Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC ISSN 1415-4471 www.itesc.org.br FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA Diretor: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller Vice-diretor: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Secretário: Prof. Ms. Celso Loraschi Coordenador/Departamento de Ecumenismo: Pe. Dr. Elias Wolff Coordenador/Departamento de Comunicação: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Coordenador/Departamento de Bíblia: Prof. Ms. Celso Loraschi Bibliotecária: Adriana de Mello Tomaz Secretária Acadêmica: Ana Maria Ramos Secretário Institucional: Marcelo Rodrigues Francisco Assistente Administrativo: Donizeti Mendes Guimarães Recepcionista: Aline Maria Pereira [Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)] CRB-14/416 Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 55, Florianópolis, 2010. Quadrimestral ISSN 1415-4471 I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05) Preço de Assinatura para o ano 2010 R$ 35,00 Forma de Pagamento Cheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8 Correspondência e Assinatura Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC Caixa Postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC Fone/Fax: (0xx48) 3234-0400 Home Page: www.itesc.org.br E-mail: [email protected] Revisão: Pe. Ney Brasil Pereira Editoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta Projeto gráfico: Antônio Frutuoso Printed in Brasil Pede-se permuta Exchange is Requested ENCONTROS TEOLÓGICOS Revista quadrimestral fundada em 1986 Diretor: Elias Wolff Editor: Vitor Galdino Feller Redator: Ney Brasil Pereira Conselho Editorial: Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC Edinei da Rosa Cândido – ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – ITESC – Florianópolis, SC Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG José Artulino Besen – ITESC – Florianópolis, SC Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC Marlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SC Ney Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SC Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS Valter Maurício Goedert – ITESC – Florianópolis, SC Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC CoNSELHO CONSULTIVO: Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – ITESC – Florianópolis, SC Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF Gertrude Marques IDP – ITESC – Florianópolis, SC Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO Luís Dietrich – ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – ITESC – Florianópolis, SC Mari Hammes – ITESC – Florianópolis, SC Marta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa. Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais. Sumário Editorial ....................................................................................................... Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs ..................................................... “Economia e Vida” Luiz Alberto Barbosa ............................................................................................... Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida Antônio Lopes Ribeiro ............................................................................................. Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina Roque Favarin ......................................................................................................... Desequilíbrios no sistema econômico: A parábola do administrador (Lc 16,1-13) L. Stadelmann, SJ .................................................................................................... Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus Anderson de Oliveira Lima . .................................................................................... A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios Ervino Schmidt . ....................................................................................................... Neopentecostalismo e marketing religioso: uma análise das técnicas de merchandising em instituições religiosas brasileiras Anderson Jankus de Souza . ..................................................................................... O ensino religioso na pós-modernidade Antônio Lopes Ribeiro ............................................................................................. Simpósio sobre ecumenismo – Jundiaí, janeiro de 2010: Ecumenismo na pastoral: Exigências da realidade sócio eclesial 7 11 17 25 41 67 79 93 103 123 Terezinha M. Cruz..................................................................................................... 141 Oração da CFE.............................................................................................. 153 Recensões...................................................................................................... 155 (Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!) Editorial Vivemos em tempos de “economia globalizada”. Nem sempre conseguimos compreender o significado dessa expressão, o que exige um apurado discernimento dos seus elementos constitutivos nos âmbitos social, político e cultural. O fato é que o sistema econômico atual apresenta padrões universais que afetam a vida das pessoas, individual e socialmente. Esses padrões criam comportamentos, também universais, nos indivíduos e na sociedade, apresentando o econômico como fator determinante da vida em todo o planeta. Não há consenso sobre qual seria o sistema econômico ideal para as sociedades do nosso tempo. Seja como for, para além dos conceitos, a economia, globalizada nos critérios do neoliberalismo, é um fato que caracteriza a atual fase planetária do capitalismo. Promove a autonomia do indivíduo-sujeito, a especialização dos diferentes domínios da atividade social, a emancipação da ordem temporal. Enfatiza a ênfase no progresso a qualquer custo, sobretudo pelo desenvolvimento científico-tecnológico, a produção acelerada, a comunicação rápida. Daqui as mudanças de alcance global, com diferenças e matizes em cada região do planeta. Tais mudanças “têm consequências em todos os campos de atividade da vida social, impactando a cultura, a economia, a política, as ciências, a educação, o esporte, as artes e também, naturalmente, a religião” (DAp 35). A economia atual é contraditória: amplia benefícios de alguns poucos, às custas do aprofundamento das desigualdades entre as sociedades e no interior de uma mesma sociedade. Em suas características globais, a eficácia da técnica e do mercado criam uma nova visão da realidade, homogeneizando visões de mundo e comportamentos, com a super-valorização da subjetividade individual, o enfraquecimento dos vínculos comunitários, a avidez do mercado, a implantação de culturas artificiais (DAp 45). O econômico se sobrepõe e condiciona as outras dimensões da vida humana. O mercado tudo absolutiza. Os grandes moEncontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 7 Editorial nopólios internacionais privilegiam o lucro e estimulam a concorrência, tendo como conseqüência a concentração de recursos físicos e monetários, da informação e da técnica. Nesse sistema, “os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” (DAp 65). Paradoxalmente, sistemas econômicos são construídos também no âmbito da religiosidade que tem como modelo o advento do Reino. Nesse âmbito a economia encontra condições para criar a sua utopia, sua oferta de sentido para o homo oeconomicus. E tem a contrapartida. Quase como que em busca de sobrevivência, muitas tradições religiosas passaram a adotar a lógica da atual economia globalizada. Como os monopólios monetários quebram as fronteiras dos mercados nacionais, também para a religião não há fronteiras. Elas passaram a utilizar estratégias de marketing para se expandirem e sobreviverem na concorrência do mercado religioso. As idéias religiosas transformaram-se em produtos mercadológicos. Essas idéias migram e criam novas identidades, reconfigurando o mapa do sagrado e do religioso em âmbito mundial. Economia globalizada, cultura globalizada, religião globalizada. Tudo parece ligado como fios de uma rede. A questão é: como fica a vida do ser humano e do planeta nesse contexto? O que as igrejas, as religiões, a fé, têm a ver com isso? Isso tem tudo a ver com fé, com igreja, com religião, porque tem a ver com a vida dos filhos e filhas de Deus. Por isso é também necessária uma apurada análise, da relação entre economia e religião, economia e igreja, economia e fé, economia e vida, detectando os elementos de encontros e desencontros, de sintonia e de oposição entre uma realidade e outra. Situa-se aqui a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010. Ela quer mostrar que ter fé, ser membro de uma Igreja, ter uma religião, exige um posicionamento crítico frente ao atual sistema econômico. A CF 2010 é ecumênica: convoca as Igrejas para um compromisso: apontar caminhos para a superação dos problemas causados pelo atual sistema econômico, superando suas contradições pela promoção da justiça, da repartição igualitária dos bens, da equidade nas condições de sobrevivência das pessoas. Conclama os cristãos de todas as Igrejas a afirmarem a função social da fé, como 8 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Editorial criadora de sentido para a vida das pessoas, para além do sentido oferecido pelo sistema econômico. Todos precisam afirmar uma justa relação entre vida e economia. Os paradigmas econômicos não podem prescindir dos valores que sustentam a vida em sua totalidade. Assim cada cristão, cada crente que assumir a CFE 2010, sente-se chamado/a para promover uma economia diferente, marcada pela solidariedade, pela justiça e pelo respeito aos direitos humanos. A justa relação entre economia e vida propicia o serviço da caridade, a promoção da dignidade da pessoa, a solidariedade, o acesso à educação, ao trabalho, à terra, à habitação, enfim a todos os meios para a manutenção da vida. Tal é o que se propõe a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010, ao relacionar Economia e Vida. O objetivo é nobre: “Colaborar na promoção de uma economia a serviço da vida, fundamentada no ideal da cultura da paz, a partir do esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de pessoas de boa vontade, para que todos contribuam na construção do bem comum em vista de uma sociedade sem exclusão”. Em alguns ambientes, o ecumenismo está fortalecendo a ação conjunta das Igrejas em prol de uma sociedade melhor. Onde cresce o ecumenismo, há fortalecimento das organizações de resistência ao atual sistema econômico, propondo modos alternativos para a vida social e individual, como o Fórum Social Mundial e as propostas de economia solidária, entre outros. Será difícil uma ação que erradique os elementos negativos da economia globalizada como um todo. O seu núcleo é fortemente anti-humano. Mas a CFE, assumida com garra, permite às Igrejas influenciarem indivíduos, instituições, grupos, alimentando a utopia do Reino entre nós: uma outra sociedade, uma comunidade fraterna, sem fome, miséria, desigualdades e injustiças sociais. Para isso, as Igrejas precisam assumir juntas, ecumenicamente, o esforço por humanizar o sistema econômico, promovendo a dignidade humana, os direitos humanos, a espiritualidade do diálogo, a solidariedade. As Igrejas podem, juntas, projetar um horizonte de um mundo mais justo e solidário, de inclusão social. Para tanto é preciso afirmar ser o humano a razão do serviço que as Igrejas oferecem ao mundo e a Deus. Se o divino é fim da religião, o humano é o seu meio. A Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 9 Editorial experiência do Sagrado sacraliza o mundo. E o humano desprezado, marginalizado, excluído, negado em seus direitos e em sua dignidade, é a expressão maior da contradição de qualquer sistema, seja religioso, seja social, econômico, político e cultural. A revista Encontros Teológicos, fiel à opção feita desde seus inícios, de dedicar o primeiro número do ano ao tema da Campanha da Fraternidade, quer, na presente edição, contribuir para a reflexão sobre Economia e Vida, afirmando que quem crê em Deus “não pode servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro”. Esse é o intento dos artigos que a seguir apresentamos. O Editor 10 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: O artigo, esquemático, apresenta a CFE 2010 em suas linhas essenciais. Depois de expressar os Objetivos, tanto o geral como os específicos, explica o motivo por que foi escolhido o tema da Economia, relacionada com a Vida. A seguir, tendo brevemente situado o tema no contexto planetário, desenvolve sua “forte motivação bíblica”. Finalmente, depois de mostrar como o Senhor Jesus redimensiona a pessoa humana diante do capital, conclui com um “texto inspirador”: o encontro de Jesus com Zaqueu. Abstract: This article is a short version of the theme of the CFE-2010 examining its essential features and its objectives in general and some more detailed, and explaining the purpose for selecting the economic field in its relationship with life on earth. After considering this theme in a wider perspective the pulp of the article deals with the biblical realm. Finally, after focusing on Christ’s emphasis on the challenges of human beings as regards capital gains and its multiple uses concludes with an inspiring text about the friendly meeting between Christ and Zacchaeus. Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 11-16. Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica 1 Objetivos 1.1 Objetivo geral: Unir Igrejas Cristãs e pessoas de boa vontade na promoção de uma economia a serviço da vida, sem exclusões, construindo uma cultura de solidariedade e paz. 1.2 Objetivos específicos: – denunciar a perversidade de um modelo econômico que visa em primeiro lugar o lucro, aumenta a desigualdade e gera miséria, fome, morte; – educar para a prática de uma economia de solidariedade, de cuidado com a criação e valorização da vida como bem mais precioso; – conclamar as Igrejas, as religiões e toda a sociedade para a implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça para todos. Esses objetivos devem ser trabalhados em quatro níveis: – social – eclesial – comunitário – pessoal. 2 Por que escolhemos esse tema? Um olhar, mesmo rápido, sobre o mundo em que vivemos, nos mostra sinais preocupantes, em relação ao sistema econômico e cultural em que estamos metidos. Alguns são fatos bem comuns do cotidiano. À nossa volta estão coisas assim: Diz o anúncio de automóvel: É carro silencioso, mas fala muito sobre você. – Bill Gates anuncia que o objetivo de seu negócio é “tornar nossos produtos obsoletos, antes que os concorrentes o façam”. – Tantas vezes se diz: Não vale a pena consertar... é melhor jogar fora. – O anúncio de cartão de crédito promete: “As melhores coisas da vida passam por aqui.” O jornal narra o dia de uma coletora de lixo. Ela não tem o mínimo necessário, mas o filho quis e ela arranjou para ele um videogame e um celular. Mas vemos à nossa volta também outra vida e outro mundo Gente sofre nas filas dos hospitais... e o dinheiro que deveria ir para a saúde tem outros destinos. Crianças estão na escola, mas não aprendem a ler... Idoso aposentado sustenta a família desempregada. 12 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs Pense no que está por trás de tudo isso, condicionando os desejos da população e/ou criando situações desumanas. As necessidades básicas são atendidas? Como o desejo do supérfluo acaba se tornando mais dominante? Há pessoas enriquecendo a cada dia e pessoas pedindo esmola. Há corrupção e aplicação de dinheiro público para favorecer os que já têm demais e falta de recursos para saúde, educação, alimentação. Há pessoas egoístas e há pessoas generosas e solidárias. Que sistema é esse? Que política é essa? Enquanto isso, continuamos vendo gente vivendo na rua, migrantes que deixam sua terra com tristeza, enganados por falsas promessas ou expulsos pelo avanço de uma indústria que consegue tudo o que quer, serviços públicos funcionando mal enquanto o dinheiro dos impostos acaba servindo para proteger os mais poderosos. Multidões não têm o necessário. Mas uma minoria não consegue nem usufruir o que tem, por excesso de riqueza. E, no meio, gente de todas as classes está sendo pressionada a se avaliar pelos padrões do consumo e não por seu valor pessoal. Criticando com ironia esse sistema que faz das pessoas meras vitrines do que o mercado exibe, que faz cada um se autoafirmar pelos objetos que usa, Carlos Drummond de Andrade escreveu o poema “Eu, etiqueta”, que termina assim: Por me ostentar assim, tão orgulhoso de não ser eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome é coisa.Eu sou a coisa, coisamente. O poeta não queria gente se comportando como coisa, escrava do mercado. Deus também não quer. O ser humano tem um valor que precisa estar acima de tudo que é “coisa”, lucro, pressão de mercado. 3 O planeta, uma grande vítima da idolatria do mercado Deus criou a vida. O planeta tem o necessário para sustentá-la e para nos maravilhar com a variedade, a sabedoria e a beleza da Criação. As montanhas, rios, florestas bonitas que Deus nos deu, não podem ser sepultadas sob as conseqüências das sobras dos sistemas de produção que servem ao lucro. Nossa casa planetária precisa ser bem cuidada, é a única que temos e pertence a todos. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 13 Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica 4 Uma forte motivação bíblica A Bíblia é um livro sagrado muito ligado ao que acontece aqui neste mundo. Nela fica claro que a maneira fundamental de agradar a Deus é cuidar bem daquilo que ele criou com sabedoria e amor. É isso que Deus quer: gente feliz, em segurança e fraternidade, numa terra bem cuidada que pertence a todos. É por isso que a missão que o ser humano recebe ao ser criado é “cultivar e guardar” o jardim do Éden (Gn 2,15), símbolo da vida em harmonia, paz e justiça. Não é difícil imaginar como é impossível haver “paraíso” para todos, numa sociedade de tão profundas e injustas desigualdades econômicas. É por isso também que, na descrição do final feliz da Humanidade, o Apocalipse nos mostra uma cidade em que as portas não precisam ser fechadas (Ap 21,25) e onde a “árvore da vida” dá fruto todos os meses (Ap 22,2). É a segurança que vem de uma vida sem medo, sem injustiças, com fraternidade e partilha. Um grande fato, centro da memória do registro do Antigo Testamento, é a libertação da escravidão do Egito. Deus não quer seu povo – como não quer nenhum povo – explorado nos seus direitos e no seu trabalho. Mas não basta libertar, é preciso educar para a liberdade, a partilha, a igualdade. Os judeus até hoje dizem: “Foi preciso um dia para o povo sair do Egito, e quarenta anos para o Egito sair do povo.” Ou seja: o povo precisou um tempo maior para aprender como deveria viver, para não repetir o esquema de injustiça do qual havia sido libertado. As leis de Deus são parte importante dessa “educação” para a vida livre, fraterna e solidária. Nisso podemos destacar alguns exemplos: – Até hoje os judeus se destacam pela estrita observância do sábado. É dia de honrar a Deus de modo especial. Mas, que interessante! Deus se sente honrado se nesse dia ninguém pensar em lucro (não se trabalha), se o escravo e o trabalhador tiverem direito ao descanso, se até os animais puderem repousar. Esse ritmo de vida ligado ao número sete tem outros desdobramentos. No sétimo ano, o escravo é libertado e não pode ser jogado na sociedade sem recursos, para virar escravo de novo: deve ser dispensado com uma indenização, meio de recomeçar a viver com liberdade (Dt 15,12-15). De sete em sete anos se proclama o perdão das dívidas (Dt 15,1-2). A terra também descansa no ano sabático (Ex 23,10-11). Depois de 7x7 anos, vem o ano do jubileu, em que cada um retoma a propriedade que havia vendido em momento de aperto (Lv 25,8-13). 14 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – Na caminhada pelo deserto, a distribuição do maná é um símbolo importante da partilha que Deus deseja para seu povo (Ex 16,4-21). O maná, como toda a obra de Deus na natureza, é dado de graça para todos. Cada um tem o direito de recolher o que precisa, mas se pegar demais, o excesso apodrece. É um retrato simbólico da podridão que acompanha, ainda hoje, o acúmulo indevido de bens, que lesa o direito dos outros. – Os profetas clamam por justiça econômica: o órfão, o estrangeiro e a viúva (símbolo dos mais carentes) não podem ficar desamparados sem que isso configure uma ofensa a Deus. Eles cobram, dos governantes, a honestidade e o compromisso com os direitos dos mais fracos. Isaías, por exemplo, denuncia: Ai daqueles que promulgam leis injustas, que redigem medidas maliciosas, para tapear o fraco na justiça, roubar o direito de meu povo explorado, para fazer viúvas suas vítimas e roubar dos órfãos (Is 10,1-2) Deus não aceita nem culto, homenagem, sem a prática da justiça e da fraternidade que se reflete no uso dons bens materiais. O mesmo Isaías nos mostra Deus advertindo: Quando estendeis para mim as mãos, desvio meu olhar. Ainda que multipliqueis as orações, de forma alguma atenderei. É que vossas mãos estão sujas de sangue. Limpai-vos, limpai-vos, tirai da minha vista as injustiças que praticais. Parai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem, buscai o que é correto, defendei o direito do oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva. Depois podemos discutir, diz o Senhor (Is 1,15-18). Em outras palavras: sem a justiça da economia que não desampara os pequenos, Deus não quer conversa conosco. Muitos outros textos proféticos teriam indicações semelhantes, muitas leis do Pentateuco visam proteger trabalhadores e pobres, para que um filho ou filha de Deus não seja sacrificado no altar idolátrico da economia. 5 Jesus coloca o ser humano acima da pressão econômica Ele adverte: Não ajunteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, ajuntai para vós tesouros no céu... (Mt 6,19). Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 15 Campanha da Fraternidade 2010 Ecumênica Reconhecendo que nossas escolhas no uso do dinheiro revelam quem somos de fato, ele observa: Pois onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração (Mt 6,21). E se, em vez dos tesouros do céu, nosso coração estiver com os tesouros da terra, não sobra lugar para o Deus verdadeiro e instala-se a idolatria de servir a outro tipo de “deus”. Então Jesus faz a advertência que serve de lema para a nossa Campanha: Ninguém pode servir a dois senhores: ou vai odiar o primeiro e amar o outro ou vai aderir ao primeiro e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro! (Mt 6,24) E Jesus não ficou só no discurso. Toda a sua vida foi um testemunho de simplicidade no uso dos bens materiais, de solidariedade com os pobres, de distribuição gratuita dos dons de Deus, sem nenhuma ambição de bens ou glórias mundanas. 6 Um texto inspirador A equipe que trabalhou na Campanha pensou em destacar uma passagem bíblica para ancorar a reflexão a ser feita. O grupo escolheu o encontro de Jesus com Zaqueu (Lc 19,1-10): Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessou a cidade. Apareceu um homem chamado Zaqueu, chefe dos coletores de impostos, muito rico. “Zaqueu todo alegre acolheu Jesus em sua casa. Vendo isso, todos murmuravam, dizendo: “É na casa de um pecador que ele foi se hospedar”. Mas Zaqueu, adiantando-se, disse ao Senhor: “Pois bem, Senhor, eu reparto aos pobres a metade dos meus bens e, se prejudiquei alguém, restituo-lhe o quádruplo”. Então Jesus disse a seu respeito: Hoje veio a salvação a esta casa. Endereço do Autor: CONIC – Secretaria Executiva – SCS Quadra 01 Bloco E Edifício Ceará 713 70303-900 Brasília, DF Fone/fax: (61) 33214034 – 33218341 [email protected] 16 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: Após a apresentação do tema e do lema desta CFE 2010, o autor faz um questionamento: trata-se de “Economia e Vida” ou, antes, de “Vida e Economia”, isto é, essa a serviço daquela? Nesse sentido, lembra que “os bens são para a Vida, não a Vida para os bens”. A seguir, explica o conceito de “Justiça econômica” e lembra que a Bíblia se volta constante e decididamente para os pobres, assumindo em nome de Deus a sua defesa. Na tradição cristã, não encontramos apenas a caridade de indivíduos ou a generosa solidariedade de comunidades inteiras, mas também buscaram-se insistentemente soluções alternativas às estruturas econômicas injustas. Hoje, como no passado, as comunidades cristãs devem se interrogar sobre seu patrimônio, seu uso do dinheiro e seu compromisso com a transformação econômica e social do país. Concluindo, lembra que a “chave do sucesso” desta CFE está na organização das pessoas. Abstract: After a short presentation of the theme and the slogan of this CFE 2010 the author raises a question about the focus on “Economy and Life” or rather on “Life and Economy”, which is specifying which? In this sense, the material goods are destined for the benefit of life, and not the other way around. Then an explanation is given of the expression “economical justice” calling attention to the Bible which is constantly reminding us the needs of the poor since God himself is taking into his own hands their protection. In the Christian tradition are to be found not only the stress on charity for individuals and solidarity on behalf of entire communities, but also a search for alternative solutions to remedy unjust economic structures. Today as in the past Christian communities have to question the use of their patrimony, the spending of their monetary resources, and the duty to the social and economic transformation of the country. In conclusion a reminder is appended concerning the “key of success” of this CFE which is held in the hand of the people. “Economia e Vida”* Luiz Alberto Barbosa** * Texto inspirado e adaptado do Texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010. “Economia e Vida”. Ed. CNBB 2009. ISBN Nr: 978-85-60263-92-9. ** Reverendo Luiz Alberto Barbosa, Presbítero Anglicano, Advogado e Teólogo, com Mestrado em Ciências da Religião pela PUC Goiás e atual Secretário Geral do CONIC. