação conjunta proposta pelo CONIC,
lembrando-nos sempre de que qualquer mudança deve começar a partir
de nós mesmos, e somente assim poderemos alcançar aquilo que aos
olhos humanos possa parecer um sonho impossível mas que, para Deus,
é certamente possível.
Referências:
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o tema da Campanha da Fraternidade 2000. In: HACKMANN, Geraldo
Luiz Borges (Org.). Sub Umbris Fideliter: Festschrift em homenagem a
Frei Boaventura Kloppenburg. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
SINNER, Rudolf Von. Confiança e Convivência: Reflexões éticas e
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BIZON, José. A unidade na diversidade: coletânea de artigos em comemoração aos 40 anos do decreto Unitatis Redintegratio sobre o Ecumenismo. São Paulo: Loyola, 2004.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Cultura da paz e prevenção da
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MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.
VELOSO, Dom Eurico dos Santos. Que todos sejam um, assim como
tu, Pai estás em mim e eu em Ti. São Paulo: Canção Nova Notícias,
2007. Disponível no site: http://noticias.cancaonova.com/noticia.
php?id=233241, acessado em 26/11/2009.
NAVARRO, Juan Bosch. Para compreender o ecumenismo. São Paulo:
Loyola, 1995.
VERCRUYSSE, Jos E. Introdução à teologia ecumênica. São Paulo:
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VIEIRA, Eurípedes Falcão; VIEIRA, Marcelo Milano Falcão. A dialética
da pós-modernidade: A sociedade em transformação. Rio de Janeiro:
FGV Editora, 2004.
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Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida
LEXICON: Dicionário Teológico Enciclopédico. Trad. NETTO, João
Paixão; MACHADO, Alda da Anunciação. São Paulo: Loyola, 2003.
JOÃO PAULO II, Papa. Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte,
ao episcopado, ao clero e aos fiéis no termo do Grande Jubileu do ano
2000.
Endereço do Autor:
ITESC
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524
Pantanal
88040-001 Florianópolis, SC
40
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Resumo: O artigo pretende demonstrar a relação entre economia solidária, onde
estão inseridos os grupos coletivos, e o modelo de desenvolvimento regional no
Contestado, em Santa Catarina. É uma breve síntese de alguns aspectos abordados em recente pesquisa de mestrado1. O destaque para a região delimitada
pode ajudar-nos a compreender a importância desses empreendimentos em
outras regiões do Estado catarinense. O artigo está assim dividido: a primeira
parte trata das diversas concepções e causas do surgimento e articulação da
economia solidária no Brasil; depois, analisam-se as principais características da
economia solidária na região do Contestado; por último, a partir de entrevista com
os próprios trabalhadores e trabalhadoras, apontam-se algumas contribuições
e desafios para uma outra economia e desenvolvimento regional.
Abstract: The article intends to demonstrate the relationship between economics
based on solidarity, including collective groups, and a model of regional development in the region of Contestado, of Santa Catarina. It offers a brief synthesis of
some aspects dealt with in a recent research for the Masters Degree. The focus
on a quite limited region may be of help to understand the importance of some
enterprises in other regions of the same State. The article is divided up in three
parts: firstly, different conceptions and causes are focused upon dealing with
the rise and organization of an economy based on solidarity in Brazil; secondly,
the basic characteristics of an economic based on solidarity are described in the
region of Contestado; thirdly, by consulting the working class some results are
being analyzed so as to gather some suggestions and collect some challenges
for creating an alternate economy and regional growth.
Economia Solidária na região
do Contestado, em Santa Catarina
Roque Favarin*
*
1
O autor é Padre da Diocese de Caçador e é membro da Cáritas Brasileira/SC.
Cf. FAVARIN, 2009.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 41-66.
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
Introdução
A região do Contestado, geograficamente, situa-se no meio-oeste
catarinense, no alto vale do Rio do Peixe e no Planalto Norte, e também
limita-se com o sudoeste do Paraná. Essa região é assim conhecida
porque aí ocorreu a guerra do Contestado (1912-1916) e se gerou uma
identificação econômica, social e cultural. Ela também se manifesta na
organização política do Estado, nas suas diversas instâncias, presentes
nesse território regional2. A delimitação espacial aqui não se situa apenas
nos limites geopolíticos e territoriais, mas acima de tudo, nos limites
simbólicos e culturais.
A Guerra do Contestado marca já com conflito e mortes o início
do desenvolvimento capitalista na região. Nessa ocasião, parte da elite
regional aliou-se aos donos do capital nacional e internacional. Essa
minoria conseguiu implantar esse modelo de desenvolvimento para
atender somente a seus interesses, inclusive com uso do poder armado
e não só político ou econômico. Assim foi o início do desenvolvimento
capitalista na região, utilizando-se da força de trabalho da população
autóctone, primeiramente dos caboclos e, depois, dos agricultores familiares (colonos). Compreende-se assim a rebeldia e a resistência dessas
classes desprezadas, em sua maioria, vindo a eclodir numa guerra. As
“cidades santas” e o “pixirum” são consideradas as formas alternativas e
coletivas de organização desde os tempos da guerra e muitos elementos
incorporados pela agricultura familiar, posteriormente. Com o avanço
das forças produtivas do capital, elas foram desaparecendo. Ressurgem
agora, nas duas últimas décadas, outras iniciativas, com outro nome.
São experiências ainda pequenas, mas que aos mesclarem agroecologia,
cooperativismo, autogestão etc, podem apontar para uma economia a
serviço da vida.
2
42
A delimitação do MDA, por exemplo, divide a região em dois territórios: 1) o Planalto
Norte (exceto Campo Alegre, Itaiópolis, Mafra, Rio Negrinho, e São Bento do Sul) e
2) o Alto Vale do Rio do Peixe (exceto Tangará). Outros dois municípios são: Treze
Tílias (ao Meio-Oeste Contestado) e Santa Cecília (ao Planalto Catarinense). A região
compreende duas associações de municípios: 1) AMARP e 2) AMPLANORTE. A
única exceção nesse caso é Treze Tílias, que pertence a AMMOC. Na divisão política do governo estadual, a região compreende as seguintes Secretarias Regionais
e Microbacias: SDR de Videira, SDR Caçador, SDR Canoinhas e SDR Mafra. As
exceções são: Treze Tílias na SDR de Joaçaba e Santa Cecília na SDR Curitibanos.
Enfim, mesmo com as exceções, percebe-se uma delimitação similar de todas elas
em duas regiões: Alto Vale do Rio do Peixe, e Planalto Norte. Elas formam a região
do Contestado como identidade política e cultural, deixada pelos anos subseqüentes
à Guerra.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Roque Favarin
Na região do Contestado, a economia solidária, que pretendemos
descrever, se destaca a partir da década de 1990. Esses empreendimentos surgem a partir das relações com sindicatos de trabalhadores, com o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST, as associações
de mulheres, as pastorais sociais, isto é, com fortes vínculos comunitários e sociais. Também surgem como alternativas à crise na agricultura
familiar integrada à agroindústria e ao desemprego no meio urbano. O
Fundo Rotativo dos Mini-Projetos Alternativos – MPAs3 incentivou várias experiências comunitárias de geração de trabalho e renda a grupos
denominados coletivos, com atividades alternativas. Esse Fundo foi
implantado no segundo semestre de 1994, em Santa Catarina. O apoio
financeiro consiste num empréstimo a ser devolvido em quatro anos,
vindo a constituir um fundo que servirá para outros empréstimos a novos
empreendimentos. Por isso, o nome de rotativo.
Ilustração 1: Mapa da Localização da Região do Contestado em SC.
3
MPA’s foi um programa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - Regional Sul IV
(abrange o estado de Santa Catarina), em convênio com a Misereor (entidade social
da Igreja Católica na Alemanha). Desde 2006, esse programa de apoio passou a ser
gerido pela Cáritas Brasileira Regional Santa Catarina. O programa surgiu no final da
década de 1980, a partir de uma interação com os movimentos sociais e objetivando
apoiar práticas transformadoras e contribuir na superação da exclusão social. Para
efeitos práticos, vamos denominá-lo simplesmente MPAs, como ficou conhecido, e não
CNBB Regional Sul IV ou Cáritas Brasileira, as entidades gestoras do programa.
Encontros Teológicos nº 55
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43
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
A questão que desafia esse conjunto de práticas chamadas de
“economia solidária” é a de perceber até que ponto podem gerar um
novo modelo, uma economia baseada na Vida, como práticas sócioeconômicas? Este artigo pretende demonstrar a relação entre economia
solidária, onde estão inseridos os grupos coletivos, e o modelo de desenvolvimento regional no Contestado. É uma breve síntese de alguns
aspectos abordados em recente pesquisa de mestrado4. O destaque para a
região delimitada pode ajudar-nos a compreender a importância desses
empreendimentos em outras regiões de Santa Catarina. O artigo está
assim dividido: a primeira parte trata das diversas concepções e causas
do surgimento e articulação da economia solidária no Brasil; depois,
analisam-se as principais características da economia solidária na região
do Contestado; por último, a partir de entrevista com os próprios trabalhadores e trabalhadoras, apontam-se algumas contribuições e desafios
para uma outra economia e desenvolvimento regional.
1 Origens da economia solidária no brasil
Atualmente no Brasil há inúmeras iniciativas socioeconômicas
conhecidas como economia solidária. “São iniciativas associativas,
espontâneas, surgidas no movimento social, constituindo uma corrente
heterogênea de propostas e iniciativas concretas sob o título genérico de
‘economia solidária’” (GERMER, 2007, p.52).
No intuito de fortalecer essas experiências, foram criadas entidades de apoio, fóruns, articulações, seminários, feiras, conferências5.
Agregam-se inúmeras entidades da sociedade civil, setores governamentais e empreendimentos solidários, com significativas conquistas,
mas também com os limites que essas mesmas experiências trazem no
cenário atual.
44
4
Cf. FAVARIN, 2009.
5
De um modo geral, conforme a SENAES, há a seguinte diferenciação conceitual: Os
empreendimentos de economia solidária, EES, são organizações “coletivas, suprafamiliares, singulares e complexas, cujos participantes ou sócios são trabalhadores
dos meios urbano e rural, que exercem coletivamente a gestão de atividades como
alocação de recursos, com diversos graus de formalização...” (BRASIL, 2006a, p.13)
Já as entidades de apoio e fomento, EAF´s, são aquelas organizações que desenvolvem ações nas “várias modalidades de apoio direto junto aos empreendimentos
econômicos e solidários tais como: assessoria, incubação, assistência técnica e
organizativa e acompanhamento.” (BRASIL, 2006a, p.13)
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Roque Favarin
Nestes quase 30 anos de economia solidária no Brasil, também se
pode fazer outra diferenciação conceitual a partir das diversas maneiras de
entendê-la. Cada uma delas coincide também com as diversas fases históricas e conjunturais da política e das demandas da sociedade brasileira.
A economia solidária pode ser entendida a partir do combate à
pobreza, à miséria e à fome, à exclusão social. Luiz I. Gaiger (org.)
(1996) apresenta uma discussão sobre os limites, os avanços e a importância das alternativas de combate à pobreza, dentre elas, a economia
solidária. Nessa obra, Léo Voigt apresenta a estratégia de uma política
social de fomento aos “famiempresários”. É uma política que surge no
calor do debate e da mobilização social, sobre o tema da fome no Brasil,
nos anos iniciais da década de 1990, mobilização concretizada na “Ação
da Cidadania”, pelo sociólogo Herbert de Souza (Betinho)
O desenvolvimento de experiências em economia solidária, como
as mencionadas acima, sofreu forte “aceleração em 1994, quando a Ação
da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida - ACCMV resolveu
mudar sua tática e, em vez de apenas distribuir alimentos, passou também
a fomentar a geração de trabalho e renda.” Um destaque da Ação foi a
criação da Cooperativa de Manguinhos no Rio de Janeiro6.
A Cáritas Brasileira contribuiu nesse aspecto incentivando os
Projetos Alternativos Comunitários – PACS7 com ações sociais voltadas
às comunidades locais e excluídas socialmente. Nos primeiros anos,
desde a sua fundação, em 1956, desenvolvia um trabalho voltado basicamente na linha da assistência, da benevolência, distribuindo alimentos,
remédios e roupas aos mais pobres. Posteriormente mudou o caráter de
suas ações, passando para a promoção humana8. Atualmente, a Cáritas
6
O Complexo Manguinhos é formado por 10 favelas, e grande parte dos moradores
eram desempregados, existindo muita violência. A cooperativa de trabalho surgiu a
partir de iniciativa da Fiocruz enquanto integrante da Campanha contra a Fome, sugerindo que os trabalhadores (moradores da favela) prestassem serviço de jardinagem
à empresa. Hoje, ela é uma das experiências de cooperativa de trabalho com maior
êxito e consegue ser mais competitiva que qualquer empresa capitalista (SINGER In:
SANTOS, 2002a, p.120-122).
7
Trabalho similar aos Miniprojetos Alternativos da CNBB – Regional Sul 4.
8
As primeiras iniciativas no Brasil vieram da CNBB e da Cáritas Brasileira, em 1981,
tentando emprestar dinheiro aos pequenos agricultores. Isso era para incentivar e
fomentar a permanência de famílias no nordeste. As iniciativas se espalharam por
todo o Brasil, e foram conhecidas como Projetos Alternativos Comunitários – PACs.
Em Santa Catarina, a CNBB mantinha um programa similar denominado MPAs desde 1989. Essa experiência será tratada adiante (CARITAS BRASILEIRA, 2006; cf.
SINGER, 2002, p. 122).
Encontros Teológicos nº 55
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45
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
promove projetos sociais, dando ênfase à solidariedade libertadora, com
o protagonismo dos excluídos. Seus recursos são gerados através de
doações e campanhas. Essa instituição procura ter uma postura crítica
e não meramente assistencialista, como nas décadas iniciais de seu surgimento no Brasil (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.117-119; CNBB,
2006, p.45-66).
Mencionaram-se essas referências acima por serem as de maior
destaque e contribuição para o surgimento da economia solidária, sem,
no entanto, olvidar ou menosprezar o trabalho de tantas outras entidades
espalhadas pelo Brasil, que procuraram levantar a discussão política em
torno da problemática da fome, para a sociedade brasileira.
Outra maneira de entender economia solidária é o conceito de instrumento de geração de emprego e trabalho. Essa concepção surge por
causa da crise do fordismo e da reestruturação produtiva, alimentadas pela
globalização e políticas neoliberais, resultando no desemprego estrutural.
A partir disso, a economia solidária passa a ser vista como política e instrumento de geração de trabalho e renda, principalmente pelo movimento
sindical e popular. Uma dessas alternativas encontradas para garantir o
emprego são as experiências autogestionárias a partir da falência ou da
crise de empresas capitalistas, provocadas pela reestruturação produtiva
e a globalização neoliberal, na década de 1990 principalmente.
Esse movimento autogestionário surgiu no Brasil como solução
aos trabalhadores quando uma empresa entrava em processo falimentar.
Por meio da intervenção do Sindicato, os trabalhadores conquistavam o
patrimônio (a “massa falida”) dos antigos empregadores e se tornavam
donos coletivamente da empresa, organizando-se em forma de cooperativa (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.89).
Essas experiências autogestionárias nascem a partir do movimento
sindical. “Em todos os casos de transformação de empresas falidas, ou
em vias de falir, o sindicato dos trabalhadores teve de assumir a liderança
do processo, apesar de não ser unanimemente aceita e compreendida,
a economia solidária, no movimento sindical (SINGER In: SANTOS,
2002a, p.123).
Muitos sindicatos de trabalhadores ainda resistem a apoiar a economia solidária por vários motivos: comparam-na com uma forma de
terceirização de mão-de-obra (cooperativas falsas) e também porque o
trabalho assalariado é a base social dos sindicatos, ou ainda por alguns
46
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Roque Favarin
compreenderem que as cooperativas eliminariam o caráter de classe
trabalhadora (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.124-125).
Rosângela N. de C. Barbosa corrobora nessa perspectiva crítica
à economia solidária, compreendendo-a como mais uma das maneiras
de precarização do trabalho. A qual serviria para ajudar o capitalismo a
resolver o problema provocado pelas políticas neoliberais. Ela situa o
nascimento da economia solidária no mesmo bojo das políticas de geração
de trabalho e renda dos anos 19909. A economia solidária representa assim
ações individualizadas. Por outro lado, a autora admite que a economia
solidária surge da ambigüidade das mudanças do capitalismo nos últimos
20 anos, que tendem a uma “nova cultura do trabalho como mediação
educativa, centrada no homem e sua emancipação” (2006, p.101-109).
Uma terceira maneira de compreender a economia solidária é
situá-la como estratégia de desenvolvimento solidário e sustentável:
essa noção vem sendo respaldada atualmente nos debates, conferências,
plenárias e ações públicas. Em parte tratou-se desse assunto no capítulo
anterior. No Brasil, esse debate ganha força com a economia solidária
ligada aos camponeses e às populações urbanas comprometidas com
o consumo responsável e questões ambientais. Nesse sentido, as cooperativas de assentados e as experiências da agricultura familiar em
agroecologia adquirem importância.
O avanço maior nessa compreensão está no Documento Final da I
Conferência Nacional de Economia Solidária, que apresenta alguns fundamentos e o papel da economia solidária para a construção do desenvolvimento sustentável, democrático e socialmente justo. Essas conclusões
apontam para um novo modelo de desenvolvimento que “considera a
centralidade da pessoa humana, a sustentabilidade ambiental, a justiça
social, a cidadania e a valorização da diversidade cultural, articuladas
às atividades econômicas” (BRASIL, 2006b, p. 60).
Uma quarta maneira de compreender a economia solidária é vê-la
como estratégia para a construção do socialismo. A questão é polêmica,
9
Por exemplo, no Brasil, o seguro-desemprego surge em 1986 e é incluído na Constituição Federal de 1988. Em 1990 surge o FAT, com fonte no PIS/ PASEP: a idéia
era de transformar os desempregados em empreendedores. Depois do FAT surge o
PROGER, via instituições financeiras federais em 1993. Depois o pró-emprego de
1996, via BNDES. Hoje consiste em política de emprego o próprio auto-emprego.
(BARBOSA, 2006, p.99-100)
Encontros Teológicos nº 55
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Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
pois, ao desejar ser “outra economia”, que não a capitalista, a economia
solidária pretende ser economia socialista?
Para Claus Germer, a economia solidária quer mudar a economia
capitalista “pelas beiradas”, e não por um enfrentamento mais direto. Por
outro lado, a economia solidária não é uma experiência econômica ou economicista meramente, mas se constitui e se organiza também no campo
político e social. Daí, a necessidade de a economia solidária articular-se
com o movimento social no Brasil. Portanto, pretende-se até fazer a
experiência embrionária de uma nova sociedade (2007, p.51-73).
O “Estado socialista dos trabalhadores” também merece ser
avaliado historicamente nas suas contradições, pois foi ele que gerou o
stalinismo, o poder burocrático, o “Estado total”, e não a socialização
dos meios de produção, como Claus Germer parece conceber que seja
socialismo. Uma política pública de economia solidária quer também
acumular forças, para transformar o Estado e não apenas seguir a via
econômica da construção socialista. Assim, o socialismo, que é compreendido como a tomada do Estado pelos trabalhadores e o principal
agente da construção socialista, a partir do cooperativismo e da economia
solidária ganha novas estratégias.
O que distingue esse novo cooperativismo é a volta aos princípios, o
grande valor atribuído à democracia e à igualdade dentro dos empreendimentos, a insistência na autogestão e o repúdio ao assalariamento.
[Com o fracasso do socialismo, da social democracia, do Estado de
Bem Estar Social] o foco dos movimentos emancipatórios voltou então
cada vez mais para a sociedade civil. [Mas, apesar disso,] o avanço da
economia solidária não prescinde inteiramente do apoio do Estado e
do fundo público (SINGER, 2002, p. 111).
Por outro lado, Claus Germer critica as concepções de Paul Singer
por este ver a economia solidária como estratégia para a construção da
sociedade socialista e considerar a luta dos trabalhadores somente como
luta autogestionária. A tentativa de Paul Singer, de teorizar a economia
solidária com base em alguns elementos da teoria social marxista de
‘novo modo de produção’, ignorou a crítica marxista. Por isso, Claus
Germer chega a duas conclusões:
1) A ‘economia solidária’ não é, ao contrário da pretensão de Singer,
uma ‘criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o
capitalismo’. (...) O que os trabalhadores em luta contra o capitalismo
48
Encontros Teológicos nº 55
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Roque Favarin
criaram, em quase duzentos anos de uma história riquíssima, foi em
primeiro lugar o conceito rigoroso do socialismo como objetivo, cuja
essência é a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a
instituição da propriedade coletiva, e, em segundo lugar, a necessidade
da conquista do poder de Estado.(g.n)
2) A cooperativa de produção, tida por Singer como protótipo da ‘economia solidária’, embora tenha surgido ao lado da sociedade anônima,
como sintonia de uma nova realidade emergente no interior do capitalismo, é incapaz, como a própria sociedade anônima, de constituir uma
via de superação do capitalismo (2007, p.72-73).
A partir do que foi exposto acima, a questão é saber qual socialismo a economia solidária quer construir? É o da estatização socialista,
como foi o stalinista, implantado na União Soviética e demais países
socialistas no século passado (o que Rosangela Barbosa e Claus Germer,
como marxistas, parecem expor)? Será que a economia solidária não
está propondo também “outro socialismo”? Nem todos os envolvidos
em economia solidária fazem esse debate, porque não vêem a economia
dessa forma. De maneira geral, os que a vêem como caminho para o
socialismo, como Paul Singer, entendem que o socialismo da economia
solidária conta com o Estado, como gestor da sociedade, mas também
conta com o “mercado”, como responsável pela comercialização. Não
necessariamente o mercado capitalista.
A partir dessas causas e concepções, acima expostas, pretende-se
perceber e analisar, a partir de uma região, como elas se manifestam e como
podem contribuir para outros parâmetros de organizar a economia.
2 Contexto da economia solidária
na Região do Contestado
Quanto ao modelo alternativo de desenvolvimento regional no
Contestado, as experiências de economia solidária obtiveram maior
destaque, como já foi dito, a partir da década de 1990. Essas experiências surgiram, basicamente, a partir do trabalho dos movimentos sociais
na região, principalmente com o programa de apoio aos Mini-Projetos
Alternativos – MPAs da CNBB Regional Sul IV. Os MPAs trabalharam
articulados com sindicatos de trabalhadores, com o MST, as associações
de mulheres, as próprias comunidades locais e tantas outras, embora
mantivessem autonomia organizacional e política.
Encontros Teológicos nº 55
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49
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
No período de 1998-2008, foram vários os empreendimentos de
economia solidária surgidos na região do Contestado, sem o apoio direto
dos MPAs. Esses empreendimentos, em sua maioria, foram cadastrados
no mapeamento do Sistema de Informações da Economia Solidária,
SIES10, e outros não o foram por terem surgido recentemente ou terem
sido apoiados no período anterior a 1998. Segundo pesquisa na base de
dados do SIES, nessa região existiam 44 EES, em 2007, distribuídas
diversamente em 15 municípios da região.
Ilustração 2: EES por Município da Região do Contestado – 2007
Fonte: Base de dados SIES (Sistema Nacional
de Informações em Economia Solidária)
Quanto às razões do surgimento ou motivações para a criação dos
EES, revelaram-se bastante variadas, sobressaindo-se a superioridade da
razão “para obter maiores ganhos” com o empreendimento associativo
(22,73%); e como “alternativa organizativa e de qualificação” (18,18%).
10
50
Sistema de Informações da Economia Solidária da Secretaria Nacional de Economia
Solidária, cf www.sies.mte.gov.br. Buscou-se também informações presentes no
“Farejador” na página eletrônica: www.fbes.org.br
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Roque Favarin
Nenhum empreendimento refere-se à empresa recuperada pelos trabalhadores (cf. Ilustração n. 2).
As atividades econômicas desses 44 EES concentram-se mais na
produção agrícola e/ou produtos alimentares. Somente cinco (5) deles
não têm atividades ligadas a produtos agrícolas, sendo, dois no artesanato e três no ramo de confecções. Há maior concentração da produção
de hortifrutigranjeiros, e isso já revela um peso maior na questão da
agroecologia.
Quanto aos participantes, no que se refere às questões de gênero,
há uma predominância masculina em termos absolutos, na divisão por
municípios e também por empreendimentos. Em apenas três municípios
o número de mulheres é superior ao número dos homens, e em dois há
igualdade de participação.
A partir da constituição do Fundo Rotativo dos MPAs, até 2008
foram apoiados 235 empreendimentos, no estado de Santa Catarina,
beneficiando 709 famílias. Atualmente, esse Fundo possui um fluxo de
caixa médio anual em torno de R$ 50.000,00, o que possibilita a continuidade de apoio a esses empreendimentos. No total, no período da
pesquisa, foram apoiados financeiramente 13 mini-projetos na região
do Contestado.
Percebe-se que, para um valor de R$ 45.200,24 foram apoiadas 96
famílias, o que representa uma média de R$ 470,83 por família. O que
chama atenção também é a baixíssima inadimplência das devoluções ao
Fundo Rotativo, o que indica a possível viabilidade também econômica
desses empreendimentos, também apontada na base de dados do SIES
(Cf. Tabela n.1).
A partir dos 13 empreendimentos apoiados pelo fundo rotativo dos
MPAs, na região do Contestado, conseguiu-se fazer esta pesquisa com
oito empreendimentos mais um, que embora não apoiado, integra-se nas
atividades e princípios de economia solidária. Esse foi escolhido também
porque representa uma cooperativa a partir da perspectiva da reforma
agrária, e de agricultores assentados. Quanto aos cinco restantes que não
foram entrevistados: três deles passaram a integrar a nova cooperativa,
e outros se desarticularam, meses depois do apoio11.
11
Essa pode ser considerada uma lacuna deste trabalho para futuros estudos e
pesquisas.
Encontros Teológicos nº 55
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51
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
Apresenta-se a seguir uma síntese dos principais depoimentos dos
membros dos empreendimentos, obtidos na entrevistas desta pesquisa.
TABELA 1: EES apoiados pelos MPAs na Região
do Contestado – 1998 a 2008.
N.
famílias
N. de
pessoas
Homens
Mulheres
Ensino
Fund.
Ens.
Médio
Ensino
Sup.
Empréstimo*
R$
AFAT –
Arroio Trinta
25
65
30
35
58
6
1
3.600,00
Mini-Agroindustria - Porto
União
12
23
16
7
17
4
2
2.800,00
Massas Val Verde - Arroio
Trinta
12
12
-
12
12
-
-
1.340,00
Vida Nova –
Caçador
3
5
3
2
5
-
-
2.305,00
Vida Com Saúde – Caçador
4
10
4
6
10
-
-
2.115,00
Apicultura –
Arroio Trinta
5
19
10
9
11
8
-
4.952,00
Frangos Caipiras Irineópolis
6
23
13
10
18
5
-
4.500,00
Agrupar –
Canoinhas
5
15
7
8
12
3
-
4.888,00
Le Soréle –
Arroio Trinta
3
3
-
3
3
Agroecologia São Caetano
– Macieira
4
13
5
8
10
3
2.090,24
Coopertrinta –
Arroio Trinta
10
25
10
15
18
7
4.950,00
Amanhecer Crescendo –
Salto Veloso
3
8
2
6
7
ARP Vida –
Matos Costa
4
7
7
7
TOTAL
96
228
128
181
Grupo apoiado
100
3.000,00
1
5.660,00
3.000,00
36
4
45.200,24
Fonte: Coleta de dados dos formulários de MPAs. Elaboração: Roque A. Favarin.
*Os valores são nominais conforme o montante liberado
do Fundo Rotativo dos MPAs.
3 O que dizem os trabalhadores
da economia solidária
A seguir demonstra-se como os trabalhadores da economia solidária, entrevistados, entendem essa experiência. Para a realização das
entrevistas seguiu-se um roteiro previamente estabelecido com diversas
questões abertas. Primeiramente, procurou-se descobrir os principais
motivos pelos quais surgiram os empreendimentos e quais eram as
atividades exercidas pelos membros antes da integração ao grupo, e as
atividades principais dos empreendimentos. Buscou-se perceber o que os
52
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Roque Favarin
participantes indicam como melhorias ou perdas das condições de vida,
depois de se terem envolvido no empreendimento coletivo.
Também questionou-se sobre dificuldades enfrentadas no começo
da constituição do empreendimento e como as superaram. E, quais dificuldades encontram para continuar no empreendimento de economia
solidária. Nas outras questões buscou-se identificar avanços (pontos
positivos) que eles percebem, obtidos por seu empreendimento no nível
local. E como a comunidade local (pessoas, políticos, entidades, empresas, etc.) compreende a iniciativa de economia solidária.
Por fim, uma questão tratava da gestão e administração do empreendimento, para perceber qual o seu grau de institucionalidade. Assim
identificaram-se as principais contribuições da economia solidária para
um novo desenvolvimento regional no Contestado.
Os resultados das entrevistas com participantes dos nove empreendimentos entrevistados são sintetizados nos itens abaixo.
3.1 Quanto às causas do surgimento do
empreendimento ou da atividade
A maioria dos empreendimentos da economia solidária da região
encontra-se vinculada à agricultura familiar. As respostas dadas se
mesclam em causas relacionadas à atividade econômica alternativa ou
à de associar-se no empreendimento, pois tanto uma quanto outra se
apresentam como alternativas.
As causas relacionam-se às contradições do desenvolvimento regional hegemônico e vigente. Uma delas é que o modelo da integração
às grandes empresas não garante renda “segura”, e se torna insuficiente
para a vida das famílias. O sistema de integração, baseado na lógica do
mercado capitalista e voltado para a exportação, exige cada vez mais
dos agricultores “integrados”. Outra é o uso de agrotóxicos, principalmente os ligados à monocultura do fumo, ocasionando sérios riscos à
saúde das pessoas. Isso acontece num processo lento, onde ambas as
atividades são exercidas concomitantemente até o “convencional” ser
deixado de lado.
Anteriormente os agricultores trabalhavam com fumo, sendo necessário
um uso intenso de agrotóxicos. Para melhorar a qualidade de vida,
tínhamos que buscar novos caminhos. Você está num trabalho e, mui-
Encontros Teológicos nº 55
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53
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
tas vezes, acha que não existe uma saída. Mas depois vai conciliando,
juntando um trabalho com outro, e percebe que há alternativas (Grupo
Agroecológico São Caetano)
Destaca-se a importância de produzir ecologicamente para se evitar
as doenças e garantir condições saudáveis.
Inicialmente plantávamos fumo, mas devido às doenças provocadas,
fomos obrigados a ver outras formas. O químico [insumo e agrotóxico]
prejudicava ainda mais. Uma pessoa do nosso grupo tinha problemas
com a circulação [sanguínea] e quando vinha a época do fumo ele ficava
mais doente. Parava mais no médico que na roça. (AGRUPAR)
Outros identificam que a causa principal em organizar-se como
grupo de economia solidária foi viabilizar a comercialização dos produtos agrícolas.
A Coopertrinta apresenta essa mesma razão de seu surgimento,
procurando vender seus produtos na região. A dificuldade em seguir os
padrões da vigilância sanitária impedia a comercialização.
Também foi destacada a importância que teve o incentivo das
entidades da sociedade civil e determinados órgão públicos, que apoiam
a agroecologia e a economia solidária. Em quase todos os entrevistados
foi salientado o engajamento e a participação em movimentos sociais,
sindicais e comunitários.
Vale destacar também que a capacitação/participação em cursos
profissionalizantes e técnicos contribuiu também para o seu surgimento,
mas não foi destaque nas respostas da maioria e não a citaram como
motivação inicial.
Como a maioria dessas iniciativas são ligadas à agricultura familiar, as causas reduzem-se à estratégia de geração de renda e produção
agroecológica.