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 17-24. “Economia e Vida” Pela terceira vez temos uma Campanha da Fraternidade Ecumênica. A Campanha deste ano de 2010 é promovida em conjunto pelas Igrejas que fazem parte do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC, como aconteceu em 2000 e 2005. Essas campanhas estabeleceram dois pilares fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e solidária: a Dignidade Humana e a Solidariedade. Essas experiências anteriores permitem às Igrejas o trabalho em conjunto, sendo que o que as move a agir é a graça, o amor de Deus e o testemunho de sua fé em Jesus Cristo, identificado no mais pobre e excluído. As palavras de Jesus Cristo – “Nisto todos reconhecerão que vocês são meus discípulos: no amor que tiverem uns para com os outros” (Jo 13,35) – ecoam hoje no coração dos seus seguidores, que agem em resposta à missão que lhes vem de Deus em Cristo: a de serem testemunhas da fraternidade, justiça e paz sobre a terra. Tema e Lema Tendo em vista o cumprimento dessa missão, a Comissão Organizadora da Campanha, em maio de 2007, ouvindo as bases das Igrejas, dos movimentos sociais e da sociedade em geral, teve a árdua tarefa de escolher o tema e o lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica. Como uma antecipação profética da crise global econômico/financeira que se abateu sobre o mundo particularmente em 2008, cujos reflexos ainda estamos vivendo e cujos efeitos com certeza se prolongarão ainda pelos anos vindouros, a comissão escolheu o tema: “Economia e Vida” e o lema “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24) A CFE tem como objetivo geral: “Colaborar na promoção de uma economia a serviço da vida, fundamentada no ideal da cultura da paz, a partir do esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de pessoas de boa vontade, para que todos contribuam na construção do bem comum em vista de uma sociedade sem exclusão”. É necessário conclamar a todos e todas para construir uma nova sociedade, e educar essa mesma sociedade, afirmando que um novo modelo econômico é possível, e denunciar as distorções da realidade econômica existente, para que a economia esteja a serviço da vida. A Campanha da Fraternidade Ecumênica deve propor alternativas econômicas e sistemas integrados de reformas estruturais, que permitam a toda a sociedade compartilhar e vivenciar o bem comum, com dignidade para todos. 18 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luiz Alberto Barbosa Economia e Vida, ou Vida e Economia? No texto-base desta campanha, a lógica inicial do tema, que é Economia e Vida, é invertida, partindo da premissa de que a vida está em primeiro lugar. Movido pela fé em Deus, “que ama a justiça e a equidade; a terra está cheia da fidelidade do Senhor” (Sl 33,5), o texto elaborado pelas Igrejas do CONIC não quer limitar-se a criticar sistemas econômicos. A idéia é que a campanha mobilize igrejas e sociedade a dar respostas concretas às necessidades básicas das pessoas e à salvaguarda da natureza, a partir da mudança de atitudes pessoais, comunitárias e sociais, fundamentadas em alternativas viáveis derivadas da visão de um mundo justo e solidário. O primeiro conceito que somos chamados a refletir nesta campanha é o de que o sistema econômico deve visar o Bem Comum. O Bem Comum abrange a existência dos bens necessários para o desenvolvimento da pessoa e a possibilidade real de todas as pessoas terem acesso a tais bens. Isso requer o empenho social e o desenvolvimento de grupos e das pessoas individualmente, implicando a existência de paz, estabilidade e a segurança de uma ordem justa. Ao participarem em conjunto desta Campanha, as Igrejas ganham força para pedir às diferentes instâncias da sociedade que também se unam pelo bem comum, na defesa da Vida, como valor mais importante do que os interesses do mercado. Esta campanha procura mostrar que o ideal de justiça econômica que sirva e sustente a vida só poderá tornar-se realidade pela ampliação do exercício da democracia e se forem estabelecidas também metas para se atingir a plena sustentabilidade. Para se atingir os objetivos da CFE 2010, são adotadas as seguintes estratégias: • Denunciar a perversidade de todo modelo econômico que vise em primeiro lugar o lucro, sem se importar com a desigualdade, miséria, fome e morte. A política e a economia estão desvinculadas da sua dimensão ética, moral e social. O neoliberalismo tornou-se um fator de enriquecimento ilícito, corrupto e imoral, e por isso o modelo econômico vigente deve ser denunciado. • Educar para a prática de uma economia de solidariedade, de cuidado com a criação e valorização da vida como o bem mais precioso. O desafio é a construção de um novo modelo econômico. De um modelo solidário, onde a riqueza seja disEncontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 19 “Economia e Vida” tribuída e da elaboração de políticas que visem uma mudança nas condições de vida da população. • Conclamar as Igrejas, as religiões e toda a sociedade para ações sociais e políticas que levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça para todas as pessoas. Os bens para a Vida e não a Vida para os bens Nós recebemos os bens para a vida e não a vida para a riqueza. Está escrito na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3 e Mt 4,4). Como seguidores de Jesus Cristo e participantes da vida social, somos chamados a construir uma justiça econômica maior diante da persistência da indigência, da pobreza e das grandes desigualdades sociais. Toda a vida econômica deveria ser orientada por princípios éticos. A medida ética fundamental para qualquer economia é um sistema que deveria criar reais condições de segurança e oportunidades de desenvolvimento da vida de todas as pessoas, desde os mais pobres e vulneráveis aos mais ricos. Em contraposição, a discussão dominante nas recorrentes crises do capitalismo se restringe a estas questões: “Que correções importa fazer para salvar o capitalismo e regular os mercados? Quanto posso ganhar com o menor investimento possível, no lapso de tempo mais curto e com mais chances de aumentar o meu poder de competição e de acumulação?” Não importa se isso leva à destruição da natureza e torna sistêmica a miséria de muitas famílias. A economia não é uma estrutura autônoma. Ela faz parte das prioridades políticas. As políticas econômicas e as instituições devem ser julgadas pela maneira de elas protegerem ou minarem a vida e a dignidade da pessoa humana, sustentarem ou não as famílias e servirem ao bem comum de toda a sociedade. A sociedade, incluindo a ação governamental, tem a obrigação moral de garantir oportunidades iguais, satisfazer as necessidades básicas das pessoas, e buscar a justiça na vida econômica. A atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. 20 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luiz Alberto Barbosa A organização da ordem social necessita que todos estejam em comunhão, com interdependência e auto-interessados, procurando viabilizar a satisfação das necessidades de todos, em vez de uma vida auto-suficiente. As relações realizadas no exercício da atividade produtiva seguem padrões de comportamento determinados por uma estrutura institucional que procura otimizar os resultados, levando em consideração a escassez de recursos. No entanto, não se pode esquecer, que o processo produtivo é uma construção social, e suas diretrizes se legitimam na medida em que atendem aos anseios de cada membro da sociedade. A isso dá-se o nome de Justiça Econômica. Justiça Econômica Ao falarmos de justiça econômica, também estamos falando da necessidade de todos nós cuidarmos da Criação. O planeta Terra não passa de um grão de areia na imensidão do universo. Mas é um grão de areia habitado, onde pulsa um coração vivo e vibrante. Nele, o ciclo da vida se reproduz há bilhões de anos. É o único planeta conhecido onde a vida viceja exuberante. A mulher e o homem são chamados a habitar essa grande casa, a manter viva a sinfonia da criação, a cuidar, respeitar e conviver com a variedade e pluralidade das formas de vida. O ser humano foi colocado neste planeta como em um jardim do qual deve cuidar. A vida em nosso planeta está ameaçada. Pessoas sem acesso à água, como direito humano e bem público, pessoas sem moradia, sem alimentação, sem terra para trabalhar. Uma cultura de consumismo, com um desenvolvimento desequilibrado. Tendo em vista isso, o Conselho Mundial de Igrejas tem chamado as Igrejas e a sociedade a encararem a realidade do mundo a partir da perspectiva da pessoa, particularmente das pessoas oprimidas e excluídas. Somos chamados a ser comunidades não-conformistas e transformadoras. O lema desta Campanha da Fraternidade Ecumênica: Mateus 6, 24 “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro”, nos remete novamente para a necessidade de termos um sistema econômico inclusivo, para todas as pessoas. O lema nos propõe uma escolha entre os valores do plano de Deus e a rendição diante do dinheiro, visto como valor absoluto dirigindo a vida. O problema não é o dinheiro em si, mas o uso que dele se faz. É útil como instrumento destinado ao serviço e intercâmbio de bens de Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 21 “Economia e Vida” uso, mas não pode ser o supremo comandante dos nossos atos, o critério absoluto das decisões dos indivíduos e dos governos. Deve ser usado para servir ao bem comum das pessoas, na partilha e na solidariedade. Nossa atitude diante do dinheiro mostra muito o tipo de pessoa que somos. Por isso Jesus diz: “Onde estiver o teu tesouro, ali também estará o teu coração” (Mt 6,21). Se o enriquecimento e a acumulação continuam a ser o sonho de nossa sociedade, os valores se invertem e colocamos em segundo plano a pessoa, sua vida, sua dignidade e seu bem-estar. A relação com Deus e todas as demais aspirações humanas acabam por serem rebaixadas a valores secundários. Vemos assim que a acumulação, o não repartir, tem profundas consequências espirituais. Defesa dos pobres Na história humana, marcada por ambições, explorações, injustiças e ganância, a Bíblia se volta decididamente para a defesa dos pobres: “Não falsificarás o direito do pobre no seu processo” (Ex 23,6). Contra a acumulação da riqueza, que deixa os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, Isaías, como outros profetas, dá seu grito de protesto: “Ai dos que juntam casa a casa, campo a campo, até ocuparem todo o lugar e serem os únicos a morar no meio da terra” (Is 5,8). O respeito ao direito do pobre, nos textos bíblicos, é uma exigência básica da fidelidade a Deus. Ao sermos Iluminados pelos ensinamentos bíblicos, devemos trabalhar as realidades do nosso tempo: direito ao trabalho, à saúde e educação públicas e de boa qualidade, saneamento urbano e outras estruturas que hoje podem promover o bem-estar de todos. As Igrejas do CONIC, ao conclamarem as outras igrejas cristãs, outras religiões e as pessoas de boa vontade em geral, para assumirem esta campanha da fraternidade “Economia e Vida”, querem lembrar que a solidariedade faz da humanidade uma família onde todos se protegem mutuamente. Assim, problemas que pareciam insolúveis podem ter soluções surpreendentes. A partilha faz milagres. É o que Jesus nos sugere no texto que narra como cinco mil homens mais as mulheres e crianças foram alimentados com cinco pães e dois peixes (Mc 6,30-44). Os milagres de Jesus têm uma função pedagógica: eles nos convidam a fazer como ele fez, mesmo através de meios bem naturais. Se soubermos partilhar, certamente vai haver pão, casa, cura, saúde, educação e parti- 22 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luiz Alberto Barbosa cipação para muito mais gente. A pregação de Jesus sobre o juízo final mostra bem que Deus quer ser amado e servido nos pobres: “Tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; eu era estrangeiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão, e viestes a mim...” (Mt 25,31-40). Graças a Deus, ao longo desta campanha, vamos nos deparar com milhares e milhares de experiências de solidariedade por todo este país. A parceria entre a sociedade civil e o governo tem sido de fundamental importância para o exercício de uma solidariedade transformadora. Mas existe muito mais a ser feito, conceitos e projetos a serem mudados, com o Estado assumindo de fato o seu papel fundamental de solução dos problemas sociais. A ação do Estado e do direito não pode excluir os mais fracos, é importante que os governantes ouçam os diferentes setores da sociedade, não só aqueles que costumeiramente têm poder de pressão. 2010 é um ano muito importante para o Brasil, um ano eleitoral. Como Sociedade e como Igrejas, devemos estar vigilantes, defendendo a vida plena para todos os brasileiros e brasileiras, encontrando modelos alternativos aos que até agora estão vigentes no mercado. Na tradição cristã, não encontramos apenas a caridade de indivíduos ou a generosa solidariedade de comunidades inteiras. Também buscaram-se insistentemente soluções alternativas às estruturas econômicas injustas: criação de hospitais, construção de escolas, organização de economia comunitária, organização de sindicatos e partidos. Hoje, como no passado, as comunidades cristãs devem se interrogar sobre seu patrimônio, seu uso do dinheiro e seu compromisso com a transformação econômica e social do país. Conclusão A Campanha da Fraternidade Ecumênica conclama, portanto, Igrejas, religiões e toda a sociedade para ações sociais e políticas que levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça para todas as pessoas. Para alcançar essa meta, a Campanha da Fraternidade ecumênica destaca a importância da ação coletiva para a transformação social. O diálogo permanente e a articulação das forças sociais, a colaboração entre Igrejas e sociedade, a formação de militantes, uma política sindical que lute pelos direitos não somente dos Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 23 “Economia e Vida” trabalhadores empregados, mas dos pobres sem trabalho, sem moradia, sem garantias de sustento para si e suas famílias. A cooperação é urgente em uma sociedade que sofre pelo individualismo e a desarticulação. As pessoas, não isoladamente mas organizadas, nas Igrejas, nos movimentos sociais e na sociedade em geral, são a chave para o sucesso desta campanha, para mudar o Brasil e a vida de cada um de nós e principalmente das futuras gerações. Endereço do Autor: CONIC – Secretaria Executiva – SCS Quadra 01 Bloco E Edifício Ceará 713 70303-900 Brasília, DF Fone/fax: (61) 33214034 – 33218341 [email protected] 24 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: O autor começa seu artigo convidando a “conhecer um pouco mais” sobre o Ecumenismo. Já é a terceira Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE), e pouco se fala a nível paroquial sobre o tema. A seguir, descreve os “primeiros passos rumo à realização de uma ação ecumênica conjunta”. Recorda, então, a primeira CFE, no ano 2000, “primeira realização do sonho”. Faz memória também da CFE 2005: “uma ação em busca da solidariedade e da paz”. Voltando-se agora para esta CFE 2010, apresenta-a como uma Campanha “voltada aos desafios e perspectivas em prol da Vida”. Nesse sentido, chama a atenção para “a economia brasileira em tempos de globalização” e, comentando a “queda das ideologias”, acena para a “possibilidade de mudanças”. Na conclusão, autor insiste na espiritualidade de comunhão, e na própria unidade entre nós, para que esta CFE 2020 atinja seus objetivos. Abstract: The author begins by raising the readers’ interest to get acquainted with Ecumenism. In fact it is the third approach to Ecumenism in the last two Campanha de Fraternidade (CFE), although not many publications on this subject have circulated on a parochial level. Just to remember in the year 2000 appeared an article on “the first conversion of a dream”. Later on in 2005 mention was made in the CFE of a “quest for solidarity and peace”. In this year of 2010 a new approach comes to the fore in terms of “challenges and perspectives for the benefit of life on earth”. In this sense, attention is given to “the Brazilian economy opening up to a global dimension”. Implied in this perspective pertinent comments are added on the “erosion of ideologies” hinting at a “possibility of more changes”. In the conclusion the author offers a new insight on a spirituality of communion and unity among social groups so that the CFE of 2020 may achieve the goals already envisaged. Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida Antônio Lopes Ribeiro* * O autor é Graduado em Pedagogia, Teologia, pós-graduado em Diálogo Ecumênico e Interreligioso pelo ITESC/SC e mestrando em Ciências da Religião, na PUC/GO. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 25-40. Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida Introdução Tornou-se comum no meio ecumênico ouvir-se esta máxima: “O que nos une, é maior do que o que nos separa”. Para que haja diálogo entre cristãos católicos e protestantes, é preciso valorizar aquilo que se tem em comum, deixando de lado as diferenças e os rancores. Se pararmos no nível das diferenças e não procurarmos ir além, jamais alcançaremos o caminho que leva para o diálogo e à descoberta da fé comum. Embora seja um desejo do próprio Cristo, expresso em sua oração sacerdotal, “para que todos sejam um” (Jo 17,21), infelizmente muitos não conseguem, não procuram ou não querem romper as barreiras que dividem cristãos católicos e protestantes. Dom Eurico dos Santos Veloso (2007), Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora, MG, sabiamente nos ensina que “o ecumenismo não é uma convivência social. É uma afirmação nos fundamentos da verdadeira Igreja, independente de denominações adjetivas, que se procuram superar no afã de realizar o desejo ardente de Cristo ‘que todos sejam um’”. O ecumenismo, diz Dom Eurico, deve ser a “expressão dessa unidade. Superando as divisões, frutos do pecado, deixemo-nos impregnar do Espírito Santo e, unidos pela força redentora do Amor, transformemos o mundo, antecipemos e vivamos o glorioso dia do Senhor”. 1 Conhecendo um pouco sobre o ecumenismo Atualmente, apenas uma pequena minoria católica sabe o que seja ecumenismo. Estamos já na terceira CFE e pouco se fala a nível paroquial sobre esse movimento. Essa ignorância lamentavelmente se deve ao pouco interesse por parte de nossos párocos, e até mesmo de bispos, por esse movimento. Embora haja diversos documentos do Magistério da Igreja que conclamam os católicos em geral ao diálogo ecumênico com as outras Igrejas Cristãs, pouco se faz no sentido não só de sua divulgação, como também de sua prática. Etimologicamente, o termo ecumênico tem sua raiz no grego “oikouménê”, significando “‘o mundo habitado’ ou seja, o mundo ‘civilizado’, oposto ao ‘bárbaro’” (VERCRUYSSE, 1998, p. 13). Porém, esse termo sofreu evolução, assumindo hodiernamente um sentido bem diferente do etimológico. Esse adjetivo atualmente é usado em dois sentidos diferentes. No sentido tradicional da linguagem eclesiástica, é empregado em expressões tais como: “patriarca ecumênico” ou 26 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro “concílio ecumênico”. Nesse sentido, a palavra ecumênico significa “a universalidade e a catolicidade externa da Igreja” (ibid, p. 12). No sentido novo, que se tornou comum, a palavra ganha outro significado. Durante a Primeira Guerra Mundial, o Arcebispo luterano Natahn Söberblom (apud NAVARRO, 1995, p. 11), sugeriu “a criação de uma ‘reunião internacional de Igrejas’ com a designação de ‘ecumênica’, para procurar resolver o problema da paz”. Propôs também a criação de uma espécie de Conselho Ecumênico das Igrejas, cuja idéia só veio a se concretizar bem mais tarde, em 1948, com a criação do Conselho Mundial de Igrejas. Somente em 1937 o termo ‘ecumênico’ designa já com toda clareza as relações amistosas entre as diferentes Igrejas com o expresso desejo de realizar a Una Sancta e de estreitar a comunhão entre todos os fiéis em Jesus Cristo (NAVARRO, 1995, p. 12). Ainda em Navarro, encontramos, dentre tantas outras, a que a nosso ver é a melhor definição para o termo: O ecumenismo é uma atitude da mente e do coração que nos impele a olhar nossos irmãos cristãos separados com respeito, compreensão e esperança. Com respeito, porque os reconhecemos como irmãos em Cristo e os consideramos antes amigos do que oponentes; com compreensão, porque buscamos as verdades divinas que compartilhamos, embora reconheçamos honestamente as diferenças na fé que há entre nós; com esperança, que nos fará crescer juntos num conhecimento e num amor mais perfeitos de Deus e de Cristo (ibid, p. 13). Antes do Concílio Vaticano II, a palavra ecumenismo era algo praticamente impossível de constar no vocabulário católico. Até então a Igreja mostrava-se muito reticente em seu uso. Vejamos uma definição dada pela Enciclopédia Católica, em 1950 (apud VERCRUYSSE, 1998, p. 13): “Em sentido próprio, ecumenismo é a teoria mais recente inventada pelos movimentos interconfessionais, especialmente protestantes, para chegar à união das Igrejas cristãs... Para os católicos, estão fechados os caminhos do ecumenismo, no sentido original do termo...”. Isso tinha um motivo: a forte rejeição mútua mantida entre protestantes e católicos, que se condenavam e impediam qualquer diálogo, principalmente devido às diferenças doutrinárias. Embora nos bastidores pré-conciliares existissem teólogos do naipe de Karl Rahner e Yves Congar, que não só estudavam a respeito do ecumenismo, mas já o praticavam, porém, de fato e oficialmente, somente com o Concílio Vaticano II abriram-se em definitivo as portas da Igreja Católica para o ecumenismo. Mesmo assim, os avanços no sentido do diálogo têm sido muito lentos de ambas as Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 27 Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida partes, inclusive com a persistência de vários grupos cristãos contrários à prática ecumênica, o que tem dificultado muito. A evolução do movimento ecumênico, cujos princípios são a unidade e o diálogo, se deu muito mais a nível institucional do que a nível interpessoal. O ideal ecumênico parece não atingir o fiel em si, tamanha a resistência em aceitar o ecumenismo. Poucos sabem que “participar do movimento ecumênico não significa uma falta de identificação confessional. Nenhuma Igreja precisa renunciar a suas convicções eclesiológicas para trabalhar em prol da unidade cristã” (SÁNCHEZ, 1989, p. 18). Porém, apesar de todo o esforço das instituições em busca do diálogo, inclusive com a realização da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, parece não se estar dando grandes passos. Os ideais do Vaticano II, cujas setas indicam o caminho da unidade dos cristãos, não ganharam força, e nem mesmo João Paulo II, um grande defensor da causa ecumênica, cujo pensamento está exposto de forma bastante evidente na sua Carta Encíclica Ut Unum Sint, de 25 de maio de 1995, e que passou toda sua vida lutando em prol da unidade dos cristãos, conseguiu fazer com que os católicos abraçassem de vez o ecumenismo. Mesmo assim, tanto a Igreja Católica quanto as Igrejas que compõem o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - CONIC - estão sempre se esforçando e se lançando ao diálogo ecumênico, o que não deixa de ser um passo muito importante, pois a expectativa é de que, embora lentamente, o diálogo venha a acontecer em larga escala no seio das instituições cristãs. 