3.2 A gestão dos Empreendimentos de Economia Solidária
Sobre a gestão ou administração coletiva dos empreendimentos,
a maioria deles possui algum registro legal12. Como eles compõem-se
de reduzido número de membros, a burocracia interna tende a ser mais
simples e informal.
12
54
Como estatutos, Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ, Livro-Ata, controles
financeiros, etc. Alguns têm “um conselho administrativo e uma diretoria.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Roque Favarin
A Coopercontestado, por ter um número maior de sócios, exige
uma organização melhor, e dentre os entrevistados, foi quem mais detalhou essa questão.
Existe a assembleia geral, onde se define quem são os coordenadores.
A direção da cooperativa é feita por um conselho diretor, com membros
representativos de cada assentamento. É discutido tudo o que tem de ser
melhorado dentro da cooperativa. Todo o início de ano existe a assembleia ordinária e, se há sobras, a assembleia decide para onde vai, se é
para investimento ou para divisão entre os sócios. A assembleia é que
tem a autonomia de poder decidir. (Coopercontestado)
Por outro lado, em alguns empreendimentos, como na maioria dos
que se configuram como associações, o caráter coletivo não está na gestão ou na propriedade comum dos meios de produção. E sim na compra
coletiva de insumos e/ou na venda coletiva. Isso acontece principalmente
quando os empreendimentos são constituídos de pessoas que não têm
relações familiares próximas.
Em outros, as tarefas não são divididas internamente. “Fazemos um
rodízio. Enquanto uns plantam, outros vão lá na Feira para vender, e assim
fazem contato com o público. Desse modo, todos aprendem de tudo”.
Fazemos tudo aqui, produzimos e vendemos ao mesmo tempo. Temos que
aprender um pouco de tudo. O que uma não sabe, procura-se discutir
tudo junto. Quando há dificuldades, contamos com a ajuda do escritório
contábil. (Le Sorele).
As respostas a essas questões das entrevistas revelaram poucas
informações a respeito do assunto. Talvez, implicitamente, as questões
internas sejam um desafio para os empreendimentos, pois a informalidade
é uma de suas características. Também essa pode ser a lacuna em que as
EAFs poderiam assessorar e contribuir. Algumas associações não falaram
muito desse aspecto, pois as relações familiares presentes, as decisões e
administração, tendem a ser mais informais.
3.3 O que melhorou na vida dos trabalhadores
com a economia solidária
Procurou-se perceber nas entrevistas os impactos dessas novas formas de organização socioeconômica. Os depoimentos foram
surpreendentes.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
55
Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
Minhas duas filhas [com famílias já constituídas] estão voltando para o
projeto [empreendimento], deixando de morar na cidade. É um avanço
o agricultor poder dizer que pode tirar seus filhos do emprego para vir
à roça de volta porque aqui está melhor... Aqui você não paga o aluguel,
a água, a creche para as crianças, e ainda tira o sustento (AGRUPAR)
São destacadas as melhorias na alimentação e na saúde do
trabalhador.
Deixando de lado o fumo tem-se uma alimentação melhor, e não fomos
mais ao hospital. Inclusive a renda financeira é maior do que quando se
plantava fumo, com menos área plantada. Meus netos podem brincar à
vontade aqui. Não temos aquela preocupação de uma vez, de toda hora
ficar falando: ‘cuidado, não mexa no veneno’, ‘cuidado com essa planta,
tem veneno’. Quando uma criança ficava doente, a preocupação: será
que não se envenenou? (AGRUPAR)
A maioria deu destaque para a conquista de autonomia, a superação de limites, a consciência coletiva. “Melhorou a consciência de
muitas pessoas e a coragem de iniciar alguma iniciativa diferente na
propriedade”.
Segundo um dos entrevistados, “melhorou e muito a vida do
agricultor, pois hoje cada família conseguiu adquirir carros, tratores,
casa nova...”. E “cada uma tem a sua renda. Ajudamos os filhos nos estudos”. Outro: “melhorou a renda e a autoestima dos participantes. Gerou
emprego para as pessoas. Conseguimos acesso a crédito por estarmos
organizados. E fizemos a vigilância sanitária atuar mais (sic)”.
Ninguém falou que essa nova forma de produzir levou a empobrecimento, ou redução da renda econômica. Nas respostas percebe-se
o entusiasmo e alegria pelas conquistas que obtiveram e estão obtendo
com estas novas formas de organização, por trabalhar e produzir autônoma e livremente.
3.4 Sobre as conquistas a partir da economia solidária
No conjunto das respostas pode-se dizer que existe um reconhecimento, pelos participantes, dos avanços, em no mínimo três aspectos: no
campo econômico, nos aspectos organizativo/comunitário, e no cuidado
com o meio ambiente.
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Quanto aos avanços econômicos, foi dito o seguinte: “Deixando
de lado o “fumo” [enquanto atividade econômica], temos uma alimentação melhor e não fomos mais ao hospital. Inclusive a renda financeira
é maior e com menos área plantada”.
Também o “acesso a crédito foi mais fácil. Melhorou a renda dos
participantes. Gerou emprego. Aumentou de produção e acesso a novos
mercados. Novas vendas foram realizadas com a participação no PAA13.
A venda coletiva tem vantagens no preço. Elimina o atravessador. E a
facilidade em acessar programas e políticas públicas do governo estadual e federal. Gerou um novo aprendizado: como elaborar projetos”.
Também destaca-se o trabalho diferente e alternativo; o despertar para o
turismo rural; o resgate da cultura tradicional, a autoestima dos membros
porque fizeram atividades diferentes e porque têm local para vender; e a
valorização de produtos locais.
Além disso, acrescenta-se a busca da diversificação da produção
e suas vantagens. “Hoje queremos melhorar a produção e educar o
consumidor a consumir produtos saudáveis, e para isso fazemos feiras
nos bairros. Produzimos sabão caseiro mais barato, sobrando recursos
financeiros para comprar alimentos na feira”. (Entrevistada)
Quanto aos aspectos organizativos e comunitários, o maior
avanço foi o de despertar para a consciência cidadã e a importância do
coletivo.
Também os avanços são sentidos no “entorno” do empreendimento, como revela esta resposta dentre outras.
13
“O Programa de Aquisição de Alimentos é uma das ações do programa “Fome Zero”
[do Ministério de Desenvolvimento Social – MDS], cujo objetivo é garantir o acesso
aos alimentos em quantidade, qualidade e regularidade necessárias às populações
em situação de insegurança alimentar e nutricional, e promover a inclusão social no
campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar. (...) O Programa adquire
alimentos, com isenção de licitação, por preços de referência que não podem ser
superiores nem inferiores aos praticados nos mercados regionais, até o limite de
R$ 3.500,00 ao ano por agricultor familiar que se enquadre no Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, exceto na modalidade incentivo à produção e consumo do leite, cujo limite é semestral. (...) Os alimentos
adquiridos pelo Programa são destinados às pessoas em situação de insegurança
alimentar e nutricional, atendidas por programas sociais locais e demais cidadãos
em situação de risco alimentar, como indígenas, quilombolas, acampados da reforma
agrária e atingidos por barragens. (Disponível em http://www.mds.gov.br/programas/
seguranca-alimentar-e-nutricional-san/programa-de-aquisicao-de-alimentos-paa.
Acesso em 31/03/2009).
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Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
A consciência de muitas pessoas e a coragem de iniciar alguma iniciativa diferente na propriedade. No início, a comunidade olhava para
esse grupo de jovens [como quem] não tinham os ‘pés no chão’. Três
das quatro famílias deixaram de plantar fumo porque perceberam que
dá para apostar em outra coisa, sem necessitar estar integrado numa
empresa (APAECO).
Também os intercâmbios são entendidos como uma saída para
fortalecer o grupo e fazer surgir novos grupos.
Um agricultor para outro passa mais fácil [as informações] do que um
técnico. O técnico é mais formal. Tem palavreado do técnico que você
não entende. Com vergonha de perguntar, acaba não entendendo. Hoje
o técnico [que acompanha o grupo] tem linguajar mais compreensível.
A gente não tem medo de perguntar. O coordenador da AFRUTA deu
grande apoio no começo para nós aqui dessa maneira (AGRUPAR)
O apoio e a participação nas redes de economia solidária são
salientados:
Com o apoio de um técnico e também [da inserção] na Rede Ecovida.
A feira está ampliando o consumo. O produtor, que sabe como produz
quem produz. Estão sendo promovidos encontros nos finais de semana,
para os consumidores verem como se produzem as verduras... A idéia é
criar grupos consumidores filiados à rede Ecovida. (AGRUPAR)
Alguns empreendimentos estão inserindo-se no PAA, para se
fortalecer enquanto associação. “Este ano estamos entregando no PAA,
na escola e no hospital”. (AGRUPAR) A participação nas instâncias e
articulação das políticas de Território, do Ministério do Desenvolvimento
Agrário, tem suas vantagens, expressadas pela Coopercontestado. Nesse
sentido, alguns empreendimentos também participam e acessam políticas
públicas.
A noção do cuidado com o meio ambiente é assim descrita: “A
alternativa ecológica vai protegendo o solo. Em vez de eliminar os microorganismos do solo, vai sendo enriquecido. O próprio meio ambiente
vai dando respostas e vai incentivando a continuar” (GA São Caetano).
“Outro avanço é o de ajudar o produtor a parar de usar produto químico.
Produzindo feijão orgânico, e o leite à base de pasto verde. Isso reverte em
saúde para o agricultor e para quem vive na cidade [que vai consumir]”.
(Coopercontestado). Na ARP-VIDA, de Matos Costa, foi apontada a
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possibilidade de uma nova aprendizagem ecológica da população com
a seleção do lixo.
3.5 Quais as dificuldades apontadas para estar
na economia solidária
A concorrência e o individualismo são dificuldades e desafios permanentes, não somente na fase inicial dos empreendimentos. Haja vista
que esses são os pilares subjetivos que mantêm a economia capitalista.
Dificuldades foram apontadas em relação ao poder público, da
seguinte forma: “O que mais desanimou o grupo foi a burocracia para
conseguir os recursos”.
O acesso a esses recursos, para que a cooperativa possa estar aumentando a produção lá nos próprios assentamentos. A maioria dos recursos é dos grandes bancos, onde existe uma burocracia muito grande...
Enquanto cooperativa, temos buscado recursos em outras instâncias.
(Coopercontestado).
Participação nas instâncias do Território do MDA tem suas dificuldades assim expressas:
No território (MDA) conseguimos aprovar alguns projetos. O território é
uma política do governo onde os recursos são destinados a uma grande
região e se tornam escassos para viabilizar uma grande indústria e fica
dependendo de outros recursos [fontes]. A cooperativa já acessou um
recurso, mas tem de deixar para outras associações e cooperativas da
região. É uma disputa muito grande para poucos recursos. A demanda
da região é grande. Não é só nós que precisamos, as outras também
precisam (Coopercontestado).
Assim, a dificuldade de todos é “buscar apoio nos órgãos públicos
para financiar a estrutura da cooperativa e a produção dos assentados.
Buscar incentivos dentro da cooperativa para que se possa ter retorno
na melhoria de vida dos sócios” (Coopercontestado).
Existem dificuldades em outros campos mais específicos da produção e do gerenciamento: “Tínhamos aquele medo: o cliente gostou e
não retorna mais. No início, a dificuldade foi a de planejar a quantidade
certa para vender, e não desperdiçar. Fomos aprendendo. Por exemplo:
“fazíamos uma quantidade de pães e saía tudo. Fazíamos mais um e saía
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Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
tudo” . A inserção no mercado capitalista exige um sistema de cobrança
de vendas a prazo. “Hoje, nossa maior dificuldade é porque alguns não
pagam” (Amanhecer Crescendo). As dificuldades de transporte dos
produtos devido às distâncias foram expressadas também.
3.6 Os impactos sentidos da economia solidária
no local e na região
Quase todos falam da “loucura”, para os padrões dominantes,
em começar um sistema novo de produção. A agroecologia e a economia solidária são ainda sinônimo de “atraso”. No início, a comunidade
“chamou nós de louco, isso é para quem não gosta de trabalhar (sic).
“Hoje a comunidade já olha diferente. As pessoas vêm aqui visitar e
ficam admiradas. E no município, foi difícil de conseguir um espaço
para realizar a feira (AGRUPAR).
No início nos chamaram de “loucos”. Mas aos poucos foram vendo que
as formas que eles produziam, no convencional, provocavam erosão no
solo. Enquanto o nosso solo [dos proprietários do grupo] enriquecia.
Algumas famílias aderiram individualmente a esta forma alternativa [de
uso do solo] embora ainda usem agrotóxicos (G. A. São Caetano).
Assim, quase todos os empreendimentos deram destaque para a
produção ecológica e suas dificuldades em deixar o modo convencional
de produção.
Outro impacto importante, na contra-hegemonia do modelo atual
do desenvolvimento na região, é a valorização do campo como meio de
vida, de sobrevivência. “Temos um jovem agricultor, do grupo, fazendo
agronomia e aplicando conhecimentos aqui na lavoura” (G. A. São Caetano). “Duas famílias (filhas) estão voltando para o projeto, deixando
de morar na cidade”.
As feiras são o espaço e o momento de maior destaque. Três grupos
sobrevivem delas e as têm como principal meio de garantir a produção e
o empreendimento. A Coopertrinta conseguiu um “ponto permanente” de
vendas na cidade, com a “Casa da Agricultura”. São esses espaços que
viabilizam os empreendimentos, porque garantem a venda, mas também
outros elementos como a articulação dos empreendimentos, do produtor
e do consumidor, do campo e da cidade.“Percebemos que a população
quer saber qual a barraca que produz sem agrotóxicos, pois a feira é livre.
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A Feira vai divulgando um produto que tem bastante aceitação, devido
aos problemas de saúde da população” (AGRUPAR).
Os empreendimentos incentivam o surgimento de novos empreendimentos, nas comunidades vizinhas ou na região. “Outras comunidades
também estão interessadas em entrar na nova forma de cultivar e produzir. Há novos grupos interessados, e vêm visitar (AGRUPAR). “Outros
que foram embora da comunidade e já venderam [a propriedade], se
arrependeram e querem voltar” (G. A. São Caetano).
Como síntese do que os empreendimentos conseguem quando encontram apoio: “Estamos criando uma nova cooperativa. Ela vai abranger
todos da agricultura familiar, inclusive os que trabalham com o PAA. A
Agrupar vai fazer a capacitação para outros grupos e agricultores, através
de visitas e contatos diretos (Agrupar).
É necessário que os agricultores se organizem em cooperativas para
conseguir buscar recursos para financiar sua produção. Povo organizado
também tem mais força. Houve boa aceitação para organizar. Apesar de
o governo apoiar tais iniciativas e a organização no campo, sabemos
que o modelo do agronegócio no país dificulta que se permaneça na
agricultura. Essa organização é fundamental para que o agricultor se
mantenha no campo. A sociedade tem apoiado e incentivado a organização do trabalhador. (Coopercontestado).
O grande mérito está no que representou e representa em termos
de melhoria da qualidade de vida para os integrantes do grupo e para a
comunidade local e regional. Ressalta-se a produção de alimentos naturais, a reeducação de hábitos alimentares, e os benefícios para a saúde,
principalmente pela redução do uso de agrotóxicos. Com a experiência
acumulada por esses agentes e projetos, foi surgindo a idéia de construir
uma articulação mais sólida entre os empreendimentos solidários, através de um fórum regional de economia solidária e realização de feiras.
Criaram-se assim novos suportes institucionais.
As feiras são uma das oportunidades para comprar e vender produtos ou serviços dos empreendimentos. Mas também são oportunidades
de partilha de experiências e de saberes, de formação e fortalecimento
de redes. Também se inicia com isso um processo de reivindicação de
políticas específicas para essa área, por exemplo, as cooperativas de
crédito solidário e a possibilidade de créditos mais baratos nos órgãos
oficiais.
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Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
4 Considerações finais
Não se pretendee encerrar aqui o debate em torno da relação Economia Solidária e seus impactos para o desenvolvimento regional, pois
isso remete a outros pontos de discussão para aprofundamentos posteriores. Apontam-se aqui algumas considerações que este estudo abre para
futuras pesquisas e para atuação mais qualificada da economia solidária
na construção de modelos alternativos de desenvolvimento.
Primeiramente, ainda hoje, percebem-se nessa região as conseqüências econômicas, políticas, sociais e culturais da época da guerra
do Contestado e da repressão militar e política praticada. A vitória foi
um grande massacre do Estado brasileiro, que preferiu gastar mais com
armas a atender os interesses da maioria da população local (os caboclos),
por um pedaço de chão e um espaço para viver livre e dignamente. Uns
morreram vítimas da violência militar e outros, vítimas da fome. Claro
está que os caboclos não lutaram pelo título de posse da propriedade
da terra, porque não pensavam como o modelo capitalista: como propriedade individual e como mercadoria, mas, como meio e sustento da
vida, como valor de uso. Também, percebiam que as riquezas naturais,
principalmente as florestas, estavam sendo destruídas gananciosamente
e levadas para o estrangeiro a qualquer preço.
A agricultura familiar, modelo dos colonos imigrantes no pósguerra, vem perdendo espaço há mais de 40 anos e foi subordinada ao
modelo da monocultura florestal, ao sistema de “integração”, enfim,
ao agronegócio. Embora permaneçam ainda traços agrícolas como
identidade da região, houve um grande êxodo rural, e atualmente está
ocorrendo nova evasão da população para outras regiões. Os incentivos
empresariais e governamentais para a plantação de mata não-nativa de
pinus e eucalipto, vai ocupando esse “esvaziamento” territorial, gerando
novos problemas ambientais, pouco conhecidos ou divulgados.
O modelo de desenvolvimento capitalista implantado na região
caracteriza-se pelo agronegócio e continua beneficiando cada vez menos
gente e mesmo o conjunto da própria região. O uso intensivo de produtos
químicos e de agrotóxicos em todas as etapas do processo de produção,
inclusive em grande parte da agricultura familiar, vem piorando as condições sócio-ambientais. Assim, esse modelo provoca um desenvolvimento
regional desigual.
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Começa-se a descobrir formas de substituição do cultivo do fumo
pelos grupos agroecológicos pesquisados. Nos outros setores agrícolas,
porém, percebe-se ainda muito forte o monopólio e o controle de grandes empresas agroindustriais, seja nos insumos fornecidos, nas técnicas
sofisticadas de criação dos animais, nas exigências sanitárias dos órgãos
estatais e nos preços instáveis determinados apenas pelas grandes agroindústrias e o mercado financeiro, etc. Esses fatores acabam inviabilizando
a busca de associações ou grupos de economia solidária.
Na Região do Contestado, as experiências de economia solidária, a
partir da pesquisa realizada, têm a principal contribuição como estratégia
de construção de um “novo” desenvolvimento regional, com uso correto
do meio ambiente e respeitoso do ser humano. Também, se pensarmos a
contribuição da agroecologia para um consumo saudável de alimentos,
a economia solidária na região pode contribuir para a redução da fome
e garantir a segurança alimentar. Outra contribuição, não tão explícita,
é na geração de emprego e renda. A contribuição, não no emprego de
forma assalariada, mas no trabalho cooperativado. Essa riqueza gerada
não conta para gerar capital, mas conta para gerar um novo modelo de
desenvolvimento. Ela fortalece relações solidárias, iniciativas comunitárias de combate à miséria, alternativas de geração de trabalho e renda,
propicia produção de bens “limpos” e saudáveis, como os alimentos agroecológicos, e a construção de um desenvolvimento sustentável na prática.
Esta é a principal contribuição da economia solidária atualmente.
Nesse sentido, a economia solidária, na região, em que pesem
as dificuldades, contribuiu por práticas transformadoras na superação
da exclusão social provocada pelo modelo hegemônico, o capitalista.
No entanto, a construção da sociedade socialista não transparece ser a
razão e o principal motivo de esses empreendimentos organizarem-se
solidariamente. Isso, talvez, porque não foi a preocupação primeira
desta pesquisa.
Os empreendimentos solidários na região, mesmo com as dificuldades citadas neste trabalho, têm dado alguns passos significativos.
Representam propostas concretas na busca pela cidadania e sobrevivência
dos mais empobrecidos; na descoberta de formas alternativas para o desenvolvimento de atividades econômicas; na construção de um processo
comunitário, como “sementes” de novos modelos de desenvolvimento
regionals ou de uma economia a serviço da Vida. Demonstram a possibilidade concreta de um desenvolvimento regional que não o capitalista, o
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Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
baseado na lógica do mercado ou da globalização neoliberal, mas o alternativo, onde se articula o local e o global, o social e o natural, o tradicional
e o inovador. Ou seja, o desenvolvimento que supera os fundamentos
propostos pelo padrão capitalista. Aquele, valoriza a solidariedade e a
sustentabilidade e a Vida, em troca da exploração ilimitada deste.
A continuidade e o fortalecimento de outros paradigmas de desenvolvimento regional como o solidário sustentável, depende da articulação
dessas iniciativas em rede; do apoio de políticas públicas à economia
solidária e às outras experiências territoriais, sociais e ambientais alternativas; e do fortalecimento dos movimentos sociais na região. Entidades
da sociedade civil têm um papel fundamental a ser retomado e fortalecido na região quanto a esse aspecto. Os empreendimentos solidários,
por si só, não conseguirão ser uma alternativa de desenvolvimento, de
transformação regional, enquanto permanecerem como experiências
isoladas ou apenas como “indicativas” de um modelo novo. Assim, eles
não conseguirão reduzir os impactos ambientais e sociais do modelo
capitalista, o dominante. Pois, como demonstrado aqui, esses empreendimentos também estão, não só comercializando, mas, acima de tudo,
interagindo e sofrendo influências do próprio modelo hegemônico: o
capitalista. Este tende a sufocar ou cooptar as experiências alternativas,
provocando seu desaparecimento ou sua descaracterização. Em suma, a
capacidade “alternativa” deve vir aliada com a capacidade “alterativa”,
isto é, a de alterar a região e os fundamentos e processos históricos do
desenvolvimento hegemônicos.
Abrem-se, a partir daqui, novas possibilidades de pesquisa, reflexão e aprofundamento maior. Restam, entretanto, ainda lacunas no
campo teórico e prático da relação entre o desenvolvimento solidário
sustentável e a influência da história do Contestado, atualmente. Além
disso, poderá ser incentivado um aprofundamento sobre as estratégias
para a construção de tal modelo alternativo.
Referências
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Paulo: Cortez, 2006. Cap. 6, p.90-129.
64
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Ano 25 / número 1 / 2010
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Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina
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SCHIOCHET, Valmor. Esta Terra é minha terra: Movimento dos desapropriados de Papanduva. Blumenau: Ed. da FURB. 1993.
SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Ed. Perseu
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VALENTINI, Delmir J. Da Cidade Santa à Corte Celeste: Memórias de Sertanejos e a Guerra do Contestado. Caçador: Universidade
do Contestado, 1998, 192p.
Endereço do Autor:
Cáritas Brasileira Regional SC
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524
Pantanal
88040-001 Florianópolis, SC
66
Encontros Teológicos nº 55
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Resumo: Um tema bíblico, ilustrado por uma parábola, tem relevância em
todas as épocas quando se trata de um assunto sempre atual, pois desperta
interesse na busca de uma solução de problemas espinhosos na área da moral
econômica e da ética social. A aplicação da parábola aos fiéis é uma abordagem
moderna do ensinamento cristão. Esse enfoque passa de uma visão doutrinal
para o estudo do impacto sobre a vida moral. Por fim, segue uma perspectiva
inspiradora sobre a motivação espiritual, explicando a dialética entre as coisas
grandes e pequenas na vivência da vida cristã.
Abstract: A biblical theme illustrated by a parable is relevant at all times when
it deals with a pertinent subject of the past and stirs up interest in our days. The
more so the parable gives rise to a great variety of conjectural explanations as
regards the solution to uneasy questions in the area of moral tenets in economy
and social ethics. From the descriptive details the study passes on to the application of the parable. The following sections focus on the impact on the moral
aspect of business administration and the spiritual motivation in order to use
one’s personal talents to render a greater service for the benefit of the community
both in small and great affairs.
Desequilíbrios no sistema econômico:
A parábola do administrador (Lc 16,1-13)
L. Stadelmann, SJ*
*
O autor, Doutor em Língua e Literatura Semítica, Cincinnati, e Mestre em Ciências
Bíblicas, Roma, é Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 67-78.
Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13)
Introdução
A Campanha de Fraternidade Ecumênica de 2010 se ocupa com
o tema central “Economia e Vida”, aqui ilustrada com um ensinamento
bíblico, apropriado para os novos tempos. Queremos lembrar, porém,
que poderíamos mencionar vários paradigmas que remetem à inspiração
bíblica, servindo até de fundamentação das mais diversas ideologias,
como, p.ex. “Teologia da Prosperidade”1, em oposição à “Teologia da
Pobreza”2, como é denegrida a “Teologia da Libertação”3. Não é de
admirar que temas bíblicos sejam citados para discussões de assuntos
candentes da atualidade, porque estão inter-relacionados com preocupações, debatidas entre os povos, quando buscam a Palavra de Deus para
orientação e solução da problemática. São lembretes de temas referentes
à vida e seu sustento. Entretanto, os problemas que surgiram na vida
humana não se originaram da atividade pastoril, embora fosse um dos
recursos mais antigos para sustentar as famílias, mas do trabalho agrícola com rendimento muito superior e mais proveitoso à subsistência da
população urbana e rural, mais numerosa que a dos nômades. Envolvia
também mão-de-obra mais qualificada na época do plantio, da colheita
e armazenagem, do que na vida agreste do pastoreio de rebanhos. As
dificuldades, porém, não se restringiam apenas a uma dessas etapas da
atividade agrícola, mas se localizava, sobretudo, na administração da
pequena empresa.
Para fins de ilustração de um dos setores da economia da civilização antiga, podemos recorrer às situações de diversos povos e fazer uma
comparação com um dos estágios da evolução até a situação atual. Será
válida uma comparação, se contribuir para o conhecimento da técnica de
produção e para o desenvolvimento demográfico. Quanto a fatores negativos, causados pelo ecossistema ou pela cultura tecnológica, podemos
aprender das experiências do passado para prevenir e remediar políticas
68
1
L. Campos, Teatro, templo e mercado; organização e marketing de um empreendimento pentecostal, Petrópolis, São Paulo, Vozes / UNESP, 1999; Brenda Carranza,
“O Brasil, fundamentalista?”, na revista Encontros Teológicos, Ano 24, Nº 52, Fasc.
1, 2009, 147-166.
2
G. Kepel, A revanche de Deus: cristãos, judeus e muçulmanos na reconquista do
mundo, São Paulo, Siciliano 1991.
3
“Teologia da Libertação”: escola importante na teologia da Igreja Católica, desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Surgiu na América Latina, a partir da opção pelos
pobres, e se espalhou por todo o mundo. O teólogo peruano Gustavo Gutierrez é
um dos primeiros que propôs essa teologia. A teologia da libertação teve um impacto
decisivo em muitos países do mundo.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Luís Stadelmann, SJ
econômicas que têm que se adaptar às novas situações da conjuntura atual.
Nosso interesse, porém, não se reduz meramente ao conhecimento das
praxes administrativas, mas busca a relevância da Palavra de Deus com
sua implicação no tema em pauta. Citemos a parábola do administrador,
no Evangelho de S. Lucas:
A parábola do administrador
Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar
os seus bens. 2Ele o chamou e lhe disse: “Que ouço dizer a teu respeito?
Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar
meus bens”. 3O administrador, então, começou a refletir: “Meu senhor
vai me tirar a administração. Que vou fazer? Para cavar não tenho força;
de mendigar tenho vergonha. 4Ah! Já sei o que fazer, para que alguém
me receba em sua casa quando eu for afastado da administração”.
5
Então chamou cada um dos que estavam devendo ao seu senhor. E perguntou ao primeiro: “Quanto deves ao meu senhor?” 6Ele respondeu:
“Cem barris de óleo!” O administrador disse: “Pega a tua conta, sentate depressa, e escreve: cinquenta!” 7Depois perguntou a outro: “E tu,
quanto deves?” Ele respondeu: “Cem sacas de trigo”.O administrador
disse: “Pega tua conta e escreve: oitenta”.
8
O senhor elogiou o administrador desonesto, porque agiu com esperteza.
De fato, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do
que os filhos da luz. 9”Eu vos digo: usai o ‘Dinheiro’, embora iníquo, a
fim de fazer amigos, para que, quando acabar, vos recebam nas moradas
eternas.
10
Quem é fiel nas pequenas coisas será fiel também nas grandes, e quem
é injusto nas pequenas será injusto também nas grandes. 11Por isso, se
não sois fiéis no uso do ‘Dinheiro iníquo’, quem vos confiará o verdadeiro
bem? 12E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que
é vosso?” (Lc 16,1-12).
1
Administração como ciência e como prática
A ciência da Administração de Empresas estuda as atividades
de um empreendimento com o objetivo de alcançar seus propósitos de
modo racional. Na prática, é a aplicação, em determinada organização
empresarial, das normas que devem garantir a consecução de seus objetivos. Nesse sentido pode ser privada ou pública, conforme se trate
de administrar uma empresa privada ou um órgão do Poder Público.
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Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13)
Tanto a empresa privada como a pública nunca podem perder de vista,
entretanto, sua missão essencial de ser, primariamente, uma prestação
de serviço à comunidade. Esse caráter de serviço se funda inclusive no
fato de cada indivíduo ser membro de uma comunidade, que lhe dá o
aval de cidadania na sociedade. Caindo a estrutura da comunidade, sobra
a anarquia onde impera a lei do mais forte e o domínio econômico de
monopólios do setor privado4.
O assunto em questão é a administração da empresa que, na Antiguidade, como também na época atual, faz parte do contrato de trabalho
nos termos da legislação vigente. Fica a critério do leitor caso alargar a
visão sobre o inter-relacionamento de diversas áreas econômicas, tais
como os mecanismos financeiros, produtivos e comerciais, ou ainda,
a política tributária e os serviços de crédito, participação nos lucros e
aumento salarial entre os funcionários mais graduados etc. Nesse ponto
convém analisar a observação do evangelista ao acrescentar as observações de Cristo sobre o papel da administração da empresa (Lc 16,
8-12). Começando com palavras de elogio do patrão pela hábil manobra
de seu funcionário (v. 8) e aplicando sua esperteza em consolidar laços
solidários com a comunidade (v. 9). Porém, o prejuízo causado ao patrão
fica por conta da omissão no controle periódico dos setores e de seus
encarregados, ou da falha no sistema de auditoria.
Neste ponto, devemos perguntar se a prática da administração
está comprometida com a conjuntura de um país, ou se está isenta das
condições em que os habitantes têm de viver. Distinguimos, portanto,
entre a administração de empresas em tempo de crise, e em situação de
garantia à vida humana, sem risco de desequilíbrios no sistema econômico. É inevitável a prática da coonestação5, como defesa contra a política
econômica de caráter espoliativo do Estado, dificultando a sobrevivência
de determinados setores econômicos. Bem diferente da fraude fiscal é o
caso da simulação, que consiste em buscar solução alternativa, legalmente
admitida, em que a oneração impositiva é menor.
70
4
É necessário distinguir entre vários tipos de monopólios, haja vista o caso da exploração de petróleo e de minerais estratégicos, que são monopólios considerados
indispensáveis por motivos de segurança nacional.
5
“Coonestação” é a ocultação de uma parte da tributação, para evitar o pagamento dos
impostos correspondentes, como defesa contra a política econômica espoliativa do
Estado. Pode ser eticamente negativo, ou então pode ser neutro quando se justifica
como compensação pelo valor do trabalho pessoal, não computado.
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Qual poderia ser o critério do desconto de 50% na conta do primeiro devedor e de 20% na do segundo? A resposta poderia ser a taxa
sobre os serviços pessoais, seu “know-how”, isto é, os conhecimentos
técnicos, culturais e administrativos. Entretanto, o valor da taxa não é
fixo, dependendo da situação em tempo de crise, e em condições normais.
Além disso, o administrador estaria cobrando ao patrão pelo esforço
de buscar alternativas de venda do produto na exportação (óleo) e no
comércio local (trigo). Dessarte, a fraude poderia ser de caráter fiscal e
não patrimonial.
Voltando ao caso da ocultação, pode-se admitir a justificativa de
diminuir as quantidades declaradas numa proporção que se ajuste ao
uso em determinado setor econômico de um país. Essa posição costuma
basear-se na convicção de que a ocultação é fato generalizado, e que
existe certa tolerância ou conivência do Estado a respeito disso6. Um
caso típico é a contribuição excessiva de setores de serviço, tanto assim
que, na declaração do imposto de renda, o valor da arrecadação costuma
ser bem inferior7.
Aplicação da parábola à atuação dos fiéis
O contraste entre dois grupos de funcionários tem os seguintes
termos em comum: a administração, setor de serviços profissionais,
contrato de trabalho, dependência do patrão, esperteza para vantagens
financeiras pessoais. Uma cena sugestiva precisa de protagonistas. Na
época, os historiadores estavam familiarizados com as tendências de
populações heterogêneas quanto às ideologias, convicções, e preocupações polêmicas. Veio o cristianismo impondo-se como religião sem
utilizar controvérsia, mas introduzindo uma inovação na motivação dos
fiéis. Para ilustrar a temática em questão se traça um quadro típico com
personagens estereotipadas, que representam dois aspectos divergentes: “filhos da luz” (benê ha’ôr) e “filhos deste mundo” (benê ha‛ôlam
hazzeh) ou “os filhos das trevas” (benê hahôšek), como se costumavam
6
I. Camacho – R. Rincón – G. Higuera, Práxis Cristã III, “Opção pela justiça e pela
liberdade”, (trd. A. Cunha e B. Brod), Ed. Paulinas, S. Paulo, 1988, p. 301.
7
Uma questão delicada e complexa é a contribuição excessiva no imposto de renda
concernente às oficinas mecânicas no Brasil. A justificativa da oneração tributária
exigida pelo Estado baseia-se na hipótese de haver sonegação. Em vista disso, os
proprietários recolhem unicamente a quantia registrada nos recibos, para cobrir os
impostos correspondentes à folha de pagamento, cobrando ao freguês, sem nota
fiscal, pelos serviços prestados.
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Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13)
mencionar nos respectivos ambientes religiosos, isto é, os cristãos e os
sectários de Qumrân8. São expressões elípticas referentes aos fiéis que
se deixam guiar pela luz divina que inspira suas motivações conscientes
e inconscientes, instintivas e volitivas, racionais e afetivas. A designação
desses como “filhos deste mundo” é usada na Bíblia como expressão
idiomática para indicar uma relação estreita entre pessoas de interesses
afins, como p.ex. “filho do diabo” (At 13,10); membros de uma irmandade: “filho de profetas” (Am 7,14); descendência de linhagem “filho de
Davi” (Mt 12,23); grau de parentesco “filho do carpinteiro” (Mt 13,55).
O Evangelista S. Lucas não intenciona ressaltar uma separação social
entre dois grupos antagônicos, mas contrastar duas motivações opostas:
a mundana, dos “filhos deste mundo”, e a sobrenatural, dos “filhos da
luz”. O que interessa é assinalar uma inovação, isto é, aplicar a motivação
de uns para apresentá-la como nova dimensão e compatível com outra
finalidade. Em outras palavras, a esperteza do administrador dos bens
terrenos deveria servir de paradigma para promover os bens sobrenaturais.
A ênfase está na habilidade, usando a esperteza para neutralizar e superar
a indolência e o desleixo, não havendo outro incentivo na ausência de
atrativos, gratificações e a satisfação pessoal.
Um traço essencial e permanente marca a atitude do cristão no
desempenho da administração dos bens terrenos e sobrenaturais: é um
conjunto de virtudes incluindo a integridade, honestidade e responsabilidade. A começar, trata-se de um patrimônio pertencente a Deus ou ao
patrão, que é entregue às mãos humanas para ser administrado de acordo
com a capacidade dos talentos concedidos a cada indivíduo (Mt 25,1430). Além disso, está implícita aí, também, uma exigência adicional, ao
mencionar-se o fato de que o valor da vida não se reduz à vivência da
fé e do amor, mas exige que se produzam frutos constantemente. Daí,
quaisquer que sejam nossas limitações, temos que fazer frutificar os talentos que Deus nos deu, esforçando-nos em manter nossa vida e nossas
comunidades em constante vitalidade.
O objetivo da criação dos seres humanos pode ser comparado a
uma transação no mercado financeiro: cada indivíduo representa capital
de investimento e, não, capital de risco. O que o Criador tem em vista
é produção e não mera subsistência. Na verdade, nossos talentos são
8
72
Em Qumrân recomendava-se uma separação entre os “filhos da luz”, i.e. os sectários de
Qumrân e os outros, os “filhos deste mundo” ou “das trevas” (cf. sQs I,9); CD XX,34); em
F. García Martínez, Textos de Qumran, (trd. V. da Silva), Ed. Vozes, Petrópolis, 1995.
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diferentes, mas todos nós somos de grande apreço diante de Deus: diante
d’Ele cada indivíduo é como se fosse único e insubstituível. O que conta,
na Igreja e no mundo, é colocar em comum nossos dons, nossas qualidades, diferentes, mas complementares, sem espírito de rivalidade ou de
inveja. Ao contrário da mentalidade do nosso tempo, onde só contam os
rentáveis, o importante, diante de Deus, não é propriamente o alto nível
de rentabilidade ou a superação das aberrações da práxis, mas o esforço
de quem quer doar-se aos outros, disposto a fazer de sua vida uma oferta
a Deus e ao próximo.
A diversidade de dons recebidos do Criador não restringe nem
diminui o valor da pessoa. Quer se tenha recebido dois ou cinco talentos,
pouco importa! A recompensa a ser concedida é a mesma para todos.
Cristo promete uma recompensa que ultrapassa todas as expectativas
de generosidade e benevolência divina: “Vem participar da alegria do
teu Senhor!” Aos olhos de Deus, a vida humana plenamente preenchida
tem a mesma cotação, o mesmo valor. E mesmo, paradoxalmente, rico
é somente aquele a quem foi dado em partilha, a quem foi concedido
um dom. É este o sentido da palavra surpreendente do Mestre: “A todo
aquele que tem será dado mais” (Mt 25,29).
O impacto sobre a vida moral
A reflexão moral sobre o valor intrínseco do uso e troca dos bens
e serviços, leva em consideração também os meios de adquiri-los. Se os
bens foram adquiridos por meios fraudulentos, terão que ser restituídos
ao proprietário. Esses bens são contabilizados como “riqueza da iniquidade” (μαμωνα της αδικιας, mamona tes adikias)9. A palavra aramaica
é usada de propósito como termo mnemotécnico que ocorre na literatura
rabínica tratando da restituição da fortuna ao legítimo dono10. O Evangelista S. Lucas traz um ensinamento de Cristo sobre uma alternativa de
restituição em forma de contribuição às obras de caridade. O motivo é a
solidariedade pelos pobres, pequenos, enfermos, os que carecem da razão
de viver e de esperar por um milagre. Esses são os que intercedem junto
a Deus pelos benfeitores para que sejam “acolhidos nas moradas eternas”
9
10
O termo “mamona” ocorre em documentos essênios de Qumrân, (IQS VI, 24; CD 14,20;
IQ 27,1;2;5) e judaicos contemporâneos do evangelho (Sir 34,8), e em documentos
rabínicos.
Cf. Rinaldo Fabris, “O Evangelho de Lucas”, Os Evangelhos II, Ed. Loyola, São Paulo,
1-247, esp. p. 166-167.
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Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13)
(Lc 16,9). É esse um dos motivos que levou o patrão lesado a elogiar a
habilidade contábil do administrador. Entre os fatores de deterioração
do moderno setor administrativo, referente às transações financeiras, é
praxe citarem-se as operações fraudulentas dos contabilistas e a fuga de
capital para paraísos fiscais11.
A pecha de culpa moral tem um impacto sobre o foro interno da
consciência. Aqui incide não somente a revisão da culpabilidade pessoal,
mas também a experiência da presença de Deus. Lembremos que não
se trata de um procedimento teórico, opondo duas instâncias: moral e
religiosa. No Evangelho há o imperativo categórico: “Não podeis servir
a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13). É de notar, que “dinheiro” é definido
aqui como mamona (μαμωνα της αδικιας), como já foi dito acima .
Com isso, abre-se uma nova dimensão à atitude moral dos fraudadores
na área administrativa. É que a consciência humana tem igualmente a
função de confirmar a proximidade de Deus, dentro do coração humano.
Entretanto, insistimos de modo especial que se trata de conhecer a presença de Deus e, não meramente, a idéia da existência de Deus. À luz do
conhecimento soteriológico, segundo o método da teologia, se desvenda
a dimensão da salvação divina. Na carta aos Romanos se afirma: “A ira
de Deus revela-se, lá do céu, contra toda impiedade e injustiça humana,
daqueles que, por sua injustiça, reprimem a verdade” (Rm 1,18). Ora, a
“ira de Deus” é linguagem figurada para falar do pecado como ofensa a
Deus, visualizando sua reação contra o pecado do homem, como reflexo
de desaprovação no rosto irado de Deus. Para fins de contraste, no polo
oposto, convém mencionar que o perdão tem o reflexo de um semblante
amigo que irradia luz sobre a consciência do justo. É importante notar
que, para conhecer a Deus, não basta ter a idéia de um Deus distante; a
voz da consciência manifesta Deus presente, pois Deus não se manifesta
à distância, embora Ele esteja em todo lugar. Entretanto, essa presença
de Deus, em todo lugar, parece-nos vaga e difusa. Para Deus manifestarse ao homem é preciso que atue sobre as nossas faculdades superiores
(inteligência e vontade). Entretanto, através da Teodicéia não se alcança o
critério da presença de Deus, mas o da idéia sobre Deus. A visualização de
11
74
Critérios de seleção entre candidatos para o setor da administração. Para fins de
demonstração segue uma narração pitoresca e levemente satírica. Na entrevista dos
candidatos foi-lhes perguntado qual é o pré-requisito básico? Respondeu o primeiro:
conhecer todas as leis da administração pública e privada. O segundo respondeu:
conhecer todos os subterfúgios que se possam usar na contabilidade. Respondeu o
terceiro, perguntando: O que o patrão quer que conste nos livros de contabilidade?
Esse foi contratado porque demonstrou esperteza.
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Deus com sentimentos de ira para com o ímpio e, de amizade para com o
justo, ocorre nos Salmos com a finalidade de qualificar o estado espiritual
do ser humano. Dessarte, o salmista atribui a Deus um “rosto irado” (Sl
69,25), como reflexo da má consciência do infrator12. A conversão moral
terá, por reflexo, um “semblante amigo” (Sl 34,16), voltando-se Deus
para reconciliar consigo o pecador arrependido. São recursos sugestivos
que os Salmos usam para situar a punição da impiedade no contexto da
ira divina, mas colocam o infrator na presença de Deus, porque assim
permanece a promessa da salvação ao pecador arrependido. Lembremos
também que a amizade de Deus, para com os fiéis, não se reduz a mero
sentimento, mas consiste na irradiação da benevolência de Deus, cujo
reflexo se manifesta como “luz da Sua face” (Sl 4,7).
A questão agora é perguntar sobre a atitude do administrador na
presença de Deus. Em outra parábola bíblica se fala da reação do infrator com medo de olhar a Deus. Eis o drama do servo infiel que tornou
estéril sua vida, pois duvidou da bondade do semblante de Deus, a quem
imaginou severo, implacável, pronto para acertar as contas, e para exigir
o balancete: “Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não
plantaste e ceifas onde não semeaste. Por isso fiquei com medo e escondi
o teu talento no chão” (Mt 25,25). O talento que o servo recebeu não
dá salvação por si só. O dom de Deus deve ser multiplicado pelo lucro
a ser produzido. Em outras palavras, o dom da vida humana é precioso;
entretanto, seu valor não consiste no fato de alguém estar vivo, mas
depende da maneira como ele vive, isto é, o que faz com sua vida.
A motivação do cristão, porém, é ter diante de si o perfil de Deus
como Benfeitor, cujo semblante amigo é descrito na liturgia como a “luz
de sua face”, devido aos sinais de benevolência divina que irradiam
sobre os fiéis.
Aqui vem a propósito levantar a questão da possibilidade de falar
das virtudes de integridade, honestidade e responsabilidade, como requisitos de um administrador de empresas no contexto de uma sociedade
secularizada, materialista, e neutra, em matéria de religião e fé em Deus.
É que todas as instituições estatais e privadas que aboliram a instância
da moral e da religião, suprimiram a vocação do homem para uma relação com Deus, tachando-a de mera superstição e alienação da liberdade
12
Evidentemente, Deus não tem paixões de ira e cólera, porque esses são defeitos
que derivam do orgulho e nascem da tríplice concupiscência que não se encontra na
natureza de Deus.
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Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13)
humana. Daí é que cortaram pela raiz toda e qualquer fundamentação da
responsabilidade do indivíduo perante Deus, inclusive um dever moral
imposto por um Ser supremo na ordem sobrenatural. Resultou um individualismo exacerbado pretendendo erigir-se em instância suprema,
mas infelizmente num mundo virtual.
Coisas grandes e coisas pequenas
A fecundidade ou a valorização da vida humana não se baseia em
façanhas extraordinárias ou no exercício de funções importantes, mas na
fidelidade às pequenas coisas: “Tu foste fiel na administração de pouca
coisa“ diz Jesus (Mt 25,21). Na verdade, não há amor autêntico sem
fidelidade ao cotidiano, em muitos pequenos gestos, como também não
há pequenas coisas quando são feitas por amor.
A irradiação da trajetória terrestre do ser humano é fundamentalmente um assunto relacionado ao coração, à misericórdia, à compaixão
diante dos bem-aventurados com os quais Cristo quis solidarizar-se
por serem esses os que, no íntimo, têm fome de Deus (cf. o Sermão da
Montanha, Mt 5,1-12).
Para falar de coisas grandes e pequenas, o evangelista S. Lucas
não envereda pela axiologia, no sentido de uma escala de valores do
rendimento, da concorrência, do investimento agregado. Ele insiste
ao invés na opção pessoal pela fidelidade no cumprimento das “coisas
grandes”, isto é, os mandamentos de Deus e da Igreja, e os deveres de
estado, e das “coisas pequenas”, isto é, as obras super-rogatórias para
manter o hábito de tender à perfeição.
Coisas grandes são de natureza espiritual, isto é, “bens espirituais”,
tais como a graça santificante, a vocação à fé cristã, a pertença à comunidade de fé e à Igreja. Paradoxalmente em contraste com a opinião em
voga, coisas pequenas são os “bens materiais”: p.ex. saúde, vitalidade,
talentos pessoais, profissão, emprego. Além disso, tratando desses bens
no contexto da administração, cabe ao indivíduo a tarefa de valorizá-los
com vistas à prestação de contas a Deus, numa contabilidade que mede
as coisas em termos de vida e de relações com a obra da criação13. Daí
13
76
Os bens materiais e espirituais contribuem para a obra da criação, cuja finalidade é
manifestar a evolução do cosmo e impedir o retorno ao caos. Compete ao homem
preencher este cosmo mediante os frutos da criatividade humana, utilizando os recursos materiais e espirituais.
Encontros Teológicos nº 55
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que o homem não pode utilizá-los a bel-prazer, mas deve perguntar a si
mesmo qual é a vontade de Deus ao confiá-los a mim para serem administrados. Quem fizer assim, “bens maiores” serão confiados a ele, tais
como o penhor sobrenatural, a recompensa no céu, a riqueza da graça,
e os dons do Espírito Santo, os carismas.
Conclusão
O estudo de um tema bíblico que pode iluminar, com radiações
da fé cristã, as opacidades da realidade econômica de uma comunidade
em vários países do mundo é, sem dúvida, muito proveitoso para várias
gerações durante diversas etapas da história. Ao ressaltar, de modo especial, o enfoque sobre o tecido social, a Bíblia se concentra na vida da
comunidade. Nesse ponto traz uma inovação sobre os múltiplos sistemas econômicos desde o passado até hoje. É que nos grandes impérios
estava em vigor quase exclusivamente o interesse nos privilégios e nas
vantagens da classe dominante, no controle sobre os setores de produção
de bens e de renda, em sintonia com as exigências do crescimento dos
cidadãos. Porém, o problema surgiu com a invasão de levas cada vez mais
crescentes de migrantes, infiltrando-se em massa, nas áreas habitadas
pela população autóctone, diminuindo, cada vez mais, os parcos meios
de subsistência e transferindo, para os cidadãos, os problemas das áreas
de risco dos países de origem.
Um fator importante de desenvolvimento econômico é a diversificação de atividades de produção e mercado, desenvolvidas pelos grupos
de apoio aos jovens da “Pastoral de Conjunto” das dioceses. É que os
impulsos que provêm das Igrejas e das comunidades religiosas ou de
movimentos inspirados por ideais do humanismo podem fortalecer a solidariedade mundial e contribuir para a solução dos problemas candentes
de subsistência de populações carentes e subdesenvolvidas.
Uma inovação na organização pastoral das dioceses é a ajuda
intereclesial no sentido da promoção de um senso de solidariedade entre
as paróquias do centro com as respectivas paróquias-irmãs da periferia,
na área urbana. O tipo de solidariedade se especifica em termos de assessoria em projetos de desenvolvimento, na prestação de serviços, e na
execução de programas de educação permanente. Essa ajuda transcende
o serviço assistencial de um grupo privilegiado praticando um gesto de
caridade, porque se caracteriza como ajuda em desenvolvimento e ajuda em recursos para toda a comunidade de uma Igreja-irmã. O pedido
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
77
Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13)
de assessoria é especificado comunitariamente pelos paroquianos com
detalhes de suas carências e solicitando a transferência de tecnologia
adequada aos padrões culturais e sociais aí existentes. A execução dos
projetos e dos serviços fica por conta de um grupo de peritos com a
colaboração de todos os paroquianos. O lema inspirador é “Deus ajuda
a quem madruga”.
Endereço do Autor:
Colégio Catarinense
Rua Esteves Júnior, 711
Cx. Postal 135
CEP 88015-130 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Resumo: Este artigo apresenta uma análise exegética de duas expressões que
são empregadas para dar nome aos seguidores de Jesus no evangelho de Mateus; são elas “profeta” e “justo”. Dentre elas, a segunda é própria de Mateus, e
nossa investigação gira em torno do seu significado e dos motivos que levaram
o autor do evangelho a acrescentá-la por conta própria no texto.
Palavras-chaves: Evangelho de Mateus; Exegese; Cristianismo Primitivo;
Sectarismo; Lei Judaica.
Abstract: This article presents an exegetical analysis of two expressions that
are used to label the followers of Jesus in Matthew’s Gospel: “prophet” and “righteous”. Among them, the second is Matthew’s own, and our research revolves
around the meaning and the reasons why the author of the Matthew’s gospel
added it on the text.
Key-words: Gospel of Matthew; Exegesis; Primitive Christianity; Sectarianism;
Jewish’s Law.
Os justos e os profetas: designações
para os judeu-cristãos no evangelho
de Mateus
Anderson de Oliveira Lima*
*
O autor é Mestrando em Ciências da Religião (Literatura e Religião no Mundo Bíblico)
pela Universidade Metodista de São Paulo (2010), Especialista em Bíblia com ênfase
na tradição profética também pela Universidade Metodista (2008), bacharel em música
(violão erudito) pela Universidade Cruzeiro do Sul (São Paulo 1999).
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 79-92.
Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus
Introdução
Como informa o título deste artigo, limitamos propositalmente
nosso objeto de estudo ao evangelho de Mateus, documento ao qual já
nos dedicamos em pesquisas prévias e para o qual pretendemos contribuir ainda mais através deste e de outros artigos. Assim, podemos dizer
que o que procuramos estudar nas páginas seguintes são alguns termos
empregados pelo autor do evangelho, que exercem no texto a função de
designar as pessoas com as quais ele se identifica. Estes são os “justos”
e os “profetas”, duas categorias importantes,s que merecem nossas
considerações. O curioso neste caso é que ao lermos o evangelho de
Mateus e compararmos seus textos com seus paralelos sinóticos (Lucas/Q
e Marcos)1 notamos em Mateus o acréscimo do adjetivo “justos” em
vários momentos, e é essa particularidade que nos interessa. É evidente
que nesta investigação teremos que citar e estudar mais de uma vez
passagens dos outros evangelhos, mas é a aplicação mateana da tradição
que nos interessa.
Chamamos o aparentemente pequeno ajuntamento de pessoas que
constituíam o “grupo de Mateus” de “grupo”, e não de “comunidade”
como outros fazem. Isso se deve à sugestão de outros que têm argumentado que o termo “comunidade” hoje é carregado de significados modernos,
que sugerem uma institucionalização que não condiz com a realidade
mateana. Seguimos então a opção de tratá-lo de maneira mais genérica,
utilizando-nos sempre do termo “grupo”2. Da mesma forma, em nosso
título, chamamos os membros desse grupo de “judeu-cristãos”, com a
finalidade de demonstrar que, nos dias em que o evangelho foi escrito,
ainda não existia uma fronteira bem definida que permitisse diferenciar
os judeus dos cristãos. Eles eram judeus, mas aos poucos diferenciavamse dos demais, num processo que acabaria por dar origem a uma nova
religião chamada cristianismo.
80
1
Para uma introdução ao problema da relação sinótica entre os evangelhos de Mateus,
Marcos e Lucas, e da fonte Q, veja: MARCONCINI, B. Os Evangelhos Sinóticos. pp. 65-67.
2
Cf. SALDARINI, A. J. A Comunidade Judaico-Cristã de Mateus. pp. 147-150; também
cf. KLOPPENBORG, J. S. Q El Evangelio Desconocido. pp. 219-221.
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Ano 25 / número 1 / 2010
Anderson de Oliveira Lima
Trata-se então, neste artigo, de identificar em Mateus uma releitura
feita sobre os demais textos cristãos, releitura que provocou alterações no
texto que as gerações anteriores lhe legaram. Essas alterações, próprias
de Mateus, são de particular importância para a compreensão do seu
evangelho, por nos mostrarem as características específicas desse grupo
judeu-cristão, levando-nos a conhecê-los um pouco mais. As perguntas
que procuramos responder ao final são: Por que motivos Mateus modifica
o texto herdado de Marcos e Q, acrescentando “justos”? A que se refere
o texto quando aplica expressões como “justos” e “profetas”? Que valor
a compreensão desse problema em particular pode ter para a leitura do
evangelho de Mateus em geral?
1 As origens do evangelho de Mateus
Parece haver unanimidade, hoje, que o evangelho de Mateus é um
documento judeu-cristão produzido nalgum momento entre as décadas
de 80 e 90 d.C.3 e que, para a sua composição, o evangelista se utilizou
principalmente de duas fontes escritas anteriores: o evangelho de Marcos
e a chamada fonte Q.4 Temos então um texto do final do século I, que é
uma releitura de tradições judaico-cristãs mais antigas, sendo Q uma fonte
de ditos que teria surgido entre as décadas de 40 e 50 d.C.5 e Marcos, o
primeiro dos evangelhos biográficos,6 que nascera nos dias em torno da
guerra dos judeus contra Roma, entre 66 e 70 d.C.7
Neste artigo nos dedicaremos principalmente a passagens que o
autor de Mateus supostamente compôs a partir da fonte Q, que seria o
mais antigo documento escrito da história do cristianismo e cujo estudo
permitiu aos pesquisadores identificar os primeiros cristãos, aqueles
que deram continuidade ao movimento de Jesus após sua crucificação,
como profetas itinerantes, movimento que o próprio Jesus iniciara nas
3
OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise. p. 26.
4
KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento, vol. 2. p. 188.
5
Dentre as obras disponíveis em língua portuguesa sobre a Fonte Q, indicamos a leitura KLOPPENBORG, J. S. Q El Evangelio Desconocido; MACK, B. L. O Evangelho
Perdido; e SCHIAVO, L. A Batalha Escatológica na Fonte dos Ditos de Jesus.
6
Para uma classificação mais detalhada sobre os tipos de evangelhos surgidos na origem
do cristianismo veja CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. pp. 70-79
7
MYERS, C. O Evangelho de São Marcos. pp. 120-121.
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81
Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus
aldeias da Galiléia. Foi a partir da atividade de Jesus no final da década
de 20 e desses itinerantes nas décadas de 30 e 40, que surgiram as várias
passagens evangélicas em que Jesus convida as pessoas a seguirem-no,
dando as costas para a família, aceitando a condição de marginais sem
pátria e proteção, enquanto proclamam o Reino de Deus para a salvação
dos camponeses expropriados pelo império.8
A recepção da tradição itinerante no evangelho de Mateus nos tem
levado a crer que o trabalho desses profetas sem pátria foi determinante
na origem do grupo mateano, embora este seja um grupo citadino9, cujos
adeptos eram em grande parte sedentários. Sobre isso Jürgen Roloff
escreveu:
“... o núcleo determinante do grupo mateano originou-se diretamente de
um grupo de carismáticos itinerantes que deu continuidade à forma de
vida dos discípulos pré-pascais de Jesus. Eles continuavam a praticar
o seguimento no sentido radical: pobreza e renúncia a posses, desvinculação da família e da ordem social, disposição para o sofrimento por
causa do senhorio de Deus: eis suas características marcantes”10
Essa adoção dos textos originários do proto-cristianismo itinerante
nos ajudará a interpretar o texto de Mateus e especialmente a designação
“profetas”. Para esse grupo, este ainda é um termo que designa os pregadores itinerantes fazendo distinção entre eles e os demais seguidores
do grupo, sedentários citadinos que talvez sejam os “justos”.
Outra informação que se mostrará valiosa para nosso trabalho é a
de que o grupo mateano, nos dias em que o evangelho foi escrito, estava
vivendo um acirrado conflito pela própria subsistência. Depois da guerra
contra Roma, a religião de Israel teve de adaptar-se à nova realidade
e reorganizar sua fé com a ausência do Templo de Jerusalém e de sua
religião oficial.11 O grupo de Mateus era nesse processo uma das opções
existentes, e rivalizava principalmente com o que chamamos de Judaísmo Formativo, uma coalizão de judeus (destaque para os fariseus) bem
8
Cf. THEISSEN, G. O Movimento de Jesus. pp. 90-107.
9
Cf. STEGEMANN, W.; STEGEMANN, E. História Social do Protocristianismo. pp.
257-258.
10
11
82
ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento. p. 162.
GARCIA, P. R. O Sábado do Senhor Teu Deus. pp. 203-204.
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Anderson de Oliveira Lima
mais numerosa, que já ganhava terreno e posteriormente daria origem ao
chamado judaísmo rabínico.12 A tentativa de unificação da religiosidade
judaica refletia-se em pressão sobre grupos sectários como os judeucristãos de Mateus, e sanções não somente religiosas, mas também sociais
e econômicas, punham em risco a continuidade do grupo.13
Em resumo, o estudo das fontes nos conduziu à conclusão de que
o grupo que deu origem ao evangelho de Mateus nasceu da atividade
de pregadores itinerantes, que também lhes legaram o evangelho de Q.
Mas, para o grupo citadino de Mateus, era necessário aplicar as tradições
herdadas a um novo contexto, cujo horizonte ameaçador era desenhado
pelos “judeus”. As designações que pretendemos estudar, deverão ser
lidas a partir dessas informações e pressupostos.
2 Pobres e perseguidos por causa da justiça
Podemos a partir de agora nos voltar para os textos de Mateus,
o que faremos começando pelo estudo das bem-aventuranças, ou para
sermos mais específicos, da primeira encontrada em 5.3, e da última em
5.10. Esta última é uma passagem exclusiva de Mateus, e as estudaremos
juntamente por corresponderem-se formalmente e por serem bons exemplos para o estudo do trabalho redacional do evangelista Mateus:14
Bem-aventurados
Bem-aventurados
os pobres no espírito,
os perseguidos por causa da justiça,
porque deles é o reino dos céus.
porque deles é o reino dos céus.
Ao falar dos bem-aventurados, certamente o texto se refere ao
próprio grupo mateano.15 Serve como incentivo às práticas que adotaram,
12
Cf. STEGEMANN, W.; STEGEMANN, E. História Social do Protocristianismo. p. 255.
13 OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo. pp. 57-64.
14 Todos os textos bíblicos citados neste artigo são traduções do próprio autor a partir
do texto grego de NESTLE, E.; ALAND, K. Novum Testamentum Graece, 27a ed.
15 Sobre isso escreveu J. A. Overman em O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p. 32, dizendo:
“As célebres bem-aventuranças, glorificadas em grande parte da cultura ocidental
como atributos e ações desejáveis, são realmente uma epítome das características
que devem separar os judeus mateanos de outros grupos e líderes locais. As bemaventuranças – ou makarismoi, como são chamadas em grego, traçam para o público
de Mateus os valores que devem guiar suas decisões e relações cotidianas”.
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Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus
como elogio e promessa para um grupo que, quando estavam fora de
suas assembléias, vivia momentos de tensão. Naquele momento, eles
provavelmente já haviam perdido o acesso à sinagoga local, sofriam
preconceito pela adoção de Jesus como Messias, e sofriam cada vez mais
dificuldades em suas relações profissionais. Essas eram, não todas, mas
algumas das principais formas de perseguição que lhes eram impostas;
mas tal condição não é pelo texto de 5.10 retratada como desventura, mas
como uma exigência da fé cristã mateana. Colocando a opção religiosa
que haviam feito em primeiro lugar, eles suportavam a perseguição e
acusavam seus perseguidores, como vemos em 5.11-12 e em 10.17-18,
onde são acusados os judeus da sinagoga.
Enquanto estudamos o linguajar sectário desse texto, chama a atenção que o autor resumiu a causa de tal perseguição em uma só palavra, a
“justiça” (gr. dikaiosune). Este parece ser o termo usado pelo evangelho
para expressar a perfeita prática da Lei conforme ensinada por Jesus,16
sendo se não o único, um dos principais pontos em que os judeus do
grupo mateano discordavam dos seus conterrâneos. A justiça é, portanto,
um termo que resume o comportamento adequado e esperado dos membros do grupo,17 consequentemente, o “justo” (gr. dikaios) é aquele que
pratica esta Lei. Mais que um adjetivo, o termo “justo” torna-se aqui um
substantivo pelo qual são chamados os judeu-cristãos que compõem o
grupo de Mateus18 e, além do mais, o termo também acusa indiretamente
os adversários que não podem ser outra coisa se não “injustos”.
No quadro que apresentamos acima, a comparação entre as duas
bem-aventuranças nos permite ver que a condição de pobres19 da primeira
84
16
Veja: Mt 3.15; 5.20; 6.1,33; 13.17; 21.32.
17
Cf. OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise, p. 99.
18
Cf. OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise, p. 378. Veja também: Mt 5.45;
9.13; 13.17,43,49; 23.28-29; 25.37-40,46; 27.19.
19
J. D. Crossan nos lembra que no grego clássico existiam duas palavras para se
referir aos necessitados: uma é penes, que aparece em 1Coríntios 9.9, e a outra é
a empregada em Mt 5.3, ptochos. A primeira também serve para designar o pobre,
mas a pobreza desse penes é menor do que a do ptochos. Enquanto o primeiro é
aquele que precisa trabalhar constantemente para suprir os bens necessários, mas
ainda contando com o “pão de cada dia”, o segundo é o indivíduo que nada possui,
tornou-se um marginalizado, ou como lhe chama Crossan, um indigente. Noutras
palavras, o penes é um pobre que ainda consegue com seu labor assegurar o mínimo
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bem-aventurança, como a de perseguidos da outra, são estados resultantes
da opção religiosa do grupo,20 e a prática da justiça e a vida pelo espírito21
são as causas da pobreza e da perseguição. Quer dizer que, ao aderirem
ao programa do Reino de Deus, eles acabaram perseguidos, mas essa
perseguição não resultou em morte, e sim em pobreza, em limitações
sócio-econômicas.