2 Primeiros passos rumo à realização de uma ação ecumênica conjunta O primeiro aceno na direção de uma ação ecumênica concreta foi dado pelo Papa Leão XIII, quando da promulgação da Encíclica Provida Mater, estabelecendo uma novena, “entre as celebrações da Ascensão e de Pentecostes, pela reconciliação dos cristãos” (BIZON, 2004, p. 115). Esse mesmo papa deu um caráter perpétuo a essa novena, ao decretar, na Encíclica Divinum illud múnus, de 1897, que a novena deveria ser feita sempre pelos católicos. Posteriormente, dois integrantes da Igreja Episcopal Anglicana, Paul James Wattson e Spencer Jones, propuseram no ano de 1908, em Graumorr, estado de Nova York, uma Oitava de Oração pela Unidade dos Cristãos (cf. p. 115). No ano de 1935, o Pe. Paul Couturier, promoveu em Lion, na França, “uma Semana de Oração pela unidade cristã de forma a ultrapassar a abrangência das iniciativas 28 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro anteriores, fundamentada na fórmula ‘que chegue a unidade visível do Reino de Deus tal como Cristo a quer, pelos meios que Ele quiser!’” (ibid). Por ocasião dessa semana de Oração, Yves Congar fez um discurso que seria o embrião da obra “Chrétiens desunis”, de sua autoria, a qual denominou de teologia de ecumenismo católico. Em 1966, iniciase um trabalho conjunto entre o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e o Pontifício Conselho pela Unidade dos Cristãos (PCPUC), no sentido da elaboração de um texto que culminaria na Semana da Oração pela unidade dos cristãos, em 1968, a qual se realiza entre a celebração da cátedra de Pedro e a conversão de São Paulo (ibid), no mês de janeiro, que, por conveniência, devido a se tratar de um período de férias, no Brasil acontece entre as celebrações da Ascensão e de Pentecostes. O material elaborado conjuntamente pela PCPUC e CM, apresentou pela primeira vez, em 1968, o tema “Para o louvor da sua glória” (Ef 1,14). A realização de um trabalho conjunto de maior expressão, na área do ecumenismo, só viria a acontecer na virada do milênio, com a realização da primeira Campanha da Fraternidade Ecumênica, colocando em prática o sonho de um trabalho conjunto, no sentido da promoção humana, do teólogo luterano Oscar Cullmann (1902-1999), que antes do Concílio Vaticano II havia proposto uma “coleta ecumênica mútua: os católicos romanos fariam uma coleta para os protestantes e vice-versa” (SINNER, 2007, p. 69). Cullmann, que em sua teologia propunha a “unidade pela diversidade”, acreditava que isso ajudaria a vencer o clima de desconfiança mútua entre católicos e protestantes e também que sua proposta fosse “abraçada por irmãos e irmãs dos dois lados, mesmo sabendo que poderia levar muito tempo” (ibid). Esse sonho tornou-se realidade, com a realização da CFE. Desde 1964, a Igreja Católica vem realizando a Campanha da Fraternidade, sempre por ocasião da Quaresma. É o tempo que a Igreja reúne seus fiéis para uma vivência mais profunda da vocação cristã e da prática da caridade. Atendendo aos apelos da Igreja para a promoção do diálogo com as igrejas cristãs, a CNBB quis dar uma dimensão ecumênica à Campanha da Fraternidade, por ocasião da celebração do Grande Jubileu da Encarnação, confiando ao CONIC a organização da CF de 2000, a primeira ecumênica, com o envolvimento de várias Igrejas no planejamento e na execução de tão importante movimento. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 29 Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida 3 Campanha da Fraternidade ecumênica 2000: o sonho se realiza A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2000 tornou-se um marco histórico único, concretizando uma idéia que já vinha sendo fomentada há mais tempo, significando um avanço extraordinário do ecumenismo, no século que findava. Era também o símbolo do compromisso de marcar o futuro (cf. BRAKEMEIER, 1999, p. 163), e o principal: sinal de que “a condenação mútua das Igrejas cedera espaço para o espírito da fraternidade e a disposição de cooperar” (ibid). Com dois mil anos de cristianismo, tornou-se simbólica essa campanha ecumênica, no sentido da união entre cristãos católicos e protestantes. De fato, não se poderia celebrar dois milênios da vinda de Cristo, sem algo concreto que significasse a unidade dos cristãos. O tema escolhido para a primeira Campanha da Fraternidade Ecumênica em 2000 foi “Dignidade humana e paz”, tendo como lema um “Novo milênio sem exclusões”, cujo compromisso era resgatar a dignidade humana “ferida nos porões da vida, à luz do sol e nos bastidores da política” (CONIC 2009, p. 16). Seu objetivo era “assumir a preocupação e o esforço de superar a violência e promover a dignidade humana e a paz, no centro da vida e do testemunho das Igrejas, organismos ecumênicos, redes, organizações não-governamentais, movimentos sociais populares, de modo a construir uma cultura de paz” (BINGEMER, 2003, p. 343). Vale lembrar que o tema escolhido para aquele ano encontrava eco em várias religiões e movimentos humanistas, estando presente também em correntes filosóficas tais como: Estoicismo e Renascença, Humanismo da Reforma e do Iluminismo, do Existencialismo, dentre outras (cf. BRAKEMEIER, 1999, p. 165). Portanto, não era um tema novo, mas que, embora sendo antigo, continuava atual e continua ainda hoje, principalmente na agenda de organizações que lutam pela paz, justiça e cidadania, tendo como bandeira e ponto de referência máxima a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948. O tema dignidade humana é de abrangência universa,l e como tal não “admite atributos nacionais, raciais ou religiosos” (ibid, p. 167), o que leva consequentemente aqueles que se lançam a essa causa, a buscarem aliança entre si, não importando se sejam cristãos ou não. Ao escolher esse tema, que aparentemente não implica conotações religiosas, o CONIC tinha em vista sua similaridade com o Evangelho, principalmente 30 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro naquilo que se refere à criação do homem à imagem e semelhança de Deus, o que por si só o reveste de toda dignidade. Sem dúvida, foi um grande desafio aquela primeira campanha ecumênica, principalmente no sentido de se abordar um tema tão importante como “dignidade humana e paz”. Quando se fala em paz, lembrase sempre da guerra, como uma solução inevitável para alcançá-la. No entanto, onde houver a prática de qualquer ato de violência, mesmo que seja o menor possível, ali deixa de haver a paz. A pós-modernidade é marcada por um corolário de transformações que afetaram sobremaneira toda a humanidade. Embora pessoas no mundo inteiro tomem cada vez mais consciência sobre o respeito que se deve ter à dignidade da pessoa humana, por outro lado, nunca a humanidade esteve tão ameaçada, frente a tamanho poder para destruir a vida sobre o planeta. Em alguma parte do mundo, basta alguém apertar um pequeno botão e destruirá, senão o mundo inteiro, pelo menos grande parte dele. É a vida que está por um “click”. Paz parece ser algo praticamente inalcançável, apenas um sonho cada vez mais distante, pois não se pode ter paz enquanto alguém morre, principalmente de fome, em alguma parte do mundo. É dever de todos nós, cristãos, lutarmos pela paz, lembrando-nos sempre de que Cristo é a verdadeira paz. Quanto ao lema “novo milênio sem exclusões”, vale lembrar aqui a analogia do corpo: se uma unha encravada no dedo do pé dói, o corpo inteiro sofre. Assim também é no que se refere à dignidade humana: se alguém, em qualquer parte do mundo, é excluído, tal exclusão afeta a dignidade de toda a humanidade, pois “dignidade” é um valor universal. Vivemos numa sociedade de consumo, cujo desejo irrefreável de ter sempre mais, por si só já leva à exclusão. 4 CFE 2005: uma ação em busca da solidariedade e da paz A segunda Campanha da Fraternidade Ecumênica, 2005, teve como tema “solidariedade e paz” e como lema “Felizes os que promovem a paz”. A iniciativa na organização e realização da CFE coube novamente ao CONIC, auxiliado por todas as Igrejas que dele faziam parte, inclusive a Católica. Os principais aspectos abordados na CFE daquele ano foram a violência, a solidariedade e a paz. Mais uma vez a Igreja Católica, e as Igrejas do CONIC uniram suas forças para, de forma solidária e ecumênica, conscientizarem todos os cristãos e não cristãos a lutarem juntos pela superação da violência e construção da paz. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 31 Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida Por certo, só se alcança a paz por meio da solidariedade. O substantivo “solidariedade”, de acordo com o Dicionário Houaiss (HOUAISS, 2001, p. 138), passou a fazer parte da língua portuguesa por volta do ano 1840. Claramente implícita no universo bíblico, o significado dessa palavra encontra referências em Maria, quando de sua visita à prima Isabel (cf. Lc 1,39-47); na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37); no episódio da cura de um paralítico que chegou até Jesus, com a ajuda de amigos que o desceram pelo teto da casa em que se encontrava (cf. Mc 2,1-12); na descrição do Apóstolo Paulo, sobre o “corpo de Cristo” (cf. Rm 12). Esses são excelentes exemplos de solidariedade. Porém, o referencial máximo de solidariedade, encontramos no gesto eterno de Jesus de Nazaré, ao solidarizar-se com a humanidade até “à morte na cruz” (Fl 2,8). De acordo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (nº 193), a solidariedade “se apresenta sob dois aspectos complementares: o de princípio social e o de virtude moral”. Enquanto princípio social, a solidariedade deve ser vista como “princípio social ordenador das instituições, em base ao qual devem ser superadas as ‘estruturas de pecado’, que dominam as relações entre as pessoas e os povos; devem ser superadas e transformadas em estruturas de solidariedade, mediante a criação ou a oportuna modificação de leis, regras do mercado, ordenamentos” (ibid). Enquanto virtude moral, a solidariedade não se constitui num “sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (ibid). Ao colocar-se na dimensão da justiça, a solidariedade eleva-se ao grau de virtude social fundamental, pois ela se orienta ao bem comum, em prol do bem do próximo, o que num sentido evangélico significa “’perder-se’ em benefício do próximo em vez de o explorar, e ‘servi-lo’, em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt 10,40-42; 20,25; Mc 10,42-45; Lc 22, 25-27)” (ibid). 5 CFE 2010: desafios e perspectivas em prol da vida Para 2010, a terceira edição da CFE traz como tema “Economia e Vida” e o lema “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24), tendo como objetivo geral “Colaborar na promoção de uma economia a serviço da vida, fundamentada no ideal da cultura da paz, a partir do 32 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de pessoas de boa vontade, para que todos contribuam na construção do bem comum em vista de uma sociedade sem exclusão” (CONIC, 2009, p. 9). Com apoio nas palavras de Jesus: “Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde as traças e os vermes arruínam tudo, onde os ladrões arrombam as paredes para roubar. Mas acumulai para vós tesouros no céu” (Mt 6,19-20ª), o CONIC conclama todos para a construção de uma nova sociedade, educando-a na crença sobre a possibilidade de um novo modelo econômico, bem como denunciando “as distorções da realidade econômica existente, para que a economia esteja a serviço da vida” (ibid). No intuito de atingir seus objetivos, a CFE 2010 adota como metodologia as seguintes estratégias: denunciar a perversidade do modelo econômico atual, educar para a prática de uma economia solidária que valorize a vida, e conclamar não só as Igrejas Cristãs e outras religiões, mas também toda a sociedade para desenvolver ações sociais e políticas “que levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça para todas as pessoas” (p. 18). Tanto os objetivos, quanto as estratégias, serão trabalhados durante a realização da Campanha, em quatro níveis, a saber: social, eclesial, comunitário e pessoal. Desde a primeira CFE, o CONIC vem trabalhando com temas significativos voltados à “valorização da pessoa, o cuidado da natureza e os grandes direitos dos seres humanos, compreendidos como filhos preciosos e amados do Criador” (p. 16). Para o ano de 2010, apresenta um tema que com certeza causará muita polêmica pois mexe com o coração (e com o bolso!) da sociedade pós-moderna, profundamente enraizada num modelo econômico injusto e opressor, responsável pela exploração dos mais fracos, em prol dos mais fortes, que acumulam cada vez mais, sem se preocupar com a dignidade da pessoa e o devido respeito aos direitos humanos. Longe de ser uma economia na forma idealizada pelo pensamento social cristão, “como atividade realizada por pessoas, devendo orientar-se ao serviço das pessoas, como o centro, protagonistas e razão de ser da vida econômica e social” (p. 17), orientada ao Bem Comum, o modelo atual é perverso, visando em primeiro lugar sempre o lucro, sendo responsável pela miséria, fome e morte que assola o país, principalmente no norte e nordeste brasileiro. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 33 Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida 5.1 A economia brasileira em tempos de globalização Vivemos numa era de incertezas, num mundo globalizado, em constantes transformações, dominado pelos meios de comunicação, pelo progresso da técnica, pelo cientificismo. Distâncias desaparecem, fronteiras são abertas e as culturas se mesclam e qualquer problema já não é mais tratado a nível local, mas a nível global. Um exemplo recente disso foi a crise econômica dos Estados Unidos, que se refletiu nas economias do mundo inteiro. A nossa economia, segundo a autoridade máxima do Executivo e vários cientistas políticos, saiu “fortalecida” dessa crise. Porém, se assim o foi, resta-nos perguntar: a que custo? Dizer que a economia brasileira se sustenta perante as crises mundiais é uma forma de ludibriar a população, afirmando que tudo vai bem. Paga-se um custo muito alto na tentativa de que o Brasil passe de um país emergente de terceiro mundo, para um país de primeiro mundo, pois as riquezas deste País se concentram cada vez mais nas mãos de poucos, fazendo com que a pobreza aumente mais e mais, e o pior: nunca o Brasil esteve num estado de anomia tão grande como agora: o sistema de saúde está falido; o setor político-administrativo nunca esteve tão desacreditado como agora, devido à corrupção, desde o mais baixo ao mais alto escalão dos três poderes da República; a violência urbana cresce assustadoramente e pessoas são assaltadas, violentadas e mortas a cada instante, sem contar com a prática do aborto, que parece ter-se legalmente sido institucionalizada. O homem tornou-se predador do próprio homem. Matam-se por motivos fúteis, banais, sem qualquer explicação. A vida tornou-se algo obsoleto, sem qualquer valor. Tira-se a vida do ser humano como se estivessem tirando a vida de um animal qualquer; o narcotráfico, que se infiltra escandalosamente no Brasil, principalmente originário da Colômbia, é o principal responsável pela violência que, além dos grandes centros urbanos, já atinge pequenas cidades antes tidas como lugares tranqüilos e de paz. A falta de segurança se deve principalmente à não aplicabilidade das verbas públicas no combate à violência. O baixo salário pago aos policiais faz com que muitos deles, embora não se justifique, sejam atraídos pelo dinheiro fácil oferecido pelos narcotraficantes, preferindo vender-se a sobreviver com um salário de fome. Pode-se considerar como causa desse estado de anomia, a perda de valores éticos e morais, antes ensinados pela religião, mas que agora são trocados por valores impostos por uma sociedade de consumo 34 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro que desumaniza e massifica os indivíduos, fazendo com que eles sejam valorizados por aquilo que têm e não pelo que poderiam vir a ser. Como dizer que a economia do Brasil vai bem, se estudos científicos recentes apontam para um futuro catastrófico e, se algo não for feito no sentido de se preservar o meio ambiente, a raça humana poderá ser varrida do globo terrestre? Importantes temas tais como: aquecimento global e efeito-estufa, destruição da camada de ozônio, poluição do meio ambiente, dentre outros, fazem parte da pauta de debates e das mesas de negociações de países e organismos internacionais que se preocupam com a preservação da vida no Planeta. Ora, o Brasil, o que tem feito nesse sentido? O mundo inteiro se volta para a região Amazônica, e o que o Brasil tem feito de concreto para combater o crescente desmatamento dessa floresta considerada o coração do mundo? É com tristeza que vemos o nosso Presidente da República declarar na imprensa que “mesmo se o Brasil fosse careca, haveria alguém em algum lugar cortando alguma coisa”, quando entrevistado sobre a questão de desmatamento zero, meta essa a ser atingida segundo ele somente em 2020 e não em 2015 como querem os ambientalistas do mundo inteiro. Se a economia do Brasil vai bem, o que dizer de milhares e milhares de pessoas desempregadas? Da prostituição, principalmente a infantil, que aumenta mais e mais, quando adultos e crianças se prostituem para sustentar uma família inteira? O que dizer do trabalho escravo em que pessoas saem de seus lares em busca de uma vida melhor para suas famílias e caem nas mãos de fazendeiros inescrupulosos, que os exploram e os submetem a uma vida de servidão subumana? E o que dizer do trabalho infantil, em que crianças deixam a escola, para ganhar o pão para si e para a família, trabalhando também em condições subumanas? Com relação à pobreza no País, até mesmo as ações que o Governo tem praticado, embora sejam benéficas , não se constituem em ações de solidariedade, pois a intenção não é outra senão a do voto de cabresto. Ao oferecer cestas básicas para aliviar a fome da população deste país, por detrás disso, espera-se, como feedback, sucesso nas urnas eleitorais, em que aquele que recebe a cesta básica se torna um eleitor cativo daquele que a oferece. O medo de perder o sustento sem o qual não se pode sobreviver, faz com que o eleitor que vive da cesta básica vote pela sua continuidade. Não, a economia do Brasil não vai bem. A mesma não tem-se voltado aos reais problemas que atingem nossa sociedade, principalmente Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 35 Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida no que se refere ao desemprego, aos diversos tipos de violência, à fome, à saúde e ao meio ambiente. É preciso mudar esse quadro. Por isso, as propostas da Campanha da Fraternidade para 2010 vêm em boa hora e de forma ecumênica. Mas, pergunta-se: é possível mudar a economia brasileira? 5.2 A queda das ideologias: possibilidade de mudanças Sabe-se que as grandes ideologias que dominaram o mundo no segundo milênio, desde a idade média, principalmente nas sociedades do Ocidente, jamais estiveram a serviço da vida, do Bem Comum, da dignidade da pessoa humana. A começar pelo feudalismo, com características político-religiosas, que se tornou “um brutal instrumento para a usurpação de direitos e a servidão humana” (VIEIRA, 2004, p. 43), até o capitalismo selvagem que domina o mundo de hoje, jamais estiveram a serviço do bem-estar comum e da dignidade do ser humano. Vivemos uma era de queda de grandes ideologias: “a ideologia do progresso ilimitado, a ideologia da revolução, a onipotência da ciência e da técnica” (LEXICON, 2003, p. 363), ou caíram ou estão passando por um processo de declínio irreversível. O século XX foi marcado por uma bipolaridade entre duas variantes ideológicas, dominadas de um lado pelo sistema comunista, o “socialismo-marxista” e, por outro lado, pelo sistema capitalista ou “capitalismo-liberal”. De acordo com o grande economista Ives Gandra (2004, p. 92), a primeira ideologia pretendia “ manter em mãos do Estado o controle de todos os meios de produção para que não houvesse desperdícios e a economia fluísse nos moldes das necessidades da sociedade”. A outra, pretendia que o Estado “fosse um mero regulador do mercado e que a economia fluísse exclusivamente de acordo com os interesses privados, sendo o livre comércio, nacional e internacional, a consagração de um regime de liberdade de agir ou escolher” (ibid, p. 93). A primeira veio abaixo quando da queda do muro de Berlim, com a União Soviética abrindo suas portas para a entrada do capital estrangeiro; e o que restou, foi uma nova configuração ideológica neocomunista, representada pela China. A segunda sofreu uma evolução: com o advento do neoliberalismo, o Estado acabou perdendo sua função reguladora do mercado. Portanto, atualmente observa-se a seguinte bipolaridade: A ideologia neoliberal, “que celebra a globalização da economia, a integração de países em grandes blocos econômicos e a formação de Estados-regiões” 36 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro (VIEIRA, 2004, p. 52) e, contracenando com essa ideologia, o neocomunismo chinês, “em nova configuração ideológica, abrindo horizontes de parceria com o capitalismo, ingressando na OMC e investindo pesado no desenvolvimento científico e tecnológico [...] com produção, moeda forte, tecnologia e um avanço científico espacial” (ibid). Essas ideologias, como vimos, embora sofram oposição em seus princípios, na prática se unem a fim de se fortalecerem e se constituírem numa grande economia global. Portanto, ao se falar em mudanças na economia brasileira, não se pode deixar de lado o fato de que vivemos num mundo globalizado em que não existem mais fronteiras para o comércio e que a economia Brasileira está atrelada à economia mundial. Qualquer alteração que possa querer realizar na economia local, tem que ser pensada a nível global. Ao se trabalhar a CFE 2010, deve-se considerar que vivemos num mundo pós-moderno, globalizado, e não se tomam mais decisões pequenas, a nível local, mas tomam-se grandes decisões, a nível mundial. De fato, como vimos, no que se refere à economia, a mesma está globalizada, e qualquer mudança, nesse sentido, não acontecerá da noite para o dia. Será antes, um processo demorado, e quaisquer mudanças verdadeiras jamais virão de cima e sim de debaixo, das bases. Nesse sentido, procede a preocupação do CONIC quando se questiona “como fazer para que essas preocupações (os desafios propostos) não sejam transitórias, mas se tornem, de fato, balizamento moral permanente” (p. 11). Chegou a hora de sensibilizar todos os cristãos para que os objetivos propostos pelo CONIC, para a CFE 2010, possam ser concretizados. Devemos tomar consciência de que, se não houver uma mobilização geral de nossa sociedade como um todo, por meio do diálogo, envolvendo não somente as igrejas cristãs, mas também outras religiões, bem como outros setores da nossa sociedade, diga-se pessoas ou organismos nacionais e internacionais ligados ao tema da Campanha, jamais será possível realizar aquilo que ora se propõe. Conclusão Chegou o momento de deixarmos de lado as diferenças. Ficar atacando um ao outro é um comportamento que já não se sustenta mais. Pensar somente em si ou em sua instituição religiosa é pensar pequeno. Vivemos momentos por demais difíceis. Nós, cristãos, não podemos nos focalizar e nos apaixonar por nossa própria imagem, a exemplo de NarEncontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 37 Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida ciso. É preciso nos focalizarmos no outro, embora esse outro possa ser diferente. Dom João Brás, arcebispo de Brasília, afirmou recentemente, numa palestra proferida numa convivência diaconal, que “pensar somente enquanto indivíduo não dá mais. A pessoa não existe sem a pessoa do outro. Se cada indivíduo é regra de si mesmo, não dá mais para sobreviver”. Viver para si é negar todos os ensinamentos de Cristo, que jamais pensou em si próprio. Na prática ecumênica, é preciso que aconteça um esvaziamento de si mesmo, uma quênose, colocando-se a serviço do outro, no exercício da caridade. O indivíduo que pensa somente em si, aos poucos vai construindo sua própria religião, sem voltar-se para os problemas da humanidade. É preciso pensar grande, pois afinal a salvação oferecida por Cristo, numa visão teológica ecumênica, tem um sentido de integralidade e de universalidade. João Paulo II, em sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, escrita por ocasião do Jubileu do ano 2000, alerta os fiéis: “Antes de programar iniciativas concretas, é preciso promover uma espiritualidade de comunhão [...] com o coração voltado para o mistério da Trindade, que habita em nós e cuja luz há-de ser percebida também no rosto dos irmãos que estão ao nosso redor” (nº 43). Segundo o Papa, espiritualidade de comunhão é ainda “ver o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo como dom de Deus: um ‘dom para mim’, como o é para o irmão que diretamente o recebeu. Por fim, espiritualidade da comunhão é saber ‘criar espaço’ para o irmão, ‘levando os fardos uns dos outros’ (Gal 6,2) e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos insidiam e geram competição, arrivismo, suspeitas, ciúmes” (ibid). Este é o caminho a ser seguido: promover, por ocasião desta CFE, uma espiritualidade ecumênica de comunhão, sem a qual, tudo o que se fizer em conjunto serão meras ilusões, cujos instrumentos exteriores para realização das metas propostas se revelarão “mais como estruturas sem alma, máscaras de comunhão, do que como vias para a sua expressão e crescimento” (ibid). É preciso resgatarmos o ponto central de nossa identidade como criaturas criadas à imagem e semelhança de Deus, verdadeiramente irmãos e irmãs uns dos outros. Em tempos de Campanha da Fraternidade Ecumênica, é preciso sobretudo, resgatarmos a fé na Santíssima Trindade onde tudo é união, não havendo qualquer divisão. Se quisermos lutar por uma economia justa, voltada para a vida, para o bem-estar social, para a dignidade da pessoa humana, para a preservação da natureza, é preciso sairmos de nosso comodismo, de nosso individualismo, de nossa ética minimalista 38 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro e excludente e nos lançarmos a esta ação conjunta proposta pelo CONIC, lembrando-nos sempre de que qualquer mudança deve começar a partir de nós mesmos, e somente assim poderemos alcançar aquilo que aos olhos humanos possa parecer um sonho impossível mas que, para Deus, é certamente possível. Referências: BRAKEMEIER, Gottfried. Dignidade Humana e Paz: Reflexões sobre o tema da Campanha da Fraternidade 2000. In: HACKMANN, Geraldo Luiz Borges (Org.). Sub Umbris Fideliter: Festschrift em homenagem a Frei Boaventura Kloppenburg. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. SINNER, Rudolf Von. Confiança e Convivência: Reflexões éticas e ecumênicas. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2007. 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A dialética da pós-modernidade: A sociedade em transformação. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 39 Campanha da Fraternidade: uma ação ecumênica conjunta em prol da vida LEXICON: Dicionário Teológico Enciclopédico. Trad. NETTO, João Paixão; MACHADO, Alda da Anunciação. São Paulo: Loyola, 2003. JOÃO PAULO II, Papa. Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, ao episcopado, ao clero e aos fiéis no termo do Grande Jubileu do ano 2000. Endereço do Autor: ITESC Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524 Pantanal 88040-001 Florianópolis, SC 40 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: O artigo pretende demonstrar a relação entre economia solidária, onde estão inseridos os grupos coletivos, e o modelo de desenvolvimento regional no Contestado, em Santa Catarina. É uma breve síntese de alguns aspectos abordados em recente pesquisa de mestrado1. O destaque para a região delimitada pode ajudar-nos a compreender a importância desses empreendimentos em outras regiões do Estado catarinense. O artigo está assim dividido: a primeira parte trata das diversas concepções e causas do surgimento e articulação da economia solidária no Brasil; depois, analisam-se as principais características da economia solidária na região do Contestado; por último, a partir de entrevista com os próprios trabalhadores e trabalhadoras, apontam-se algumas contribuições e desafios para uma outra economia e desenvolvimento regional. Abstract: The article intends to demonstrate the relationship between economics based on solidarity, including collective groups, and a model of regional development in the region of Contestado, of Santa Catarina. It offers a brief synthesis of some aspects dealt with in a recent research for the Masters Degree. The focus on a quite limited region may be of help to understand the importance of some enterprises in other regions of the same State. The article is divided up in three parts: firstly, different conceptions and causes are focused upon dealing with the rise and organization of an economy based on solidarity in Brazil; secondly, the basic characteristics of an economic based on solidarity are described in the region of Contestado; thirdly, by consulting the working class some results are being analyzed so as to gather some suggestions and collect some challenges for creating an alternate economy and regional growth. Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina Roque Favarin* * 1 O autor é Padre da Diocese de Caçador e é membro da Cáritas Brasileira/SC. Cf. FAVARIN, 2009. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 41-66. Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina Introdução A região do Contestado, geograficamente, situa-se no meio-oeste catarinense, no alto vale do Rio do Peixe e no Planalto Norte, e também limita-se com o sudoeste do Paraná. Essa região é assim conhecida porque aí ocorreu a guerra do Contestado (1912-1916) e se gerou uma identificação econômica, social e cultural. Ela também se manifesta na organização política do Estado, nas suas diversas instâncias, presentes nesse território regional2. A delimitação espacial aqui não se situa apenas nos limites geopolíticos e territoriais, mas acima de tudo, nos limites simbólicos e culturais. A Guerra do Contestado marca já com conflito e mortes o início do desenvolvimento capitalista na região. Nessa ocasião, parte da elite regional aliou-se aos donos do capital nacional e internacional. Essa minoria conseguiu implantar esse modelo de desenvolvimento para atender somente a seus interesses, inclusive com uso do poder armado e não só político ou econômico. Assim foi o início do desenvolvimento capitalista na região, utilizando-se da força de trabalho da população autóctone, primeiramente dos caboclos e, depois, dos agricultores familiares (colonos). Compreende-se assim a rebeldia e a resistência dessas classes desprezadas, em sua maioria, vindo a eclodir numa guerra. As “cidades santas” e o “pixirum” são consideradas as formas alternativas e coletivas de organização desde os tempos da guerra e muitos elementos incorporados pela agricultura familiar, posteriormente. Com o avanço das forças produtivas do capital, elas foram desaparecendo. Ressurgem agora, nas duas últimas décadas, outras iniciativas, com outro nome. São experiências ainda pequenas, mas que aos mesclarem agroecologia, cooperativismo, autogestão etc, podem apontar para uma economia a serviço da vida. 2 42 A delimitação do MDA, por exemplo, divide a região em dois territórios: 1) o Planalto Norte (exceto Campo Alegre, Itaiópolis, Mafra, Rio Negrinho, e São Bento do Sul) e 2) o Alto Vale do Rio do Peixe (exceto Tangará). Outros dois municípios são: Treze Tílias (ao Meio-Oeste Contestado) e Santa Cecília (ao Planalto Catarinense). A região compreende duas associações de municípios: 1) AMARP e 2) AMPLANORTE. A única exceção nesse caso é Treze Tílias, que pertence a AMMOC. Na divisão política do governo estadual, a região compreende as seguintes Secretarias Regionais e Microbacias: SDR de Videira, SDR Caçador, SDR Canoinhas e SDR Mafra. As exceções são: Treze Tílias na SDR de Joaçaba e Santa Cecília na SDR Curitibanos. Enfim, mesmo com as exceções, percebe-se uma delimitação similar de todas elas em duas regiões: Alto Vale do Rio do Peixe, e Planalto Norte. Elas formam a região do Contestado como identidade política e cultural, deixada pelos anos subseqüentes à Guerra. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin Na região do Contestado, a economia solidária, que pretendemos descrever, se destaca a partir da década de 1990. Esses empreendimentos surgem a partir das relações com sindicatos de trabalhadores, com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST, as associações de mulheres, as pastorais sociais, isto é, com fortes vínculos comunitários e sociais. Também surgem como alternativas à crise na agricultura familiar integrada à agroindústria e ao desemprego no meio urbano. O Fundo Rotativo dos Mini-Projetos Alternativos – MPAs3 incentivou várias experiências comunitárias de geração de trabalho e renda a grupos denominados coletivos, com atividades alternativas. Esse Fundo foi implantado no segundo semestre de 1994, em Santa Catarina. O apoio financeiro consiste num empréstimo a ser devolvido em quatro anos, vindo a constituir um fundo que servirá para outros empréstimos a novos empreendimentos. Por isso, o nome de rotativo. Ilustração 1: Mapa da Localização da Região do Contestado em SC. 3 MPA’s foi um programa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - Regional Sul IV (abrange o estado de Santa Catarina), em convênio com a Misereor (entidade social da Igreja Católica na Alemanha). Desde 2006, esse programa de apoio passou a ser gerido pela Cáritas Brasileira Regional Santa Catarina. O programa surgiu no final da década de 1980, a partir de uma interação com os movimentos sociais e objetivando apoiar práticas transformadoras e contribuir na superação da exclusão social. Para efeitos práticos, vamos denominá-lo simplesmente MPAs, como ficou conhecido, e não CNBB Regional Sul IV ou Cáritas Brasileira, as entidades gestoras do programa. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 43 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina A questão que desafia esse conjunto de práticas chamadas de “economia solidária” é a de perceber até que ponto podem gerar um novo modelo, uma economia baseada na Vida, como práticas sócioeconômicas? Este artigo pretende demonstrar a relação entre economia solidária, onde estão inseridos os grupos coletivos, e o modelo de desenvolvimento regional no Contestado. É uma breve síntese de alguns aspectos abordados em recente pesquisa de mestrado4. O destaque para a região delimitada pode ajudar-nos a compreender a importância desses empreendimentos em outras regiões de Santa Catarina. O artigo está assim dividido: a primeira parte trata das diversas concepções e causas do surgimento e articulação da economia solidária no Brasil; depois, analisam-se as principais características da economia solidária na região do Contestado; por último, a partir de entrevista com os próprios trabalhadores e trabalhadoras, apontam-se algumas contribuições e desafios para uma outra economia e desenvolvimento regional. 1 Origens da economia solidária no brasil Atualmente no Brasil há inúmeras iniciativas socioeconômicas conhecidas como economia solidária. “São iniciativas associativas, espontâneas, surgidas no movimento social, constituindo uma corrente heterogênea de propostas e iniciativas concretas sob o título genérico de ‘economia solidária’” (GERMER, 2007, p.52). No intuito de fortalecer essas experiências, foram criadas entidades de apoio, fóruns, articulações, seminários, feiras, conferências5. Agregam-se inúmeras entidades da sociedade civil, setores governamentais e empreendimentos solidários, com significativas conquistas, mas também com os limites que essas mesmas experiências trazem no cenário atual. 44 4 Cf. FAVARIN, 2009. 5 De um modo geral, conforme a SENAES, há a seguinte diferenciação conceitual: Os empreendimentos de economia solidária, EES, são organizações “coletivas, suprafamiliares, singulares e complexas, cujos participantes ou sócios são trabalhadores dos meios urbano e rural, que exercem coletivamente a gestão de atividades como alocação de recursos, com diversos graus de formalização...” (BRASIL, 2006a, p.13) Já as entidades de apoio e fomento, EAF´s, são aquelas organizações que desenvolvem ações nas “várias modalidades de apoio direto junto aos empreendimentos econômicos e solidários tais como: assessoria, incubação, assistência técnica e organizativa e acompanhamento.” (BRASIL, 2006a, p.13) Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin Nestes quase 30 anos de economia solidária no Brasil, também se pode fazer outra diferenciação conceitual a partir das diversas maneiras de entendê-la. Cada uma delas coincide também com as diversas fases históricas e conjunturais da política e das demandas da sociedade brasileira. A economia solidária pode ser entendida a partir do combate à pobreza, à miséria e à fome, à exclusão social. Luiz I. Gaiger (org.) (1996) apresenta uma discussão sobre os limites, os avanços e a importância das alternativas de combate à pobreza, dentre elas, a economia solidária. Nessa obra, Léo Voigt apresenta a estratégia de uma política social de fomento aos “famiempresários”. É uma política que surge no calor do debate e da mobilização social, sobre o tema da fome no Brasil, nos anos iniciais da década de 1990, mobilização concretizada na “Ação da Cidadania”, pelo sociólogo Herbert de Souza (Betinho) O desenvolvimento de experiências em economia solidária, como as mencionadas acima, sofreu forte “aceleração em 1994, quando a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida - ACCMV resolveu mudar sua tática e, em vez de apenas distribuir alimentos, passou também a fomentar a geração de trabalho e renda.” Um destaque da Ação foi a criação da Cooperativa de Manguinhos no Rio de Janeiro6. A Cáritas Brasileira contribuiu nesse aspecto incentivando os Projetos Alternativos Comunitários – PACS7 com ações sociais voltadas às comunidades locais e excluídas socialmente. Nos primeiros anos, desde a sua fundação, em 1956, desenvolvia um trabalho voltado basicamente na linha da assistência, da benevolência, distribuindo alimentos, remédios e roupas aos mais pobres. Posteriormente mudou o caráter de suas ações, passando para a promoção humana8. Atualmente, a Cáritas 6 O Complexo Manguinhos é formado por 10 favelas, e grande parte dos moradores eram desempregados, existindo muita violência. A cooperativa de trabalho surgiu a partir de iniciativa da Fiocruz enquanto integrante da Campanha contra a Fome, sugerindo que os trabalhadores (moradores da favela) prestassem serviço de jardinagem à empresa. Hoje, ela é uma das experiências de cooperativa de trabalho com maior êxito e consegue ser mais competitiva que qualquer empresa capitalista (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.120-122). 7 Trabalho similar aos Miniprojetos Alternativos da CNBB – Regional Sul 4. 8 As primeiras iniciativas no Brasil vieram da CNBB e da Cáritas Brasileira, em 1981, tentando emprestar dinheiro aos pequenos agricultores. Isso era para incentivar e fomentar a permanência de famílias no nordeste. As iniciativas se espalharam por todo o Brasil, e foram conhecidas como Projetos Alternativos Comunitários – PACs. Em Santa Catarina, a CNBB mantinha um programa similar denominado MPAs desde 1989. Essa experiência será tratada adiante (CARITAS BRASILEIRA, 2006; cf. SINGER, 2002, p. 122). Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 45 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina promove projetos sociais, dando ênfase à solidariedade libertadora, com o protagonismo dos excluídos. Seus recursos são gerados através de doações e campanhas. Essa instituição procura ter uma postura crítica e não meramente assistencialista, como nas décadas iniciais de seu surgimento no Brasil (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.117-119; CNBB, 2006, p.45-66). Mencionaram-se essas referências acima por serem as de maior destaque e contribuição para o surgimento da economia solidária, sem, no entanto, olvidar ou menosprezar o trabalho de tantas outras entidades espalhadas pelo Brasil, que procuraram levantar a discussão política em torno da problemática da fome, para a sociedade brasileira. Outra maneira de entender economia solidária é o conceito de instrumento de geração de emprego e trabalho. Essa concepção surge por causa da crise do fordismo e da reestruturação produtiva, alimentadas pela globalização e políticas neoliberais, resultando no desemprego estrutural. A partir disso, a economia solidária passa a ser vista como política e instrumento de geração de trabalho e renda, principalmente pelo movimento sindical e popular. Uma dessas alternativas encontradas para garantir o emprego são as experiências autogestionárias a partir da falência ou da crise de empresas capitalistas, provocadas pela reestruturação produtiva e a globalização neoliberal, na década de 1990 principalmente. Esse movimento autogestionário surgiu no Brasil como solução aos trabalhadores quando uma empresa entrava em processo falimentar. Por meio da intervenção do Sindicato, os trabalhadores conquistavam o patrimônio (a “massa falida”) dos antigos empregadores e se tornavam donos coletivamente da empresa, organizando-se em forma de cooperativa (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.89). Essas experiências autogestionárias nascem a partir do movimento sindical. “Em todos os casos de transformação de empresas falidas, ou em vias de falir, o sindicato dos trabalhadores teve de assumir a liderança do processo, apesar de não ser unanimemente aceita e compreendida, a economia solidária, no movimento sindical (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.123). Muitos sindicatos de trabalhadores ainda resistem a apoiar a economia solidária por vários motivos: comparam-na com uma forma de terceirização de mão-de-obra (cooperativas falsas) e também porque o trabalho assalariado é a base social dos sindicatos, ou ainda por alguns 46 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin compreenderem que as cooperativas eliminariam o caráter de classe trabalhadora (SINGER In: SANTOS, 2002a, p.124-125). Rosângela N. de C. Barbosa corrobora nessa perspectiva crítica à economia solidária, compreendendo-a como mais uma das maneiras de precarização do trabalho. A qual serviria para ajudar o capitalismo a resolver o problema provocado pelas políticas neoliberais. Ela situa o nascimento da economia solidária no mesmo bojo das políticas de geração de trabalho e renda dos anos 19909. A economia solidária representa assim ações individualizadas. Por outro lado, a autora admite que a economia solidária surge da ambigüidade das mudanças do capitalismo nos últimos 20 anos, que tendem a uma “nova cultura do trabalho como mediação educativa, centrada no homem e sua emancipação” (2006, p.101-109). Uma terceira maneira de compreender a economia solidária é situá-la como estratégia de desenvolvimento solidário e sustentável: essa noção vem sendo respaldada atualmente nos debates, conferências, plenárias e ações públicas. Em parte tratou-se desse assunto no capítulo anterior. No Brasil, esse debate ganha força com a economia solidária ligada aos camponeses e às populações urbanas comprometidas com o consumo responsável e questões ambientais. Nesse sentido, as cooperativas de assentados e as experiências da agricultura familiar em agroecologia adquirem importância. O avanço maior nessa compreensão está no Documento Final da I Conferência Nacional de Economia Solidária, que apresenta alguns fundamentos e o papel da economia solidária para a construção do desenvolvimento sustentável, democrático e socialmente justo. Essas conclusões apontam para um novo modelo de desenvolvimento que “considera a centralidade da pessoa humana, a sustentabilidade ambiental, a justiça social, a cidadania e a valorização da diversidade cultural, articuladas às atividades econômicas” (BRASIL, 2006b, p. 60). Uma quarta maneira de compreender a economia solidária é vê-la como estratégia para a construção do socialismo. A questão é polêmica, 9 Por exemplo, no Brasil, o seguro-desemprego surge em 1986 e é incluído na Constituição Federal de 1988. Em 1990 surge o FAT, com fonte no PIS/ PASEP: a idéia era de transformar os desempregados em empreendedores. Depois do FAT surge o PROGER, via instituições financeiras federais em 1993. Depois o pró-emprego de 1996, via BNDES. Hoje consiste em política de emprego o próprio auto-emprego. (BARBOSA, 2006, p.99-100) Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 47 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina pois, ao desejar ser “outra economia”, que não a capitalista, a economia solidária pretende ser economia socialista? Para Claus Germer, a economia solidária quer mudar a economia capitalista “pelas beiradas”, e não por um enfrentamento mais direto. Por outro lado, a economia solidária não é uma experiência econômica ou economicista meramente, mas se constitui e se organiza também no campo político e social. Daí, a necessidade de a economia solidária articular-se com o movimento social no Brasil. Portanto, pretende-se até fazer a experiência embrionária de uma nova sociedade (2007, p.51-73). O “Estado socialista dos trabalhadores” também merece ser avaliado historicamente nas suas contradições, pois foi ele que gerou o stalinismo, o poder burocrático, o “Estado total”, e não a socialização dos meios de produção, como Claus Germer parece conceber que seja socialismo. Uma política pública de economia solidária quer também acumular forças, para transformar o Estado e não apenas seguir a via econômica da construção socialista. Assim, o socialismo, que é compreendido como a tomada do Estado pelos trabalhadores e o principal agente da construção socialista, a partir do cooperativismo e da economia solidária ganha novas estratégias. O que distingue esse novo cooperativismo é a volta aos princípios, o grande valor atribuído à democracia e à igualdade dentro dos empreendimentos, a insistência na autogestão e o repúdio ao assalariamento. [Com o fracasso do socialismo, da social democracia, do Estado de Bem Estar Social] o foco dos movimentos emancipatórios voltou então cada vez mais para a sociedade civil. [Mas, apesar disso,] o avanço da economia solidária não prescinde inteiramente do apoio do Estado e do fundo público (SINGER, 2002, p. 111). Por outro lado, Claus Germer critica as concepções de Paul Singer por este ver a economia solidária como estratégia para a construção da sociedade socialista e considerar a luta dos trabalhadores somente como luta autogestionária. A tentativa de Paul Singer, de teorizar a economia solidária com base em alguns elementos da teoria social marxista de ‘novo modo de produção’, ignorou a crítica marxista. Por isso, Claus Germer chega a duas conclusões: 1) A ‘economia solidária’ não é, ao contrário da pretensão de Singer, uma ‘criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo’. (...) O que os trabalhadores em luta contra o capitalismo 48 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin criaram, em quase duzentos anos de uma história riquíssima, foi em primeiro lugar o conceito rigoroso do socialismo como objetivo, cuja essência é a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a instituição da propriedade coletiva, e, em segundo lugar, a necessidade da conquista do poder de Estado.(g.n) 2) A cooperativa de produção, tida por Singer como protótipo da ‘economia solidária’, embora tenha surgido ao lado da sociedade anônima, como sintonia de uma nova realidade emergente no interior do capitalismo, é incapaz, como a própria sociedade anônima, de constituir uma via de superação do capitalismo (2007, p.72-73). A partir do que foi exposto acima, a questão é saber qual socialismo a economia solidária quer construir? É o da estatização socialista, como foi o stalinista, implantado na União Soviética e demais países socialistas no século passado (o que Rosangela Barbosa e Claus Germer, como marxistas, parecem expor)? Será que a economia solidária não está propondo também “outro socialismo”? Nem todos os envolvidos em economia solidária fazem esse debate, porque não vêem a economia dessa forma. De maneira geral, os que a vêem como caminho para o socialismo, como Paul Singer, entendem que o socialismo da economia solidária conta com o Estado, como gestor da sociedade, mas também conta com o “mercado”, como responsável pela comercialização. Não necessariamente o mercado capitalista. A partir dessas causas e concepções, acima expostas, pretende-se perceber e analisar, a partir de uma região, como elas se manifestam e como podem contribuir para outros parâmetros de organizar a economia. 2 Contexto da economia solidária na Região do Contestado Quanto ao modelo alternativo de desenvolvimento regional no Contestado, as experiências de economia solidária obtiveram maior destaque, como já foi dito, a partir da década de 1990. Essas experiências surgiram, basicamente, a partir do trabalho dos movimentos sociais na região, principalmente com o programa de apoio aos Mini-Projetos Alternativos – MPAs da CNBB Regional Sul IV. Os MPAs trabalharam articulados com sindicatos de trabalhadores, com o MST, as associações de mulheres, as próprias comunidades locais e tantas outras, embora mantivessem autonomia organizacional e política. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 49 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina No período de 1998-2008, foram vários os empreendimentos de economia solidária surgidos na região do Contestado, sem o apoio direto dos MPAs. Esses empreendimentos, em sua maioria, foram cadastrados no mapeamento do Sistema de Informações da Economia Solidária, SIES10, e outros não o foram por terem surgido recentemente ou terem sido apoiados no período anterior a 1998. Segundo pesquisa na base de dados do SIES, nessa região existiam 44 EES, em 2007, distribuídas diversamente em 15 municípios da região. Ilustração 2: EES por Município da Região do Contestado – 2007 Fonte: Base de dados SIES (Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária) Quanto às razões do surgimento ou motivações para a criação dos EES, revelaram-se bastante variadas, sobressaindo-se a superioridade da razão “para obter maiores ganhos” com o empreendimento associativo (22,73%); e como “alternativa organizativa e de qualificação” (18,18%). 10 50 Sistema de Informações da Economia Solidária da Secretaria Nacional de Economia Solidária, cf www.sies.mte.gov.br. Buscou-se também informações presentes no “Farejador” na página eletrônica: www.fbes.org.br Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin Nenhum empreendimento refere-se à empresa recuperada pelos trabalhadores (cf. Ilustração n. 2). As atividades econômicas desses 44 EES concentram-se mais na produção agrícola e/ou produtos alimentares. Somente cinco (5) deles não têm atividades ligadas a produtos agrícolas, sendo, dois no artesanato e três no ramo de confecções. Há maior concentração da produção de hortifrutigranjeiros, e isso já revela um peso maior na questão da agroecologia. Quanto aos participantes, no que se refere às questões de gênero, há uma predominância masculina em termos absolutos, na divisão por municípios e também por empreendimentos. Em apenas três municípios o número de mulheres é superior ao número dos homens, e em dois há igualdade de participação. A partir da constituição do Fundo Rotativo dos MPAs, até 2008 foram apoiados 235 empreendimentos, no estado de Santa Catarina, beneficiando 709 famílias. Atualmente, esse Fundo possui um fluxo de caixa médio anual em torno de R$ 50.000,00, o que possibilita a continuidade de apoio a esses empreendimentos. No total, no período da pesquisa, foram apoiados financeiramente 13 mini-projetos na região do Contestado. Percebe-se que, para um valor de R$ 45.200,24 foram apoiadas 96 famílias, o que representa uma média de R$ 470,83 por família. O que chama atenção também é a baixíssima inadimplência das devoluções ao Fundo Rotativo, o que indica a possível viabilidade também econômica desses empreendimentos, também apontada na base de dados do SIES (Cf. Tabela n.1). A partir dos 13 empreendimentos apoiados pelo fundo rotativo dos MPAs, na região do Contestado, conseguiu-se fazer esta pesquisa com oito empreendimentos mais um, que embora não apoiado, integra-se nas atividades e princípios de economia solidária. Esse foi escolhido também porque representa uma cooperativa a partir da perspectiva da reforma agrária, e de agricultores assentados. Quanto aos cinco restantes que não foram entrevistados: três deles passaram a integrar a nova cooperativa, e outros se desarticularam, meses depois do apoio11. 