A partir dessa interpretação, podemos dizer que as duas bemaventuranças compõem um paralelismo sinonímico, onde não temos
duas afirmações diferentes, mas apenas uma idéia, dita duas vezes a partir
expressões distintas, mas similares.22 Os pobres ou indigentes de 5.3 e os
justos de 5.10 são as mesmas pessoas, os membros do grupo mateano.
2 Profetas e justos
Nas frases analisadas acima nós constatamos que o grupo de Mateus, vítima de sanções impostas pela coalizão religiosa majoritária que
chamamos de judaísmo formativo, procurava fortalecer a fé e consolarse através das promessas do Reino de Deus àqueles que de boa vontade
aceitavam a pobreza e a perseguição. Todavia, essa interpretação não seria
a mesma se lêssemos a mesma bem-aventurança em sua versão original
em Q. Ali, provavelmente os “pobres” eram todos os seguidores de Jesus,
na maioria camponeses pauperizados que deram força ao movimento
itinerante. Assim sendo, o grupo de Mateus dava origem a uma nova
classe de judeu-cristãos, os “justos”, e ainda que tenham aproveitado o
adjetivo “pobres” para designarem-se, era necessário diferenciar estes
sedentários, cada vez mais pobres, dos antigos itinerantes que já haviam
para a sobrevivência sua e da sua família, enquanto que o ptochos é o pobre que
estava à beira ou mesmo abaixo do nível de subsistência, não tendo sequer o mínimo
necessário, carecendo assim da ajuda alheia. Cf. CROSSAN, J. D. O Nascimento do
Cristianismo. pp. 360-362.
20
GARCIA, P. R. As Bem-Aventuranças em Mateus. p. 54.
21
Seguimos aqui a interpretação de Paulo Roberto Garcia, que sobre a expressão mateana ‘no espírito’ escreveu: “... o termo ‘no espírito’ não espiritualiza a palavra pobre,
muito pelo contrario, ele aponta o motivo que levou a comunidade a ser pobre. Em
outras palavras, pela opção da vida ‘no espírito’, a comunidade passa a ser pobre”.
Cf. GARCIA, P. R. As Bem-Aventuranças em Mateus. pp. 50-52.
22
Veja: WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento, p. 91.
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Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus
aceitado a condição de marginalizados sem posses como modo de vida
voluntário. Essa distinção ficará mais clara nesta próxima seção, onde
estudaremos outros textos de Mateus, a começar por 10,40-42:
(A) O que vos acolhe, acolhe a mim; e o que me acolhe, acolhe o que me enviou.
(B1) O que acolhe um profeta no caráter de profeta,
(B2 ) recompensa de profeta receberá;
(C1) e o que acolhe um justo no caráter de justo,
(C2) recompensa de justo receberá.
(D) E o que tiver dado de beber um único cálice de água fria a estes pequenos no caráter de
discípulo, verdadeiramente vos digo: jamais terá perdido sua recompensa.
Se lermos Lucas 10.16 encontraremos uma passagem que se assemelha bastante à construção de Mateus 10.40 (A);23 e em Marcos 9.41
temos a fonte de onde o autor de Mateus retirou o conteúdo de 10.42 (D).
Podemos dizer que a versão mateana que acima traduzimos foi composta
a partir de outras fontes literárias, mas o que é mais interessante nesta
comparação é que são exclusividades mateanas exatamente as linhas
centrais dessa perícope (B1, B2, C1 e C2), onde temos uma construção
feita com maior esmero poético e onde encontramos os termos “profetas”
e “justos”. Eles são aqui utilizados em duas orações quase idênticas para
definir o grupo sedentário e o grupo itinerante, evidenciando o que acima
dissemos, que Mateus faz distinção entre os profetas itinerantes e os
“justos”, praticantes da Lei, que convivem com as desventuras impostas
pela perseguição religiosa regional.
Imaginamos que em sua versão mais antiga em Q, esse texto
tinha a função de estimular o apoio ao ministério itinerante, por meio
da hospedagem ou da ajuda com comida e bebida. Todavia, em sua versão mateana, tal incentivo é ampliado, mas não totalmente substituído.
Agora, além da ajuda aos profetas itinerantes ainda atuantes, também
se requer a ajuda aos “justos”, que desde que aderiram ao movimento
judaico-cristão têm sofrido cada vez mais limitações. Noutras palavras,
em Q, o propósito do texto era conscientizar os leitores/ouvintes a respeito da necessidade de auxiliar os itinerantes; já em Mateus, também
os simpatizantes sedentários chamados de “justos” e pobres são carentes
23
86
Veja também Jo 13,20.
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de tal caridade, motivo pelo qual o texto foi reescrito com acréscimos
para também fazê-los alvo da caridade cristã.
Prossigamos nosso estudo a fim de atestar com outras evidências
nossa hipótese, a de que Mateus faz distinção entre “profetas” e “justos”.
Agora vamos comparar Mateus 13,16-17 com Lucas 10,23-24:
Mateus 13.16-17
Portanto, bem-aventurados os vossos olhos
porque vêem, e os vossos ouvidos porque ouvem.
(17)
Pois verdadeiramente vos digo que muitos
profetas e justos desejaram ver o que vedes e
não viram, e ouvir o que ouvis e não ouviram.
(16)
Lucas 10.23-24
E voltando-se para os discípulos em particular disse: bem-aventurados os olhos que vêem
o que vedes.
(24)
Pois vos digo que muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, e ouvir o
que ouvis e não ouviram.
(23)
Neste ponto de nosso estudo já é possível notar que em geral, a
versão mateana é sempre mais cuidadosa em relação às formas, modificando o texto de Lucas/Q. A primeira mudança que constatamos é o
acréscimo da “audição” no versículo 16, que não se encontra na versão
de Lucas, provavelmente mais próxima da versão original. O acréscimo
tem o propósito de contrapor a referência ao sentido que já se encontra
no versículo 17. Mas o ponto que mais nos importa é outro, e destaca-se
pelos nossos grifos.
A versão lucana usa “profetas e reis” para se referir aos homens do
passado, ligando dessa forma o texto evangélico às tradições do Antigo
Testamento. Os discípulos de Jesus são descritos como pessoas privilegiadas em relação a personagens ilustres como Elias, Elizeu, Isaías, Davi,
Salomão, Josias... Por sua vez, Mateus substitui os “reis” pelo seu peculiar
“justos”. Uma vez mais ressalta-se a importância que neste evangelho se
dá à obediência à Lei, assim como a distinção que o evangelista faz entre
o ministério profético exercido por alguns, e a “justiça” que caracteriza
as pessoas comuns que, mesmo não sendo profetas, vivem de acordo
com os desígnios divinos. Esse exemplo mostra a coerência do autor,
que segue alterando as tradições recebidas em momentos convenientes
para adequá-la à linguagem já cotidiana em seu grupo.
Passaremos agora para o último exemplo, onde Mateus mais uma
vez acrescenta, em 23,29-30 os “justos” ao lado dos “profetas”. Desta feita,
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Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus
devemos comparar a versão mateana à versão que encontramos em Lucas
11,47, onde nossos grifos ajudarão o leitor a notar tal acréscimo:
Mateus 23.29-30
Lucas 11.47
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, (47) Ai de vós, pois edificais os túmulos dos
porque edificais os sepulcros dos profetas e profetas, mas os vossos pais os mataram.
adornais os túmulos dos justos,
(30)
e dizeis: se existíssemos nos dias dos nossos
pais, não seríamos sócios deles no sangue dos
profetas.
(29)
Como de costume, o texto mateano é mais extenso e bem trabalhado, e chamamos atenção especialmente para os “justos”, que agora
também são os homens fiéis à Lei no passado. Mateus simplesmente tira
os “reis” do texto e usa sua maneira própria para designar o grupo judeucristão distinguindo “justos” e “profetas” ao falar dos heróis preservados
pela memória nacional.
Curioso também é que, ao se referir aos “assassinos”, Mateus faz
questão de dizer que ele e os seus não são descendentes deles. Esses assassinos são os pais somente dos escribas e fariseus, ou seja, dos líderes
da religião nacional. O grupo mateano vê-se então como continuadores
de uma tradição marginal, sempre perseguida pelos poderosos, o que
explica a exclusão dos “reis” de entre as vítimas.
Ao interpretar o passado dessa forma, Mateus não só acusa os
seus rivais como também honra os judeu-cristãos ao relacioná-los com
personalidades admiradas da história de Israel. Entretanto, essa honra
também possui seu lado negativo, já que, como os antigos, os novos
heróis sectários também sofrerão contínua perseguição e talvez até o
martírio pela ação violenta dos líderes religiosos.
Além dos personagens do presente e do passado que habilmente
são relacionados, o texto também apresenta outros elementos importantes,
como os “túmulos e sepulcros” dos profetas antigos que aparentemente
tornaram-se locais reverenciados. A hipocrisia dos escribas e fariseus
está na atitude de agora reverenciar aqueles que foram assassinados por
pessoas como eles.
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Ao final de nossas análises podemos dizer que o autor do evangelho de Mateus, consciente de sua posição marginal na sociedade, adota
um linguajar próprio de grupos sectários daqueles dias, e não cria uma
linguagem própria como poderíamos imaginar enquanto lemos somente
os evangelhos sinóticos. J. A. Overman demonstrou que há na literatura
não canônica, produzida por grupos sectários diversos,24 discursos nos
quais tais grupos expressavam sua revolta diante das lideranças políticas
e religiosas que lhes pareciam sempre desonestas, em termos semelhantes
aos que vimos Mateus empregar.25 A oposição entre os “justos” do grupo
e “pecadores” de fora, não existe somente em Mateus, mas também caracteriza os grupos sectários que deram origem a livros como 4Esdras,
2Baruch, 1Henoc etc.26 O grupo judeu-cristão de Mateus era, portanto,
mais um dos diversos pequenos grupos que naqueles dias lutavam por
estabelecer seu movimento como normativo para a sociedade palestinense27, depois que o Templo de Jerusalém foi transformado em ruínas.
Conclusão
O objetivo de uma investigação como a que fizemos é aplicar tais
conclusões ao estudo do evangelho como um todo e ao interminável
trabalho de reconstrução da história do cristianismo primitivo. Se assim
fizermos, teremos que negar a opinião daqueles que pensam que o grupo
24
OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo. pp. 28-31.
25
Cf. Id., ibid., p. 31:
“As comunidades sectárias do período sentiam-se perseguidas. Elas não possuíam
poder político. Acreditavam que os detentores do poder, o corpo principal, eram corruptos e falsos líderes [...] A linguagem com alta carga emocional usada por essas
comunidades revela a frustração e raiva que sentiam por aqueles que estavam no
poder [...] Essa linguagem destaca o ambiente competitivo e cáustico e o cenário
sectário em que tanto o judaísmo formativo como o judaísmo de Mateus surgiram”.
26
Veja por exemplo: 1Henoc 94.1; Salmos de Salomão 3.3; 2Baruch 14.12-13; 4Esdras
7.17. Outras passagens são citadas por J. A. Overman na obra citada, pp. 29-30.
27
É nossa opinião que o evangelho de Mateus seja produto de um grupo judeu-cristão
da Galiléia e das últimas décadas do século I. Embora existam outras hipóteses, seguimos esta que também é defendida em obras como: DUARTE, D. Não Podeis Servir a
Deus e às Riquezas. GARCIA, P. R. O Sábado do Senhor teu Deus. OVERMAN, J A.
O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo. STEGEMANN, W.; STEGEMANN,
E. História Social do Protocristianismo.
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Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus
de Mateus era um grupo citadino abastado,28 e investigar com cuidado as
possíveis limitações que lhes eram impostas pelo grupo judaico majoritário, sanções que levam o evangelista a classificar seu grupo como pobres/
indigentes e como perseguidos. Além do mais, a recepção do evangelho
de Q e, com ele, da tradição dos profetas itinerantes, é indício de que
temos um grupo marginalizado, que compreende as reivindicações do
cristianismo anterior a si e que vê na fraternidade interna o único meio de
sobrevivência à crise, e no exemplo dos profetas sem pátria um exemplo
moral e uma alternativa de vida.
Esse é o quadro que este artigo começa a pintar, o de um grupo
numericamente limitado e gradualmente empobrecido, com dificuldades
de relacionamento na sociedade, e que faz de seu evangelho uma arma
para lutar contra a extinção. Estamos diante de um grupo oprimido, que
para existir tinha que inspirar-se em mandamentos como este: “Buscai
primeiro o reino dos céus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão
dadas” (Mt 6,33).29 Infelizmente, parece que, até o final do século II,
não somente o grupo de Mateus, mas também todos os herdeiros das
tradições judaico-cristãs de Q na Galiléia, se extinguiram.30
Bibliografia
CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo: Paulus, 2002.
CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do Cristianismo: o que
aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo:
Paulinas, 2004.
DUARTE, Denis. Não Podeis Servir a Deus e às Riquezas: Impactos
Econômicos no Evangelho de Mateus no Contexto do Judaísmo do Sé-
90
28
Esse é o caso, por exemplo, de Ekkehard e Wolfgang Stegemann, que descrevem
o grupo mateano como membros dos estratos superiores da sociedade, e não entre
aqueles que viviam abaixo do nível econômico considerado mínimo para a subsistência
como maioria. STEGEMANN, W.; STEGEMANN, E. História Social do Protocristianismo. pp. 264-265.
29
Em Mt 6,33 outra vez temos um acréscimo mateano na expressão “e sua justiça” em
relação a Lc 12,31. Sobre isso leia: GARCIA, P. R. As Bem-Aventuranças em Mateus,
pp. 54-55.
30
OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise: o evangelho segundo Mateus. p. 36.
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91
Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus
de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo:
Paulus, 2004.
THEISSEN, Gerd. O Movimento de Jesus: História Social de uma Revolução de Valores. São Paulo: Loyola, 2008.
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São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998.
Endereço do Autor:
ITESC
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524
Pantanal
88040-001 Florianópolis, SC
92
Encontros Teológicos nº 55
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Resumo: Na passagem dos 35 anos de existência da Comissão Nacional CatólicoLuterana, o autor começa recordando os fatos que antecederam a criação desse órgão
de diálogo oficial. Depois de lembrar que, no período colonial, o catolicismo era a religião
do Estado, mostra como essa situação mudou a partir da Constituição imperial de 1824,
que assegurava, embora ainda com restrições, a liberdade de culto. Esse ano marca a
vinda da primeira leva de imigrantes alemães ao Brasil. Com a República, em 1889, veio a
separação entre Igreja e Estado. A Primeira Conferência Missionária mundial, em 1910, na
Escócia, preocupou-se com a unidade entre os missionários das diversas denominações,
priorizando a evangelização da Ásia e da África. O Congresso Missionário do Panamá,
em 1916, voltou-se para a evangelização da América Latina, unindo-se numa polarização
anti-católica, não assumida pelos luteranos. Grande marco ecumênico foi a criação do
CMI, Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdam, 1948. As décadas de 50 e 60 foram
caracterizadas pelo avanço do diálogo ecumênico, principalmente entre luteranos e católicos. O Concílio Vaticano II, 1962-65, reconheceu o Ecumenismo. Em 1975 realizou-se,
em São Paulo, o primeiro Encontro Ecumênico de Dirigentes de Igrejas, congregando
católicos, luteranos, anglicanos, e metodistas, surgindo pouco depois a Comissão Nacional
Católico-Luterana, ativa até hoje. Passo notável foi dado em 1998, com a publicação do
documento conjunto sobre a “Justificação por Graça e Fé”.
Abstract: In the light of the 35th anniversary of the National Catholic-Lutheran Committee,
the author starts assembling some relevant facts anteceding the start of the organization
engaged officially in mutual dialogue. After recalling the Catholic religion in the colonial
period as the religion of the State, the situation underwent a change in the promulgation
of the Imperial Constitution of 1824 by securing the rights of freedom of religious worship,
albeit with some restrictions. This year is a significant event remembering the first wave of
German immigrants arriving in Brazil. With the transition from the Empire to the Republic in
1889 came the separation between Church and State. The first missionary conference on
a world wide extent happened in Scotland in 1910 and was concerned with a consensus
among the missionaries of various denominations with special emphasis on the evangelization of Asia and Africa. The Missionary Congress of Panama in 1916 dealt with the
evangelization of Latin America, converging on an anti-Catholic polarization, which was not
endorsed by the Lutherans. A great step forward in ecumenism was taken with the creation
of the World Council of Churches (CMI) founded in Amsterdam in 1948. The following
decades of the fifties and sixties gained special characteristics by the advancement of the
ecumenical dialogue between Catholics and Lutherans. The Vatican Council II (1962-65)
gave its approval to Ecumenism. In 1975 was held in Saint Paulo the first Ecumenical Meeting among the leaders of the Churches, assembling Catholics, Lutherans, Anglicans, and
Methodists. Shortly afterwards came into being the National Catholic-Lutheran Committee
still effective up to today. An important step forward was taken in 1998 with the publication
of the joint document about “Justification by Grace and Faith”.
A Comissão Nacional Católico-Luterana.
Retrospectiva e desafios
Ervino Schmidt*
*
O autor é Pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 93-102.
A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios
É extremamente gratificante podermos olhar para uma já considerável caminhada ecumênica, para uma história comum. Dela faz parte
um longo processo de diálogo teológico-pastoral entre nossas Igrejas,
diálogo simultaneamente respeitoso e crítico, marcado, acima de tudo,
pelo amor. Refiro-me ao diálogo oficial como acontece na Comissão
Nacional Católico-Luterana. Aliás, a Comissão no ano em curso completa
35 anos de existência. É justo, portanto, que no início deste encontro de
Bispos e Pastores Sinodais, recordemos alguns momentos da nossa história. Queremos antes, porém, fazer referência, se bem que muito breve,
a alguns fatos que, de certo modo contribuíram para abrir caminho ao
movimento ecumênico.
1 Horizontes se ampliam
Um fato que merece ser mencionado como de grande alcance para
a instauração do diálogo entre as Igrejas em nosso meio, sem dúvida, foi
a declaração de liberdade religiosa no início do Império brasileiro.
Durante todo o período colonial a Igreja Católica Romana detinha
o monopólio religioso. Ela era, como sabemos, a única Igreja reconhecida. São contingências históricas! Assim, ser cristão no Brasil não era
apenas uma questão de fé, mas também legal. Era difícil a vida para os
poucos protestantes que havia na época.
A título de curiosidade: Em São Vicente, hoje Santos, já em 1554
havia um pequeno grupo de luteranos reunido em torno de Heliodor
Eoban Hess, filho de um amigo de Lutero (M. Begrich).
O grande movimento imigratório de luteranos, vindos da Alemanha, aconteceu no período do Império brasileiro. No mesmo ano da
vinda da primeira leva de imigrantes, ou seja, em 1824, a Constituição
imperial já garantia a liberdade religiosa dos acatólicos, assegurando que
ninguém podia ser perseguido por motivos religiosos enquanto respeitasse
a religião do Estado. Junto com a liberdade, portanto, impunham-se claras restrições. Diz o texto oficial: “A religião católica apostólica romana
continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão
permitidas com o seu culto doméstico ou particular, em casas para isso
94
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destinadas, sem forma alguma exterior de templo”1. De qualquer maneira,
foi um primeiro importante passo. A separação de Igreja e Estado, no
entanto, viria mais tarde, com o estabelecimento da República (1889).
Vieram para o Brasil, também, movimentos missionários protestantes. Estes buscavam a unidade na estratégia da evangelização. Não
deixava isso de ser um esforço de comunhão, porém intra-protestante! A
dimensão ecumênica passava necessariamente por um ideal missionário
que destacava a evangelização e o engajamento nas ações pela liberdade
de culto. Essa era uma constante.
Um testemunho protestante mais unido foi também preocupação
geral entre as sociedades missionárias norte-americanas e européias. A
mensagem a ser levada para as nações não podia ser dividida! Acima de
tudo, não podia haver concorrência nos campos missionários. Precisava
haver entendimento.
Essas foram algumas das preocupações da Primeira Conferência
Missionária Mundial, realizada em Edimburgo, capital da Escócia, em
1910. No próximo ano festejaremos o centenário dessa Conferência.
Quanto aos campos de missão, a proposta principal era evangelizar os
povos considerados pagãos. Pensou-se, principalmente, nos povos da
Africa e da Ásia. A América Latina, vista como continente católico, portanto já cristianizado, não era considerada uma região missionária. Mas
líderes de algumas juntas missionárias, especialmente das que atuavam
no continente latino-americano, mostraram sua insatisfação. Para eles,
a decisão de Edimburgo era um equívoco.
Conseqüência direta disso foi o surgimento da Comissão de
Cooperação para a América Latina (CCLA) que, em 1916, organizou o
célebre Congresso do Panamá. Nele, foram traçadas as coordenadas para
a evangelização em nosso continente. Firma-se um determinado ideal
de unidade e de cooperação.
Esse ideal é assumido pelo Protestantismo brasileiro de missão.
Ideal que, ao menos em sua expressão inicial, é marcado por uma cultura anti-católica. Percebe-se “entre as Igrejas oriundas do processo
missionário, a existência de uma certa unanimidade, não planejada,
1
Constituição imperial de 25 de março de 1824, art 5, apud M. Dreher, Igreja e Germanidade, p 23.
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A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios
evidentemente, mas em termos de um discurso teológico visceralmente
anti-católico, de corte fundamentalista e profundamente marcado por
uma ética puritana e individualista”2.
Só bem mais tarde começaram a surgir sinais de superação de tal
postura. “Era necessário ampliar as fronteiras do convívio ecumênico”
(Darli Alves de Souza).
Os luteranos, num contexto de protestantismo de imigração, nunca
assumiram uma postura marcadamente anti-católica.
Já nas primeiras levas de imigrantes alemães, a partir de1824, havia
luteranos e católicos, lado a lado. Passaram pelas mesmas dificuldades
e tiveram, no sul do Brasil, a mesma acolhida e eram movidos pelos
mesmos sonhos. Houve caminhada conjunta. Em alguns casos houve
também tensão. Mais tarde, com comunidades já formadas, muitas vezes
chegou-se mesmo a profícua cooperação entre as duas confissões. Não se
pode, porém, ainda falar de uma consciente iniciativa ecumênica, muito
menos de um diálogo oficial. Esse viria mais tarde.
2 Rumo à Comissão Nacional Católico-Luterana
Em 1948, o Presidente do Sínodo Riograndense – ainda não havia
uma Igreja luterana nacional, a qual começou a surgir um ano mais tarde – o Pastor Hermann Gottlieb Dohms participou, como convidado, da
Assembléia de Fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdã.
A importância dessa participação é documentada no fato de um número
todo de “Estudos Teológicos”, órgão oficial do Sínodo Riograndense, terse ocupado com questões ecumênicas. Viu-se a necessidade de colaborar
de maneira mais estreita com o Protestantismo brasileiro e, ao mesmo
tempo, incentivar o diálogo com a Igreja Católica Romana. Em 1950, a
recém criada Federação Sinodal foi aceita como membro no Conselho
Mundial de Igrejas e também na Federação Luterana Mundial.
Isso tudo, sem dúvida representou um grande avanço em termos
de abertura ecumênica.
2
96
FE-BRASIL: “Ecumenismo, direitos humanos e PAZ”, p.12.
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Não podem ser esquecidas as iniciativas do próprio CMI junto
às igrejas no Brasil. Já em 1953, por exemplo, através de sua Comissão
Igreja e Sociedade, realizou em São Paulo uma Conferência sobre a
mesma temática.
As décadas de 50 e 60, de maneira especial, foram marcantes para
o avanço do trabalho ecumênico entre nós. Os inícios, por razões históricas, se deram principalmente no sul do país. Nesse contexto devem ser
mencionadas, sobretudo, duas pessoas que chegaram a ser chamadas de
“ícones do ecumenismo brasileiro”3. Trata-se do Pe. Frederico Laufer,
S.J. e do Pr. Bertholdo Weber. Há vários outros nomes que poderiam ser
citados. Mas deixemos que esses dois, por assim dizer, os representem.
Para ambos, o ecumenismo era uma questão de profunda espiritualidade. Em seu ministério, a busca de unidade era uma constante. Viram
que era necessário dar passos concretos, que era necessário avançar no
diálogo. Pe Laufer era professor no Colégio Cristo Rei, dos Jesuítas, e
Pr. Weber, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana. Logo no início do primeiro semestre de 1957, sob iniciativa de
ambos, foi realizada uma reunião preliminar para definir os objetivos dos
encontros entre as instituições de formação teológica. Nascia, assim, o
Grupo Ecumênico de Reflexão Teológica (GERT). Os temas abordados,
no decorrer dos anos, foram os mais diversos. O GERT encerrou suas
atividades em 1998 Ele foi muito importante porque:
1) ...abriu caminhos para as futuras relações formais entre as igrejas(...);
2) pela preocupação em realizar um diálogo teológico, com a explícita
intenção de favorecer a aproximação doutrinal entre os cristãos. As
atas mostram o caráter teológico dos temas em discussão, como: Igreja,
sacramentos, ministérios, e outros. Isso acena para um compromisso
com a perspectiva ecumênica na compreensão da fé cristã...; 3) pela
preocupação em fazer com que a busca da unidade tivesse também uma
dimensão pastoral, fator esse que se intensificou sobretudo a partir de
1971, quando a publicação da Exortação Apostólica Octogesima Adveniens, da Igreja Católica, impulsionou a atenção para as implicações
sociais do Evangelho e para a nova teologia latino-americana. Os trabalhos da Sociedade para o Desenvolvimento e a Paz - SODEPAX e a
3
Jornal Solidário, ano X, n. 429, Porto Alegre, 29de out – 11 de nov. 2004.
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A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios
nova teologia emergente, na perspectiva da “libertação”, impulsionam
os temas focalizados nesse sentido.4
As conversações ecumênicas não podiam permanecer no nível
teórico, pois é a natureza das mesmas impulsionar para a ação. Assim,
em 1969 foi fundado, em Porto Alegre, o Serviço Interconfessional de
Aconselhamento (SICA). Mais tarde, outros organismos surgiram, como
o Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria – CECA
(1973) e Centro de Estudos Bíblicos – CEBI (1979).
Outro passo concreto e importante foi a realização, em 1975,
do primeiro Encontro de Dirigentes de Igrejas, com a participação da
Igreja Católico-Romana, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e da Igreja Metodista.
Esses encontros foram decisivos para a posterior criação do Conselho
Nacional de Igrejas.
Para os Dirigentes de Igrejas, tornava-se cada vez mais forte a
consciência de que a divisão entre os cristãos é contrária à vontade de
Deus, um escândalo para o mundo e um obstáculo para o testemunho
comum. Sentiram a dor da separação e passaram a empenhar-se, cada
vez mais, pelo cumprimento do desejo de Cristo “que todos sejam um”
(Jo 17, 21).
Propuseram, então, oficialmente, a criação de um Conselho Nacional de Igrejas, “aberto ao diálogo e à colaboração com quaisquer outras
organizações eclesiais, sem intenção de substituí-las ou de competir
com seus programas” (doc. do CONIC 5, p.53). Entre as atribuições do
Conselho está o incentivo aos diálogos bilaterais e multilaterais entre
as Igrejas.
De grande contribuição para o surgimento do diálogo católicoluterano, tanto em nível internacional, quanto local, foram as conquistas
do Vaticano II (1962-65). Novas possibilidades a partir dele se abriram.
O teólogo católico, estudioso de ecumenismo, Elias Wolff cita , neste
particular, os seguintes elementos advindos do Concilio:
“a liturgia no vernáculo, o uso da Bíblia, a nova eclesiologia, a nova
relação com o mundo moderno, a nova relação com as igrejas e com
4
98
W. 2002, p 102.
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as outras religiões, a elasticidade da reflexão teológica. No Brasil, a
presença da Igreja no meio social e o seu compromisso com as questões
que o afligem, o surgimento de um modo próprio de fazer teologia, que
mostra o vigor e o dinamismo da fé num engajamento concreto no meio
social, as comunidades populares que assumem a consciência eclesial,
são fatores, entre outros, que influenciam de tal modo na visão protestante do catolicismo que alguns chegam até mesmo a reconhecer nele
‘o rosto da infância do protestantismo’. A Igreja Católica passa a ser
vista como uma Igreja-irmã[...] nesse contexto situa-se o nascimento e
crescimento do movimento ecumênico no Brasil5.
Em 1967 foi criada a Comissão Mista Internacional CatólicoLuterana. Ela foi nomeada pela Federação Luterana Mundial (FLM)
e pelo Secretariado para a Unidade dos Cristãos, da Igreja Católica
Romana, para iniciar o diálogo, buscando a unidade na verdade e a
eliminação das diferenças causadoras de divisão, rumo à comunhão
eclesial (koinonia).
Em 1973, o Pr. Bertholdo Weber passou a fazer parte dessa Comissão. Nesse período foi aprovado o “Relatório de Malta”, documento
que recolhe os primeiros frutos do diálogo ecumênico internacional. Em
carta de 23 de janeiro de 1974, dirigida ao, Pe. Paulo Homero Gozzi,
então assessor para ecumenismo da CNBB, o Pr. Weber escreve:
“A Comissão Mista Católico-Luterana, em sua 2ª sessão realizada de 8
a 12 de janeiro pp., em Roma, deu especial importância ao processo de
recepção dos resultados do diálogo entre católico-romanos e evangélicoluteranos, apresentados no documento ‘O Evangelho e a Igreja’[...].
Como primeiro passo, torna-se, a meu ver, necessária a formação de
uma comissão mista entre as nossas Igrejas, para uma avaliação do
Relatório de Malta e o estudo das implicações conseqüentes para a
comunhão eclesial praticada e vivida”6.
A CNBB aceitou a proposta e nomeou, no mesmo ano, os padres
Jesus Hortal e Sinésio Bohn como seus membros. Já os luteranos seriam
representados pelos pastores Bertholdo Weber e Walter Altmann.
5
Wolff, Elias, 2002, p.38.
6
Wolff, Elias, 2002, p.119.
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A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios
Estava constituída a primeira Comissão Mista Católico-Luterana Naciona! Agora, porém, não se tratava mais de encontros de docentes
e sim, de Igrejas através de seus delegados oficialmente nomeados.
3 Alguns frutos do trabalho da Comissão
A Comissão Nacional Mista Católico-Luterana desenvolveu, com
fidelidade, suas atividades até os dias de hoje. Por vezes, porém, experimentou momentos de estagnação. Mas reconstituía-se e continuava sua
tarefa de estimular o diálogo específico entre as duas Igrejas, estudar
pontos comuns de doutrina de ambas, refletir os resultados alcançados
em diálogos ecumênicos internacionais, organizar seminários de estudo,
traçar projetos de ação comum7.
Vejamos alguns exemplos de sua atuação: Logo na primeira fase,
ela traduziu um importante texto do diálogo católico-luterano internacional, o Relatório de Malta, e realizou, no Rio de Janeiro, com o apoio
do Instituto de Pesquisa Ecumênica de Estrasburgo, França, um seminário que resultou na publicação do livro “Desafio às Igrejas”. No ano
de 1978, a Comissão Mista Nacional traduziu o documento “A Ceia do
Senhor”. Em 1980 traduziu a declaração: “Todos juntos sob o mesmo
Cristo” (devido aos 450 anos da Confissão de Augsburgo), e em 1983,
a declaração intitulada “Martinho Lutero, Testemunha de Cristo” (motivada pelo quinto centenário do nascimento do Reformador.
Em 1998 a Comissão voltou a realizar seminários. O primeiro
foi: “Hospitalidade Eucarística”. Os estudos foram posteriormente
publicados.
No mesmo ano foi lançado o livro “Doutrina da Justificação por
Graça e Fé”, numa co-edição EDIPUCRS/CEBI.
Em 1999 a Comissão redigiu uma carta às Igrejas, conclamando-as
a ficarem atentas à assinatura do documento de extraordinária importância
que viria a ser assinado, em nível mundial, pelas Igrejas Católica Romana
e Evangélica Luterana, em Augsburgo, ainda no mesmo ano.
7
100
Cf. Guia Ecumênico da CNBB p. 66-67.
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Nos dias 7 e 8 de setembro de 2000, a Comissão realizou, na Casa
Matriz de Diaconisas, em São Leopoldo, o seminário sobre Ministérios. Os
resultados desse seminário encontram-se na publicação:”Os Ministérios”.
Em 2002, aconteceu o encontro de estudos sobre “Comunhão,
Ministério e Sacramentos”. Não localizei a publicação.
Em novembro de 2004 foi levado a efeito um seminário intitulado
“A Tradição Apostólica”. No momento, estuda-se a possibilidade da
publicação das palestras também desse seminário.
Além de tudo o que foi enumerado acima, houve o planejamento
e a realização do primeiro encontro de Bispos e Pastores Sinodais, em
2002. No ano em curso está sendo realizado o segundo. Esses encontros
são entendidos como mais um espaço privilegiado de reflexão e vivência
ecumênicas.
Bem, o que eu fiz foi tecer memória! Não mais do que isso. Não
tive a pretensão de apresentar algo completo e acabado. Mas essa breve memória deixa transparecer que unicamente a graça de Deus leva
Igrejas a trilharem o caminho da unidade.
É no amor imerecido de Deus, também, que estamos aqui reunidos sob o tema: “A Declaração da Justificação por Graça – 10 anos de
testemunho no contexto religioso brasileiro”.
Concluo com uma observação que o Pastor Presidente Walter
Altmann fez, dez anos atrás, sobre a assinatura dessa Declaração Conjunta. Diz ele que a mesma é “uma pedra (quem sabe uma pequena
parede) nessa casa de fraternidade eclesial que queremos construir em
comum. Essa assinatura foi essencial para fortalecer a base comum da
fé que temos em nosso Senhor Jesus Cristo e, naturalmente, propicia a
continuação tanto do diálogo teológico quanto da cooperação prática
nas comunidades8.
Que os trinta e cinco anos da Comissão Nacional CatólicoLuterana e os dez anos da Declaração Conjunta sobre a Justificação por
Graça, nos sejam inspiração nos caminhos do ecumenismo, hoje, com
seus novos desafios!
8
Os Ministérios, 2000, p.11.
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A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios
4 Bibliografia
DREHER, Martin.N. Igreja e Germanidade. São Leopoldo: Sinodal,
1984.
FÉ BRASIL. Ecumenismo, direitos humanos e paz. Rio de Janeiro,
2006.
HORTAL, Jesus. 25 Anos de Diálogo Católico-Luterano no Brasil. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 22, n. 1, p 264-270, 1982.
SEMINÁRIO Bilateral Misto Católico Romano – Evangélico Luterano.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002 (Introdução).
SINNER, Rudolf von; WOLFF, Elias; BOCK, Carlos Gilberto (Orgs.).
Vidas Ecumênicas: Testemunhas do ecumenismo no Brasil. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Padre Reus, 2006.
WEBER, Bertholdo. O Diálogo Católico-Luterano Internacional. Estudos
Teológicos. São Leopoldo, ano 22, n. 1, p 271-282, 1982.
WOLFF, Elias. Caminhos do Ecumenismo no Brasil: história, teologia,
pastoral. São Paulo: Paulus, 2002.
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
102
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Resumo: Este artigo pretende analisar as estratégias de marketing e de merchandising de algumas denominações religiosas neopentecostais brasileiras
e seu ávido esforço para busca, manutenção e atendimento de seu suposto
público-alvo. Para tal empreendimento, estaremos utilizando como base epistemológica o paradigma mercadológico das Ciências da Religião.
Palavras-chave: religião, neopentecostalismo, marketing, merchandising,
público-alvo e mercado Abstract: The purpose of this article is to analyse the strategies of marketing
and merchandising of some brazilian neopentecostal religious denominations
and their eager to gather and serve their supposed target public. For such study, we will use as an epistemological base, the merchandising paradigm of the
Religion Science.
Key-words: religion, neopentecostalism, marketing, merchandising, target
public and market.
Neopentecostalismo e marketing
religioso: uma análise das técnicas
de merchandising em instituições
religiosas brasileiras
Anderson Jankus de Souza*
* O Autor é Bacharel em Teologia pela PUC/PR, e Pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 103-122.
Neopentecostalismo e marketing religioso
Introdução
A presente proposta de estudo aqui delineada será embasada pelos
óculos mercadológicos constantemente referendados pela sociologia da
religião. Enganar-se-á quem tentar ler o presente artigo sob o prisma
simplesmente religioso, como muitas vezes faz o teólogo cristão, vítima
das fronteiras dogmático-eclesiásticas; e enclausurado pela camisa-deforça denominacional. A análise é simplesmente abordada por outra
modalidade. É até um “reducionismo epistemológico”. Mas, não há outra
maneira para avanços quando se pretende render-se a multifacetada e
fragmentada razão ocidental. Pois é bom lembrar que estamos em crise
de paradigmas. Tudo está sob/em re-construção!
1 A gênese
“Deus está usando os Anglo-Saxões para conquistar o mundo pra
Cristo a fim de despojar as raças fracas e assimilar e moldar outras. O
destino religioso do mundo está nas mãos dos povos de fala inglesa. À
raça anglo-saxã, Deus parece ter entregue a empresa de salvação do
mundo.” (Pr. Metodista)
Sabe-se que o bom e velho sujeito pertencente a alguma denominação do moderno protestantismo histórico1, consciente de sua tradição
e herança se contorceria ao ler o que vamos escrever agora: – “tanto o
“pentecostalismo”, como a sua mais nova configuração, o “neopentecostalismo”, são seus primos-irmãos”. Querendo ou não, o “protestantismo”
é um desenrolar sócio-religioso de uma vertente do cristianismo que vai se
dividindo e/ou subdividindo no reboque da dinâmica social. De maneira
celular ele precisa se dividir! Está na sua gênese. Em seu mecanismo
interno há uma “reserva de sentido”2 que os grupos dissidentes utilizam
com muita propriedade para legitimar a separação. De outra parte, sua
104
1
Protestantismo de missão é o movimento oriundo da Reforma Protestante que tinha
em seu bojo o expansionismo denominacional. Aqui no Brasil, os mais conhecidos
são: Presbiterianos, Batistas, Metodistas e Congregacionais.
2
“Reserva de sentido” – As possibilidades de um texto dizer mais do que pensou seu
autor. In: CROATTO, S. José. Hermenêutica Bíblica. São Leopoldo: Ed. Sinodal &
Paulinas. 1986. p. 60.
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Ano 25 / número 1 / 2010
Anderson Jankus de Souza
pujança reside em se re-adequar para responder sempre às demandas
sociais quando necessário.
Para se entender um pouco mais do neopentecostalismo é preciso
ter em mente três coisas. Primeiramente o próprio ethos do protestantismo. Em segundo lugar EUA. E em terceiro, a demanda mercadológicosocial. Não precisa ser repetitivo para vislumbrar esses três quesitos,
que aparentemente cheiram “ares de simplicidade”, mas já foram
estudados e re-estudados por vários especialistas. Há uma vastidão de
livros e textos demonstrando o que foi e o como apareceu o protestantismo em nosso país3. Entretanto, precisa-se voltar a essas fontes para
podermos criar estruturas para que nosso texto não fique suspenso no
vazio. Deixaremos de lado as raízes pertencentes ao protestantismo de
migração (Geralmente – luteranos e anglicanos). Concentrar-nos-emos
mais no outro “tipo”. O protestantismo de missão. Pois é nele, que de
fato, concentra-se o “espírito” expansionista e mercadológico norteamericano. Queremos o espectro4. Queremos encontrar o “espírito” do
“vendedor-missionário”!
Antônio G. Mendonça com muita maestria demonstrou que o protestantismo de missão que vemos no Brasil é fruto de um longo processo
de assentamento e re-configuração social, antes de fincar terreno em “terra
brazilis”5. Pois, aquilo que chamamos de “espírito” do protestantismo
“histórico brasileiro adveio diretamente dos três principais laboratórios da
grande emigração européia – Inglaterra, Escócia e Irlanda”6. Nessas três
nações foram fundidas as principais doutrinas de parte do protestantismo
que desaguaram nos Estados Unidos da América.
O protestantismo que se configurou na América do Norte sempre
esteve ligado ao “protestantismo de missão”7. Não temos tempo e nem
espaço para delinear a “grande empresa missionária expansionista”,
proveniente da segunda metade do século XIX. Já se tem literatura farta
3
Cf. Cf. MENDONÇA. G. Antônio. O Celeste Porvir. São Paulo: Ed. ASTE & Pendão
Real & Imprensa Metodista, 1995; MENDONÇA, G. Antônio & FILHO, V. Prócoro.
Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Ed. Loyola, 1990 e LÉONARD,
G. Émile. O Protestantismo Brasileiro. São Paulo: ASTE, 1963.
4
Expressão devida a Antônio G. Mendonça para o texto em questão.
5
Cf. MENDONÇA. G. Antônio. op. cit. São Paulo, pp. 48-59.
6
Cf. MENDONÇA, G. Antônio. op. cit. pp. 35.
7
Cf. MENDONÇA, G. Antônio. op. cit. pp. 48-49.
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Neopentecostalismo e marketing religioso
e abastada sobre o assunto. Mesmo assim, o protestantismo de missão
brasileiro só pode ser compreendido, e o é realmente, quando se levar
em conta a auto-compreensão missionária do protestantismo puritano
norte-americano. Sabe-se que a expansão missionária dos EUA, não só
está estritamente ligada ao universo religioso como a doutrina do “Destino
Manifesto”8 e dos “Revivals” (Avivamentos), como no caso, do Metodismo de Wesley. Mas também, aos ideais do “imperialismo econômico
e cultural” e do “American Way of Life” (estilo de vida americano)9.
Na verdade há uma grande simbiose entre Sociedade, Indústria, Mercado, Estado e Religião no “universo ideológico” norte-americano. O
protestantismo dos Estados Unidos, no intuito de trazer uma “boa nova”
(Euangellion), traz em seu bojo também, o “ethos gestaltico” da cultura
hegemônica.
Muitos poderiam nos perguntar: Qual a razão disso tudo? Simplesmente, dizer que os traços do neopentecostalismo residente aqui
no Brasil, em seu “gene”, têm um pouquinho do “evangelismo transnacional” pertinente às instituições evangélicas tradicionais dos EUA
como: Presbiterianos, Metodistas e Batistas residentes aqui. Em um
estudo mais acurado, pode-se vislumbrar que, boa parte das instituições
religiosas dessa vertente é proveniente de “cismas” ocorridos nas três
principais correntes do protestantismo de missão. É nesse sentido que
afirmamos, lá no inicio do texto, que o neopentecostalismo é “primoirmão” do protestantismo histórico.
2 O “ethos”: expandir sempre!
“Para a América cristã, no final, a extensão do poder e influência nacionais e a propagação da fé são os dois lados da mesma moeda” (In:
Clifton Olmstead).
Quando olhamos para os EUA, não vemos a “neurose” de domesticação dos fiéis que as instituições evangélicas brasileiras sofrem para
106
8
Doutrina norte-americana que consiste em se denominarem o novo “Israel de Deus”
para levar o seu ideal político-religioso e “modus vivende” a todo o orbe terrestre, e
com isso implantar a paz e os ideais da “civilização perfeita”.
9
Cf. MOREIRA, S. ALBERTO (Org.). Sociedade Global. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999.
pp. 92-102.
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coibir e manter o controle ideológico e comportamental dos mesmos aqui
em nosso país. Religião e sociedade nos EUA são quase que a mesma
coisa. Os belos hinos cantados pelos “negros batistas” (Gospels) podem
ser notadamente tocados por uma banda de “rock ‘n’ roll”, sem escandalizar seus fiéis. Não há muita diferença entre o “secular” e “profano” por
aquelas bandas. Eles fundaram as treze colônias (Mayflower)10 sob a égide
de ser o povo escolhido por Deus. Eles já habitam um tipo de “moderna
Canaã”. Mas precisam expandir tais ideais religiosos, mercadológicos
e sociais da poderosa América Cristã por todo orbe terrestre! No afã de
“evangelizar” o mundo, acabam introduzindo o “American Way of Life”;
bem como suas principais corporações mercadológicas.
Interpretamos um dado que para muitos não parece interessante.
Parece bobagem! Mas, entendemos ser de muitíssima valia. Observem
os jogos e os esportes nos EUA! Dificilmente se observa o lúdico nos
jogos americanos. Parece paradoxal. Mas é a mais pura verdade. O “jogo”
sem o “lúdico”! Mas, analisem os fatos com os “óculos” que estamos
utilizando. O futebol americano é um bom exemplo. A cada “jarda”
conquistada, se delimita uma fronteira e se coloca uma “base”. A partir
dela, buscam-se novas conquistas. Coisa de Americano! Precisam ter
bases militares em todo o mundo. É um campo inimigo a ser conquistado!
Precisa-se conquistar, expandir e vencer sempre! Outros esportes como:
Basquete e Basebol, estruturalmente, encarnam internamente estratégias
de conquista também. Jogo sem ludicidade! Pois, lá tudo soa belicismo,
estratégia e conquista; e o seu colega de profissão – o “player” da outra
equipe – é um inimigo que precisa ser derrotado!
Ao se transferir essas dimensões para o Estado norte-americano,
mudando o que precisa ser mudado, vemos a mesma lógica expansiva.
Vejamos o relato que se segue:
A profunda convicção alimentada pelos americanos de que sua nação
tinha sido escolhida para uma missão universal foi nutrida e sustentada
através da Guerra Civil e recebeu um novo batismo de poder, no período
que se seguiu. Muitas forças se combinaram para exaltar o papel do
“Destino Manifesto” na consciência americana. A partir do darwinismo,
os americanos tiveram a intuição de que pela seleção natural os Estados
10
Cf. MENDONÇA. G. Antônio. O Celeste Porvir. São Paulo: Ed. ASTE & Pendão Real
& Imprensa Metodista, 1995. p. 60.
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Neopentecostalismo e marketing religioso
Unidos tinham se tornado uma nação superior destinada a dirigir os povos mais fracos. As filosofias idealistas enfatizavam a capacidade natural
do homem e, interpretada a história em termos de progresso, tudo vinha
favorecer a ideologia expansionista. Em um período em que as nações
européias expandiam seus interesses imperialísticos pela África, Ásia,
América Latina e Pacífico, os americanos se sentiam comissionados
para estender as bênçãos da civilização cristã e o governo democrático
(MENDONÇA, 1995, p. 62).
É assim que funciona a ideologia expansionista norte-americana.
Precisa-se expandir e conquistar sempre! Ingenuidade seria pensar que
as instituições religiosas pensam d’outra forma. Em um olhar mais acurado na realidade religiosa dos EUA, vai se perceber que as suas grandes
denominações religiosas sempre tiveram um papel legitimador do Estado norte-americano11. E o grande álibi que possuem é “demonizar” os
outros! Precisa-se acabar com o “demônio” do paganismo obscurantista
dos outros povos/nações e redemocratizá-los. E, com isso, levar o seu
ideal social e modus vivendi. Não há outra maneira para evangelizar as
outras nações. Assim, no ideal de levar a religião oficial do país, acabam
levando suas transnacionais, sua tecnologia e sua cultura também.
3 As corporações do sagrado
“Quando uma determinada corporação evangélica faz um acordo com
o Estado guatemalteco, ou com o Estado brasileiro, para ampliar sua
presença midiática nesses países, esse acordo é conduzido segundo os
mesmos critérios mercantilistas que regem a venda do petróleo ou de
máquinas” (José Jorge de Carvalho)
Max Weber, ao analisar as grandes corporações capitalistas do
século passado, já frisava que o capitalismo sistematizado e organizado
das modernas corporações capitalistas de nossa era provinha da ascese
de seus donos puritanos calvinistas. Muitos afirmam que Weber fez uma
leitura apressada da doutrina calvinista da “Glória de Deus”. Mas é difícil
solapar os argumentos de um dos maiores pensadores do século passado.
Pois, Weber admitia que o lucro e a troca sempre existiram12. Até mesmo
11
Cf. MOREIRA, S. ALBERTO (Org.). Sociedade Global. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999.
12
108
Cf. o livro de: WEBER, Max. Ética Protestante e Espírito do Capitalismo. São Paulo:
Ed. Martin Claret, 2006.
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nas sociedades mais primitivas. O que enfatizou foi a sistematização e
o cálculo utilizados dentro das modernas corporações capitalistas em
torno do trabalho. Pois para o “calvinista puritano”, o trabalho era para
a “glória de Deus”! Nada poderia ser perdido! Era sinal de sua eleição.
Isso contribuiu para o avanço do espírito do capitalismo no mundo
ocidental. Lembrando-se que “Geist” no alemão pode ser traduzido
por impulso, força criativa, desconfiamos de que Weber interpretava
“espírito” nesse sentido.
Hoje em dia, as grandes corporações religiosas seguem à risca
o que Weber dizia. Não há mais espaço para o profeta, o mágico e o
sacerdote. Seguindo esse matiz de perto, diz um grande especialista em
religião no Brasil:
“Não sei de nenhuma instância em que os teólogos tenham sido convidados a colaborar na elaboração de planos militares. Não me consta
igualmente, que a sensibilidade moral dos profetas tenha sido aproveitada para o desenvolvimento de programas econômicos. E é altamente
duvidoso que qualquer industrial, convencido de que a natureza é criação
de Deus, e portanto sagrada, tenha perdido o sono por causa dos males
da poluição” (ALVES, 1999, p. 10).
A ênfase não está mais no “carisma pessoal”, mas na “organização
religiosa”. Em um mundo desencantado, esses ofícios são trocados por
outra figura. Entra em cena – o “vendedor”. É bom lembrar que, nos
Estados Unidos, o vendedor é um “herói”! Ele é um tipo “semideus”,
que consegue vencer metas impossíveis e jogar com a incapacidade
de seus clientes dizerem “não”! Fazer isso nos EUA é extremamente
valorizado.
“Mutatis mutandis”, não é o que ocorre com algumas das principais corporações religiosas brasileiras? Um olhar mais clínico, não nos
faz observar que a primeira coisa que as igrejas neopentecostais fazem
é se estruturarem numa hierarquia rígida e piramidal de poder? Olhemos
para o caso da IURD13. O “bispo” Macedo é soberano. O restante são
sombras. Quando muito, “ecos” do grande líder. Mesmo os “bispos” do
alto escalão são apenas réplicas de um líder que é imitado e referenciado
ao extremo. Até o “sotaque”, um nítido “carioquês”, é levado ao extremo
13
Igreja Universal do Reino de Deus.
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109
Neopentecostalismo e marketing religioso
por esses, e pelos “pastores” do baixo escalão. Em segundo, a racionalização e segmentação de seu empreendimento. Vejamos:
Igrejas de grande sucesso descobriram fórmulas racionalizadas muito
eficazes para sua propagação, fórmulas que são tiradas da economia e
não da teologia. A igreja é um empreendimento, como o líder religioso
deve ser um empreendedor em matéria administrativa, para o que conta com um arsenal de soluções pré-testadas. Em matéria estritamente
religiosa repete fórmulas simples e pasteurizadas controladas pela
hierarquia, que podem ser ouvidas em qualquer lugar do mundo aonde
essas igrejas vão se instalando (PRANDI, 1999, p. 69).
Quando em décadas passadas despontavam os grandes pregadores
midiáticos como Jimy Swaggarty, Tammy Faye, Jerry Falwell, muitos
pregadores, aqui no Brasil, pegaram essa onda. Nesse afã, Macedo de
reboque, conseguiu aparecer e foi o grande destaque. Mas, sua ênfase
era outra. Os primeiros tinham uma linha mais voltada para o “milagre”
e com nítidos traços “evangelicais” lá no mundo do Atlântico-norte. Já
no “bispo”, a força estava no “exorcismo” e na “prosperidade financeira”. Dentro em pouco, o líder se consolidou. Nas décadas de oitenta e
um pouco mais à frente, a IURD e a IIGD14 viraram “febre” entre os
evangélicos no Brasil.
Entendido o “ethos” dos fundadores e a estruturação da corporação
religiosa, é possível agora analisarmos as estratégias de venda, a sua
segmentação e seu mercado de atuação.
4 Os “pê’s” da religião
As grandes corporações, que produzem bens de consumo e se
aventuram no mercado, precisam adotar uma série de ações para que
tenham sucesso e se consolidem. Nenhuma empresa “séria” lança um
produto no mercado sem pesquisar seu “público-alvo”. Pois elas não
vendem um produto, mas a satisfação de uma necessidade e/ou um desejo, por meio de um suposto produto. A tarefa é saber identificar quais
seriam as necessidades desse “público-alvo”!
14
110
Igreja Internacional da Graça de Deus.
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Para os pesquisadores do assunto em pauta, nos anos 50 e até
meados de 80, o Brasil passava por vários problemas institucionais. Era
uma época de grandes problemas sócio-conjunturais e econômicos. Um
Estado desmantelado. Uma inflação desequilibrada. E um povo carente
de referenciais. Mendonça chama a atenção para o fato de o fenômeno
do pentecostalismo ser mais forte em nações carentes economicamente e com graves problemas sociais (cf. já elencados). Se fizermos um
cruzamento dos indicadores, iremos perceber que o aparecimento das
grandes corporações religiosas, como no caso do neopentecostalismo,
emergem justamente nesse período. Mas acrescentaríamos outro fator,
que também não é muito desconhecido dos estudiosos: o “mercado de
bens simbólicos” (P. Bourdieu).
Esses fatores, aliados a outras forças históricas, é que vão desembocar no uso calculado de estratégias de vendas, segmentação e
marketing agressivo por parte das corporações religiosas em questão.
Se na verdade elas possuem o “ethos” do vendedor/missionário e do
expansionismo norte-americano, já impregnado em sua estrutura consciente e/ou inconsciente, é só por meio do aparecimento considerável da
concorrência religiosa, por busca de novos mercados e de “fiéis/clientes”,
que as mesmas, por analogia, procuram desenvolver as mesmas linhas
utilizadas pelas grandes empresas capitalistas ávidas de lucro. Não basta
salvar as almas; antes, é preciso investir, inovar, mudar, para não perder
fiéis/clientes e ser “líder” no mercado de “bens simbólicos”.
4.1 O PdV (Ponto de Venda)15
“O ‘P’ de pontos-de-venda é também chamado simplesmente de ponto, praça ou distribuição. É uma forma mnemônica de se referir a um
conjunto de elementos que visa tornar o produto disponível para o
consumidor onde e quando ele o desejar.” (José Antônio Ferreira de
Oliveira, FGV)
Facilmente poderia alguém nos contestar com relação ao “ponto
de venda” das corporações neopentecostais, alegando que, em quase toda
15
Indicamos aqui as seguintes obras: CAMPOS, S. Leonildo. Teatro, Templo e Mercado.
São Paulo: Ed. Umesp & Vozes e Simpósio, pp. 228-231; (Vários Autores). Fundamentos de Marketing. São Paulo: Ed. FGV. pp. 41-44.
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Neopentecostalismo e marketing religioso
a história do cristianismo, todas as igrejas sempre tiveram “templos”.
Isso realmente é verdade! Entretanto, a configuração não é a mesma.
Enquanto que nos templos religiosos do protestantismo histórico – em
sua arquitetura – os mesmos possuíam uma “áurea sacra” em sua “nave”,
vitrais em cores, torres com sinos arremetendo ao incondicional16; toda
uma disposição de mobília rigidamente arquitetada em consonância
com sua liturgia e teologia – artefatos sacros simbolizando a “história
da salvação”; por sua vez, nas novas corporações religiosas, buscam-se
espaços amplos e vazios. Geralmente supermercados desalojados e/ou
cinemas desativados. A semelhança é enorme aos espaços ocupados
pelas lojas dos Shopping Centers. O capitalismo tem essa característica. Ele é selvagem! De pouco em pouco tempo as lojas que estavam
totalmente estruturadas recebem nova decoração “in totum”. Precisam
mudar para se re-adequarem às novas demandas do mercado. Por isso,
não são mais “templos”. Recebem uma nova configuração para as trocas
simbólicas. Geralmente eles estão localizados em grandes avenidas de
grande circulação. Seguem à risca uma das vértebras do marketing – o
“ponto-de-venda”.
Vamos dar um passeio no passado. Quem não se lembra do antigo
comerciante? Como se dava a disposição dos produtos em seu recinto?
Ora, na maioria dos casos, o comerciante ficava atrás de um grande
balcão! O cliente indicava/mostrava o que queria, e o dono da venda
recolhia, pesava e embalava a mercadoria para o comprador! Hoje, nas
modernas redes de supermercados, e até mesmos nas mercearias de
bairros da periferia, a disposição visa o famoso “self-service” (sirva a si
mesmo). Nas gôndolas/prateleiras o cliente fica à vontade para poder se
servir, conforme aquilo que necessita/deseja. É a satisfação das necessidades em uma ambientação semelhante a um passeio. Qual a finalidade
do “carrinho de compras”? Seria um passeio no recinto, a imitação de
uma viagem? Um “touring” ao paraíso das compras? Sim! Essa é a idéia!
Criar um “mundo de sonhos” e uma viagem de satisfação!
E nas corporações religiosas? O que os clientes precisam sentir
no “ponto-de-venda religioso”? Silveira Campos afirma que as peças do
discurso da IURD, por exemplo, seguem quatro passos chaves. Inventio17,
112
16
TILLICH, Paul. Filosofia de La Religión. Buenos Aires: Ed. La Aurora, pp. 61-76 1973.
17
Busca de provas.
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Dispositio18, Elocutio19 Actio20. Elas estão fincadas na história da retórica
grega, remetendo a gênios como Aristóteles e Platão. São peças do discurso que tem a finalidade de criar um ambiente de “sentido” coletivo
e assim, persuadir o destinatário. Na venda de uma mercadoria, não se
vende o produto de “per si”, mas um sentimento que subjaz ao mesmo! É
conforme afirma um dos “papas” do marketing: “O cliente nunca compra
um produto. Por definição, ele compra a satisfação de um desejo”21.
Desta forma, no “templo/mercado”, o “cliente/fiel” se sente com
“poder”. O vazio e a lógica do protestantismo histórico são preenchidos
pelo “emocionalismo”. Nas igrejas neopentecostais, o “fiel” expulsa
o demônio, fica poderoso e torna-se empresário. Na linguagem de Sá
Martino a quebra da linearidade dos papéis e funções sociais é que leva
a pessoa à busca pelo “sagrado”. Assim, dentro do “PdV religioso”,
“permite-se ao fiel nortear novamente a sua vida. Lá ele adquire novas
forças para fazer com que sua vida retorne ao fluxo normal, superando
os fatores de desequilíbrio social”22.
4.2 A Propaganda23
“O objetivo final é alcançar a dominação tendencial do campo religioso,
as condições de monopólio para a produção do sagrado, destituindo os
concorrentes de sua razão de ser, provando que suas obras e filosofias
são pífias e que seu capital religioso é menor, falível, portanto inútil.”
(Luís M. de Sá Martino)
Diz o adágio popular que a propaganda é a alma (coração) do
negócio! O protestantismo sempre esteve ligado à propaganda/anúncio.
18
Ordenação das partes do discurso.
19
Arte de apresentar o discurso.
20
Ação do ator e recurso à memória.
21
Cf. DRUKER, Peter. O Melhor de Peter Drucker: a administração. São Paulo: Ed.
Nobel, 2001.
22
Cf. destaca: MARTINO, S. M. Luís. Mídia e Poder simbólico. São Paulo: Ed. Paulus,
2003. pp. 33-34.
23
Indicamos aqui as seguintes obras: CAMPOS, S. Leonildo. Teatro, Templo e Mercado.
São Paulo: Ed. Umesp & Vozes e Simpósio, pp. 239-293; (Vários Autores). Fundamentos de Marketing. São Paulo: Ed. FGV. pp. 44-50.
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Neopentecostalismo e marketing religioso
Já demonstramos o “ethos” do protestantismo dos EUA, e seu bisneto – o
neopentecostalismo brasileiro.
Nunca foi novidade que as grandes corporações comunicativas e
de imprensa nos EUA são monopolizadas pelas instituições religiosas24.
Essa herança subjaz às corporações já delineadas até aqui. A comunicação/propaganda é o pressuposto dessas mega-corporações. Seguindo de
perto seu “avô”, o neopentecostalismo entendeu isso muito bem! Investiu
pesadamente no “espaço midiático”. E seu discurso, segue e encanta as
massas populares com muita eficiência. É lá, que sua mensagem surte o
efeito desejado. IURD e IIGD, ambas possuem modernas estruturas de
propaganda comercial.
Na imprensa escrita, a IURD possui a “Folha Universal”. Já a IIGD
o jornal o “Show da fé”. Não somente esse mecanismo, como também
as Rádios difusoras e as Redes de televisão. A Rede Recorde é grande
símbolo de transmissão. E o que falar de R. R. Soares? Mesmo sem ser
“dono” de uma “Rede de televisão”, com a pujança e grandeza da Rede
Record de Edir Macedo, ele consegue, mesmo assim, ser o homem que
mais aparece em rede televisiva no Brasil. Para as duas instituições supracitadas, a propaganda religiosa tem um único sentido: proclamação
e anúncio do poder de Deus.
Entretanto, a mercadologia analisa de outro prisma! Para se entender bem a dinâmica da propaganda dentro das instituições religiosas,
é preciso ter “óculos socioeconômicos”, como frisa Sá Martino:
“A mídia escrita transmite a idéia de objetividade, contribuindo para
a difusão de bens simbólicos e conteúdos ideológicos disfarçados de
informação neutra. [...] Em se tratando de jornais religiosos, todas as
atitudes e ações são tomadas por esse prisma, garantindo a impressão de
realidade derivada do prestígio da mídia.” (MARTINO, 2003, p. 58).
Dessa forma, achar que os jornais religiosos possuem “neutralidade”, na formulação de seus noticiários,é uma grande ilusão. Nem mesmo
nos jornais laicos de grande circulação isso acontece! As informações,
antes de serem colocadas “no ar”, passam por uma série de “peneiras”
(gate keepers), até receberem a configuração final para o seu destino der24
114
Cf. MOREIRA, S. ALBERTO (Org.). Sociedade Global. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999.
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radeiro. Ou seja, “audiência” e “lucro”. Assim, os jornais religiosos, que
supostamente criam nos fiéis a ilusão de informar e mostrar a realidade
“nua” e “crua”, na verdade, seguem direções diametralmente opostas. Em
nossa interpretação, as informações da mídia religiosa sempre têm três
focos principais. a) Criar um habitus entre seus membros para manter a
fidelidade deles para com a corporação. b) destruir e/ou desautorizar a
concorrência e c) o merchandising de seus produtos.
O principal elemento que nos chama a atenção em relação à propaganda das grandes corporações, não seria o elemento a) e nem o elemento
b) acima elencados. Pois, todas as instituições religiosas possuem esses
mecanismos. Divertimo-nos, quando vemos dentro do protestantismo,
a falácia de que a Bíblia é para eles a única regra de fé e prática. Como
retórica é belíssimo! Entretanto, na prática não é bem assim. Pois em
toda denominação religiosa existe uma “interpretação oficial” dos livros
sagrados. Na verdade, quem define o que é regra e prática nas instituições
são os detentores do poder interpretativo e normativo. São eles quem dita
o que é “certo” e o que é “errado”; em consonância com a interpretação
que realizam. Mas agora, em relação à propaganda/merchandising (ponto
“c”) de seus produtos, esse é o diferencial que queremos analisar.
A grande “sacada” da IURD e da IIGD é o artifício retórico que
conseguem introduzir sem serem muito notados. É uma jogada sutil. Eis
o grande diferencial! Basta olhar as manchetes dos jornais. Em vez de
levarem o “evento Crístico”, eles levam e elevam o poderio institucional
e/ou de seus “papas/apóstolos” fundadores.