11 Essa pode ser considerada uma lacuna deste trabalho para futuros estudos e pesquisas. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 51 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina Apresenta-se a seguir uma síntese dos principais depoimentos dos membros dos empreendimentos, obtidos na entrevistas desta pesquisa. TABELA 1: EES apoiados pelos MPAs na Região do Contestado – 1998 a 2008. N. famílias N. de pessoas Homens Mulheres Ensino Fund. Ens. Médio Ensino Sup. Empréstimo* R$ AFAT – Arroio Trinta 25 65 30 35 58 6 1 3.600,00 Mini-Agroindustria - Porto União 12 23 16 7 17 4 2 2.800,00 Massas Val Verde - Arroio Trinta 12 12 - 12 12 - - 1.340,00 Vida Nova – Caçador 3 5 3 2 5 - - 2.305,00 Vida Com Saúde – Caçador 4 10 4 6 10 - - 2.115,00 Apicultura – Arroio Trinta 5 19 10 9 11 8 - 4.952,00 Frangos Caipiras Irineópolis 6 23 13 10 18 5 - 4.500,00 Agrupar – Canoinhas 5 15 7 8 12 3 - 4.888,00 Le Soréle – Arroio Trinta 3 3 - 3 3 Agroecologia São Caetano – Macieira 4 13 5 8 10 3 2.090,24 Coopertrinta – Arroio Trinta 10 25 10 15 18 7 4.950,00 Amanhecer Crescendo – Salto Veloso 3 8 2 6 7 ARP Vida – Matos Costa 4 7 7 7 TOTAL 96 228 128 181 Grupo apoiado 100 3.000,00 1 5.660,00 3.000,00 36 4 45.200,24 Fonte: Coleta de dados dos formulários de MPAs. Elaboração: Roque A. Favarin. *Os valores são nominais conforme o montante liberado do Fundo Rotativo dos MPAs. 3 O que dizem os trabalhadores da economia solidária A seguir demonstra-se como os trabalhadores da economia solidária, entrevistados, entendem essa experiência. Para a realização das entrevistas seguiu-se um roteiro previamente estabelecido com diversas questões abertas. Primeiramente, procurou-se descobrir os principais motivos pelos quais surgiram os empreendimentos e quais eram as atividades exercidas pelos membros antes da integração ao grupo, e as atividades principais dos empreendimentos. Buscou-se perceber o que os 52 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin participantes indicam como melhorias ou perdas das condições de vida, depois de se terem envolvido no empreendimento coletivo. Também questionou-se sobre dificuldades enfrentadas no começo da constituição do empreendimento e como as superaram. E, quais dificuldades encontram para continuar no empreendimento de economia solidária. Nas outras questões buscou-se identificar avanços (pontos positivos) que eles percebem, obtidos por seu empreendimento no nível local. E como a comunidade local (pessoas, políticos, entidades, empresas, etc.) compreende a iniciativa de economia solidária. Por fim, uma questão tratava da gestão e administração do empreendimento, para perceber qual o seu grau de institucionalidade. Assim identificaram-se as principais contribuições da economia solidária para um novo desenvolvimento regional no Contestado. Os resultados das entrevistas com participantes dos nove empreendimentos entrevistados são sintetizados nos itens abaixo. 3.1 Quanto às causas do surgimento do empreendimento ou da atividade A maioria dos empreendimentos da economia solidária da região encontra-se vinculada à agricultura familiar. As respostas dadas se mesclam em causas relacionadas à atividade econômica alternativa ou à de associar-se no empreendimento, pois tanto uma quanto outra se apresentam como alternativas. As causas relacionam-se às contradições do desenvolvimento regional hegemônico e vigente. Uma delas é que o modelo da integração às grandes empresas não garante renda “segura”, e se torna insuficiente para a vida das famílias. O sistema de integração, baseado na lógica do mercado capitalista e voltado para a exportação, exige cada vez mais dos agricultores “integrados”. Outra é o uso de agrotóxicos, principalmente os ligados à monocultura do fumo, ocasionando sérios riscos à saúde das pessoas. Isso acontece num processo lento, onde ambas as atividades são exercidas concomitantemente até o “convencional” ser deixado de lado. Anteriormente os agricultores trabalhavam com fumo, sendo necessário um uso intenso de agrotóxicos. Para melhorar a qualidade de vida, tínhamos que buscar novos caminhos. Você está num trabalho e, mui- Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 53 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina tas vezes, acha que não existe uma saída. Mas depois vai conciliando, juntando um trabalho com outro, e percebe que há alternativas (Grupo Agroecológico São Caetano) Destaca-se a importância de produzir ecologicamente para se evitar as doenças e garantir condições saudáveis. Inicialmente plantávamos fumo, mas devido às doenças provocadas, fomos obrigados a ver outras formas. O químico [insumo e agrotóxico] prejudicava ainda mais. Uma pessoa do nosso grupo tinha problemas com a circulação [sanguínea] e quando vinha a época do fumo ele ficava mais doente. Parava mais no médico que na roça. (AGRUPAR) Outros identificam que a causa principal em organizar-se como grupo de economia solidária foi viabilizar a comercialização dos produtos agrícolas. A Coopertrinta apresenta essa mesma razão de seu surgimento, procurando vender seus produtos na região. A dificuldade em seguir os padrões da vigilância sanitária impedia a comercialização. Também foi destacada a importância que teve o incentivo das entidades da sociedade civil e determinados órgão públicos, que apoiam a agroecologia e a economia solidária. Em quase todos os entrevistados foi salientado o engajamento e a participação em movimentos sociais, sindicais e comunitários. Vale destacar também que a capacitação/participação em cursos profissionalizantes e técnicos contribuiu também para o seu surgimento, mas não foi destaque nas respostas da maioria e não a citaram como motivação inicial. Como a maioria dessas iniciativas são ligadas à agricultura familiar, as causas reduzem-se à estratégia de geração de renda e produção agroecológica. 3.2 A gestão dos Empreendimentos de Economia Solidária Sobre a gestão ou administração coletiva dos empreendimentos, a maioria deles possui algum registro legal12. Como eles compõem-se de reduzido número de membros, a burocracia interna tende a ser mais simples e informal. 12 54 Como estatutos, Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ, Livro-Ata, controles financeiros, etc. Alguns têm “um conselho administrativo e uma diretoria. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin A Coopercontestado, por ter um número maior de sócios, exige uma organização melhor, e dentre os entrevistados, foi quem mais detalhou essa questão. Existe a assembleia geral, onde se define quem são os coordenadores. A direção da cooperativa é feita por um conselho diretor, com membros representativos de cada assentamento. É discutido tudo o que tem de ser melhorado dentro da cooperativa. Todo o início de ano existe a assembleia ordinária e, se há sobras, a assembleia decide para onde vai, se é para investimento ou para divisão entre os sócios. A assembleia é que tem a autonomia de poder decidir. (Coopercontestado) Por outro lado, em alguns empreendimentos, como na maioria dos que se configuram como associações, o caráter coletivo não está na gestão ou na propriedade comum dos meios de produção. E sim na compra coletiva de insumos e/ou na venda coletiva. Isso acontece principalmente quando os empreendimentos são constituídos de pessoas que não têm relações familiares próximas. Em outros, as tarefas não são divididas internamente. “Fazemos um rodízio. Enquanto uns plantam, outros vão lá na Feira para vender, e assim fazem contato com o público. Desse modo, todos aprendem de tudo”. Fazemos tudo aqui, produzimos e vendemos ao mesmo tempo. Temos que aprender um pouco de tudo. O que uma não sabe, procura-se discutir tudo junto. Quando há dificuldades, contamos com a ajuda do escritório contábil. (Le Sorele). As respostas a essas questões das entrevistas revelaram poucas informações a respeito do assunto. Talvez, implicitamente, as questões internas sejam um desafio para os empreendimentos, pois a informalidade é uma de suas características. Também essa pode ser a lacuna em que as EAFs poderiam assessorar e contribuir. Algumas associações não falaram muito desse aspecto, pois as relações familiares presentes, as decisões e administração, tendem a ser mais informais. 3.3 O que melhorou na vida dos trabalhadores com a economia solidária Procurou-se perceber nas entrevistas os impactos dessas novas formas de organização socioeconômica. Os depoimentos foram surpreendentes. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 55 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina Minhas duas filhas [com famílias já constituídas] estão voltando para o projeto [empreendimento], deixando de morar na cidade. É um avanço o agricultor poder dizer que pode tirar seus filhos do emprego para vir à roça de volta porque aqui está melhor... Aqui você não paga o aluguel, a água, a creche para as crianças, e ainda tira o sustento (AGRUPAR) São destacadas as melhorias na alimentação e na saúde do trabalhador. Deixando de lado o fumo tem-se uma alimentação melhor, e não fomos mais ao hospital. Inclusive a renda financeira é maior do que quando se plantava fumo, com menos área plantada. Meus netos podem brincar à vontade aqui. Não temos aquela preocupação de uma vez, de toda hora ficar falando: ‘cuidado, não mexa no veneno’, ‘cuidado com essa planta, tem veneno’. Quando uma criança ficava doente, a preocupação: será que não se envenenou? (AGRUPAR) A maioria deu destaque para a conquista de autonomia, a superação de limites, a consciência coletiva. “Melhorou a consciência de muitas pessoas e a coragem de iniciar alguma iniciativa diferente na propriedade”. Segundo um dos entrevistados, “melhorou e muito a vida do agricultor, pois hoje cada família conseguiu adquirir carros, tratores, casa nova...”. E “cada uma tem a sua renda. Ajudamos os filhos nos estudos”. Outro: “melhorou a renda e a autoestima dos participantes. Gerou emprego para as pessoas. Conseguimos acesso a crédito por estarmos organizados. E fizemos a vigilância sanitária atuar mais (sic)”. Ninguém falou que essa nova forma de produzir levou a empobrecimento, ou redução da renda econômica. Nas respostas percebe-se o entusiasmo e alegria pelas conquistas que obtiveram e estão obtendo com estas novas formas de organização, por trabalhar e produzir autônoma e livremente. 3.4 Sobre as conquistas a partir da economia solidária No conjunto das respostas pode-se dizer que existe um reconhecimento, pelos participantes, dos avanços, em no mínimo três aspectos: no campo econômico, nos aspectos organizativo/comunitário, e no cuidado com o meio ambiente. 56 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin Quanto aos avanços econômicos, foi dito o seguinte: “Deixando de lado o “fumo” [enquanto atividade econômica], temos uma alimentação melhor e não fomos mais ao hospital. Inclusive a renda financeira é maior e com menos área plantada”. Também o “acesso a crédito foi mais fácil. Melhorou a renda dos participantes. Gerou emprego. Aumentou de produção e acesso a novos mercados. Novas vendas foram realizadas com a participação no PAA13. A venda coletiva tem vantagens no preço. Elimina o atravessador. E a facilidade em acessar programas e políticas públicas do governo estadual e federal. Gerou um novo aprendizado: como elaborar projetos”. Também destaca-se o trabalho diferente e alternativo; o despertar para o turismo rural; o resgate da cultura tradicional, a autoestima dos membros porque fizeram atividades diferentes e porque têm local para vender; e a valorização de produtos locais. Além disso, acrescenta-se a busca da diversificação da produção e suas vantagens. “Hoje queremos melhorar a produção e educar o consumidor a consumir produtos saudáveis, e para isso fazemos feiras nos bairros. Produzimos sabão caseiro mais barato, sobrando recursos financeiros para comprar alimentos na feira”. (Entrevistada) Quanto aos aspectos organizativos e comunitários, o maior avanço foi o de despertar para a consciência cidadã e a importância do coletivo. Também os avanços são sentidos no “entorno” do empreendimento, como revela esta resposta dentre outras. 13 “O Programa de Aquisição de Alimentos é uma das ações do programa “Fome Zero” [do Ministério de Desenvolvimento Social – MDS], cujo objetivo é garantir o acesso aos alimentos em quantidade, qualidade e regularidade necessárias às populações em situação de insegurança alimentar e nutricional, e promover a inclusão social no campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar. (...) O Programa adquire alimentos, com isenção de licitação, por preços de referência que não podem ser superiores nem inferiores aos praticados nos mercados regionais, até o limite de R$ 3.500,00 ao ano por agricultor familiar que se enquadre no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, exceto na modalidade incentivo à produção e consumo do leite, cujo limite é semestral. (...) Os alimentos adquiridos pelo Programa são destinados às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, atendidas por programas sociais locais e demais cidadãos em situação de risco alimentar, como indígenas, quilombolas, acampados da reforma agrária e atingidos por barragens. (Disponível em http://www.mds.gov.br/programas/ seguranca-alimentar-e-nutricional-san/programa-de-aquisicao-de-alimentos-paa. Acesso em 31/03/2009). Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 57 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina A consciência de muitas pessoas e a coragem de iniciar alguma iniciativa diferente na propriedade. No início, a comunidade olhava para esse grupo de jovens [como quem] não tinham os ‘pés no chão’. Três das quatro famílias deixaram de plantar fumo porque perceberam que dá para apostar em outra coisa, sem necessitar estar integrado numa empresa (APAECO). Também os intercâmbios são entendidos como uma saída para fortalecer o grupo e fazer surgir novos grupos. Um agricultor para outro passa mais fácil [as informações] do que um técnico. O técnico é mais formal. Tem palavreado do técnico que você não entende. Com vergonha de perguntar, acaba não entendendo. Hoje o técnico [que acompanha o grupo] tem linguajar mais compreensível. A gente não tem medo de perguntar. O coordenador da AFRUTA deu grande apoio no começo para nós aqui dessa maneira (AGRUPAR) O apoio e a participação nas redes de economia solidária são salientados: Com o apoio de um técnico e também [da inserção] na Rede Ecovida. A feira está ampliando o consumo. O produtor, que sabe como produz quem produz. Estão sendo promovidos encontros nos finais de semana, para os consumidores verem como se produzem as verduras... A idéia é criar grupos consumidores filiados à rede Ecovida. (AGRUPAR) Alguns empreendimentos estão inserindo-se no PAA, para se fortalecer enquanto associação. “Este ano estamos entregando no PAA, na escola e no hospital”. (AGRUPAR) A participação nas instâncias e articulação das políticas de Território, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, tem suas vantagens, expressadas pela Coopercontestado. Nesse sentido, alguns empreendimentos também participam e acessam políticas públicas. A noção do cuidado com o meio ambiente é assim descrita: “A alternativa ecológica vai protegendo o solo. Em vez de eliminar os microorganismos do solo, vai sendo enriquecido. O próprio meio ambiente vai dando respostas e vai incentivando a continuar” (GA São Caetano). “Outro avanço é o de ajudar o produtor a parar de usar produto químico. Produzindo feijão orgânico, e o leite à base de pasto verde. Isso reverte em saúde para o agricultor e para quem vive na cidade [que vai consumir]”. (Coopercontestado). Na ARP-VIDA, de Matos Costa, foi apontada a 58 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin possibilidade de uma nova aprendizagem ecológica da população com a seleção do lixo. 3.5 Quais as dificuldades apontadas para estar na economia solidária A concorrência e o individualismo são dificuldades e desafios permanentes, não somente na fase inicial dos empreendimentos. Haja vista que esses são os pilares subjetivos que mantêm a economia capitalista. Dificuldades foram apontadas em relação ao poder público, da seguinte forma: “O que mais desanimou o grupo foi a burocracia para conseguir os recursos”. O acesso a esses recursos, para que a cooperativa possa estar aumentando a produção lá nos próprios assentamentos. A maioria dos recursos é dos grandes bancos, onde existe uma burocracia muito grande... Enquanto cooperativa, temos buscado recursos em outras instâncias. (Coopercontestado). Participação nas instâncias do Território do MDA tem suas dificuldades assim expressas: No território (MDA) conseguimos aprovar alguns projetos. O território é uma política do governo onde os recursos são destinados a uma grande região e se tornam escassos para viabilizar uma grande indústria e fica dependendo de outros recursos [fontes]. A cooperativa já acessou um recurso, mas tem de deixar para outras associações e cooperativas da região. É uma disputa muito grande para poucos recursos. A demanda da região é grande. Não é só nós que precisamos, as outras também precisam (Coopercontestado). Assim, a dificuldade de todos é “buscar apoio nos órgãos públicos para financiar a estrutura da cooperativa e a produção dos assentados. Buscar incentivos dentro da cooperativa para que se possa ter retorno na melhoria de vida dos sócios” (Coopercontestado). Existem dificuldades em outros campos mais específicos da produção e do gerenciamento: “Tínhamos aquele medo: o cliente gostou e não retorna mais. No início, a dificuldade foi a de planejar a quantidade certa para vender, e não desperdiçar. Fomos aprendendo. Por exemplo: “fazíamos uma quantidade de pães e saía tudo. Fazíamos mais um e saía Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 59 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina tudo” . A inserção no mercado capitalista exige um sistema de cobrança de vendas a prazo. “Hoje, nossa maior dificuldade é porque alguns não pagam” (Amanhecer Crescendo). As dificuldades de transporte dos produtos devido às distâncias foram expressadas também. 3.6 Os impactos sentidos da economia solidária no local e na região Quase todos falam da “loucura”, para os padrões dominantes, em começar um sistema novo de produção. A agroecologia e a economia solidária são ainda sinônimo de “atraso”. No início, a comunidade “chamou nós de louco, isso é para quem não gosta de trabalhar (sic). “Hoje a comunidade já olha diferente. As pessoas vêm aqui visitar e ficam admiradas. E no município, foi difícil de conseguir um espaço para realizar a feira (AGRUPAR). No início nos chamaram de “loucos”. Mas aos poucos foram vendo que as formas que eles produziam, no convencional, provocavam erosão no solo. Enquanto o nosso solo [dos proprietários do grupo] enriquecia. Algumas famílias aderiram individualmente a esta forma alternativa [de uso do solo] embora ainda usem agrotóxicos (G. A. São Caetano). Assim, quase todos os empreendimentos deram destaque para a produção ecológica e suas dificuldades em deixar o modo convencional de produção. Outro impacto importante, na contra-hegemonia do modelo atual do desenvolvimento na região, é a valorização do campo como meio de vida, de sobrevivência. “Temos um jovem agricultor, do grupo, fazendo agronomia e aplicando conhecimentos aqui na lavoura” (G. A. São Caetano). “Duas famílias (filhas) estão voltando para o projeto, deixando de morar na cidade”. As feiras são o espaço e o momento de maior destaque. Três grupos sobrevivem delas e as têm como principal meio de garantir a produção e o empreendimento. A Coopertrinta conseguiu um “ponto permanente” de vendas na cidade, com a “Casa da Agricultura”. São esses espaços que viabilizam os empreendimentos, porque garantem a venda, mas também outros elementos como a articulação dos empreendimentos, do produtor e do consumidor, do campo e da cidade.“Percebemos que a população quer saber qual a barraca que produz sem agrotóxicos, pois a feira é livre. 60 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin A Feira vai divulgando um produto que tem bastante aceitação, devido aos problemas de saúde da população” (AGRUPAR). Os empreendimentos incentivam o surgimento de novos empreendimentos, nas comunidades vizinhas ou na região. “Outras comunidades também estão interessadas em entrar na nova forma de cultivar e produzir. Há novos grupos interessados, e vêm visitar (AGRUPAR). “Outros que foram embora da comunidade e já venderam [a propriedade], se arrependeram e querem voltar” (G. A. São Caetano). Como síntese do que os empreendimentos conseguem quando encontram apoio: “Estamos criando uma nova cooperativa. Ela vai abranger todos da agricultura familiar, inclusive os que trabalham com o PAA. A Agrupar vai fazer a capacitação para outros grupos e agricultores, através de visitas e contatos diretos (Agrupar). É necessário que os agricultores se organizem em cooperativas para conseguir buscar recursos para financiar sua produção. Povo organizado também tem mais força. Houve boa aceitação para organizar. Apesar de o governo apoiar tais iniciativas e a organização no campo, sabemos que o modelo do agronegócio no país dificulta que se permaneça na agricultura. Essa organização é fundamental para que o agricultor se mantenha no campo. A sociedade tem apoiado e incentivado a organização do trabalhador. (Coopercontestado). O grande mérito está no que representou e representa em termos de melhoria da qualidade de vida para os integrantes do grupo e para a comunidade local e regional. Ressalta-se a produção de alimentos naturais, a reeducação de hábitos alimentares, e os benefícios para a saúde, principalmente pela redução do uso de agrotóxicos. Com a experiência acumulada por esses agentes e projetos, foi surgindo a idéia de construir uma articulação mais sólida entre os empreendimentos solidários, através de um fórum regional de economia solidária e realização de feiras. Criaram-se assim novos suportes institucionais. As feiras são uma das oportunidades para comprar e vender produtos ou serviços dos empreendimentos. Mas também são oportunidades de partilha de experiências e de saberes, de formação e fortalecimento de redes. Também se inicia com isso um processo de reivindicação de políticas específicas para essa área, por exemplo, as cooperativas de crédito solidário e a possibilidade de créditos mais baratos nos órgãos oficiais. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 61 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina 4 Considerações finais Não se pretendee encerrar aqui o debate em torno da relação Economia Solidária e seus impactos para o desenvolvimento regional, pois isso remete a outros pontos de discussão para aprofundamentos posteriores. Apontam-se aqui algumas considerações que este estudo abre para futuras pesquisas e para atuação mais qualificada da economia solidária na construção de modelos alternativos de desenvolvimento. Primeiramente, ainda hoje, percebem-se nessa região as conseqüências econômicas, políticas, sociais e culturais da época da guerra do Contestado e da repressão militar e política praticada. A vitória foi um grande massacre do Estado brasileiro, que preferiu gastar mais com armas a atender os interesses da maioria da população local (os caboclos), por um pedaço de chão e um espaço para viver livre e dignamente. Uns morreram vítimas da violência militar e outros, vítimas da fome. Claro está que os caboclos não lutaram pelo título de posse da propriedade da terra, porque não pensavam como o modelo capitalista: como propriedade individual e como mercadoria, mas, como meio e sustento da vida, como valor de uso. Também, percebiam que as riquezas naturais, principalmente as florestas, estavam sendo destruídas gananciosamente e levadas para o estrangeiro a qualquer preço. A agricultura familiar, modelo dos colonos imigrantes no pósguerra, vem perdendo espaço há mais de 40 anos e foi subordinada ao modelo da monocultura florestal, ao sistema de “integração”, enfim, ao agronegócio. Embora permaneçam ainda traços agrícolas como identidade da região, houve um grande êxodo rural, e atualmente está ocorrendo nova evasão da população para outras regiões. Os incentivos empresariais e governamentais para a plantação de mata não-nativa de pinus e eucalipto, vai ocupando esse “esvaziamento” territorial, gerando novos problemas ambientais, pouco conhecidos ou divulgados. O modelo de desenvolvimento capitalista implantado na região caracteriza-se pelo agronegócio e continua beneficiando cada vez menos gente e mesmo o conjunto da própria região. O uso intensivo de produtos químicos e de agrotóxicos em todas as etapas do processo de produção, inclusive em grande parte da agricultura familiar, vem piorando as condições sócio-ambientais. Assim, esse modelo provoca um desenvolvimento regional desigual. 