Isso muitas vezes, não é tão fácil de perceber. Pois já falamos
que é uma jogada sutil. Mas, vamos tentar analisar. Geralmente, nos
jornais religiosos, a propaganda não é em relação ao “Deus” que eles
professam. Mas sim, à “corporação”. Na Folha Universal, por exemplo,
os grandes fatos de vitória – quando narrados por algum “fiel” – nunca
são direcionados à divindade, mas à instituição. Vejamos:
“(reviravolta financeira – manchete) Durante 20 anos trabalhou em uma
multinacional e apesar de ser bem remunerado, não conseguia desfrutar
de uma vida estável e vitoriosa, tampouco obter a tão sonhada ascensão
profissional. [...] Mas desde que entrou na IURD decidiu colocar em
prática os ensinamentos de como usar a fé de forma inteligente. Hoje,
como resultado dessa atitude, afirma desfrutar de uma vida totalmente
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Neopentecostalismo e marketing religioso
diferente da que levava antes, sem muitas perspectivas [...] Proprietário
de uma academia, afirma:: hoje minha academia faz muito sucesso. e
tenho recebido novos clientes a cada dia [...]. Hoje nossa família vive
em paz e muito feliz. Houve uma reviravolta em nossa vida, concluí.”
(FOLHA UNIVERSAL, 2008, p. 7).
Nota-se que a lógica é essa: “encontrei sucesso na IURD e/ou
na IIGD”. Não é a partir da “divindade”. Mas sim, do encontro com a
“divindade” dentro do lócus já especificado. O que se enfatiza é o poder
de “Deus” dentro da corporação!
Observamos certa vez, no mesmo Jornal, algo interessante! Em
determinada parte, eram colocadas pequenas porções textuais de personagens célebres da humanidade como: Pascal, Marx, Sartre, Unamuno,
Aristóteles, Platão e outros renomados. Juntamente com elas, uma frase
do “bispo” Edir Macedo. O que seria isso? Elevar o “Bispo” à condição
de “gênio”? Mostrar aos fiéis que a instituição tem legitimidade, inteligência? E dessa forma despertar no “público alvo” o status de pertencer
a uma instituição fundada por um “gênio”?
Para quem não conhece as técnicas de mercadologia e de merchandising do mundo corporativo, isso não tem muito sentido! Mas, tivemos a
oportunidade de respirar e viver isso na prática. Trabalhamos em grandes
Cia’s de bens de consumo. Mesmo diante de nosso parco “know how”,
a estrutura mercadológica é a mesma. O relato acima é merchandising
puro! E, cá entre nós, de altíssima qualidade! Poucas pessoas sabem o
que realmente acontece nos bastidores das vendas e da segmentação de
mercado das grandes corporações de bens de consumo. É uma guerra!
Guerra no sentido estrito do termo! Vamos pegar como exemplo novamente as poderosas redes de supermercados. Todos os produtos expostos
em suas gôndolas seguem à risca um “planograma”25 negociado em
suas “centrais de distribuição”. A Unilever, por exemplo, potência na
área de higiene e limpeza, dificilmente deixa seus produtos na parte de
25
116
“Planograma” é o posicionamento em seqüência e segmentado dos produtos e/ou
mercadorias expostos nas gôndolas dos supermercados. Nada do que está exposto
ali, encontra-se “ao acaso”. Pelo contrário, é nesse espaço, que se dá a grande
guerra das corporações para visualizarem melhor seus produtos. Seus “promotores”
são pagos e fornecidos, a tais redes, para um único propósito: aumentar o “share” e
estimular a demanda. Fazer com que o produto saia do depósito para o interior da
loja, rumo ao consumidor final o mais rápido possível. Esse é o seu papel.
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baixo da gôndola (roda-pé). Pois ela sabe, por meio de pesquisas, que o
brasileiro é “preguiçoso”. Não se agacha para pegar produtos! Tudo tem
que ser fácil e com visibilidade. As empresas se digladiam dentro dos
supermercados para posicionarem seus produtos nos chamados “lugares
nobres”. Ou seja, nas partes entre o “peitoral” e a “cabeça do cliente”.
É ali que eles visualizam os produtos para a compra!
No caso das “corporações do sagrado” a lógica é a mesma! Seus
serviços e bens simbólicos precisam ser divulgados e anunciados a todo
instante, para arrebanhar clientes. Novamente citaremos o exemplo
do supermercado. Toda grande rede de mercado tem em seu cardápio
uma grande gama de fornecedores. Mas olhem que interessante. O
fornecedor fornece! E fornece a todos! A “guerra” das grandes redes
de supermercados é essa. Eles têm produtos da Nestlé, da Unilever, da
Gillette, da poderosa Procter&Gumble etc. Mas, qual seria o diferencial? O serviço! Não seria o preço? Os preços são quase todos iguais
nas grandes Redes! Se assim não for, eles não vendem! O anúncio é:
compre no “Big”, no “Angeloni”, no “Mercadorama”, no “Sendas”, no
“Carrefour” e/ou no “Super Muffato”. “Temos o melhor dos preços,
as melhores possibilidades de compra para você”. Eles não anunciam
o produto, mas sim, a possibilidade de melhor compra do mesmo, na
suposta Rede anunciante!
No caso do universo mercadológico dos serviços religiosos, a
dinâmica é a mesma. O fornecedor das bênçãos – “Deus” – fornece a
todas. O diferencial é o serviço; bem como as corporações que subsidiam o negócio. A lógica é desvelada aqui. Foi a mensagem trazida pelo
missionário R. R. Soares e/ou o “Deus” que encontrei na IURD, que
me levaram ao sucesso! Isso já é tão notório em tais instituições, que
até as mensagens religiosas dos “bispos”, “apóstolos” e “missionários”
podem ser recebidas, hoje em dia, pelo celular. Mas, para que as mesmas
resultem em “benção”, precisam ser subsidiadas e interpretadas pelos
grandes “líderes” da instituição.
Observem o seguinte anúncio: “CD e DVD de R. R. Soares levam multidão em São Paulo. A Festa foi transmitida ao vivo pela nossa
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Neopentecostalismo e marketing religioso
rádio”26. Linda mensagem, não? Mas, olhem o resultado do evento no
público-alvo:
1) Sempre peço a minha mãe que traga para casa discos de música e de
mensagem, preferencialmente dois de cada, pois uso esse material para
evangelizar [...] 2) Fiquei presa em uma cama, doente e em depressão, por
sete anos. Quando me converti, passei a deixar o rádio ligado sempre na
nossa Rádio. A palavra e os louvores foram transformando minha vida.
Milagrosamente, fui liberta e comecei aos poucos a recuperar a saúde
[...] 3) Meu primeiro contato com a música de Deus aconteceu na Igreja
da Graça, a qual conheci quando ainda era dependente químico. Foi nos
louvores que encontrei o convite para uma nova vida e forças para buscar
tratamento em uma clínica evangélica. Alguns, parecia que falavam sobre
minha vida, garante” (JORNAL SHOW DA FÉ, 2008, p. 09)
O que observamos? É simples! Com esses indicadores é que a
propaganda utilizada pelas grandes corporações religiosas, em seu fundamento, possui sintomaticamente a feitura do merchandising de seus
produtos e serviços. Na tarefa de anunciar o “sagrado”, afirmam que o
mesmo só tem eficácia quando encontrado/comprado dentro dos “Pdv’s/
Templos” da corporação. As grandes Redes de supermercados, subliminarmente, ajudam-nos a desvendar esse “mistério”! A bem da verdade,
e que isso fique bem claro aqui, subliminarmente os jornais e as propagandas televisivas de tais empreendimentos religiosos possuem a mesma
dinâmica dos mecanismos de anúncio e propaganda dos empreendimentos
de bens de consumo. São flys, panfletos e jornais de vendas de serviços e
de produtos sagrados endossados por uma grande Empresa já consolidada
nesse mercado. “Pare de sofrer! Tenha prosperidade financeira com as
bênçãos de “Deus” que oferecemos aqui!” Essa é, para nós, uma das
grandes chaves do sucesso financeiro de tais corporações!
4.3 O preço27
“Preço é somente uma parte do valor.” (Peter Drucker)
118
26
JORNAL SHOW DA FÉ. 10/2008, p. 09.
27
Indicamos aqui as seguintes obras: CAMPOS, S. Leonildo. Teatro, Templo e Mercado.
São Paulo: Ed. Umesp & Vozes e Simpósio, pp. 231-236; (Vários Autores). Fundamentos de Marketing. São Paulo: Ed. FGV. pp. 39-41.
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A linguagem religiosa sempre andou de mãos dadas com a ciência
econômica. Na verdade, a tradição cristã veterotestamentária é profundamente carregada de pagamentos e de dívidas. Na verdade “Economia”
e “Teologia” estão fortemente entrelaçadas. Na atual crise financeira,
os Secretários e Ministros da Fazenda e/ou Economia de vários países
não se cansam de utilizar a linguagem religiosa também. Adoram falar
em “sacrifício”. O “sacrifício” coletivo, para a salvação e o resgate do
mercado! Como também vemos, nos medievais, como em Sto. Anselmo e sua “teologia da expiação” do Cur Deus homo28, trabalhando
questões como: “preço”, “pagamento” e “sacrifício”. Assim, falar em
mercadologia no universo religioso, não é tão desprovido de sentido
como pensam alguns.
Silveira Campos afirma que na teologia da IURD, por exemplo,
o “preço” é a “resposta sacrifical do fiel. Seria a apresentação de uma
contra-oferta a Deus por causa da grande dádiva dada por Ele aos homens – seu filho Jesus Cristo” 29. Naturalmente que “preço”, no universo
religioso, requer muito cuidado. Porque a fixação do mesmo não é igual
ao de produtos/bens tangíveis, mas sim, de um bem intangível (bens de
salvação). Acrescentaríamos, entretanto alguns outros produtos. Não é
só “salvação”. Mesmo que seja num futuro escatológico. Pois, os neopentecostais se preocupam muito com o “aqui” e o “agora”. Os “bens”
e “serviços” que eles vendem são: “prosperidade financeira”, “saúde de
homem-de-ferro”, “poder de exorcizar os demônios”, “vitória na vida”;
produtos esses, sempre acompanhados com a faixa dizendo: “pare de
sofrer”30.
O que se precisa fazer para que haja a troca é o “sacrifício”. Sem
“sacrifício” é impossível agradar a Deus (“bispo” Macedo). A lógica se
dá nos “dízimos” e nas “ofertas”. Quem paga a igreja, obriga “Deus” a
restituir o valor. Ele, por causa da “igreja”, repreenderá o “devorador”
(Ml 3.10). Desta feita, se o fiel/cliente paga à igreja, por esse ato, Deus
será compelido a recompensar o dinheiro investido em forma de “pros28
Obra Clássica de Stº. Anselmo que relata entre outras coisas a “teologia da expiação”
e o “preço” – Um pagamento da dívida? Pecado pago com sangue?. Ou seja, - Cur
Deus Homo (Por que Deus se fez homem?).
29
Cf. CAMPOS, S. Leonildo. op. cit. p. 232.
30
“Slogan” preferido da IURD para atrair seus possíveis clientes.
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Neopentecostalismo e marketing religioso
peridade financeira”! Esse é o “preço” estipulado ao “público-alvo” – a
saber – o seu “sacrifício” financeiro!
Dizem os especialistas, que o que rege o mercado, é a famosa
“lei” da oferta e da procura. Ultimamente, tem-se visto o seu império
nos templos/Pdv’s da referida corporação. Pois, a fixação do “preço”
tem sido feita por meio da dinâmica dessa “lei”. Parece uma “feira” e/
ou “leilão” populares. O “pastor/vendedor” e/ou “bispo/empreendedor”
tem utilizado esse tipo de técnica. Lança-se um “desafio” com um valor
inicial, que, depois, vem sendo reduzido a “preços” menores. Já se têm
muitos “relatos orais” em relação a esse tipo de atuação.
Outra coisa que se destaca são os “elementos simbólicos” que são
postos à venda. Os mesmos possuem um alto “valor agregado”. “Óleo
de Israel”, “pedaço de madeira”, “oliveira” e “pedaço de pano” que
foram buscados na “Terra Santa” e abençoados pela autoridade (“bispo/
pastor”) da corporação. O “poder” que deles irradia pode fazer a vida
de todo aquele que tem uma “fé inteligente”, (slogan Iurdiano) mudar
sua situação financeira do dia para a noite. Lembramos novamente do
que diz Drucker: “As pessoas não compram um bem de “per si”, mas
sim o desejo que subjaz a ele”. Pagam-se altos “valores” pelo poder de
transformação que tais elementos conferem aos clientes/fiéis. Vejamos
o que diz Silveira Campos:
Entre outras estratégias de comunicação está o emprego de símbolos
tradicionais da religiosidade popular como água, sal, vinho, óleo, pão,
pedras-símbolos, flores, manto abençoado e outros mais [...] Todos esses
são apresentados como pontos de contato que são oferecidos exaustivamente pela mídia Iurdiana ao seu público (CAMPOS, 1997, p. 277).
E ainda mais,
Decida-se agora mesmo. Dê adeus às doenças, à miséria e todos os males,
tenha um reencontro com Deus e assuma novamente a sua posição na
família de Deus [...] A vida abundante que Deus, pelo seu grande amor,
nos garante através de Jesus Cristo, inclui todas as bênçãos e provisões
de que necessitamos, ou mesmo que venhamos a desejar [...] Não perca
a oportunidade de ser sócio de Deus. Coloque-se à sua disposição com
tudo que você tem e comece a participar de tudo o que Deus tem [...]
O dinheiro é uma ferramenta sagrada usada na obra de Deus [...] O
dinheiro, que é humano, deve ser a nossa participação, enquanto que o
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Anderson Jankus de Souza
poder espiritual e os milagres, que são divinos, são participação de Deus.
[...] Dar o dízimo é candidatar-se a receber bênçãos sem medida [...]
Quando pagamos os dízimos a Deus, ele fica na obrigação de cumprir
a sua palavra (CAMPOS, 1997, p. 233).
Dessa forma, ficam evidentes quais são os “produtos” e o “preço”
que os fiéis/clientes pagam para conseguir tais benefícios. Lembramos
que, naturalmente, quem está em situação de caos e de desilusão para
com a vida, torna-se muito mais vulnerável e susceptível a esse tipo
de “oferta”. Seria como entrar em um supermercado para fazer uma
pequena compra semanal “com fome”... Eis a grandeza do empenho...
eis o seu sucesso...
Conclusão
A grande “sacada” das corporações religiosas que se aventuraram
no mercado de bens simbólicos e serviços de consumo, foi a inteligência
de saber adequar os seus símbolos às demandas existentes em determinado período da história. Apenas transplantaram a estrutura e organização
das modernas corporações racionalizadas capitalistas ao seu universo.
Tais estruturas, além de possuírem poderosos aparelhos de comunicação e de imprensa, não possuem um corpo de trabalhadores com
vínculo empregatício. A isenção de impostos, por se tratar de instituições
filantrópicas, quando mensurável, é assustadora!
Somando todos esses fatores à genialidade de seus pastores/
vendedores bispos/empreendedores, temos a razão de seu sucesso mercadológico! Acredito que poucos sobreviverão se não se adequarem às
regras das grandes corporações no mundo econômico! É mudar para
sobreviver. Ou, quem sabe, mudar para não morrer! Eles mudaram... E
são os “gigantes” dos negócios da fé! É só “calcular” para “crer”.
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1963.
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
122
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Resumo: O objetivo do artigo, expresso no seu título, é o enquadramento do
Ensino Religioso na pós-modernidade. Após refletir sobre o niilismo e o “fim da
religião”, o autor comenta o “retorno ao sagrado” e, a seguir, descreve o “pluralismo religioso na pós-modernidade”. Apresenta, então, o Ensino Religioso, como
um “modelo que se adequa à pós-modernidade”. Comenta detalhadamente a
“regulamentação do Ensino Religioso”, em 1996, e reflete sobre a “globalização
da religião”, visível nas propostas vigentes do Ensino Religioso. Na opinião
final do autor, “o modelo supra-convencional de Ensino Religioso, tendo como
conteúdos programáticos os propostos pelo FONAPER, é o que melhor se
enquadra à pós-modernidade”.
Abstract: The object of this article is the enrolment in the discipline of Religious
Education after post-modernity. Prior to the state of affair some thoughts have
been brought to attention concerning nihilism and the “end of religion”, and now
the focus is directed towards the “return to the sacred” arriving at “religious
pluralism in the era of post-modernity”. Special attention is paid on Religious
Education as a model to be achieved in post-modernity. Detailed comments are
made about the “Directives of religious Education” issued in 1996, and some
thoughts are developed on the “globalization of religion” extant in the proposals
in vogue relating to Religious Education. Summing up this exposé the author
offers a model superseding the conventional programs of Religious Education
including the contents in each discipline as proposed by the FONAPER which
by far is the best offered after post-modernity.
O ensino religioso na pós-modernidade
Antônio Lopes Ribeiro*
*
Graduado em Pedagogia, Teologia, pós-graduado em Diálogo Ecumênico e Interreligioso pelo ITESC/SC e mestrando em Ciências da Religião, na PUC/GO.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 123-140.
O ensino religioso na pós-modernidade
Introdução
Falar de Religião na Pós-Modernidade requer uma mentalidade
aberta às mudanças globais que têm ocorrido. O que é a religião, dirá Rubem Alves (2007, p. 27), “senão um sonho de grupos humanos inteiros?
A religião é, para a sociedade, aquilo que o sonho é para o indivíduo”.
Acontece que o indivíduo pós-moderno mudou sua maneira de sonhar,
o que afetou consequentemente sua maneira de ser religioso. A religião
não pode ser mais concebida da forma tradicional, numa sociedade em
que o pluralismo religioso cresce da noite para o dia.
Segundo Martin Buber (2007, pg. 15), uma época pode ser caracterizada por meio das relações “que nela se manifestam entre a religião
e a realidade”, e qualquer interpretação que queiramos ter da realidade
atual será realizada sempre num contexto sociocultural, dentro de uma
tradição geralmente fundamentada numa religião (cf. MIRANDA, 2006,
p. 263). No caso do Brasil, ainda predomina o Catolicismo. Mesmo
assim, qualquer interpretação que seja, não será completa, pois a época
em que vivemos, caracterizada por mudanças profundas, afetou também
a religião, que, na pós-modernidade, se apresenta de forma fragmentada,
bastante diversificada e pluralizada.
O nosso objetivo neste artigo é o enquadramento do Ensino Religioso na pós-modernidade. Seria impossível conceber um modelo de
Ensino Religioso ideal para a atualidade, sem um conhecimento prévio
de como se encontra a religião no contexto da cultura pós-moderna,
no qual a relação entre a Religião e a realidade encontra-se profundamente alterada. Uma pergunta um tanto sugestiva para iniciar qualquer
análise sobre como se encontra a situação atual da religião, sem dúvida
é esta: Será que Nietzsche tinha razão ao anunciar a “morte de Deus”?
Uma vez morto, seria também o fim da religião, pois a mesma perderia
essencialmente seu sentido de ser no mundo.
1 O niilismo e o fim da religião
Existencialistas como Nietzsche e Heidegger apostaram no desaparecimento da religião, com a perda dos valores supremos, reduzindo
a crença no absoluto como algo efêmero, sem qualquer valor. Nietzsche
chegou a anunciar “a morte de Deus”, com o conseqüente fim da metafísica (idealizado por Heidegger). Para Vattimo (2004, p. 20), fica a
impressão de que “o anúncio da morte de Deus não fecha definitivamente
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Encontros Teológicos nº 55
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Antônio Lopes Ribeiro
o discurso relativo à religião”, mas pelo contrário levanta a questão:
“se, e até que ponto, o que Nietzsche chama de “morte de Deus” (ou
superação do Deus moral) [...] implica realmente o término de qualquer
possível experiência religiosa”. Porém, a religião não deixou de existir.
Esse Deus que morreu é o que Pascal chamava de “Deus dos filósofos”,
cuja morte tornou-se terreno fértil para a abertura do “caminho para uma
vitalidade renovada da religião” (ibid, p. 24).
Segundo Vattimo o fim da metafísica e a morte do Deus moral
“liquidaram as bases filosóficas do ateísmo” (p. 27), fazendo com que
os filósofos de hoje sejam ou irreligiosos ou anti-religiosos “por inércia, e não em função de fortes razões teóricas”. Antes, Deus era negado
por dois motivos: ou por não ser verificável empiricamente,ou por sua
superação no “processo de iluminação da razão”. O fim da metafísica,
segundo o autor, corresponde “sem nenhuma ligação de dependência
causal”, ao “renascimento do religioso no seio da sociedade industrial
avançada” (ibid), tendo em comum as mesmas circunstâncias históricas.
Dentre essas, vale destacar que, com o fim do colonialismo, houve uma
libertação das culturas “outras” “que tomaram a palavra nas sociedades
ocidentais [trazendo] consigo as suas próprias teologias e crenças religiosas” (p. 27) e o desenvolvimento de uma sociedade multiétnica, na
maioria dos países industrializados.
Aquilo a que o autor denomina de “retorno da religião” ou “renascimento da religiosidade”, embora existam outros elementos motivadores,
tal retorno ou renascimento parece depender da dissolução da metafísica.
A liberação da metáfora é que “torna novamente possível aos filósofos
falar de Deus, de anjos, de salvação etc., e é sobretudo o pluralismo
característico das sociedades da tarda modernidade que permite que as
religiões venham de novo à tona” (p. 28).
Portanto, como vimos, quem morreu foi o Deus dos filósofos, não
o Deus cristão e de outras religiões, que permanece vivo e assim também
a religião. Um jovem caminha pela rua vestido com uma camiseta com
os seguintes dizeres estampados no peito: “Deus está morto, assinado,
Nietzsche”; estampados nas costas, “Nietzsche está morto, assinado,
Deus”. Isso ilustra bem sobre a consciência atual a respeito de Deus: a
morte de Deus não se comprovou e muito menos o desaparecimento da
Religião.
Pode-se admitir que as grandes tradições religiosas tenham se
enfraquecido, devido à perda de poder causada pelo processo de seculaEncontros Teológicos nº 55
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O ensino religioso na pós-modernidade
rização e com a idéia de que Deus já não era mais o centro do universo
e sim a razão, aliada à ciência. Aconteceu uma descentralização do
transcendente, saindo da esfera da religião, passando para a subjetividade
do indivíduo. O sociólogo Zygmunt Bauman (1997, P. 231), ilustra bem
isso: a pós-modernidade tornou-se a era dos especialistas na identificação
de problemas, de “restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de ‘auto-afirmação”. Esse autor intitula a
era em que vivemos como a era do “surto de aconselhamento”, em que
”a incerteza de estilo pós-moderno não gera a procura da religião: ela
concebe, em vez disso, a procura sempre crescente de especialistas na
identidade” (BAUMAN, 1997, p. 222). Os homens e mulheres de nosso
século, perante suas incertezas, não “carecem de pregadores para lhes
dizerem da fraqueza do homem e da insuficiência dos recursos humanos”. Mas precisam, sim, da “reafirmação de que podem fazê-lo [e de]
como fazê-lo” (Ibid).
No mundo secularizado, a prática do sagrado se desloca da esfera
do tradicionalismo religioso para irromper de forma diversificada no
mundo profano, num pluralismo que envolve seitas, cultos, misticismo,
magia, esoterismo, filosofias orientais, yoga, horóscopo, Wicca (bruxaria), Nova Era etc. Há uma crescente busca de emancipação de alguns
fenômenos principalmente advindos do movimento da Nova Era, que
são “defendidos como religiões por seus seguidores exatamente com o
objetivo de elevá-las ao status legal e social tradicionalmente desfrutado
pelas religiões” (DENNETT, 2006, p. 19). Na realidade, defendem a
idéia de uma religião sem Deus ou deuses, cuja definição seria a de “um
sistema social cujos participantes confessam a crença em um agente ou
agentes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam” (Ibid). Embora, na
visão do mundo atual, a idéia de Deus e da Religião se encontre totalmente
diferenciada da visão tradicionalista, principalmente a cristã, o niilismo
não pôde dar seu grito de vitória. De fato, sua profecia não se cumpriu,
pois tanto Deus quanto a religião permanecem vivos.
2 O retorno ao sagrado
Acontece atualmente uma prática religiosa totalmente nova, em
que o indivíduo sente-se livre em ser, por exemplo, um fervoroso católico
que participa de um grupo pentecostal (diga-se RCC) na Igreja Católica
Oficial, podendo aproximar-se da ioga, ir à Índia e descobrir o asceta Sai
Baba, com sua mensagem transcendente, e na volta fundar um círculo de
126
Encontros Teológicos nº 55
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Antônio Lopes Ribeiro
seguidores do referido guru para freqüentá-lo aos domingos após a missa
(cf. ORO; STEIL, 1997, p. 34). Vemos aqui um verdadeiro sincretismo,
em que se aproveita um pouco de tudo: de catolicismo, de hinduísmo,
de pentecostalismo, numa prática solitária e sem culpa em que, para o
indivíduo envolvido, o que está dividido e até mesmo em conflito, está
unido (cf. Ibid).
Esse tipo de prática religiosa evidencia certa confusão e desorientação frente a um mercado religioso cada vez mais crescente, com
uma infindável variedade de ofertas religiosas, que levam, por falta de
conhecimento e aprofundamento, a uma duplicidade de fé. Por outro
lado, verifica-se atualmente uma prática religiosa de contestação, com
relação às religiões tradicionais, principalmente em função das rígidas
exigências para a adesão de fé, que leva o indivíduo a uma prática mais
“light” da religião, atirando-se “com avidez sobre as correntes esotéricas, a magia, a astrologia, as técnicas de meditação e aperfeiçoamento
psíquico [caindo], nas mãos de gurus e mestres formados nas teosofias
orientais” (RAMPAZZO, 1996, p. 161).
O professor Wilmar Luiz Barth (2007, p. 102), da PUC/RS, se
refere ao retorno ao sagrado como um “boom” religioso pós-moderno,
cuja prática “não se restringe a uma camada social. São ricos e pobres,
doentes e sãos, professores universitários e serventes de pedreiro. Todos
professam sua crença e a manifestam na medida de suas necessidades”.
Essa manifestação de crença dá-se de forma bastante diversificada, em
que não se fala mais em religião tradicional, mas em religião de alguma
tribo: “surfistas, eskaitistas, homossexuais, empresários liberais etc”
(Ibid, p. 102).
Para Luiz Barth, o que existe na verdade “é a formação do ‘coquetel
religioso’. O homem pós-moderno vive a religião ‘à la carte’, de tipo
‘self-service’, numa mistura de vários aspectos que mais interessam e
satisfazem as exigências e necessidades momentâneas”, em que, ao se
buscar um sentido para a vida, “cria-se o deus e a religião pessoal... “,
admite-se: “Jesus Cristo sim, Igreja não” (Ibid, pg. 102). Esse “boom”
religioso a que se refere o autor é caracterizado por um “misticismo difuso
e eclético”, “onde se vive a preferência religiosa” e o “suave consumismo
religioso”, cuja razão de ser se dá principalmente pela perda do domínio
da religião, em que “qualquer pessoa pode atribuir-se o título de ‘bispo’, missionário, e oferecer o serviço religioso como qualquer serviço
de tele-entrega rápida e soluções milagrosas” (Ibid, p. 103). Tal prática
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O ensino religioso na pós-modernidade
religiosa estaria completamente de acordo com a definição de Religião
dada por William James, que a qualificou como “os sentimentos, atos e
experiências de homens, individualmente, em sua solidão, desde que se
vejam em relação com qualquer coisa que possam considerar divina”
(JAMES, 1902, apud DENNETT, p. 21).
Torna-se bastante evidente, na era atual, uma acentuada perda de
valores e de sentido da verdade. Se antes o indivíduo tinha como referencial
dos valores éticos e morais, aqueles ensinados pela religião, agora o indivíduo se vê sem qualquer referencial válido para nortear seus princípios,
ficando à mercê das ideologias de consumo a serviço do neoliberalismo, as
quais pregam uma falsa idéia de felicidade: o indivíduo é tanto mais feliz,
quanto mais bens possuir. Essa perda de valores, e também do sentido da
verdade, tem feito com que muitas pessoas, ao experimentarem um vazio
espiritual, que nem a ciência e nem a religião podem preencher, busquem
as alternativas oferecidas pela Nova Era, a sensação do momento. A Nova
Era surge como expressão do retorno ao Sagrado, com plena força, como
uma das ofertas do mercado religioso, evidenciado na pós-modernidade.
Apresenta-se como alternativa às religiões tradicionais, com vocação de ser
grande, única, universal, cujo sonho é “recriar, já não desde a racionalidade
lógica, mas, desde a intuição, uma visão holística que supere as dicotomias
e alcance a totalidade: ciência e mística, num mundo físico e espiritual”
(LIBÂNIO, 1995, p. 41). Também chamada de New Age, a Nova Era
marca o fim da “Era de Peixes”, para a entrada na “Era de Aquarius”.1 É
caracterizada principalmente pelo misticismo, sofrendo fortes influências
das religiões orientais, principalmente do budismo, em que a pessoa pode
se auto-realizar sem a ajuda da ciência, da religião e, conseqüentemente,
sem a ajuda de Deus. Esse fenômeno, que muitos denominam de religião da
auto-ajuda, em plena pós-modernidade, se apresenta como uma alternativa
às religiões tradicionais, oferecendo uma espiritualidade “light”, que tem
arrebanhado diversos tipos de pessoas, desde os agnósticos, a até mesmo
cristãos tradicionais, que aderem a esse movimento, em que tudo é válido
e o indivíduo pode alcançar todo o seu potencial, sem intermediação da
religião.
Portanto, como vimos, a religião da pós-modernidade passa a ser
caracterizada como uma religião “sem fronteira e sem território, sem
1
128
Tem como sua principal arquiteta a escritora Marylin Ferguson, autora do livro “A
Conspiração de Aquarius”, em que anuncia o fim da “Era de Peixes” e a entrada na
“Era de Aquarius”, governada por uma consciência diferente e universal.
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Antônio Lopes Ribeiro
ser contudo universal e única, como o catolicismo, o protestantismmo
clássico e o Islão” (ORO; STEIL, 1997, p. 69), o que se torna um grande
desafio ao ER, no que se refere à liberdade religiosa do educando, com
seu direito pleno e assegurado pela lei, de professar a sua fé.
3 O pluralismo religioso na pós-modernidade
Antes alicerçada por um princípio religioso, principalmente sob
a égide do cristianismo, a sociedade atual, num mundo globalizado,
caracteriza-se por um processo de transformação muito intenso dentro de
seu seio, tendo ingressado no terceiro milênio “com seu campo religioso
profundamente transformado e reordenado, em que diferentes formas
de expressão religiosa – institucionais e não-institucionais, tradicionais
e novas, permanentes e efêmeras, fundamentalistas e performáticas,
sectárias e ecumênicas – convivem no contexto de um pluralismo que
parece não colocar limites à diversidade” (STEIL, 2008, p. 7). Assim,
nesse contexto de mudanças, surge esse fenômeno que se denomina
como “pluralismo religioso”. Embora tenha se iniciado na era moderna,
fomentado principalmente pela separação entre Igreja e Estado, permitindo com isso a “emergência de diferentes grupos religiosos que irão
atuar no nível da cultura e do conhecimento” (ibid, p. 8), neste início
de terceiro milênio, o pluralismo religioso irrompe como fenômeno, de
forma bastante acentuada, num crescendo incomparável de novas formas
de expressão religiosa, como vimos anteriormente, de retorno ao sagrado, ocupando assim definitivamente seu espaço no mundo globalizado,
na era pós-moderna. Com a perda de monopólio da Igreja, o Estado se
torna laico, passando a garantir a liberdade religiosa, tanto aos indivíduos
que crêem, como àqueles que não crêem. O pluralismo religioso surge
como um novo paradigma da teologia das religiões, nivelando todas as
religiões, como iguais, verdadeiras, que na sua essência, embora sigam
caminhos diferentes, convergem a um mesmo fim. Esse é o contexto
portanto no qual se enquadra o Ensino Religioso, cujo objeto de estudo
é o fenômeno religioso.
4 O ensino religioso: um modelo que se adequa
à pós-modernidade
Como vimos anteriormente, a pós-modernidade é caracterizada
por grandes transformações de ordem econômica, política e sócioEncontros Teológicos nº 55
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O ensino religioso na pós-modernidade
cultural, que afetaram a maneira de ser do homem pós-moderno. Isso
fez com que a educação tomasse novos rumos, no contexto atual. Com
o processo da globalização, a educação também tem de ser pensada de
forma globalizada, universal, pois, como formadora da cidadania, tem
que contextualizar-se. Consequentemente, no que se refere ao Ensino
Religioso, em vista da secularização e de um mundo globalizado, em
que se emerge um pluralismo religioso cada vez mais acentuado, principalmente pela interação das culturas no mundo todo, não há mais
espaço para o modelo tradicional catequético, exclusivista, praticado
pela maioria das instituições confessionais. Esse modelo, por demais
ultrapassado, dá lugar a um novo modelo, defendido pelo Estado, não
mais sob a batuta de uma religião, mas de acordo com a legislação vigente, com alcance às várias formas de expressão de fé, que se constitui
no pluralismo religioso.
Ao longo de toda a sua história, o Ensino Religioso foi sofrendo
transformações, mas sempre ministrado como ensino catequético, tanto
pela Igreja Católica quanto pelos protestantes. Sempre se questionou a
presença do ER na escola pública, com relação à sua coerência, em função da “confessionalidade religiosa e da laicidade do Estado” (PASSOS,
2007, p. 50). Ademais, há uma diferença substancial entre a atividade-fim
de um e de outro, pois a catequese “é vista como atividade de educação
da fé, realizada no seio da comunidade confessional, enquanto o ER
é considerado uma atividade de educação da dimensão religiosa dos
estudantes dentro das escolas” (Ibid. p. 51).
O debate sobre a inclusão do ER na escola pública, sempre se deu
nessa polaridade: Estado x Igreja, tendo de um lado grupos formados por
“defensores do princípio da laicidade e, de outro, defensores do princípio
de que o Ensino Religioso é um direito do cidadão, como ser religioso
que frequenta a escola pública” (PCNER, 1998, p. 16). No estado laico,
o ER tradicional, antes considerado como elemento eclesial na Escola,
passa a fazer parte da grade curricular, “como elemento normal do sistema
escolar” (PCNER, 1998, p. 11), sendo entendido não mais como “Ensino
de uma Religião ou das Religiões na Escola, mas sim uma disciplina
centrada na antropologia religiosa”. (Ibid, p. 11). Essa interpretação foi
de fundamental importância, principalmente como uma saída lógica para
que a esfera estadual pudesse remunerar os professores de ER, já que o
Estado laico não poderia destinar verbas para fins religiosos. No regime
republicano, o ER foi introduzido nas escolas públicas, pela primeira
vez, em 1931, pelo Decreto 19.941, servindo de jurisprudência para as
130
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Antônio Lopes Ribeiro
sucessivas constituições, até culminar com a atual Constituição que, em
seu Artigo 210, parágrafo 1º, Capítulo III, da Ordem Social, assim estabelece: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.
6 Regulamentação do ensino religioso
A regulamentação desse artigo só viria a acontecer em 1996,
oito anos mais tarde, com a edição da Lei 9394, sancionada pelo então
Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, após diversos
debates a nível nacional e com uma enorme pressão de “lobistas” junto
aos parlamentares, tendo o Congresso Nacional, para sua aprovação,
chegado à seguinte redação:
Art. 33 – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo
oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter:
I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu
responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos
preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou
II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades
religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo
programa.
Assim, o ER passa a fazer parte do currículo escolar, conforme previsto no Art. 210, § 1º, da Carta Magna brasileira, como um novo modelo
de ensino, não mais na forma catequética e de iniciativa de confissões
religiosas, mas um ensino sem proselitismo, fundamentado no respeito
ao pluralismo religioso, bem como à diversidade religiosa. Embora o
ER nas escolas públicas tenha sido regularizado pela LDB, atualmente,
as escolas confessionais continuam livres na escolha de modelos de ER
para seus alunos. Na escola pública, o modelo proposto ainda não foi
implantado integralmente no País, dada às dificuldades na definição de
conteúdos e pela falta de professores devidamente qualificados para lecionar a matéria. A maioria dos escritos sobre o ER enumera três modelos:
o confessional, o interconfessional, o supra-confessional.
Modelo Confessional: O mais antigo de todos, por sua similaridade à catequese, é também chamado de catequético, tendo sido
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O ensino religioso na pós-modernidade
praticado por muitos anos, principalmente pela histórica hegemonia da
Igreja Católica na sociedade brasileira. Embora entendido na maioria das
vezes como ensino da religião católica, não se restringe à mesma, pois é
praticado também pelas igrejas protestantes, como ensino do cristianismo,
a partir da queda do Padroado, quando essas tiveram direito de liberdade
de sua expressão de fé, garantida pela Constituição. Esse modelo tem,
como meta principal, “a busca da hegemonia por parte das confissões
religiosas na sociedade... intentando reproduzir para seu exterior os conteúdos e métodos de sua ação pedagógica interna” (PASSOS, 2007, p. 59).
Como esse modelo, em sua prática, não acarretava ônus para o Estado, o
mesmo foi praticado também na escola pública por longos anos, devido
a acordos, a título de concessão à Igreja, porém, de modo a que a mesma
acomodasse seus valores fundantes, sem que se instaurasse a supremacia
de um poder sobre o outro (Ibid, cf. p. 59). Embora ainda praticado nos
dias atuais, o modelo confessional, por suas características vinculantes,
exclusivistas e proselitistas, tornou-se ultrapassado perante os reclames
da pós-modernidade, que, devido à interação entre as culturas do mundo
globalizado, exige uma mentalidade de ER para além das fronteiras de
uma determinada religião.
Modelo Inter-Confessional: Denominado por alguns autores
como ecumênico, é praticado principalmente em escolas de igrejas ou
confissões cristãs diferentes (Igreja Católica e protestantes), com ensinamentos pautados nas três virtudes teologais: fé, esperança e caridade,
nos valores ético-morais e símbolos comuns ao cristianismo, “sem
proselitismo”, em que se respeita a doutrina específica de cada uma.
Por se tratar de uma concepção que rompe com a idéia de uma confessionalidade estrita, superando consequentemente a prática catequética,
esse modelo é denominado, por João Décio Passos (2007, p. 60), como
“modelo teológico”, contextualizado com “uma cosmovisão religiosa
moderna que supera a visão de cristandade e de expansão proselitista e
empenha-se em oferecer um discurso religioso e pedagógico no diálogo
com a sociedade e com as diversas confissões religiosas, mas, sobretudo,
respaldando referências teóricas e metodológicas”. Esse modelo pretende
inserir as questões religiosas no universo curricular da escola, esforçandose em “promover o respeito e o diálogo entre as religiões, dentro de um
horizonte de finalidades ecumênicas” (Ibid, p. 60).
Embora esse modelo tenha o mérito de distinguir-se da catequese,
de afirmar sobre o direito à diversidade religiosa e também em valorizar
o diálogo inter-religioso e ecumênico na prática educativa, o mesmo
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encerra em si o risco de se promover uma catequese disfarçada, “não
tanto pelos seus conteúdos, mas pela responsabilidade ainda delegada às
confissões religiosas” (Ibid, p. 64). Apesar de uma pretensa superação do
modelo anterior, reconhecidamente antiquado aos tempos atuais e não
condizente com um estado laico, o modelo inter-confessional, que se diga
ecumênico ou teológico, não atende à realidade pós-moderna, por ter um
campo de atuação restrito ao cristianismo, não contemplando, portanto,
o pluralismo religioso, em suas variadas formas de expressão.
Supra-Confessional: Praticado nas escolas públicas de acordo
com o disposto na LDB, tem como base principal, para definição de
seu conteúdo, os parâmetros curriculares nacionais estabelecidos pelo
FONAPER – Fórum Nacional Para o Ensino Religioso. Esse modelo não
admite a prática proselitista e nem qualquer tipo de intolerância religiosa
que possa ferir o direito dos alunos, de professar seu credo ou até mesmo
de não professar credo religioso algum. Pautado no respeito à diversidade religiosa, esse modelo é o que mais atende ao universo religioso
característico da pós-modernidade. O ER passa a ser visto não mais
como ensino da religião ou de religiões, mas assume postura científica,
reconhecendo “a religiosidade e a religião como dados antropológicos
e socioculturais que devem ser abordados no conjunto das demais disciplinas escolares por razões cognitivas e pedagógicas”. (Ibid, p. 65).
Inserido na grade curricular da escola, esse modelo de ER se torna um
contributo para a formação social e ética do cidadão, estando não mais
sob a responsabilidade de uma determinada confessionalidade, mas sim
dos sistemas de ensino e submetido “às mesmas exigências das demais
áreas do saber que compõem os currículos escolares” (Ibid).
O modelo supra-confessional, denominado por Décio Passos como
modelo das “Ciências da Religião”, torna-se o modelo ideal na era da pósmodernidade, superando os dois anteriores, por ter uma visão ampla do
universo religioso, oferecendo “base teórica e metodológica para a abordagem da dimensão religiosa em seus diversos aspectos e manifestações,
articulando-a de forma integrada com a discussão sobre a educação” (Ibid,
p. 65). Devido ao respeito à diversidade religiosa, isento de proselitismo,
atendendo, portanto, às exigências da Legislação atual, esse modelo se
enquadra perfeitamente na era da pós-modernidade, caracterizada, como
vimos anteriormente, pelo crescente pluralismo religioso.
Dentro das perspectivas desse novo modelo, as propostas curriculares que melhor se encaixam, sem qualquer dúvida, são as do Fórum NaEncontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
133
O ensino religioso na pós-modernidade
cional de Professores de Ensino Religioso – FONAPER, principalmente
por atenderem às exigências legais, bem como aos apelos pós-modernos.
Preocupado em garantir um Ensino Religioso a partir das Ciências da
Religião, que não estude uma única religião, mas a religião enquanto
fenômeno, o FONAPER defende a introdução dessa disciplina na escola
pública, legitimada e garantida pela Constituição Federal; pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), com nova
redação do artigo 33, na Lei 9.475/97; e pela Resolução 02/98 da Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação.
O FONAPER propõe um ER no âmbito científico, entendido como
área de conhecimento e de conteúdo disciplinar próprio, interagindo
com as demais matérias no âmbito escolar, na forma do modelo transconfessional, mantendo estreita relação com as Ciências da Religião,
da qual é variável e dependente. É nas Ciências da Religião que o ER
encontrará sua base epistemológica, sem a qual não se justificará sua
razão de ser na escola. Sabemos que a religiosidade é parte intrínseca
do indivíduo e, como tal, é preciso tornar-se conhecida e compreendida,
devendo estar presente na sua formação integral.
No cumprimento de sua tarefa na escola, o ER se servirá do manancial oferecido pelas Ciências da Religião, a fim de proporcionar ao
educando o conhecimento e a compreensão do fenômeno religioso como
realidade atual. A religião não é um assunto de interesse somente “do
indivíduo que crê e milita em alguma Igreja, ou apenas das instituições
confessionais; ela é um fato antropológico e social que perpassa de maneira ativa todos os âmbitos da vida dos cidadãos que compõem o Estado
plural e laico” (PASSOS, 2007, p.76). A relação do ER com as Ciências
da Religião legitima a sua presença nas escolas, uma vez que “não se
inscreve, fundamentalmente, na esfera do debate sobre o direito ou não
à religiosidade, mas do direito à educação de qualidade que prepare o
cidadão para visões e opções conscientes e críticas em seus tempos e
espaços” (Ibid, p. 67).
7 Globalização da religião
Vivemos numa era caracterizada pela globalização em todos os
sentidos, inclusive com relação à Religião, em que, num mundo globalizado, “as diferenças culturais e religiosas misturam-se e confrontam-se de
maneira direta ou virtual – de ambas as formas reais – na vida cotidiana
e desafiam os cidadãos a terem sobre elas uma visão e uma postura”
134
Encontros Teológicos nº 55
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Antônio Lopes Ribeiro
(Ibid, p. 67). Ora, isso somente poderá ser possibilitado pelo ER, cujo
modelo supra-confessional se nutrirá de conhecimentos fornecidos pelas
Ciências da Religião.
O Ensino Religioso, como disciplina na escola pública, se fundamenta numa concepção de educação integral, plena, sob todos os aspectos,
envolvendo todos os níveis de conhecimento possíveis ao ser humano:
“o sensorial, o intuitivo, o afetivo, o racional e o religioso” (FONAPER,
1998, p. 29). De acordo com o FONAPER, a escola é entendida como
“espaço de construção de conhecimentos e principalmente de socialização
dos conhecimentos historicamente produzidos e acumulados”. Portanto,
“como todo conhecimento humano é sempre patrimônio da humanidade,
o conhecimento religioso deve também estar disponível a todos os que
a ele queiram ter acesso” (Ibid., 2008, p. 21). Em razão disso, a escola
não pode recusar-se a concretizá-lo. Na implantação do ER na escola
pública, não há consenso nacional quanto ao conteúdo de sua grade
curricular, nem tampouco no que se refere aos procedimentos didáticos
e avaliação, pois cabe a cada estado e a cada município, a iniciativa
própria nesse sentido. Com exceção do Rio de Janeiro, cujo governo
adotou um modelo diferente daquele ideal proposto pela Lei, a maioria
dos estados e municípios brasileiros estão se norteando nos Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso – PCNER, propostos
pelo FONAPER, com cinco eixos orientadores para estudo, em que se
adota um modelo supra-confessional, que mais corresponde à realidade
contemporânea, caracterizada pelo fenômeno do pluralismo religioso,
buscando garantir um ER sem proselitismo, no estudo do fenômeno da
religião. Vale lembrar que os PCNER propostos pelo FONAPER, embora
não sejam documentos oficiais, são o melhor referencial que existe no
país para o ensino religioso, sendo, portanto, um contributo exemplar
para a orientação daqueles que estão envolvidos com a implantação dessa
importante matéria no universo escolar.
Os conteúdos programáticos, sugeridos pelo FONAPER, objetivam estudar o fenômeno religioso, a fim de responder às questões
ligadas ao sentido último da vida do ser humano, para além da morte: “a
ressurreição, a reencarnação, o ancestral, o nada” (FONAPER, 2006, p.
32). Ao longo da história, procurou-se por várias respostas possíveis,
ensaiadas pela humanidade, que se organiza em sua individualidade,
numa estrutura comum. Dessa estrutura comum, tipo uma fonte “Q”, a
exemplo da Bíblia, “é que são retirados os critérios para organização e
seleção dos conteúdos e objetivos do Ensino Religioso” (Ibid). De acorEncontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
135
O ensino religioso na pós-modernidade
do com esses critérios, são formados cinco blocos (eixos) de conteúdos:
Culturas e Religiões; Escrituras Sagradas; Teologias; Ritos; e Ethos. O
conteúdo desses blocos/eixos são dispostos em quatro etapas de formação,
denominadas pelo PCNER de ciclos, que correspondem aos diferentes
níveis de faixa etária dos educandos. Portanto, um conteúdo específico
pode ser visto tanto no primeiro ciclo quanto no quarto ciclo.
No primeiro bloco, o objeto de estudo é o fenômeno religioso
à luz da razão humana, “analisando questões como: função e valores
da tradição religiosa, relação entre tradição religiosa e ética, teodicéia,
tradição religiosa natural e revelada, existência e destino do ser humano
nas diferentes culturas” (FONAPER, p. 33). Estão presentes, nesse bloco,
“o conjunto de conhecimentos ligados ao fenômeno religioso, em um
número reduzido de princípios que lhe servem de fundamento e lhe delimitam o âmbito da compreensão” (FONAPER, p. 33), não se separando
das ciências que têm a tradição religiosa como idêntico objeto de estudo:
filosofia, história, sociologia, psicologia, e nem delimitando, “de maneira
absoluta e definitiva, um critério epistemológico unívoco” (Ibid).
No segundo bloco, temos como conteúdos a revelação, a história
das narrativas sagradas, o contexto cultural e a exegese. O transcendente
se comunica com o homem por meio daquilo que revela. Essa revelação
está exposta nos textos sagrados, por meio dos quais “o Transcendente
faz conhecer aos seres humanos seus mistérios e sua vontade, dando
origem às tradições. E estão ligados ao ensino, à pregação, à exortação e
aos estudos eruditos” (FONAPER, 2006, p. 34). O homem é um ser em
referência ao Transcendente. Sem um referencial para direcioná-lo em
sua vida, ele se perde pelo meio do caminho. Por isso, busca orientar-se
naquilo que está escrito nas escrituras sagradas, ou nos ensinamentos
transmitidos pela tradição oral, “nas tradições religiosas que não possuem
o texto sagrado escrito” (Ibid).
No terceiro bloco, estudam-se as Teologias. Segundo o FONAPER
(2006, p. 35), “teologias são o conjunto de afirmações e conhecimentos
elaborados pela religião e repassados para os fiéis sobre o Transcendente, de um modo organizado ou sistematizado.” Nesse terceiro bloco,
estudam-se as verdades de fé contidas nas tradições religiosas, tais como:
divindades (descrição das representações do Transcendente), verdades
de fé (mitos, crenças e doutrinas) e vida além da morte (ressurreição,
reencarnação, ancestralidade e o nada).
136
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Antônio Lopes Ribeiro
No quarto bloco, estudam-se os ritos, valendo destacar que, conforme propõe o FONAPER (2006, p. 36), no PCNER, observa-se certa
diferenciação entre ritos e rituais, em que ritos se refere a uma “série de
práticas celebrativas das tradições religiosas, formando um conjunto de
rituais, símbolos e espiritualidade.” Toda e qualquer tradição religiosa
tem a presença de ritos e rituais em suas práticas celebrativas (liturgia),
de fundamental importância para o próprio existir da religião. Apesar
de os ritos referirem-se a práticas religiosas, podem referir-se também
a práticas profanas. Os ritos são carregados de toda uma simbologia
para aqueles que os praticam. É por meio de sua prática que as pessoas
reafirmam suas crenças e seus valores. No ER deve-se estar atento, pois
os mesmos diferem muito de religião para religião.
No quinto bloco, estuda-se o Ethos, que a nosso ver, faz com
que o Ensino Religioso seja uma ferramenta essencial em plena pósmodernidade, para resgatar os valores perdidos, principalmente devido
à secularização. Fazem parte desse eixo de conteúdos: a alteridade, em
que caberá ao professor orientar seus alunos para um relacionamento
com o outro, permeado de valores; os valores propriamente ditos, em
que se evidenciará o “conjunto de normas de cada tradição religiosa
apresentado para os fiéis no contexto da respectiva cultura” (Ibid, p.
38); e por fim, limites, em que se observará “a fundamentação dos
limites éticos propostos pelas várias tradições religiosas.” (Ibid).
Éthos, significa hábito, costume. Êthos, o lugar, morada. Embora a
ética possa se concentrar na primeira definição, como um conjunto
de hábitos ou costumes, referentes à prática dos atos humanos, na
segunda definição, “ethos diz respeito a como compreender e organizar
a conduta, tanto na vida privada quanto na pública” (BOMILCAR,
2005, p. 136). Numa conceituação geral, seguida pela maioria dos
autores, teremos Ethos significando morada do homem, lugar onde
ele habita, e também seu modo de ser ou seu caráter, dos quais se
apropria ao longo de sua existência.
O FONAPER, ao sugerir os conteúdos do PCNER, associa
o Ethos à Moral, definindo ethos como “a forma interior da moral
humana em que se realiza o próprio sentido do ser. É formado na percepção interior dos valores, de que nasce o dever como expressão da
consciência e como resposta do próprio ‘eu’ pessoal” (2006, p. 37). O
FONAPER assim delineia uma linha de trabalho no ER, envolvendo
a moral, iluminada pela ética, “cujas funções são muitas, salientandose a crítica e a utópica. A função crítica, pelo discurso ético, detecta,
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
137
O ensino religioso na pós-modernidade
desmascara e pondera as realizações inautênticas da realidade humana.
A função utópica projeta e configura o ideal normativo das realizações
humanas.” (Ibid). Essa dupla função, segundo salienta o FONAPER
(Ibid, p. 37), “concretiza-se na busca de ‘fins’ e de ‘significados’, na
necessidade de utopias globais e no valor inalienável do ser humano
e de todos os seres, onde ele não é sujeito nem valor fundamental da
moral numa consideração fechada de si mesmo”.
Conclusão
Como vimos, o modelo supra-convencional de Ensino Religioso,
tendo como conteúdos programáticos os propostos pelo FONAPER, é o
que melhor se enquadra à pós-modernidade. Levando-se em conta que
a religião se encontra pluralizada na atualidade, esse modelo se propõe
a estudar a religião enquanto fenômeno, o que tem grande relevância
sociocultural. De fato, o fenômeno religioso “demonstra ter indiscutível importância na tradição histórica e cultural dos diversos grupos
humanos, e continua a representar para muitas pessoas um ponto de
referência para a própria concepção de vida, de sociedade e de história”
(XAVIER, 2006, p. 52). Esse modelo difere fundamentalmente dos
modelos confessional e interconfessional, voltados para a religião cristã,
ao propor um estudo da religião enquanto fato histórico, analisandoa como “fato religioso” e não como crença e vivência. Um modelo
que respeita a liberdade religiosa do indivíduo, por certo é a melhor
aposta para a construção de um futuro melhor para nossos filhos, para
que se possa viver num mundo onde reine o respeito mútuo, a paz, a
fraternidade e o amor. Um mundo de justiça, com menos violência
e menos guerra. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso um esforço conjunto dos envolvidos na educação de nosso País, no sentido
de conscientizar os pais de alunos sobre a importância desse modelo
para a formação de seus filhos, bem como aos docentes, a praticarem
esse ensino religioso cuja postura ética seja expressão do mais alto
profissionalismo, sem qualquer discriminação e sem proselitismo, com
capacidade de ensinar de forma livre e respeitando o direito do aluno,
de manifestar a sua própria fé. Sem passar por um processo de formação
adequado, o professor de Ensino Religioso jamais estará capacitado a
agir de acordo com a ética profissional que esse tipo de ensino requer. O
mesmo deve ainda estar consciente de que não só a prática ecumênica,
mas também o diálogo entre as religiões, são caminhos perfeitos para
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Antônio Lopes Ribeiro
se alcançar êxito nesse modelo proposto, bem como a unidade desejada
entre cristãos e não cristãos.
Gostaria de finalizar este artigo com as palavras de um autor
hindu, Swami Vivekananda (2004, p. 7), que sabiamente se pronuncia,
a respeito da religião: “Se existe uma verdade comum a todas as religiões, eu a apresento aqui: é realizar Deus [...] podem existir milhares
de raios diferentes, mas todos convergem para um único centro, que é
a realização de Deus”.
Referências
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2007.
BARTH, Wilmar Luiz. O Homem Pós-Moderno, Religião e Ética. Revista Teocomunicação. Porto Alegre, v. 37, março. 2007, p. 102.
BAUMAN, Zugmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998.
BUBER, Martin. Eclipse de Deus: Considerações sobre a relação entre
religião e filosofia. São Paulo: Verus editora, 2007.
DENNETT, Daniel C. Quebrando o encanto: A religião como fenômeno
natural. São Paulo: Editora Globo, 2006.
FONAPER. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religoso
– PCNER. 8. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1998.
LIBÂNIO, J. B. A vida religiosa na crise da modernidade brasileira.
São Paulo: Edições Loyola, 1995.
MIRANDA, Mário de França. A Igreja numa sociedade fragmentada.
São Paulo: Edições Loyola, 2006.
ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto (Orgs.). Globalização e Religião.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
STEIL, Carlos Alberto. Oferta simbólica e mercado religioso na sociedade global: O Futuro da Religião na Sociedade Global. São Paulo:
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VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade. Trad. Cynthia Marques. Rio
de Janeiro: Record, 2004.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
139
O ensino religioso na pós-modernidade
VIVEKANANDA, Swami. O que é religião. 2. ed. Rio de Janeiro: Lótus
do Saber Editora, 2007.
XAVIER, Mateus Geraldo. Contribuição do Ensino Religioso no acesso
à fé: uma leitura teológico-pastoral. São Paulo: Loyola, 2006.
Endereço do Autor:
ITESC
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524
Pantanal
88040-001 Florianópolis, SC
140
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Simpósio sobre ecumenismo
Jundiaí, janeiro de 2010
Ecumenismo na pastoral
Exigências da realidade sócio eclesial
Terezinha M. Cruz*
* A autora é assessora da CNBB nos temas catequese e ecumenismo.
Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010, p. 141-152.
Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial
O ecumenismo não costuma ser muito rejeitado. O mais frequente
é perceber que se trata, para muitos, de território desconhecido. Então
sempre acho que se pode aplicar a esse tema o que já dizia Paulo sobre
a divulgação do evangelho:
E como crerão naquele que não ouviram? E como ouvirão se ninguém
o proclamar? E como o proclamarão se não houver enviados? Assim é
que está escrito: Quão bem vindos os pés dos que anunciam boas novas!
(Rm 10,14-15)
Por que esse tema?
– Dois grandes desafios: conhecimento da voz
da Igreja e pastoral de conjunto
Andando pelo Brasil afora, falo de ecumenismo e percebo com
frequência duas reações diferentes, mas que apontam para o mesmo
problema:
– Uns dizem: Isso existe mesmo ? Que bom! Já não era sem
tempo!
– Um grupo bem menor reage assim: Mas isso contraria a verdade! Como um católico pode aceitar “essa gente”?
Em ambos os casos, se percebe um grande desconhecimento do
que a Igreja já disse, de muitas maneiras, sobre esse assunto. Nossos
muitos e complicados documentos não chegam ao povo católico, como
seria desejável. Mas desconhecer o “sinal verde” para o ecumenismo (ou qualquer
outra orientação básica e atualizada da Igreja) é apresentar uma Igreja
mutilada, com sua face deformada.
Em alguns casos, há pessoas dizendo, com pleno e sincero entusiasmo, em nome de seu amor à Igreja, coisas que a própria Igreja não
aprova. Isso, é claro, não acontece só com o ecumenismo: há muito a
corrigir em áreas variadas. Outras vezes, ninguém nega algum aspecto
da orientação pastoral da Igreja: simplesmente se “esquece” que aquilo
existe. É o que vemos, por exemplo, quando não aparece nem uma única
frase sobre ecumenismo em homilias sobre textos que dariam uma boa
abertura ao tema. Uma vez, num dia de Todos os Santos, o padre nos
lembrou que santos não são só os canonizados, mas dava para incluir aí
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Encontros Teológicos nº 55
Ano 25 / número 1 / 2010
Terezinha M. Cruz
nossa mãe, nosso avô e outros. Depois da missa fui à sacristia conversar
com ele, elogiando a ampliação do time dos santos e perguntando se ele
não incluiria ali gente como Martin Luther King, Gandhi... Ele me disse:
Claro! Só não falo nisso porque o povo não está preparado para ouvir.
Fiquei pensando: quando estará, se, como adverte Paulo, não houver
quem o proclame? Mas uma visão de conjunto da postura da Igreja
ajudaria a pôr as coisas no seu devido lugar. É importante ajudar o povo
a perceber que não somos ecumênicos “apesar” de sermos católicos,
mas exatamente “porque” somos católicos somos ecumênicos. Não é
um “risco”, uma “ameaça” à nossa identidade, é algo que faz parte da
afirmação dessa identidade e só engrandece a Igreja.
São conhecidas as dimensões da ação pastoral que precisam
ser oferecidas ao povo de forma orgânica: comunitária; missionária;
bíblico-catequética, litúrgica, de ecumenismo e diálogo interreligioso;
sócio-transformadora.
Nenhuma dessas dimensões funciona bem sozinha. A excessiva
ênfase em qualquer uma delas, com esquecimento das outras, leva a um
esvaziamento, mais cedo ou mais tarde. Foi o que aconteceu, por exemplo,
com certos trabalhos da teologia da libertação. É o que acontece com
a oração desencarnada, com a catequese que for somente doutrinária,
com a homilia que não se relaciona com a vida extra eclesial, com o
ecumenismo vivido como um “departamento” que interessa só aos que
se empolgam particularmente com ele.
– Ser Igreja é ser também testemunho de diálogo
e agente de reconciliação
Quem acreditará em nós se falamos de paz e brigamos, dentro da
própria família cristã? A missão de Jesus é basicamente a reconciliação da
humanidade com Deus, mas ele mesmo adverte que, antes de chegar com
a oferta ao altar, é preciso reconciliar-nos com o irmão (Mt 5,23). Olhando o panorama social, vemos que não precisamos só de reconciliações
individuais. Temos que reconciliar um mundo dividido, violento, omisso
diante da injustiça e da opressão, com famílias que não se entendem,
com estudantes que humilham os colegas, com uma pressão consumista
que desvaloriza quem não segue o modelo proposto pelo mercado. Isso
ultrapassa o terreno ecumênico propriamente dito. Mas, desenvolvida
dentro do mesmo espírito, essa reconciliação ficaria facilitada pelo cultivo
de uma dimensão ecumênica de presença transversal em todas as nossas
Encontros Teológicos nº 55
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Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial
áreas de trabalho. Afinal, as qualidades necessárias para a vivência de
uma espiritualidade ecumênica são as mesmas que nos preparam para o
diálogo, a reconciliação, a valorização da paz, o acolhimento, a cooperação que multiplica nossos resultados. Tudo isso nos ajudaria também
em outros terrenos, no âmbito pessoal, comunitário e social. Perceber
a vantagem, para os agentes da Igreja, de uma formação ecumênica, é
algo necessário para vencer barreiras e começar a marcar presença nas
atividades pastorais.
A pastoral tem que ter uma visão ampla da grande missão da Igreja. Igreja existe para o mundo, não para si mesma... e o mundo precisa
de paz e reconciliação, de cooperação em vez de competição. Iniciar
pessoas à vida da Igreja sem essa visão maior é ser infiel à grandeza
do projeto cristão e ignorar o que a sociedade precisa receber de nós.
A partir do ecumenismo cristão, a pastoral pode educar para o trabalho
solidário de todas as pessoas de boa vontade. E isso porque o mais
importante, como vemos nas bem-aventuranças e na parábola do juízo
final, é transformar a vida, aliviar sofrimentos, vencer o que atrapalha a
convivência fraterna.
– Superar o que foi assimilado de maneira errada
(por nós e pelos outros)
Antes de semear, prepara-se o terreno. E, neste caso, o terreno está
cheio de pedregulhos e ervas daninhas. Todos nós crescemos ouvindo
falar do outro de forma negativa. Temos estereótipos e preconceitos de
muitos tipos.
Diante disso, a pastoral tem que incluir o diálogo que vem da
amizade normal entre pessoas de Igrejas diferentes e precisamos – dos
dois lados – ouvir a história de cada um contada por ele mesmo.
Teríamos que superar também a visão exclusivamente negativa da
diversidade das Igrejas, a esperança míope de um sonho que confunde
unidade com uniformidade. Teríamos que lembrar o que disse João Paulo
II, quando foi interrogado sobre esse assunto.
Pergunta: Por que o Espírito Santo teria permitido tantas e tais divisões
e inimizades entre aqueles que no entanto se dizem seguidores do mesmo
Evangelho, discípulos do mesmo Cristo?
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Encontros Teológicos nº 55
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Terezinha M. Cruz
Resposta de João Paulo II: Para essa pergunta podemos achar duas
respostas. Uma, mais negativa, vê nas divisões o fruto amargo dos
pecados dos cristãos. A outra, pelo contrário, mais positiva, é gerada
pela confiança Naquele que tira o bem até mesmo do mal, das fraquezas
humanas: por isso, não poderia ser que as divisões tenham sido também
um caminho que levou e leva a Igreja a descobrir as múltiplas riquezas
contidas no Evangelho de Cristo e na redenção operada por Cristo?