62 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin Começa-se a descobrir formas de substituição do cultivo do fumo pelos grupos agroecológicos pesquisados. Nos outros setores agrícolas, porém, percebe-se ainda muito forte o monopólio e o controle de grandes empresas agroindustriais, seja nos insumos fornecidos, nas técnicas sofisticadas de criação dos animais, nas exigências sanitárias dos órgãos estatais e nos preços instáveis determinados apenas pelas grandes agroindústrias e o mercado financeiro, etc. Esses fatores acabam inviabilizando a busca de associações ou grupos de economia solidária. Na Região do Contestado, as experiências de economia solidária, a partir da pesquisa realizada, têm a principal contribuição como estratégia de construção de um “novo” desenvolvimento regional, com uso correto do meio ambiente e respeitoso do ser humano. Também, se pensarmos a contribuição da agroecologia para um consumo saudável de alimentos, a economia solidária na região pode contribuir para a redução da fome e garantir a segurança alimentar. Outra contribuição, não tão explícita, é na geração de emprego e renda. A contribuição, não no emprego de forma assalariada, mas no trabalho cooperativado. Essa riqueza gerada não conta para gerar capital, mas conta para gerar um novo modelo de desenvolvimento. Ela fortalece relações solidárias, iniciativas comunitárias de combate à miséria, alternativas de geração de trabalho e renda, propicia produção de bens “limpos” e saudáveis, como os alimentos agroecológicos, e a construção de um desenvolvimento sustentável na prática. Esta é a principal contribuição da economia solidária atualmente. Nesse sentido, a economia solidária, na região, em que pesem as dificuldades, contribuiu por práticas transformadoras na superação da exclusão social provocada pelo modelo hegemônico, o capitalista. No entanto, a construção da sociedade socialista não transparece ser a razão e o principal motivo de esses empreendimentos organizarem-se solidariamente. Isso, talvez, porque não foi a preocupação primeira desta pesquisa. Os empreendimentos solidários na região, mesmo com as dificuldades citadas neste trabalho, têm dado alguns passos significativos. Representam propostas concretas na busca pela cidadania e sobrevivência dos mais empobrecidos; na descoberta de formas alternativas para o desenvolvimento de atividades econômicas; na construção de um processo comunitário, como “sementes” de novos modelos de desenvolvimento regionals ou de uma economia a serviço da Vida. Demonstram a possibilidade concreta de um desenvolvimento regional que não o capitalista, o Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 63 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina baseado na lógica do mercado ou da globalização neoliberal, mas o alternativo, onde se articula o local e o global, o social e o natural, o tradicional e o inovador. Ou seja, o desenvolvimento que supera os fundamentos propostos pelo padrão capitalista. Aquele, valoriza a solidariedade e a sustentabilidade e a Vida, em troca da exploração ilimitada deste. A continuidade e o fortalecimento de outros paradigmas de desenvolvimento regional como o solidário sustentável, depende da articulação dessas iniciativas em rede; do apoio de políticas públicas à economia solidária e às outras experiências territoriais, sociais e ambientais alternativas; e do fortalecimento dos movimentos sociais na região. Entidades da sociedade civil têm um papel fundamental a ser retomado e fortalecido na região quanto a esse aspecto. Os empreendimentos solidários, por si só, não conseguirão ser uma alternativa de desenvolvimento, de transformação regional, enquanto permanecerem como experiências isoladas ou apenas como “indicativas” de um modelo novo. Assim, eles não conseguirão reduzir os impactos ambientais e sociais do modelo capitalista, o dominante. Pois, como demonstrado aqui, esses empreendimentos também estão, não só comercializando, mas, acima de tudo, interagindo e sofrendo influências do próprio modelo hegemônico: o capitalista. Este tende a sufocar ou cooptar as experiências alternativas, provocando seu desaparecimento ou sua descaracterização. Em suma, a capacidade “alternativa” deve vir aliada com a capacidade “alterativa”, isto é, a de alterar a região e os fundamentos e processos históricos do desenvolvimento hegemônicos. Abrem-se, a partir daqui, novas possibilidades de pesquisa, reflexão e aprofundamento maior. Restam, entretanto, ainda lacunas no campo teórico e prático da relação entre o desenvolvimento solidário sustentável e a influência da história do Contestado, atualmente. Além disso, poderá ser incentivado um aprofundamento sobre as estratégias para a construção de tal modelo alternativo. Referências BARBOSA, Rosângela N. de C. Economia Solidária: estratégias de governo no contexto da desregulamentação social do trabalho. In: VV.AA. Políticas Públicas de Trabalho e Renda no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2006. Cap. 6, p.90-129. 64 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Roque Favarin BRASIL. I Conferência Nacional de Economia Solidária: Economia Solidária como estratégia e política de desenvolvimento. Anais, Brasília: MTE, SENAES, 2006b. BRASIL. Atlas da economia solidária no Brasil 2005. Brasília: MTE, SENAES, 2006a. CÁRITAS BRASILEIRA. Desenvolvimento Solidário e Sustentável. Cadernos Cáritas n. 6; Brasília: Cáritas Brasileira, 2005. CÁRITAS BRASILEIRA. 25 Anos de Economia Popular Solidária. Série Cartilhas. Brasília: Cáritas Brasileira, 2006. CNBB. Cáritas Brasileira 50 anos promovendo solidariedade. Col. Estudos da CNBB n. 92, São Paulo: Paulus, 2006. FAVARIN, Roque A. Contribuições da economia solidária para o desenvolvimento recente na região do Contestado. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional – Universidade Regional de Blumenau – FURB, 2009. FBES. Rumo à IV Plenária Nacional de Economia Solidária. Documento-Base para as Plenárias Estaduais. 2007. Disponível em www. fbes.gov.br GAIGER, Luiz Inácio (org). Formas de Combate e Resistência à Pobreza. São Leopoldo: UNISINOS, 1996. GERMER, Claus. A “Economia Solidária”: Uma crítica marxista. Estudos de Direito Cooperativo e Cidadania. Curitiba: UFPR, n.1, 2007. Disponível em http://www.itcp.coppe.ufrj.br/hotsite/Revista_Direito_Cooperativo_2.pdf. NOVAES, Henrique T. Lições do debate entre os defensores da estatização sob controle operário e da autogestão. Otra economía. www.riless. org. Vol II; n.2; 1º sem 2008. p.68-85. PAULI, Jandir. O poder nas redes de economia solidária. Dissertação de Mestrado em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, 2006. QUEIROZ, Maurício V. de. Messianismo e conflito social. 2 ed. São Paulo: Ática, 1977. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 65 Economia Solidária na região do Contestado, em Santa Catarina SANTOS, Boaventura de Sousa (org). Produzir para Viver: Os caminhos da Produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002a. SCHIOCHET, Valmor. Esta Terra é minha terra: Movimento dos desapropriados de Papanduva. Blumenau: Ed. da FURB. 1993. SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2002. VALENTINI, Delmir J. Da Cidade Santa à Corte Celeste: Memórias de Sertanejos e a Guerra do Contestado. Caçador: Universidade do Contestado, 1998, 192p. Endereço do Autor: Cáritas Brasileira Regional SC Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524 Pantanal 88040-001 Florianópolis, SC 66 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: Um tema bíblico, ilustrado por uma parábola, tem relevância em todas as épocas quando se trata de um assunto sempre atual, pois desperta interesse na busca de uma solução de problemas espinhosos na área da moral econômica e da ética social. A aplicação da parábola aos fiéis é uma abordagem moderna do ensinamento cristão. Esse enfoque passa de uma visão doutrinal para o estudo do impacto sobre a vida moral. Por fim, segue uma perspectiva inspiradora sobre a motivação espiritual, explicando a dialética entre as coisas grandes e pequenas na vivência da vida cristã. Abstract: A biblical theme illustrated by a parable is relevant at all times when it deals with a pertinent subject of the past and stirs up interest in our days. The more so the parable gives rise to a great variety of conjectural explanations as regards the solution to uneasy questions in the area of moral tenets in economy and social ethics. From the descriptive details the study passes on to the application of the parable. The following sections focus on the impact on the moral aspect of business administration and the spiritual motivation in order to use one’s personal talents to render a greater service for the benefit of the community both in small and great affairs. Desequilíbrios no sistema econômico: A parábola do administrador (Lc 16,1-13) L. Stadelmann, SJ* * O autor, Doutor em Língua e Literatura Semítica, Cincinnati, e Mestre em Ciências Bíblicas, Roma, é Professor no ITESC. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 67-78. Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13) Introdução A Campanha de Fraternidade Ecumênica de 2010 se ocupa com o tema central “Economia e Vida”, aqui ilustrada com um ensinamento bíblico, apropriado para os novos tempos. Queremos lembrar, porém, que poderíamos mencionar vários paradigmas que remetem à inspiração bíblica, servindo até de fundamentação das mais diversas ideologias, como, p.ex. “Teologia da Prosperidade”1, em oposição à “Teologia da Pobreza”2, como é denegrida a “Teologia da Libertação”3. Não é de admirar que temas bíblicos sejam citados para discussões de assuntos candentes da atualidade, porque estão inter-relacionados com preocupações, debatidas entre os povos, quando buscam a Palavra de Deus para orientação e solução da problemática. São lembretes de temas referentes à vida e seu sustento. Entretanto, os problemas que surgiram na vida humana não se originaram da atividade pastoril, embora fosse um dos recursos mais antigos para sustentar as famílias, mas do trabalho agrícola com rendimento muito superior e mais proveitoso à subsistência da população urbana e rural, mais numerosa que a dos nômades. Envolvia também mão-de-obra mais qualificada na época do plantio, da colheita e armazenagem, do que na vida agreste do pastoreio de rebanhos. As dificuldades, porém, não se restringiam apenas a uma dessas etapas da atividade agrícola, mas se localizava, sobretudo, na administração da pequena empresa. Para fins de ilustração de um dos setores da economia da civilização antiga, podemos recorrer às situações de diversos povos e fazer uma comparação com um dos estágios da evolução até a situação atual. Será válida uma comparação, se contribuir para o conhecimento da técnica de produção e para o desenvolvimento demográfico. Quanto a fatores negativos, causados pelo ecossistema ou pela cultura tecnológica, podemos aprender das experiências do passado para prevenir e remediar políticas 68 1 L. Campos, Teatro, templo e mercado; organização e marketing de um empreendimento pentecostal, Petrópolis, São Paulo, Vozes / UNESP, 1999; Brenda Carranza, “O Brasil, fundamentalista?”, na revista Encontros Teológicos, Ano 24, Nº 52, Fasc. 1, 2009, 147-166. 2 G. Kepel, A revanche de Deus: cristãos, judeus e muçulmanos na reconquista do mundo, São Paulo, Siciliano 1991. 3 “Teologia da Libertação”: escola importante na teologia da Igreja Católica, desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Surgiu na América Latina, a partir da opção pelos pobres, e se espalhou por todo o mundo. O teólogo peruano Gustavo Gutierrez é um dos primeiros que propôs essa teologia. A teologia da libertação teve um impacto decisivo em muitos países do mundo. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luís Stadelmann, SJ econômicas que têm que se adaptar às novas situações da conjuntura atual. Nosso interesse, porém, não se reduz meramente ao conhecimento das praxes administrativas, mas busca a relevância da Palavra de Deus com sua implicação no tema em pauta. Citemos a parábola do administrador, no Evangelho de S. Lucas: A parábola do administrador Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar os seus bens. 2Ele o chamou e lhe disse: “Que ouço dizer a teu respeito? Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens”. 3O administrador, então, começou a refletir: “Meu senhor vai me tirar a administração. Que vou fazer? Para cavar não tenho força; de mendigar tenho vergonha. 4Ah! Já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa quando eu for afastado da administração”. 5 Então chamou cada um dos que estavam devendo ao seu senhor. E perguntou ao primeiro: “Quanto deves ao meu senhor?” 6Ele respondeu: “Cem barris de óleo!” O administrador disse: “Pega a tua conta, sentate depressa, e escreve: cinquenta!” 7Depois perguntou a outro: “E tu, quanto deves?” Ele respondeu: “Cem sacas de trigo”.O administrador disse: “Pega tua conta e escreve: oitenta”. 8 O senhor elogiou o administrador desonesto, porque agiu com esperteza. De fato, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz. 9”Eu vos digo: usai o ‘Dinheiro’, embora iníquo, a fim de fazer amigos, para que, quando acabar, vos recebam nas moradas eternas. 10 Quem é fiel nas pequenas coisas será fiel também nas grandes, e quem é injusto nas pequenas será injusto também nas grandes. 11Por isso, se não sois fiéis no uso do ‘Dinheiro iníquo’, quem vos confiará o verdadeiro bem? 12E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso?” (Lc 16,1-12). 1 Administração como ciência e como prática A ciência da Administração de Empresas estuda as atividades de um empreendimento com o objetivo de alcançar seus propósitos de modo racional. Na prática, é a aplicação, em determinada organização empresarial, das normas que devem garantir a consecução de seus objetivos. Nesse sentido pode ser privada ou pública, conforme se trate de administrar uma empresa privada ou um órgão do Poder Público. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 69 Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13) Tanto a empresa privada como a pública nunca podem perder de vista, entretanto, sua missão essencial de ser, primariamente, uma prestação de serviço à comunidade. Esse caráter de serviço se funda inclusive no fato de cada indivíduo ser membro de uma comunidade, que lhe dá o aval de cidadania na sociedade. Caindo a estrutura da comunidade, sobra a anarquia onde impera a lei do mais forte e o domínio econômico de monopólios do setor privado4. O assunto em questão é a administração da empresa que, na Antiguidade, como também na época atual, faz parte do contrato de trabalho nos termos da legislação vigente. Fica a critério do leitor caso alargar a visão sobre o inter-relacionamento de diversas áreas econômicas, tais como os mecanismos financeiros, produtivos e comerciais, ou ainda, a política tributária e os serviços de crédito, participação nos lucros e aumento salarial entre os funcionários mais graduados etc. Nesse ponto convém analisar a observação do evangelista ao acrescentar as observações de Cristo sobre o papel da administração da empresa (Lc 16, 8-12). Começando com palavras de elogio do patrão pela hábil manobra de seu funcionário (v. 8) e aplicando sua esperteza em consolidar laços solidários com a comunidade (v. 9). Porém, o prejuízo causado ao patrão fica por conta da omissão no controle periódico dos setores e de seus encarregados, ou da falha no sistema de auditoria. Neste ponto, devemos perguntar se a prática da administração está comprometida com a conjuntura de um país, ou se está isenta das condições em que os habitantes têm de viver. Distinguimos, portanto, entre a administração de empresas em tempo de crise, e em situação de garantia à vida humana, sem risco de desequilíbrios no sistema econômico. É inevitável a prática da coonestação5, como defesa contra a política econômica de caráter espoliativo do Estado, dificultando a sobrevivência de determinados setores econômicos. Bem diferente da fraude fiscal é o caso da simulação, que consiste em buscar solução alternativa, legalmente admitida, em que a oneração impositiva é menor. 70 4 É necessário distinguir entre vários tipos de monopólios, haja vista o caso da exploração de petróleo e de minerais estratégicos, que são monopólios considerados indispensáveis por motivos de segurança nacional. 5 “Coonestação” é a ocultação de uma parte da tributação, para evitar o pagamento dos impostos correspondentes, como defesa contra a política econômica espoliativa do Estado. Pode ser eticamente negativo, ou então pode ser neutro quando se justifica como compensação pelo valor do trabalho pessoal, não computado. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luís Stadelmann, SJ Qual poderia ser o critério do desconto de 50% na conta do primeiro devedor e de 20% na do segundo? A resposta poderia ser a taxa sobre os serviços pessoais, seu “know-how”, isto é, os conhecimentos técnicos, culturais e administrativos. Entretanto, o valor da taxa não é fixo, dependendo da situação em tempo de crise, e em condições normais. Além disso, o administrador estaria cobrando ao patrão pelo esforço de buscar alternativas de venda do produto na exportação (óleo) e no comércio local (trigo). Dessarte, a fraude poderia ser de caráter fiscal e não patrimonial. Voltando ao caso da ocultação, pode-se admitir a justificativa de diminuir as quantidades declaradas numa proporção que se ajuste ao uso em determinado setor econômico de um país. Essa posição costuma basear-se na convicção de que a ocultação é fato generalizado, e que existe certa tolerância ou conivência do Estado a respeito disso6. Um caso típico é a contribuição excessiva de setores de serviço, tanto assim que, na declaração do imposto de renda, o valor da arrecadação costuma ser bem inferior7. Aplicação da parábola à atuação dos fiéis O contraste entre dois grupos de funcionários tem os seguintes termos em comum: a administração, setor de serviços profissionais, contrato de trabalho, dependência do patrão, esperteza para vantagens financeiras pessoais. Uma cena sugestiva precisa de protagonistas. Na época, os historiadores estavam familiarizados com as tendências de populações heterogêneas quanto às ideologias, convicções, e preocupações polêmicas. Veio o cristianismo impondo-se como religião sem utilizar controvérsia, mas introduzindo uma inovação na motivação dos fiéis. Para ilustrar a temática em questão se traça um quadro típico com personagens estereotipadas, que representam dois aspectos divergentes: “filhos da luz” (benê ha’ôr) e “filhos deste mundo” (benê ha‛ôlam hazzeh) ou “os filhos das trevas” (benê hahôšek), como se costumavam 6 I. Camacho – R. Rincón – G. Higuera, Práxis Cristã III, “Opção pela justiça e pela liberdade”, (trd. A. Cunha e B. Brod), Ed. Paulinas, S. Paulo, 1988, p. 301. 7 Uma questão delicada e complexa é a contribuição excessiva no imposto de renda concernente às oficinas mecânicas no Brasil. A justificativa da oneração tributária exigida pelo Estado baseia-se na hipótese de haver sonegação. Em vista disso, os proprietários recolhem unicamente a quantia registrada nos recibos, para cobrir os impostos correspondentes à folha de pagamento, cobrando ao freguês, sem nota fiscal, pelos serviços prestados. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 71 Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13) mencionar nos respectivos ambientes religiosos, isto é, os cristãos e os sectários de Qumrân8. São expressões elípticas referentes aos fiéis que se deixam guiar pela luz divina que inspira suas motivações conscientes e inconscientes, instintivas e volitivas, racionais e afetivas. A designação desses como “filhos deste mundo” é usada na Bíblia como expressão idiomática para indicar uma relação estreita entre pessoas de interesses afins, como p.ex. “filho do diabo” (At 13,10); membros de uma irmandade: “filho de profetas” (Am 7,14); descendência de linhagem “filho de Davi” (Mt 12,23); grau de parentesco “filho do carpinteiro” (Mt 13,55). O Evangelista S. Lucas não intenciona ressaltar uma separação social entre dois grupos antagônicos, mas contrastar duas motivações opostas: a mundana, dos “filhos deste mundo”, e a sobrenatural, dos “filhos da luz”. O que interessa é assinalar uma inovação, isto é, aplicar a motivação de uns para apresentá-la como nova dimensão e compatível com outra finalidade. Em outras palavras, a esperteza do administrador dos bens terrenos deveria servir de paradigma para promover os bens sobrenaturais. A ênfase está na habilidade, usando a esperteza para neutralizar e superar a indolência e o desleixo, não havendo outro incentivo na ausência de atrativos, gratificações e a satisfação pessoal. Um traço essencial e permanente marca a atitude do cristão no desempenho da administração dos bens terrenos e sobrenaturais: é um conjunto de virtudes incluindo a integridade, honestidade e responsabilidade. A começar, trata-se de um patrimônio pertencente a Deus ou ao patrão, que é entregue às mãos humanas para ser administrado de acordo com a capacidade dos talentos concedidos a cada indivíduo (Mt 25,1430). Além disso, está implícita aí, também, uma exigência adicional, ao mencionar-se o fato de que o valor da vida não se reduz à vivência da fé e do amor, mas exige que se produzam frutos constantemente. Daí, quaisquer que sejam nossas limitações, temos que fazer frutificar os talentos que Deus nos deu, esforçando-nos em manter nossa vida e nossas comunidades em constante vitalidade. O objetivo da criação dos seres humanos pode ser comparado a uma transação no mercado financeiro: cada indivíduo representa capital de investimento e, não, capital de risco. O que o Criador tem em vista é produção e não mera subsistência. Na verdade, nossos talentos são 8 72 Em Qumrân recomendava-se uma separação entre os “filhos da luz”, i.e. os sectários de Qumrân e os outros, os “filhos deste mundo” ou “das trevas” (cf. sQs I,9); CD XX,34); em F. García Martínez, Textos de Qumran, (trd. V. da Silva), Ed. Vozes, Petrópolis, 1995. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luís Stadelmann, SJ diferentes, mas todos nós somos de grande apreço diante de Deus: diante d’Ele cada indivíduo é como se fosse único e insubstituível. O que conta, na Igreja e no mundo, é colocar em comum nossos dons, nossas qualidades, diferentes, mas complementares, sem espírito de rivalidade ou de inveja. Ao contrário da mentalidade do nosso tempo, onde só contam os rentáveis, o importante, diante de Deus, não é propriamente o alto nível de rentabilidade ou a superação das aberrações da práxis, mas o esforço de quem quer doar-se aos outros, disposto a fazer de sua vida uma oferta a Deus e ao próximo. A diversidade de dons recebidos do Criador não restringe nem diminui o valor da pessoa. Quer se tenha recebido dois ou cinco talentos, pouco importa! A recompensa a ser concedida é a mesma para todos. Cristo promete uma recompensa que ultrapassa todas as expectativas de generosidade e benevolência divina: “Vem participar da alegria do teu Senhor!” Aos olhos de Deus, a vida humana plenamente preenchida tem a mesma cotação, o mesmo valor. E mesmo, paradoxalmente, rico é somente aquele a quem foi dado em partilha, a quem foi concedido um dom. É este o sentido da palavra surpreendente do Mestre: “A todo aquele que tem será dado mais” (Mt 25,29). O impacto sobre a vida moral A reflexão moral sobre o valor intrínseco do uso e troca dos bens e serviços, leva em consideração também os meios de adquiri-los. Se os bens foram adquiridos por meios fraudulentos, terão que ser restituídos ao proprietário. Esses bens são contabilizados como “riqueza da iniquidade” (μαμωνα της αδικιας, mamona tes adikias)9. A palavra aramaica é usada de propósito como termo mnemotécnico que ocorre na literatura rabínica tratando da restituição da fortuna ao legítimo dono10. O Evangelista S. Lucas traz um ensinamento de Cristo sobre uma alternativa de restituição em forma de contribuição às obras de caridade. O motivo é a solidariedade pelos pobres, pequenos, enfermos, os que carecem da razão de viver e de esperar por um milagre. Esses são os que intercedem junto a Deus pelos benfeitores para que sejam “acolhidos nas moradas eternas” 9 10 O termo “mamona” ocorre em documentos essênios de Qumrân, (IQS VI, 24; CD 14,20; IQ 27,1;2;5) e judaicos contemporâneos do evangelho (Sir 34,8), e em documentos rabínicos. Cf. Rinaldo Fabris, “O Evangelho de Lucas”, Os Evangelhos II, Ed. Loyola, São Paulo, 1-247, esp. p. 166-167. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 73 Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13) (Lc 16,9). É esse um dos motivos que levou o patrão lesado a elogiar a habilidade contábil do administrador. Entre os fatores de deterioração do moderno setor administrativo, referente às transações financeiras, é praxe citarem-se as operações fraudulentas dos contabilistas e a fuga de capital para paraísos fiscais11. A pecha de culpa moral tem um impacto sobre o foro interno da consciência. Aqui incide não somente a revisão da culpabilidade pessoal, mas também a experiência da presença de Deus. Lembremos que não se trata de um procedimento teórico, opondo duas instâncias: moral e religiosa. No Evangelho há o imperativo categórico: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13). É de notar, que “dinheiro” é definido aqui como mamona (μαμωνα της αδικιας), como já foi dito acima . Com isso, abre-se uma nova dimensão à atitude moral dos fraudadores na área administrativa. É que a consciência humana tem igualmente a função de confirmar a proximidade de Deus, dentro do coração humano. Entretanto, insistimos de modo especial que se trata de conhecer a presença de Deus e, não meramente, a idéia da existência de Deus. À luz do conhecimento soteriológico, segundo o método da teologia, se desvenda a dimensão da salvação divina. Na carta aos Romanos se afirma: “A ira de Deus revela-se, lá do céu, contra toda impiedade e injustiça humana, daqueles que, por sua injustiça, reprimem a verdade” (Rm 1,18). Ora, a “ira de Deus” é linguagem figurada para falar do pecado como ofensa a Deus, visualizando sua reação contra o pecado do homem, como reflexo de desaprovação no rosto irado de Deus. Para fins de contraste, no polo oposto, convém mencionar que o perdão tem o reflexo de um semblante amigo que irradia luz sobre a consciência do justo. É importante notar que, para conhecer a Deus, não basta ter a idéia de um Deus distante; a voz da consciência manifesta Deus presente, pois Deus não se manifesta à distância, embora Ele esteja em todo lugar. Entretanto, essa presença de Deus, em todo lugar, parece-nos vaga e difusa. Para Deus manifestarse ao homem é preciso que atue sobre as nossas faculdades superiores (inteligência e vontade). Entretanto, através da Teodicéia não se alcança o critério da presença de Deus, mas o da idéia sobre Deus. A visualização de 11 74 Critérios de seleção entre candidatos para o setor da administração. Para fins de demonstração segue uma narração pitoresca e levemente satírica. Na entrevista dos candidatos foi-lhes perguntado qual é o pré-requisito básico? Respondeu o primeiro: conhecer todas as leis da administração pública e privada. O segundo respondeu: conhecer todos os subterfúgios que se possam usar na contabilidade. Respondeu o terceiro, perguntando: O que o patrão quer que conste nos livros de contabilidade? Esse foi contratado porque demonstrou esperteza. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luís Stadelmann, SJ Deus com sentimentos de ira para com o ímpio e, de amizade para com o justo, ocorre nos Salmos com a finalidade de qualificar o estado espiritual do ser humano. Dessarte, o salmista atribui a Deus um “rosto irado” (Sl 69,25), como reflexo da má consciência do infrator12. A conversão moral terá, por reflexo, um “semblante amigo” (Sl 34,16), voltando-se Deus para reconciliar consigo o pecador arrependido. São recursos sugestivos que os Salmos usam para situar a punição da impiedade no contexto da ira divina, mas colocam o infrator na presença de Deus, porque assim permanece a promessa da salvação ao pecador arrependido. Lembremos também que a amizade de Deus, para com os fiéis, não se reduz a mero sentimento, mas consiste na irradiação da benevolência de Deus, cujo reflexo se manifesta como “luz da Sua face” (Sl 4,7). A questão agora é perguntar sobre a atitude do administrador na presença de Deus. Em outra parábola bíblica se fala da reação do infrator com medo de olhar a Deus. Eis o drama do servo infiel que tornou estéril sua vida, pois duvidou da bondade do semblante de Deus, a quem imaginou severo, implacável, pronto para acertar as contas, e para exigir o balancete: “Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. Por isso fiquei com medo e escondi o teu talento no chão” (Mt 25,25). O talento que o servo recebeu não dá salvação por si só. O dom de Deus deve ser multiplicado pelo lucro a ser produzido. Em outras palavras, o dom da vida humana é precioso; entretanto, seu valor não consiste no fato de alguém estar vivo, mas depende da maneira como ele vive, isto é, o que faz com sua vida. A motivação do cristão, porém, é ter diante de si o perfil de Deus como Benfeitor, cujo semblante amigo é descrito na liturgia como a “luz de sua face”, devido aos sinais de benevolência divina que irradiam sobre os fiéis. Aqui vem a propósito levantar a questão da possibilidade de falar das virtudes de integridade, honestidade e responsabilidade, como requisitos de um administrador de empresas no contexto de uma sociedade secularizada, materialista, e neutra, em matéria de religião e fé em Deus. É que todas as instituições estatais e privadas que aboliram a instância da moral e da religião, suprimiram a vocação do homem para uma relação com Deus, tachando-a de mera superstição e alienação da liberdade 12 Evidentemente, Deus não tem paixões de ira e cólera, porque esses são defeitos que derivam do orgulho e nascem da tríplice concupiscência que não se encontra na natureza de Deus. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 75 Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13) humana. Daí é que cortaram pela raiz toda e qualquer fundamentação da responsabilidade do indivíduo perante Deus, inclusive um dever moral imposto por um Ser supremo na ordem sobrenatural. Resultou um individualismo exacerbado pretendendo erigir-se em instância suprema, mas infelizmente num mundo virtual. Coisas grandes e coisas pequenas A fecundidade ou a valorização da vida humana não se baseia em façanhas extraordinárias ou no exercício de funções importantes, mas na fidelidade às pequenas coisas: “Tu foste fiel na administração de pouca coisa“ diz Jesus (Mt 25,21). Na verdade, não há amor autêntico sem fidelidade ao cotidiano, em muitos pequenos gestos, como também não há pequenas coisas quando são feitas por amor. A irradiação da trajetória terrestre do ser humano é fundamentalmente um assunto relacionado ao coração, à misericórdia, à compaixão diante dos bem-aventurados com os quais Cristo quis solidarizar-se por serem esses os que, no íntimo, têm fome de Deus (cf. o Sermão da Montanha, Mt 5,1-12). Para falar de coisas grandes e pequenas, o evangelista S. Lucas não envereda pela axiologia, no sentido de uma escala de valores do rendimento, da concorrência, do investimento agregado. Ele insiste ao invés na opção pessoal pela fidelidade no cumprimento das “coisas grandes”, isto é, os mandamentos de Deus e da Igreja, e os deveres de estado, e das “coisas pequenas”, isto é, as obras super-rogatórias para manter o hábito de tender à perfeição. Coisas grandes são de natureza espiritual, isto é, “bens espirituais”, tais como a graça santificante, a vocação à fé cristã, a pertença à comunidade de fé e à Igreja. Paradoxalmente em contraste com a opinião em voga, coisas pequenas são os “bens materiais”: p.ex. saúde, vitalidade, talentos pessoais, profissão, emprego. Além disso, tratando desses bens no contexto da administração, cabe ao indivíduo a tarefa de valorizá-los com vistas à prestação de contas a Deus, numa contabilidade que mede as coisas em termos de vida e de relações com a obra da criação13. Daí 13 76 Os bens materiais e espirituais contribuem para a obra da criação, cuja finalidade é manifestar a evolução do cosmo e impedir o retorno ao caos. Compete ao homem preencher este cosmo mediante os frutos da criatividade humana, utilizando os recursos materiais e espirituais. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Luís Stadelmann, SJ que o homem não pode utilizá-los a bel-prazer, mas deve perguntar a si mesmo qual é a vontade de Deus ao confiá-los a mim para serem administrados. Quem fizer assim, “bens maiores” serão confiados a ele, tais como o penhor sobrenatural, a recompensa no céu, a riqueza da graça, e os dons do Espírito Santo, os carismas. Conclusão O estudo de um tema bíblico que pode iluminar, com radiações da fé cristã, as opacidades da realidade econômica de uma comunidade em vários países do mundo é, sem dúvida, muito proveitoso para várias gerações durante diversas etapas da história. Ao ressaltar, de modo especial, o enfoque sobre o tecido social, a Bíblia se concentra na vida da comunidade. Nesse ponto traz uma inovação sobre os múltiplos sistemas econômicos desde o passado até hoje. É que nos grandes impérios estava em vigor quase exclusivamente o interesse nos privilégios e nas vantagens da classe dominante, no controle sobre os setores de produção de bens e de renda, em sintonia com as exigências do crescimento dos cidadãos. Porém, o problema surgiu com a invasão de levas cada vez mais crescentes de migrantes, infiltrando-se em massa, nas áreas habitadas pela população autóctone, diminuindo, cada vez mais, os parcos meios de subsistência e transferindo, para os cidadãos, os problemas das áreas de risco dos países de origem. Um fator importante de desenvolvimento econômico é a diversificação de atividades de produção e mercado, desenvolvidas pelos grupos de apoio aos jovens da “Pastoral de Conjunto” das dioceses. É que os impulsos que provêm das Igrejas e das comunidades religiosas ou de movimentos inspirados por ideais do humanismo podem fortalecer a solidariedade mundial e contribuir para a solução dos problemas candentes de subsistência de populações carentes e subdesenvolvidas. Uma inovação na organização pastoral das dioceses é a ajuda intereclesial no sentido da promoção de um senso de solidariedade entre as paróquias do centro com as respectivas paróquias-irmãs da periferia, na área urbana. O tipo de solidariedade se especifica em termos de assessoria em projetos de desenvolvimento, na prestação de serviços, e na execução de programas de educação permanente. Essa ajuda transcende o serviço assistencial de um grupo privilegiado praticando um gesto de caridade, porque se caracteriza como ajuda em desenvolvimento e ajuda em recursos para toda a comunidade de uma Igreja-irmã. O pedido Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 77 Desequilíbrios no sistema econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13) de assessoria é especificado comunitariamente pelos paroquianos com detalhes de suas carências e solicitando a transferência de tecnologia adequada aos padrões culturais e sociais aí existentes. A execução dos projetos e dos serviços fica por conta de um grupo de peritos com a colaboração de todos os paroquianos. O lema inspirador é “Deus ajuda a quem madruga”. Endereço do Autor: Colégio Catarinense Rua Esteves Júnior, 711 Cx. Postal 135 CEP 88015-130 Florianópolis, SC E-mail: [email protected] 78 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: Este artigo apresenta uma análise exegética de duas expressões que são empregadas para dar nome aos seguidores de Jesus no evangelho de Mateus; são elas “profeta” e “justo”. Dentre elas, a segunda é própria de Mateus, e nossa investigação gira em torno do seu significado e dos motivos que levaram o autor do evangelho a acrescentá-la por conta própria no texto. Palavras-chaves: Evangelho de Mateus; Exegese; Cristianismo Primitivo; Sectarismo; Lei Judaica. Abstract: This article presents an exegetical analysis of two expressions that are used to label the followers of Jesus in Matthew’s Gospel: “prophet” and “righteous”. Among them, the second is Matthew’s own, and our research revolves around the meaning and the reasons why the author of the Matthew’s gospel added it on the text. Key-words: Gospel of Matthew; Exegesis; Primitive Christianity; Sectarianism; Jewish’s Law. Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus Anderson de Oliveira Lima* * O autor é Mestrando em Ciências da Religião (Literatura e Religião no Mundo Bíblico) pela Universidade Metodista de São Paulo (2010), Especialista em Bíblia com ênfase na tradição profética também pela Universidade Metodista (2008), bacharel em música (violão erudito) pela Universidade Cruzeiro do Sul (São Paulo 1999). Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 79-92. Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus Introdução Como informa o título deste artigo, limitamos propositalmente nosso objeto de estudo ao evangelho de Mateus, documento ao qual já nos dedicamos em pesquisas prévias e para o qual pretendemos contribuir ainda mais através deste e de outros artigos. Assim, podemos dizer que o que procuramos estudar nas páginas seguintes são alguns termos empregados pelo autor do evangelho, que exercem no texto a função de designar as pessoas com as quais ele se identifica. Estes são os “justos” e os “profetas”, duas categorias importantes,s que merecem nossas considerações. O curioso neste caso é que ao lermos o evangelho de Mateus e compararmos seus textos com seus paralelos sinóticos (Lucas/Q e Marcos)1 notamos em Mateus o acréscimo do adjetivo “justos” em vários momentos, e é essa particularidade que nos interessa. É evidente que nesta investigação teremos que citar e estudar mais de uma vez passagens dos outros evangelhos, mas é a aplicação mateana da tradição que nos interessa. Chamamos o aparentemente pequeno ajuntamento de pessoas que constituíam o “grupo de Mateus” de “grupo”, e não de “comunidade” como outros fazem. Isso se deve à sugestão de outros que têm argumentado que o termo “comunidade” hoje é carregado de significados modernos, que sugerem uma institucionalização que não condiz com a realidade mateana. Seguimos então a opção de tratá-lo de maneira mais genérica, utilizando-nos sempre do termo “grupo”2. Da mesma forma, em nosso título, chamamos os membros desse grupo de “judeu-cristãos”, com a finalidade de demonstrar que, nos dias em que o evangelho foi escrito, ainda não existia uma fronteira bem definida que permitisse diferenciar os judeus dos cristãos. Eles eram judeus, mas aos poucos diferenciavamse dos demais, num processo que acabaria por dar origem a uma nova religião chamada cristianismo. 80 1 Para uma introdução ao problema da relação sinótica entre os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, e da fonte Q, veja: MARCONCINI, B. Os Evangelhos Sinóticos. pp. 65-67. 2 Cf. SALDARINI, A. J. A Comunidade Judaico-Cristã de Mateus. pp. 147-150; também cf. KLOPPENBORG, J. S. Q El Evangelio Desconocido. pp. 219-221. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson de Oliveira Lima Trata-se então, neste artigo, de identificar em Mateus uma releitura feita sobre os demais textos cristãos, releitura que provocou alterações no texto que as gerações anteriores lhe legaram. Essas alterações, próprias de Mateus, são de particular importância para a compreensão do seu evangelho, por nos mostrarem as características específicas desse grupo judeu-cristão, levando-nos a conhecê-los um pouco mais. As perguntas que procuramos responder ao final são: Por que motivos Mateus modifica o texto herdado de Marcos e Q, acrescentando “justos”? A que se refere o texto quando aplica expressões como “justos” e “profetas”? Que valor a compreensão desse problema em particular pode ter para a leitura do evangelho de Mateus em geral? 1 As origens do evangelho de Mateus Parece haver unanimidade, hoje, que o evangelho de Mateus é um documento judeu-cristão produzido nalgum momento entre as décadas de 80 e 90 d.C.3 e que, para a sua composição, o evangelista se utilizou principalmente de duas fontes escritas anteriores: o evangelho de Marcos e a chamada fonte Q.4 Temos então um texto do final do século I, que é uma releitura de tradições judaico-cristãs mais antigas, sendo Q uma fonte de ditos que teria surgido entre as décadas de 40 e 50 d.C.5 e Marcos, o primeiro dos evangelhos biográficos,6 que nascera nos dias em torno da guerra dos judeus contra Roma, entre 66 e 70 d.C.7 Neste artigo nos dedicaremos principalmente a passagens que o autor de Mateus supostamente compôs a partir da fonte Q, que seria o mais antigo documento escrito da história do cristianismo e cujo estudo permitiu aos pesquisadores identificar os primeiros cristãos, aqueles que deram continuidade ao movimento de Jesus após sua crucificação, como profetas itinerantes, movimento que o próprio Jesus iniciara nas 3 OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise. p. 26. 4 KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento, vol. 2. p. 188. 5 Dentre as obras disponíveis em língua portuguesa sobre a Fonte Q, indicamos a leitura KLOPPENBORG, J. S. Q El Evangelio Desconocido; MACK, B. L. O Evangelho Perdido; e SCHIAVO, L. A Batalha Escatológica na Fonte dos Ditos de Jesus. 6 Para uma classificação mais detalhada sobre os tipos de evangelhos surgidos na origem do cristianismo veja CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. pp. 70-79 7 MYERS, C. O Evangelho de São Marcos. pp. 120-121. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 81 Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus aldeias da Galiléia. Foi a partir da atividade de Jesus no final da década de 20 e desses itinerantes nas décadas de 30 e 40, que surgiram as várias passagens evangélicas em que Jesus convida as pessoas a seguirem-no, dando as costas para a família, aceitando a condição de marginais sem pátria e proteção, enquanto proclamam o Reino de Deus para a salvação dos camponeses expropriados pelo império.8 A recepção da tradição itinerante no evangelho de Mateus nos tem levado a crer que o trabalho desses profetas sem pátria foi determinante na origem do grupo mateano, embora este seja um grupo citadino9, cujos adeptos eram em grande parte sedentários. Sobre isso Jürgen Roloff escreveu: “... o núcleo determinante do grupo mateano originou-se diretamente de um grupo de carismáticos itinerantes que deu continuidade à forma de vida dos discípulos pré-pascais de Jesus. Eles continuavam a praticar o seguimento no sentido radical: pobreza e renúncia a posses, desvinculação da família e da ordem social, disposição para o sofrimento por causa do senhorio de Deus: eis suas características marcantes”10 Essa adoção dos textos originários do proto-cristianismo itinerante nos ajudará a interpretar o texto de Mateus e especialmente a designação “profetas”. Para esse grupo, este ainda é um termo que designa os pregadores itinerantes fazendo distinção entre eles e os demais seguidores do grupo, sedentários citadinos que talvez sejam os “justos”. Outra informação que se mostrará valiosa para nosso trabalho é a de que o grupo mateano, nos dias em que o evangelho foi escrito, estava vivendo um acirrado conflito pela própria subsistência. Depois da guerra contra Roma, a religião de Israel teve de adaptar-se à nova realidade e reorganizar sua fé com a ausência do Templo de Jerusalém e de sua religião oficial.11 O grupo de Mateus era nesse processo uma das opções existentes, e rivalizava principalmente com o que chamamos de Judaísmo Formativo, uma coalizão de judeus (destaque para os fariseus) bem 8 Cf. THEISSEN, G. O Movimento de Jesus. pp. 90-107. 9 Cf. STEGEMANN, W.; STEGEMANN, E. História Social do Protocristianismo. pp. 257-258. 10 11 82 ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento. p. 162. GARCIA, P. R. O Sábado do Senhor Teu Deus. pp. 203-204. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson de Oliveira Lima mais numerosa, que já ganhava terreno e posteriormente daria origem ao chamado judaísmo rabínico.12 A tentativa de unificação da religiosidade judaica refletia-se em pressão sobre grupos sectários como os judeucristãos de Mateus, e sanções não somente religiosas, mas também sociais e econômicas, punham em risco a continuidade do grupo.13 Em resumo, o estudo das fontes nos conduziu à conclusão de que o grupo que deu origem ao evangelho de Mateus nasceu da atividade de pregadores itinerantes, que também lhes legaram o evangelho de Q. Mas, para o grupo citadino de Mateus, era necessário aplicar as tradições herdadas a um novo contexto, cujo horizonte ameaçador era desenhado pelos “judeus”. As designações que pretendemos estudar, deverão ser lidas a partir dessas informações e pressupostos. 2 Pobres e perseguidos por causa da justiça Podemos a partir de agora nos voltar para os textos de Mateus, o que faremos começando pelo estudo das bem-aventuranças, ou para sermos mais específicos, da primeira encontrada em 5.3, e da última em 5.10. Esta última é uma passagem exclusiva de Mateus, e as estudaremos juntamente por corresponderem-se formalmente e por serem bons exemplos para o estudo do trabalho redacional do evangelista Mateus:14 Bem-aventurados Bem-aventurados os pobres no espírito, os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. porque deles é o reino dos céus. Ao falar dos bem-aventurados, certamente o texto se refere ao próprio grupo mateano.15 Serve como incentivo às práticas que adotaram, 12 Cf. STEGEMANN, W.; STEGEMANN, E. História Social do Protocristianismo. p. 255. 13 OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo. pp. 57-64. 14 Todos os textos bíblicos citados neste artigo são traduções do próprio autor a partir do texto grego de NESTLE, E.; ALAND, K. Novum Testamentum Graece, 27a ed. 15 Sobre isso escreveu J. A. Overman em O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p. 32, dizendo: “As célebres bem-aventuranças, glorificadas em grande parte da cultura ocidental como atributos e ações desejáveis, são realmente uma epítome das características que devem separar os judeus mateanos de outros grupos e líderes locais. As bemaventuranças – ou makarismoi, como são chamadas em grego, traçam para o público de Mateus os valores que devem guiar suas decisões e relações cotidianas”. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 83 Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus como elogio e promessa para um grupo que, quando estavam fora de suas assembléias, vivia momentos de tensão. Naquele momento, eles provavelmente já haviam perdido o acesso à sinagoga local, sofriam preconceito pela adoção de Jesus como Messias, e sofriam cada vez mais dificuldades em suas relações profissionais. Essas eram, não todas, mas algumas das principais formas de perseguição que lhes eram impostas; mas tal condição não é pelo texto de 5.10 retratada como desventura, mas como uma exigência da fé cristã mateana. Colocando a opção religiosa que haviam feito em primeiro lugar, eles suportavam a perseguição e acusavam seus perseguidores, como vemos em 5.11-12 e em 10.17-18, onde são acusados os judeus da sinagoga. Enquanto estudamos o linguajar sectário desse texto, chama a atenção que o autor resumiu a causa de tal perseguição em uma só palavra, a “justiça” (gr. dikaiosune). Este parece ser o termo usado pelo evangelho para expressar a perfeita prática da Lei conforme ensinada por Jesus,16 sendo se não o único, um dos principais pontos em que os judeus do grupo mateano discordavam dos seus conterrâneos. A justiça é, portanto, um termo que resume o comportamento adequado e esperado dos membros do grupo,17 consequentemente, o “justo” (gr. dikaios) é aquele que pratica esta Lei. Mais que um adjetivo, o termo “justo” torna-se aqui um substantivo pelo qual são chamados os judeu-cristãos que compõem o grupo de Mateus18 e, além do mais, o termo também acusa indiretamente os adversários que não podem ser outra coisa se não “injustos”. No quadro que apresentamos acima, a comparação entre as duas bem-aventuranças nos permite ver que a condição de pobres19 da primeira 84 16 Veja: Mt 3.15; 5.20; 6.1,33; 13.17; 21.32. 17 Cf. OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise, p. 99. 18 Cf. OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise, p. 378. Veja também: Mt 5.45; 9.13; 13.17,43,49; 23.28-29; 25.37-40,46; 27.19. 19 J. D. Crossan nos lembra que no grego clássico existiam duas palavras para se referir aos necessitados: uma é penes, que aparece em 1Coríntios 9.9, e a outra é a empregada em Mt 5.3, ptochos. A primeira também serve para designar o pobre, mas a pobreza desse penes é menor do que a do ptochos. Enquanto o primeiro é aquele que precisa trabalhar constantemente para suprir os bens necessários, mas ainda contando com o “pão de cada dia”, o segundo é o indivíduo que nada possui, tornou-se um marginalizado, ou como lhe chama Crossan, um indigente. Noutras palavras, o penes é um pobre que ainda consegue com seu labor assegurar o mínimo Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson de Oliveira Lima bem-aventurança, como a de perseguidos da outra, são estados resultantes da opção religiosa do grupo,20 e a prática da justiça e a vida pelo espírito21 são as causas da pobreza e da perseguição. Quer dizer que, ao aderirem ao programa do Reino de Deus, eles acabaram perseguidos, mas essa perseguição não resultou em morte, e sim em pobreza, em limitações sócio-econômicas. A partir dessa interpretação, podemos dizer que as duas bemaventuranças compõem um paralelismo sinonímico, onde não temos duas afirmações diferentes, mas apenas uma idéia, dita duas vezes a partir expressões distintas, mas similares.22 Os pobres ou indigentes de 5.3 e os justos de 5.10 são as mesmas pessoas, os membros do grupo mateano. 2 Profetas e justos Nas frases analisadas acima nós constatamos que o grupo de Mateus, vítima de sanções impostas pela coalizão religiosa majoritária que chamamos de judaísmo formativo, procurava fortalecer a fé e consolarse através das promessas do Reino de Deus àqueles que de boa vontade aceitavam a pobreza e a perseguição. Todavia, essa interpretação não seria a mesma se lêssemos a mesma bem-aventurança em sua versão original em Q. Ali, provavelmente os “pobres” eram todos os seguidores de Jesus, na maioria camponeses pauperizados que deram força ao movimento itinerante. Assim sendo, o grupo de Mateus dava origem a uma nova classe de judeu-cristãos, os “justos”, e ainda que tenham aproveitado o adjetivo “pobres” para designarem-se, era necessário diferenciar estes sedentários, cada vez mais pobres, dos antigos itinerantes que já haviam para a sobrevivência sua e da sua família, enquanto que o ptochos é o pobre que estava à beira ou mesmo abaixo do nível de subsistência, não tendo sequer o mínimo necessário, carecendo assim da ajuda alheia. Cf. CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. pp. 360-362. 