Talvez tais riquezas não pudessem vir à luz de maneira diferente. (...) É
necessário que o gênero humano alcance a unidade através da pluralidade, que aprenda a reunir-se na única Igreja, mesmo na pluralidade
das formas de pensar e de agir, das culturas e civilizações.
(Cruzando o limiar da esperança – Ed. Francisco Alves)
– Mesmo que os outros não façam?
Quando trabalho com a questão do reconhecimento do Batismo,
costumam se manifestar aqueles que ficam ofendidos porque, em relação
a certas Igrejas, nós reconhecemos a validade do Batismo e elas não retribuem a “gentileza” e rebatizam os que eram nossos. Em situações desse
tipo, a conversa com o povo poderia caminhar por duas vertentes:
a) Quando o outro está errado, a pior coisa que podemos fazer
é copiar o erro, deixar que o equívoco alheio nos diminua,
nivelando por baixo; não é a outra Igreja que, nesse caso, vai
determinar como nós temos que nos comportar. b) “A quem muito foi dado muito será pedido” – disse Jesus (Lc
12,48). Nossa Igreja é maior, tem uma raiz histórica sólida. Ela
não tem desculpa para não fazer o melhor. Nossa responsabilidade é maior do que a daquelas Igrejas menores que apareceram
depois. Somos nós que temos que dar o exemplo mais visível,
adulto e consistente.
Sabiamente Jesus mandava caminhar 2 km com quem quer nos
forçar a acompanhá-lo por 1 km (Mt 5,41). Ou seja: a generosidade é o
melhor meio de vencer um enfrentamento. Elogiar quando nos censuram
é um bom processo de desarmamento do outro, mas não pode ser simplesmente uma estratégia , deve ser parte de uma autêntica espiritualidade.
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Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial
– E por que faríamos tudo isso?
No trabalho pastoral, é preciso ajudar o povo a perceber que
ecumenismo não é uma concessão, uma generosidade dispensável
e, muito menos, uma rendição diante do pluralismo. Precisamos
ser ecumênicos:
a) Porque o mundo e o evangelho precisam desse trabalho.
A necessidade do ecumenismo, como sinal de diálogo e reconciliação, torna-se um dos chamados “sinais dos tempos”. É também
a credibilidade do evangelho que está em jogo (e isso Jesus já
havia avisado: sejam um para que o mundo creia, Jo 17,21).
b) Porque a divisão enfraquece a todos.
“Dividir para conquistar” é tática que qualquer guerreiro conhece desde o começo das disputas humanas. Energias gastas em
“provar que o outro está errado” seriam empregadas com muito
mais proveito em outras coisas e até no trabalho em conjunto em
áreas em que isso é possível. É uma ilusão achar que “acusar o
outro” prepara a comunidade para resistir ao “trânsito religioso”.
Pode funcionar até ao contrário, quando alguém descobre que o
outro tem valores que lhe foram ocultados.
Para os de fora, o enfrentamento não aparece como zelo pela
verdade , mas como conflito de interesses, o que desmoraliza
todas as partes envolvidas e a própria mensagem cristã.
c) Porque isso vai exigir uma Igreja melhor com gente mais
preparada.
Para ser ecumênico, é preciso conhecer e amar muito a própria
Igreja. É necessário também discernir o essencial e o acessório
ou contingente. Muita coisa que um católico nem se interessaria
muito em saber se torna importante porque ele vai estar em
diálogo com alguém que tem outro ponto de vista. Só responde
com tranquilidade quem está seguro. Ora, de gente segura na
sua identidade de fé a Igreja precisa muito.
– Com quem vamos tratar desse assunto na pastoral?
Cada grupo pode ter necessidades e potencialidades diferentes,
mas todos na Igreja podem e devem fazer parte dessa caminhada. Então
vamos trabalhar:
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Encontros Teológicos nº 55
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Terezinha M. Cruz
a) Com os jovens e crianças
O convívio e a comunicação já existem, na escola, na vizinhança, nos programas de TV. Escolas dominicais podem ter
materiais interessantes para a catequese, músicas evangélicas
já são usadas por nós (mesmo que alguns desconheçam sua
origem). Jovens de Igrejas diferentes podem participar de
encontros de corais, atividades ecumênicas sazonais. Mas é
muito importante incluir uma postura ecumênica no material
catequético, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento da validade do batismo.
b) Com as famílias de pertença múltipla
Este é um campo em crescimento, para o qual deveríamos já
estar preparando agentes especializados. Já temos “Encontros
de Casais de Segunda União”, mas precisaríamos muito ter
encontros de casais (ou de famílias) de Igrejas diferentes.
Orações, círculos bíblicos, estudos e trabalhos conjuntos têm
aí um campo fértil para diálogo e partilha fraterna. Precisamos
também organizar esquemas de preparação – do tipo curso de
noivos – para casais de casamento misto.
Em Brasília temos um grupo de casais assim, com uma experiência bem positiva, que poderia ajudar na multiplicação desse
tipo de iniciativa. Nessa situação é importante ver a situação
não como “problema” mas como “missão”. Essas famílias devem ser convidadas a se perceber como “primícias” , amostras
antecipadas da unidade que Deus deseja para seu povo.
c) Com os padres que educam e fazem homilias
Dizem que a missa tem que ser “católica” ... e é verdade! Mas
se o ecumenismo faz parte do ensinamento e das dimensões
pastorais da Igreja, é preciso despertar os padres para as possibilidades de menções ecumênicas na abordagem dos temas
e na orientação dos agentes de pastoral. Famílias de pertença
mista necessitam de acolhimento, especialmente quando há
sacramentos envolvidos.
d) Com as diversas pastorais e movimentos
Há mais semelhanças do que muitas vezes nos damos conta,
entre a espiritualidade de certos movimentos e o estilo dos
pentecostais clássicos, por exemplo. Às vezes pode ser que
essa semelhança até motive uma afirmação de identidade em
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Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial
confronto (todo mundo sabe que irmãos brigam mais do que
primos), como aconteceu por muito tempo entre judeus e
cristãos. Mas aos poucos vamos descobrindo possibilidades
de diálogo. Outros movimentos, como o Focolare, já nasceram
ecumênicos, e podem ajudar a dissipar os receios que muitos
têm da proximidade com irmãos de outras Igrejas.
Muitas pastorais sociais já têm experiência ecumênica: pastoral
da terra, da criança, do migrante... Tudo que já é feito sem risco
de identidade perdida e com respeito à identidade de todos deve
ser divulgado para incentivar e tranquilizar outros grupos.
e) Com os catequistas e outros educadores da fé
Sem catequese, nada feito! É aí que cada um começa a conhecer
a Igreja. O assunto mais tratado na catequese hoje é Iniciação
Cristã. Aí se destaca a necessidade de fazer uma experiência de
fé (mais do que simplesmente saber coisas) e sentir-se Igreja.
Esse “sentir-se Igreja” precisa se referir à Igreja por inteiro, em
todas as suas dimensões. É urgente uma revisão nos manuais e
na formação dos catequistas, não só para uma correta inserção
do ecumenismo, mas também para uma percepção mais ampla
da missão e da identidade da Igreja, que precisa ser testemunhada na vivência concreta da comunidade.
Em 1979, o documento Catechesi Tradendae já dizia:
“A catequese terá uma dimensão ecumênica, pois, se ela, sem
renunciar a ensinar que a plenitude das verdades reveladas
e dos meios de salvação instituídos por Cristo permanece
na Igreja Católica, no entanto fizer tal ensino com sincero
respeito, em palavras e obras, para com as comunidades
eclesiais que não estão em plena comunhão com essa mesma
Igreja. Nesse contexto, é sobremaneira importante fazer uma
apresentação correta e leal de outras Igrejas e comunidades
eclesiais, das quais o Espírito Santo não recusa servir-se como
de meios de salvação.” (CT 32)
f) Com as comunidades cristãs mais próximas e dispostas
148
Tudo deve começar com relações pessoais. Conversar com
um amigo é diferente de encarar um estranho. Um gesto
de ajuda numa dificuldade, uma partilha de espaço ou de
material, uma conversa a partir de uma ação comunitária,
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Terezinha M. Cruz
são alguns passos que podem levar a uma parceria ou pelo
menos a um desarmamento.
– Como faríamos isso?
O povo católico precisa se sentir seguro, à vontade, em paz com
a sua Igreja, quando se envolve em relacionamentos ecumênicos. Para
isso precisamos considerar alguns aspectos importantes:
a) Há necessidade de esclarecer bem o que ecumenismo é, e o que
ecumenismo não é (com abertura para o diálogo inter religioso).
Sem clareza de conceitos, alguém pode prejudicar o processo,
mesmo que tenha as melhores intenções.
b) Ecumenismo é “dupla jornada de trabalho”, para quem sabe o
que está fazendo e tem condições de representar a sua Igreja.
Não é boa política deixar de fazer alguma coisa na sua própria
Igreja porque estamos ocupados numa tarefa ecumênica. Isso
gera má vontade nos que ainda não participam ou têm medo
desse tipo de proximidade. Por isso é bom, por exemplo, não
marcar encontros ecumênicos para o domingo. Quem trabalha
com ecumenismo precisa ter um testemunho transparente de
fidelidade à sua Igreja.
c) São desejáveis tanto a participação conjunta em tudo que for
possível, como o cultivo da espiritualidade ecumênica dentro
da própria comunidade
Às vezes é possível ter atividades ecumênicas em campanhas,
eventos, semanas de oração, celebrações de datas especiais,
atendimento a doentes, população em situação de risco, encarcerados e outros. Em alguns locais, isso pode ser difícil por
falta de disponibilidade da outra parte. Mas, se queremos ser
católicos fiéis à nossa Igreja, sempre é possível, pelo menos,
trabalhar uma espiritualidade ecumênica dentro da nossa própria
comunidade, preparando corações e mentes para um desejo de
diálogo, reconciliação, reconhecimento do valor do outro.
d) Muita coisa boa nasce de uma leitura ecumênica da Bíblia
Não se estuda a Bíblia para comprar briga, mas católico
que não conhece bem a Escritura está despreparado para
o diálogo. Em grupo que já se acolhe bem é possível – e
muito gratificante – estudar o texto juntos e apresentar as
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Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial
divergências de interpretação – se houver – tranquilamente,
como informação para cada um conhecer melhor o outro
e não para provar quem tem razão. Já tive experiência de
estudo bíblico ecumênico em que, depois de certo tempo
de convívio e confiança mútua, os próprios protestantes
pediram para estudar o livro de Judite, que não consta da
Bíblia deles, para ‘saber como era”. Mas isso só acontece
num clima onde se desenvolveu a confiança mútua.
e) A linguagem deve refletir a espiritualidade ecumênica
Depois de tantos anos de desconhecimento mútuo e enfrentamento, cuidados com a linguagem são indispensáveis. Não se
trata de ser hipócrita para agradar o outro, mas de ter delicadeza
para não ferir, e alegria de destacar o que já nos une.
g) É preciso divulgar os acordos já feitos, especialmente sobre o
reconhecimento do batismo
Com o ecumenismo acontece algo parecido com aquela história dos soldados japoneses que ficaram dois anos escondidos
numa caverna para escapar dos soldados americanos, porque
ninguém lhes comunicou que a guerra havia acabado. Muita
gente continua em espírito de batalha numa guerra que já acabou, porque não lhes foram apresentados os tratados de paz.
É parte importante do trabalho pastoral a divulgação do que a
Igreja já permite, aceita e manda fazer.
h) Divulgação de materiais e experiências
Além dos óbvios textos das Campanhas da Fraternidade
Ecumênicas e das Semanas de Oração, há outros materiais
que devem ser conhecidos e divulgados, especialmente a
cartilha “Diversidade e Comunhão”, os textos da CNBB
sobre ecumenismo, os acordos bi ou multi laterais, artigos
de revistas e outros.
– Ação de graças pelo dom de sermos chamados
a algo tão importante
Ecumenismo não é só um trabalho, mesmo que como tal seja muito
importante; ele é uma fonte de gratificantes experiências, de vários tipos.
Nisso encontramos:
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Encontros Teológicos nº 55
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Terezinha M. Cruz
– A alegria de ser parte de um milagre
A restauração plena e visível da unidade talvez não seja algo que
possamos ver durante o tempo de nossa vida terrestre. Só Deus sabe!
Mas fico imaginando ver lá do céu a coisa finalmente acontecer e a
gente podendo dizer com alegre entusiasmo: – Eu estava lá! Eu ajudei
a fazer isso!
Os agentes de pastoral têm que ser formados na consciência de
quanto é gratificante ter sido chamado por Deus para algo tão milagrosamente construtivo.
– Qualidades que nos tornarão melhores de muitas
maneiras
Ecumenismo é tarefa exigente, sem dúvida! Mas, justamente
por isso, deve ser acolhida com alegria porque vai nos fazer crescer
no conhecimento, nas qualidades necessárias ao diálogo, na visão do
mundo e do próprio cristianismo, na fraternidade, na consciência de
responsabilidade pela construção solidária da paz. O diálogo ecumênico
nos prepara para muitos outros diálogos, importantes para a riqueza das
nossas relações humanas.
– Viver o espírito dos primeiros apóstolos
A Igreja nascente tinha muita diversidade, porque a comunicação
entre comunidades não era tão fácil e ainda não havia códigos e procedimentos disciplinares tão organizados. Mas foi viva e forte para se
sentir una dentro das múltiplas comunidades, para reconhecer uns aos
outros como irmãos em Cristo e para ser semente de um cristianismo
universal.
– Ganhar “novas janelas” para ver uma bela
e inesgotável paisagem
Penso que João Paulo II tinha razão: o cristianismo é grande e rico
demais para ser apreciado a partir de um só ângulo. Se conseguirmos
nos alegrar com a diversidade , mais facilmente ela se constituirá numa
unidade multifacetada, capaz de mostrar de modo melhor ao mundo a
imensa riqueza da proposta evangélica.
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Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial
Reflexão final:
“A união faz a força” – diz o provérbio. Mas a união também faz
tudo o que nos sustenta. A vida e o próprio universo são feitos de forças que interagem, que se combinam, para construir algo maior. Assim
também, embora o ecumenismo já seja em si um projeto de união, não
queremos que ele seja vivido isoladamente, como um departamento da
Igreja. É no conjunto de todas as suas dimensões que a Igreja, ligada às
necessidades prementes da nossa sociedade, se torna um chão seguro e
bonito para a caminhada humana.
Endereço da Autora:
E-mail: [email protected]
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CAMPANHA DA FRATERNIDADE
ECUMÊNICA 2010
Oração:
“Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” Mt 6,24c
Ó Deus criador, do qual tudo nos vem,
nós te louvamos pela beleza e perfeição
de tudo que existe como dádiva gratuita para a vida.
Nesta Campanha da Fraternidade Ecumênica,
acolhemos a graça da unidade e da convivência fraterna,
aprendendo a ser fiéis ao Evangelho.
Ilumina, ó Deus, nossas mentes
para compreendermos que a boa nova que vem de ti é amor, compromisso e partilha entre todos nós, teus filhos e filhas.
Reconhecemos nossos pecados de omissão,
diante das injustiças que causam exclusão social e miséria.
Pedimos por todas as pessoas
que trabalham na promoção do bem comum
e na condução de uma economia a serviço da vida.
Guiados pelo teu Espírito,
queremos viver o serviço e a comunhão,
promovendo uma economia fraterna e solidária,
para que a nossa sociedade acolha a vinda do teu Reino.
Por Cristo, nosso Senhor. Amém.
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Recensões
MOLINARI, PAULA (org.), Música brasileira na Liturgia II, col. Liturgia e Música, n. 8, São Paulo, Paulus, 2009, 21 x 13,5cm, 104 p.
Ney Brasil Pereira*
Mais um título, o oitavo, da coleção “Liturgia e Música”, da
Paulus, iniciada em 2004 com o lançamento de “Cantando a Missa e
o Ofício divino” (atualmente em 3ª. edição), de Frei Joaquim Fonseca,
que é também o coordenador da coleção. Este volume, organizado por
Paula Molinari, tem o título de “Música brasileira na Liturgia II”,
apresentando-se, portanto, como a continuação ou complementação de
“Música brasileira na Liturgia”, relançado em 2004 como o vol. 2 da
coleção. Digo “relançado”, porque sua primeira edição data de 1969,
pela editora Vozes, de Petrópolis.
O apresentador do volume, Frei Luiz Turra, então assessor nacional
de música litúrgica, esclarece que “Música brasileira na Liturgia II é fruto
precioso do 1º encontro de compositores de música litúrgica, promovido
pelo setor Música Litúrgica da CNBB e realizado em setembro de 2006,
em São Paulo” (p. 6). O mesmo esclarecimento é dado, com mais detalhes,
pela organizadora do livro, Paula Molinari, que informa ter sido achado
oportuno “repensar e, quem sabe, reformatar as considerações do livro
Música brasileira na Liturgia. Passados quase quarenta anos, desejávamos
ouvir e analisar a expressão e produção musical surgidas e assimiladas nesse
período” (p. 7). O mencionado “1º Encontro nacional de compositores e
letristas” teve sua continuidade no triênio seguinte, abordando, além dos
temas litúrgicos, também aspectos músico-culturais, como “música e mídia”, inculturação, estética na música e poesia brasileiras, além de oficinas
de produção de textos e composição musical (pp. 8-9).
A primeira contribuição é a do Pe. José Weber, que foi assessor
nacional de música litúrgica da CNBB entre 1967 e 1983, cujo texto é
um detalhado relato sobre “a CNBB e a renovação do canto litúrgico no
Brasil” (pp.11-25), relato apresentado primeiro num Encontro nacional
*
O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas e membro da Pontifícia Comissão Bíblica,
é professor no ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, em Florianópolis, SC.
Encontros Teológicos nº 55
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Recensões
de músicos em 2002, e reformulado em 2007. Relato bastante completo,
objetivo, de quem participou diretamente dos fatos, em vários deles como
autor principal. Pe. Weber começa com breve síntese da situação “antes
do Vaticano II” (pp. 11-12), destacando a seguir “os salmos e cânticos
de Gelineau” (p. 12); os “pioneiros”, à frente dos quais se encontrava o
Cônego Amaro Cavalcanti; as “fichas de canto pastoral” do Rio de Janeiro e de Campinas”, publicadas a partir de 1961; o Concílio Vaticano
II (1962-65), com a sua abertura à participação da assembléia e à liturgia
em vernáculo; a “luta entre os esteticistas e os pastoralistas” (p. 14); os
“encontros de reflexão e estudos da assessoria da CNBB”, entre os quais
o de Valinhos, o de Vitória, e ainda dois encontros no Rio de Janeiro,
entre 1965 e 1968 (pp. 14-16); a “procura de um assessor formado em
Música Sacra” (pp. 15-17); os “cursos de canto pastoral” que, após o Rio
de Janeiro, espalharam-se por todo o Brasil (pp. 17-18); os “assessores
da CNBB para a Música Litúrgica”; os “encontros ecumênicos”, em
1976 e 77; o “folheto ‘Povo de Deus’”, lançado em 1967; os cantos da
“Missa da Campanha da Fraternidade”, a partir de 1969 (pp. 19-20); as
publicações da CNBB sobre Música Litúrgica: “Estudos sobre os cantos
da Missa”, do Pe. José Weber, 1976; a “Pastoral da Música Litúrgica no
Brasil”, doc. da CNBB, n. 7; “A Música Litúrgica no Brasil”, Estudos
da CNBB, n. 79; a coleção “música sacra”, da Ed. Vozes, de Petrópolis,
que publicou 5 títulos entre 1966 e 1970; “Paulinas, Padre Zezinho e
outros” (p. 21-22); “a Paulus e as missas de ‘O Domingo’”; a “Liturgia
das Horas”, com sua tradução ritmada dos salmos, em 1995, e com
partituras para os cantos de Laudes, Vésperas e Completas, em 2007
(p. 23); o “Hinário Litúrgico” da CNBB, coorden. por frei Joel Postma,
em 4 fascículos, publicados entre 1985 e 1997 (pp. 23-24); o “Ofício
Divino das Comunidades”, aparecido em 1988; a “influência dos cantos
da RCC”; o “Curso ecumênico de formação e atualização litúrgicomusical”, CELMU, iniciado em 1992 e ainda em atividade (pp.24-25).
Pe. Weber termina sua resenha com um parágrafo interrogativo: “para
onde caminham a música e o canto litúrgico atuais?” E expressa sua
preocupação com o fato de que “salvo raras exceções, a geração atual
não tem formação litúrgico-musical satisfatória” (p. 25).
A segunda contribuição, de Frei Joaquim Fonseca, apresenta
o “panorama da música litúrgica no Brasil” (pp. 27-33). Sem entrar
nos detalhes do Pe. Weber, Frei Joaquim faz interessante síntese, em
três pontos: 1) O “Impulso inicial, provocado pelo Concílio Vaticano
II”. Frei Joaquim o analisa “sob o ponto de vista da reflexão teológico-
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litúrgica”, mencionando um “período de hibernação”, nas décadas de
80 e 90, e “sob o ponto de vista da produção litúrgico-musical”, apenas
elencando o principal (p. 28). 2) O “Impulso dos 40 anos após o Vaticano II”, também “sob o ponto de vista da reflexão teológico-litúrgica”,
mencionando aí o Encontro Nacional de Músicos em 2002; a criação
da “Equipe de reflexão sobre música e liturgia”, da CNBB, em 2004; a
“19ª Semana de Liturgia”, em 2006; os “Encontros anuais de formação
litúrgico-musical para compositores e letristas”, desde 2006 (pp. 28-30).
Sob o ponto de vista da “produção litúrgico-musical”, menciona os CDs
da série “Liturgia”, da Paulus; a coleção “Liturgia e Música” da Equipe
de reflexão”, publicada pela Paulus, já oito volumes; os “Documentos
sobre a Música Litúrgica”, da Santa Sé e da CNBB, Paulus, 2005; o
opúsculo “Canto e Música na Liturgia; princípios teológicos, litúrgicos,
pastorais e estéticos”, 2ª ed. CNBB, 2006; o DVD “Canto e Música na
Liturgia”, da Verbo Filmes, em parceria com a Paulus e a rede “Celebra”, 2006 (pp. 30-32). 3) Entre os “desafios”, Frei Joaquim menciona a
“urgente necessidade da capacitação de formadores litúrgico-musicais”,
recomendando, a propósito, o texto “Lex orandi, Lex credendi”, que se
encontra no Apêndice I do livro. Outro desafio, para Frei Joaquim, é a
“inculturação da música litúrgica”, da qual o “Ofício Divino das Comunidades” é expressivo testemunho (p. 33).
Celso Mojola nos oferece a terceira contribuição: “A música
brasileira e suas implicações na composição de música ritual cristã
” (pp. 35-41). Partindo do fato de que “a característica mais geral da
música brasileira é a sua diversidade, ele afirma que é “bastante complexo o processo de unificar essa variada produção musical sob a égide
de uma cultura nacional” (p. 35). Se há bastantes estudos sobre nossa
música popular, temos bem menos textos sobre nossa música erudita,
embora esta, “em termos históricos”, seja “uma das mais significativas
das Américas” (p. 35). Quanto à música popular, é preciso distinguir
entre música popular rural e música popular urbana, e não esquecer
o “intenso processo de mudança” que o Brasil vem passando “desde
1950” (p. 36). Essa mudança questiona os estudos feitos com base no
folclore e na teoria nacionalista de Mário de Andrade, no final da década
de 1920 (p. 36) P. ex., “o conceito de ‘constância’, desenvolvido pelo
pensamento nacionalista”, “apresenta problemas de natureza prática e
teórica”. “‘Constância’ é um conceito constritor, restritivo do processo de
criação” (p. 38). “No lugar de ‘constância’, que se valorize a observação
do artista” (p. 38). “O caminho escolhido por Béla Bartók, gerando nova
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harmonia a partir do sistema modal das melodias populares húngaras,
por ele recolhidas, é igualmente válido e pode ser usado pelos compositores sacros...” (p. 40) Esses, porém, antes de serem ‘compositores
de música sacra’, devem ser ‘compositores’, isto é, conhecedores das
principais técnicas de composição, tradicionais e contemporâneas” (p.
40). “A transposição pura e simples de gêneros exteriores à liturgia, para
o universo sacro, não parece ser a solução mais adequada...” “A música
litúrgica volta-se para uma acessibilidade universal, o que recomenda
evitar excessiva complexidade” (p. 40). “A música litúrgica deve, sim,
apoiar-se nas manifestações culturais brasileiras, mas será necessário
saber manipular esse material. E quem deve fazer isso é o compositor
tecnicamente preparado” (p. 41).
A última contribuição, de Paula Molinari, propõe “apontamentos
de estudo nas áreas de folclore, etnomúsica, música culta e música
popular brasileira como subsídios para a produção de música brasileira litúrgica” (pp. 43-48). Ela apresenta “uma síntese do pensamento
de quatro musicólogos”, citados, com suas obras, na p. 44: Karl Dahaus,
em Fundamentos de la Historia de la Musica; Bruno Netttl, em Musica
folklorica y tradicional de los Continentes Occidentales; Juan Pablo
Gonzáles R., em Musicologia Popular en America Latina: síntesis de sus
logros, problemas y desafios; e Gérard Béhague, em Música ‘erudita’,
‘folclórica’ e ‘popular’ do Brasil. Interações e inferências para a Musicologia e Etnomusicologia modernas. Assim, adotando a perspectiva de
Dalhaus, ela crê “poder afirmar que, cientes da tendência nacionalista do
texto apresentado na primeira publicação (de 1969), nos é cabível tomar
a experiência como exposição do passado histórico” (p. 44) e “nos aponta
uma nova direção, de ação libertadora”, em relação às “estruturas desse
passado” (p. 45). Mais adiante, ela chama a atenção para a necessária
interdisciplinariedade: “A questão interdisciplinar, que perpassa a musicologia, ficou intocada durante anos, emergindo hoje como essencial
na análise das obras” (p. 45). Molinari concorda com Mojola quanto aos
limites da busca de ‘constâncias’ na música brasileira: não reduzi-la a “recortar esse universo em fragmentos quase imperceptíveis” (p. 45). Quanto
a “uma nova perspectiva de observação’, ela aceita de Béhague a proposta
de “repensar os métodos de classificação do elemento nacional singular”
(p. 46) e concorda em que “hoje não podemos afirmar que a música é
brasileira porque tenha elementos recorrentes de síncopes rítmicas”...
Descrevendo o “olhar do músico brasileiro litúrgico”, Molinari afirma:
“Não seja um olhar que recorte, que desconstrua, mas que vislumbre a
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flexibilidade da adaptação dos diversos elementos, reconstruindo-os”
(p. 47). Ela concorda com Reginaldo Veloso quanto à necessidade de o
compositor litúrgico dever ser alguém “integrado na comunidade cristã”
(p. 48). E termina, insistindo na “formação, investimento, apoio da Igreja
para propiciar ao músico litúrgico condições de dedicação exclusiva com
assunto tão sério” (p.48).
Após breve “Conclusão”, que reafirma a “necessidade de capacitação de formadores” (p. 49), seguem dois Apêndices. O primeiro, com o
título “Lex orandi, Lex credendi. A propósito da urgente necessidade
da capacitação de formadores litúrgico-musicais” (pp. 51-60), é um
texto elaborado por Frei Joaquim Fonseca, assumido e assinado pelos
Bispos da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia, e apresentado
na 44ª Assembléia Geral da CNBB, em 2006, na secção “Assuntos de
Liturgia”. O texto foi elaborado em cinco pontos: 1) “A importância da
música na vida humana” (p. 52). 2) “O insistente apelo do Magistério da
Igreja sobre a formação litúrgica e musical dos agentes pastorais”, com
citações dos Papas, desde Pio X até João Paulo II, do concílio Vaticano
II (Sacrossanctum Concilium, 1963), de duas Instruções da Sagrada
Congregação dos Ritos, antes (1958) e depois do Concílio (1967), de uma
Instrução da Sagrada Congregação para a Educação Católica (1979),
do documento da CNBB, n. 7, sobre a “Pastoral da música litúrgica no
Brasil” (1976), e do estudo da CNBB n. 79, sobre “A música litúrgica
no Brasil” (pp. 53-57). Isto é, os documentos não estão fazendo falta...
3) “Como anda a formação litúrgica e musical entre nós?” A pergunta é
respondida breve, mas incisivamente, e levanta novas perguntas, p. ex.,
“que modelo de Igreja”, ou “que tipo de compromisso cristão” ou, ainda,
que “cultura musical” esse cantar ‘dominante’ está promovendo?” (p.
57). 4) “Julgando a partir do axioma Lex orandi, Lex credendi, o texto
afirma que “ não podemos descuidar da qualidade do canto e da música
na Liturgia, senão estaremos alimentando uma fé pouco consistente e até
duvidosa” (p. 58). 5) “Buscando soluções”, o texto começa reafirmando a
“urgência” de “disponibilizar meios e recursos para a formação litúrgica,
pastoral, artística e técnico-musical nos seminários e casas de formação”
(p. 59) – o que, pelo visto, está longe de acontecer! – e propõe medidas “a
curto prazo”, p.ex., “valorização das estruturas existentes”... e “a médio
prazo”, p.ex., liberação e encaminhamento de presbíteros, religiosos/as
e leigos/as para estudos de Liturgia e Música... (pp. 59-60).
O segundo Apêndice, de autoria de Frei Francisco van der Poel,
com a colaboração de Edilson e Paula Molinari, apresenta “65 Ritmos”,
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com o subtítulo “Método para aprender ritmos a partir de músicasexemplo e da anotação elementar do compasso rítmico” (pp. 61-99).
É um trabalho já de 1994, testado pelos alunos do CELMU e pela organizadora, agora oportunamente incluído neste volume. Pessoalmente, eu
teria preferido um número bem menor de ritmos, e mais clareza na sua
descrição, para um aproveitamento mais prático. Quanto aos exemplos
da “tradição católica”, e imagino que também da “evangélica”, não sei
o que o autor entende por “tradição”: quase todos os exemplos aduzidos
são de composições recentes...
Um comentário sobre o conceito de “música sacra”, substituído pelo
de “música litúrgica”, conforme explica Pe. José Weber na p. 16. Pessoalmente penso que se pode, até se deve, manter a terminologia de “música
sacra”, reservando-a para todo o imenso repertório em latim, tanto gregoriano, como polifônico, clássico, romântico, moderno, contemporâneo.
Parte desse repertório, em latim, será também “litúrgico” – p. ex. o “Ave
verum”, quer o de Mozart, quer o gregoriano – se propiciar a participação
efetiva da assembléia celebrante. A música “litúrgica”, por sua vez, é a
música ritual, composta no espírito do Vaticano II, com texto e música que
correspondam ao momento e ao tempo litúrgico em que se celebra.
Agora, umas poucas observações de revisão. Na p. 31, quanto à
autoria dos “Documentos sobre a música litúrgica”, em vez de “VV.AA.”,
não seria melhor escrever “Santa Sé e CNBB”? Na p. 33, no fim da segunda alínea, se explicite que se trata do “apêndice I”, não simplesmente
do “Apêndice” do livro. Na p. 54, no fim da segunda alínea, acrescentar
duas vírgulas: “oferecer, a esse tal, ensejo de...” Na p. 65, assassinou-se
o original italiano da canção “Non ho l’età”, que virou “Nono l’età”...
Concluindo esta recensão, parabéns à organizadora do volume,
Paula Molinari, e ao coordenador da Coleção, Frei Joaquim Fonseca.
Tudo o que se fizer, especialmente uma obra assim, com tantos elementos de reflexão, para se melhorar a qualidade da “Música brasileira na
Liturgia”, é bem-vindo e meritório. Tarefa desafiadora, diante dos rumos
ambíguos que o canto litúrgico vai tomando, e por isso mesmo tanto
mais necessária.
Endereço do Recensor:
Endereço postal: ITESC, cx postal 5041
88040-970 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
160
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