20 GARCIA, P. R. As Bem-Aventuranças em Mateus. p. 54. 21 Seguimos aqui a interpretação de Paulo Roberto Garcia, que sobre a expressão mateana ‘no espírito’ escreveu: “... o termo ‘no espírito’ não espiritualiza a palavra pobre, muito pelo contrario, ele aponta o motivo que levou a comunidade a ser pobre. Em outras palavras, pela opção da vida ‘no espírito’, a comunidade passa a ser pobre”. Cf. GARCIA, P. R. As Bem-Aventuranças em Mateus. pp. 50-52. 22 Veja: WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento, p. 91. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 85 Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus aceitado a condição de marginalizados sem posses como modo de vida voluntário. Essa distinção ficará mais clara nesta próxima seção, onde estudaremos outros textos de Mateus, a começar por 10,40-42: (A) O que vos acolhe, acolhe a mim; e o que me acolhe, acolhe o que me enviou. (B1) O que acolhe um profeta no caráter de profeta, (B2 ) recompensa de profeta receberá; (C1) e o que acolhe um justo no caráter de justo, (C2) recompensa de justo receberá. (D) E o que tiver dado de beber um único cálice de água fria a estes pequenos no caráter de discípulo, verdadeiramente vos digo: jamais terá perdido sua recompensa. Se lermos Lucas 10.16 encontraremos uma passagem que se assemelha bastante à construção de Mateus 10.40 (A);23 e em Marcos 9.41 temos a fonte de onde o autor de Mateus retirou o conteúdo de 10.42 (D). Podemos dizer que a versão mateana que acima traduzimos foi composta a partir de outras fontes literárias, mas o que é mais interessante nesta comparação é que são exclusividades mateanas exatamente as linhas centrais dessa perícope (B1, B2, C1 e C2), onde temos uma construção feita com maior esmero poético e onde encontramos os termos “profetas” e “justos”. Eles são aqui utilizados em duas orações quase idênticas para definir o grupo sedentário e o grupo itinerante, evidenciando o que acima dissemos, que Mateus faz distinção entre os profetas itinerantes e os “justos”, praticantes da Lei, que convivem com as desventuras impostas pela perseguição religiosa regional. Imaginamos que em sua versão mais antiga em Q, esse texto tinha a função de estimular o apoio ao ministério itinerante, por meio da hospedagem ou da ajuda com comida e bebida. Todavia, em sua versão mateana, tal incentivo é ampliado, mas não totalmente substituído. Agora, além da ajuda aos profetas itinerantes ainda atuantes, também se requer a ajuda aos “justos”, que desde que aderiram ao movimento judaico-cristão têm sofrido cada vez mais limitações. Noutras palavras, em Q, o propósito do texto era conscientizar os leitores/ouvintes a respeito da necessidade de auxiliar os itinerantes; já em Mateus, também os simpatizantes sedentários chamados de “justos” e pobres são carentes 23 86 Veja também Jo 13,20. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson de Oliveira Lima de tal caridade, motivo pelo qual o texto foi reescrito com acréscimos para também fazê-los alvo da caridade cristã. Prossigamos nosso estudo a fim de atestar com outras evidências nossa hipótese, a de que Mateus faz distinção entre “profetas” e “justos”. Agora vamos comparar Mateus 13,16-17 com Lucas 10,23-24: Mateus 13.16-17 Portanto, bem-aventurados os vossos olhos porque vêem, e os vossos ouvidos porque ouvem. (17) Pois verdadeiramente vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não viram, e ouvir o que ouvis e não ouviram. (16) Lucas 10.23-24 E voltando-se para os discípulos em particular disse: bem-aventurados os olhos que vêem o que vedes. (24) Pois vos digo que muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, e ouvir o que ouvis e não ouviram. (23) Neste ponto de nosso estudo já é possível notar que em geral, a versão mateana é sempre mais cuidadosa em relação às formas, modificando o texto de Lucas/Q. A primeira mudança que constatamos é o acréscimo da “audição” no versículo 16, que não se encontra na versão de Lucas, provavelmente mais próxima da versão original. O acréscimo tem o propósito de contrapor a referência ao sentido que já se encontra no versículo 17. Mas o ponto que mais nos importa é outro, e destaca-se pelos nossos grifos. A versão lucana usa “profetas e reis” para se referir aos homens do passado, ligando dessa forma o texto evangélico às tradições do Antigo Testamento. Os discípulos de Jesus são descritos como pessoas privilegiadas em relação a personagens ilustres como Elias, Elizeu, Isaías, Davi, Salomão, Josias... Por sua vez, Mateus substitui os “reis” pelo seu peculiar “justos”. Uma vez mais ressalta-se a importância que neste evangelho se dá à obediência à Lei, assim como a distinção que o evangelista faz entre o ministério profético exercido por alguns, e a “justiça” que caracteriza as pessoas comuns que, mesmo não sendo profetas, vivem de acordo com os desígnios divinos. Esse exemplo mostra a coerência do autor, que segue alterando as tradições recebidas em momentos convenientes para adequá-la à linguagem já cotidiana em seu grupo. Passaremos agora para o último exemplo, onde Mateus mais uma vez acrescenta, em 23,29-30 os “justos” ao lado dos “profetas”. Desta feita, Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 87 Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus devemos comparar a versão mateana à versão que encontramos em Lucas 11,47, onde nossos grifos ajudarão o leitor a notar tal acréscimo: Mateus 23.29-30 Lucas 11.47 Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, (47) Ai de vós, pois edificais os túmulos dos porque edificais os sepulcros dos profetas e profetas, mas os vossos pais os mataram. adornais os túmulos dos justos, (30) e dizeis: se existíssemos nos dias dos nossos pais, não seríamos sócios deles no sangue dos profetas. (29) Como de costume, o texto mateano é mais extenso e bem trabalhado, e chamamos atenção especialmente para os “justos”, que agora também são os homens fiéis à Lei no passado. Mateus simplesmente tira os “reis” do texto e usa sua maneira própria para designar o grupo judeucristão distinguindo “justos” e “profetas” ao falar dos heróis preservados pela memória nacional. Curioso também é que, ao se referir aos “assassinos”, Mateus faz questão de dizer que ele e os seus não são descendentes deles. Esses assassinos são os pais somente dos escribas e fariseus, ou seja, dos líderes da religião nacional. O grupo mateano vê-se então como continuadores de uma tradição marginal, sempre perseguida pelos poderosos, o que explica a exclusão dos “reis” de entre as vítimas. Ao interpretar o passado dessa forma, Mateus não só acusa os seus rivais como também honra os judeu-cristãos ao relacioná-los com personalidades admiradas da história de Israel. Entretanto, essa honra também possui seu lado negativo, já que, como os antigos, os novos heróis sectários também sofrerão contínua perseguição e talvez até o martírio pela ação violenta dos líderes religiosos. Além dos personagens do presente e do passado que habilmente são relacionados, o texto também apresenta outros elementos importantes, como os “túmulos e sepulcros” dos profetas antigos que aparentemente tornaram-se locais reverenciados. A hipocrisia dos escribas e fariseus está na atitude de agora reverenciar aqueles que foram assassinados por pessoas como eles. 88 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson de Oliveira Lima Ao final de nossas análises podemos dizer que o autor do evangelho de Mateus, consciente de sua posição marginal na sociedade, adota um linguajar próprio de grupos sectários daqueles dias, e não cria uma linguagem própria como poderíamos imaginar enquanto lemos somente os evangelhos sinóticos. J. A. Overman demonstrou que há na literatura não canônica, produzida por grupos sectários diversos,24 discursos nos quais tais grupos expressavam sua revolta diante das lideranças políticas e religiosas que lhes pareciam sempre desonestas, em termos semelhantes aos que vimos Mateus empregar.25 A oposição entre os “justos” do grupo e “pecadores” de fora, não existe somente em Mateus, mas também caracteriza os grupos sectários que deram origem a livros como 4Esdras, 2Baruch, 1Henoc etc.26 O grupo judeu-cristão de Mateus era, portanto, mais um dos diversos pequenos grupos que naqueles dias lutavam por estabelecer seu movimento como normativo para a sociedade palestinense27, depois que o Templo de Jerusalém foi transformado em ruínas. Conclusão O objetivo de uma investigação como a que fizemos é aplicar tais conclusões ao estudo do evangelho como um todo e ao interminável trabalho de reconstrução da história do cristianismo primitivo. Se assim fizermos, teremos que negar a opinião daqueles que pensam que o grupo 24 OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo. pp. 28-31. 25 Cf. Id., ibid., p. 31: “As comunidades sectárias do período sentiam-se perseguidas. Elas não possuíam poder político. Acreditavam que os detentores do poder, o corpo principal, eram corruptos e falsos líderes [...] A linguagem com alta carga emocional usada por essas comunidades revela a frustração e raiva que sentiam por aqueles que estavam no poder [...] Essa linguagem destaca o ambiente competitivo e cáustico e o cenário sectário em que tanto o judaísmo formativo como o judaísmo de Mateus surgiram”. 26 Veja por exemplo: 1Henoc 94.1; Salmos de Salomão 3.3; 2Baruch 14.12-13; 4Esdras 7.17. Outras passagens são citadas por J. A. Overman na obra citada, pp. 29-30. 27 É nossa opinião que o evangelho de Mateus seja produto de um grupo judeu-cristão da Galiléia e das últimas décadas do século I. Embora existam outras hipóteses, seguimos esta que também é defendida em obras como: DUARTE, D. Não Podeis Servir a Deus e às Riquezas. GARCIA, P. R. O Sábado do Senhor teu Deus. OVERMAN, J A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo. STEGEMANN, W.; STEGEMANN, E. História Social do Protocristianismo. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 89 Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus de Mateus era um grupo citadino abastado,28 e investigar com cuidado as possíveis limitações que lhes eram impostas pelo grupo judaico majoritário, sanções que levam o evangelista a classificar seu grupo como pobres/ indigentes e como perseguidos. Além do mais, a recepção do evangelho de Q e, com ele, da tradição dos profetas itinerantes, é indício de que temos um grupo marginalizado, que compreende as reivindicações do cristianismo anterior a si e que vê na fraternidade interna o único meio de sobrevivência à crise, e no exemplo dos profetas sem pátria um exemplo moral e uma alternativa de vida. Esse é o quadro que este artigo começa a pintar, o de um grupo numericamente limitado e gradualmente empobrecido, com dificuldades de relacionamento na sociedade, e que faz de seu evangelho uma arma para lutar contra a extinção. Estamos diante de um grupo oprimido, que para existir tinha que inspirar-se em mandamentos como este: “Buscai primeiro o reino dos céus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas” (Mt 6,33).29 Infelizmente, parece que, até o final do século II, não somente o grupo de Mateus, mas também todos os herdeiros das tradições judaico-cristãs de Q na Galiléia, se extinguiram.30 Bibliografia CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo: Paulus, 2002. CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do Cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004. DUARTE, Denis. Não Podeis Servir a Deus e às Riquezas: Impactos Econômicos no Evangelho de Mateus no Contexto do Judaísmo do Sé- 90 28 Esse é o caso, por exemplo, de Ekkehard e Wolfgang Stegemann, que descrevem o grupo mateano como membros dos estratos superiores da sociedade, e não entre aqueles que viviam abaixo do nível econômico considerado mínimo para a subsistência como maioria. STEGEMANN, W.; STEGEMANN, E. História Social do Protocristianismo. pp. 264-265. 29 Em Mt 6,33 outra vez temos um acréscimo mateano na expressão “e sua justiça” em relação a Lc 12,31. Sobre isso leia: GARCIA, P. R. As Bem-Aventuranças em Mateus, pp. 54-55. 30 OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise: o evangelho segundo Mateus. p. 36. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson de Oliveira Lima culo I. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo (Dissertação de Mestrado), 2009. GARCIA, Paulo Roberto. As Bem-Aventuranças em Mateus: uma proposta de estrutura literária. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo (Dissertação de Mestrado), 1995. _____. O Sábado do Senhor teu Deus – O Evangelho de Mateus no Espectro dos Movimentos Judaicos do Século I. São Bernardo do Campo: Instituto Metodista de Ensino Superior – IMS, 2001. KLOPPENBORG, John S. Q, El Evangelio Desconocido. Salamanca: Sígueme, 2005. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, volume 2: História e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. MACK, Burton L. O Evangelho Perdido: O Livro de Q e as Origens Cristãs. Rio de Janeiro: Imago, 1994. MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo: Paulinas, 2001. MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. 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História Social do Protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 91 Os justos e os profetas: designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004. THEISSEN, Gerd. O Movimento de Jesus: História Social de uma Revolução de Valores. São Paulo: Loyola, 2008. WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998. Endereço do Autor: ITESC Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524 Pantanal 88040-001 Florianópolis, SC 92 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: Na passagem dos 35 anos de existência da Comissão Nacional CatólicoLuterana, o autor começa recordando os fatos que antecederam a criação desse órgão de diálogo oficial. Depois de lembrar que, no período colonial, o catolicismo era a religião do Estado, mostra como essa situação mudou a partir da Constituição imperial de 1824, que assegurava, embora ainda com restrições, a liberdade de culto. Esse ano marca a vinda da primeira leva de imigrantes alemães ao Brasil. Com a República, em 1889, veio a separação entre Igreja e Estado. A Primeira Conferência Missionária mundial, em 1910, na Escócia, preocupou-se com a unidade entre os missionários das diversas denominações, priorizando a evangelização da Ásia e da África. O Congresso Missionário do Panamá, em 1916, voltou-se para a evangelização da América Latina, unindo-se numa polarização anti-católica, não assumida pelos luteranos. Grande marco ecumênico foi a criação do CMI, Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdam, 1948. As décadas de 50 e 60 foram caracterizadas pelo avanço do diálogo ecumênico, principalmente entre luteranos e católicos. O Concílio Vaticano II, 1962-65, reconheceu o Ecumenismo. Em 1975 realizou-se, em São Paulo, o primeiro Encontro Ecumênico de Dirigentes de Igrejas, congregando católicos, luteranos, anglicanos, e metodistas, surgindo pouco depois a Comissão Nacional Católico-Luterana, ativa até hoje. Passo notável foi dado em 1998, com a publicação do documento conjunto sobre a “Justificação por Graça e Fé”. Abstract: In the light of the 35th anniversary of the National Catholic-Lutheran Committee, the author starts assembling some relevant facts anteceding the start of the organization engaged officially in mutual dialogue. After recalling the Catholic religion in the colonial period as the religion of the State, the situation underwent a change in the promulgation of the Imperial Constitution of 1824 by securing the rights of freedom of religious worship, albeit with some restrictions. This year is a significant event remembering the first wave of German immigrants arriving in Brazil. With the transition from the Empire to the Republic in 1889 came the separation between Church and State. The first missionary conference on a world wide extent happened in Scotland in 1910 and was concerned with a consensus among the missionaries of various denominations with special emphasis on the evangelization of Asia and Africa. The Missionary Congress of Panama in 1916 dealt with the evangelization of Latin America, converging on an anti-Catholic polarization, which was not endorsed by the Lutherans. A great step forward in ecumenism was taken with the creation of the World Council of Churches (CMI) founded in Amsterdam in 1948. The following decades of the fifties and sixties gained special characteristics by the advancement of the ecumenical dialogue between Catholics and Lutherans. The Vatican Council II (1962-65) gave its approval to Ecumenism. In 1975 was held in Saint Paulo the first Ecumenical Meeting among the leaders of the Churches, assembling Catholics, Lutherans, Anglicans, and Methodists. Shortly afterwards came into being the National Catholic-Lutheran Committee still effective up to today. An important step forward was taken in 1998 with the publication of the joint document about “Justification by Grace and Faith”. A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios Ervino Schmidt* * O autor é Pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 93-102. A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios É extremamente gratificante podermos olhar para uma já considerável caminhada ecumênica, para uma história comum. Dela faz parte um longo processo de diálogo teológico-pastoral entre nossas Igrejas, diálogo simultaneamente respeitoso e crítico, marcado, acima de tudo, pelo amor. Refiro-me ao diálogo oficial como acontece na Comissão Nacional Católico-Luterana. Aliás, a Comissão no ano em curso completa 35 anos de existência. É justo, portanto, que no início deste encontro de Bispos e Pastores Sinodais, recordemos alguns momentos da nossa história. Queremos antes, porém, fazer referência, se bem que muito breve, a alguns fatos que, de certo modo contribuíram para abrir caminho ao movimento ecumênico. 1 Horizontes se ampliam Um fato que merece ser mencionado como de grande alcance para a instauração do diálogo entre as Igrejas em nosso meio, sem dúvida, foi a declaração de liberdade religiosa no início do Império brasileiro. Durante todo o período colonial a Igreja Católica Romana detinha o monopólio religioso. Ela era, como sabemos, a única Igreja reconhecida. São contingências históricas! Assim, ser cristão no Brasil não era apenas uma questão de fé, mas também legal. Era difícil a vida para os poucos protestantes que havia na época. A título de curiosidade: Em São Vicente, hoje Santos, já em 1554 havia um pequeno grupo de luteranos reunido em torno de Heliodor Eoban Hess, filho de um amigo de Lutero (M. Begrich). O grande movimento imigratório de luteranos, vindos da Alemanha, aconteceu no período do Império brasileiro. No mesmo ano da vinda da primeira leva de imigrantes, ou seja, em 1824, a Constituição imperial já garantia a liberdade religiosa dos acatólicos, assegurando que ninguém podia ser perseguido por motivos religiosos enquanto respeitasse a religião do Estado. Junto com a liberdade, portanto, impunham-se claras restrições. Diz o texto oficial: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com o seu culto doméstico ou particular, em casas para isso 94 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Ervino Schmidt destinadas, sem forma alguma exterior de templo”1. De qualquer maneira, foi um primeiro importante passo. A separação de Igreja e Estado, no entanto, viria mais tarde, com o estabelecimento da República (1889). Vieram para o Brasil, também, movimentos missionários protestantes. Estes buscavam a unidade na estratégia da evangelização. Não deixava isso de ser um esforço de comunhão, porém intra-protestante! A dimensão ecumênica passava necessariamente por um ideal missionário que destacava a evangelização e o engajamento nas ações pela liberdade de culto. Essa era uma constante. Um testemunho protestante mais unido foi também preocupação geral entre as sociedades missionárias norte-americanas e européias. A mensagem a ser levada para as nações não podia ser dividida! Acima de tudo, não podia haver concorrência nos campos missionários. Precisava haver entendimento. Essas foram algumas das preocupações da Primeira Conferência Missionária Mundial, realizada em Edimburgo, capital da Escócia, em 1910. No próximo ano festejaremos o centenário dessa Conferência. Quanto aos campos de missão, a proposta principal era evangelizar os povos considerados pagãos. Pensou-se, principalmente, nos povos da Africa e da Ásia. A América Latina, vista como continente católico, portanto já cristianizado, não era considerada uma região missionária. Mas líderes de algumas juntas missionárias, especialmente das que atuavam no continente latino-americano, mostraram sua insatisfação. Para eles, a decisão de Edimburgo era um equívoco. Conseqüência direta disso foi o surgimento da Comissão de Cooperação para a América Latina (CCLA) que, em 1916, organizou o célebre Congresso do Panamá. Nele, foram traçadas as coordenadas para a evangelização em nosso continente. Firma-se um determinado ideal de unidade e de cooperação. Esse ideal é assumido pelo Protestantismo brasileiro de missão. Ideal que, ao menos em sua expressão inicial, é marcado por uma cultura anti-católica. Percebe-se “entre as Igrejas oriundas do processo missionário, a existência de uma certa unanimidade, não planejada, 1 Constituição imperial de 25 de março de 1824, art 5, apud M. Dreher, Igreja e Germanidade, p 23. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 95 A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios evidentemente, mas em termos de um discurso teológico visceralmente anti-católico, de corte fundamentalista e profundamente marcado por uma ética puritana e individualista”2. Só bem mais tarde começaram a surgir sinais de superação de tal postura. “Era necessário ampliar as fronteiras do convívio ecumênico” (Darli Alves de Souza). Os luteranos, num contexto de protestantismo de imigração, nunca assumiram uma postura marcadamente anti-católica. Já nas primeiras levas de imigrantes alemães, a partir de1824, havia luteranos e católicos, lado a lado. Passaram pelas mesmas dificuldades e tiveram, no sul do Brasil, a mesma acolhida e eram movidos pelos mesmos sonhos. Houve caminhada conjunta. Em alguns casos houve também tensão. Mais tarde, com comunidades já formadas, muitas vezes chegou-se mesmo a profícua cooperação entre as duas confissões. Não se pode, porém, ainda falar de uma consciente iniciativa ecumênica, muito menos de um diálogo oficial. Esse viria mais tarde. 2 Rumo à Comissão Nacional Católico-Luterana Em 1948, o Presidente do Sínodo Riograndense – ainda não havia uma Igreja luterana nacional, a qual começou a surgir um ano mais tarde – o Pastor Hermann Gottlieb Dohms participou, como convidado, da Assembléia de Fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdã. A importância dessa participação é documentada no fato de um número todo de “Estudos Teológicos”, órgão oficial do Sínodo Riograndense, terse ocupado com questões ecumênicas. Viu-se a necessidade de colaborar de maneira mais estreita com o Protestantismo brasileiro e, ao mesmo tempo, incentivar o diálogo com a Igreja Católica Romana. Em 1950, a recém criada Federação Sinodal foi aceita como membro no Conselho Mundial de Igrejas e também na Federação Luterana Mundial. Isso tudo, sem dúvida representou um grande avanço em termos de abertura ecumênica. 2 96 FE-BRASIL: “Ecumenismo, direitos humanos e PAZ”, p.12. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Ervino Schmidt Não podem ser esquecidas as iniciativas do próprio CMI junto às igrejas no Brasil. Já em 1953, por exemplo, através de sua Comissão Igreja e Sociedade, realizou em São Paulo uma Conferência sobre a mesma temática. As décadas de 50 e 60, de maneira especial, foram marcantes para o avanço do trabalho ecumênico entre nós. Os inícios, por razões históricas, se deram principalmente no sul do país. Nesse contexto devem ser mencionadas, sobretudo, duas pessoas que chegaram a ser chamadas de “ícones do ecumenismo brasileiro”3. Trata-se do Pe. Frederico Laufer, S.J. e do Pr. Bertholdo Weber. Há vários outros nomes que poderiam ser citados. Mas deixemos que esses dois, por assim dizer, os representem. Para ambos, o ecumenismo era uma questão de profunda espiritualidade. Em seu ministério, a busca de unidade era uma constante. Viram que era necessário dar passos concretos, que era necessário avançar no diálogo. Pe Laufer era professor no Colégio Cristo Rei, dos Jesuítas, e Pr. Weber, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana. Logo no início do primeiro semestre de 1957, sob iniciativa de ambos, foi realizada uma reunião preliminar para definir os objetivos dos encontros entre as instituições de formação teológica. Nascia, assim, o Grupo Ecumênico de Reflexão Teológica (GERT). Os temas abordados, no decorrer dos anos, foram os mais diversos. O GERT encerrou suas atividades em 1998 Ele foi muito importante porque: 1) ...abriu caminhos para as futuras relações formais entre as igrejas(...); 2) pela preocupação em realizar um diálogo teológico, com a explícita intenção de favorecer a aproximação doutrinal entre os cristãos. As atas mostram o caráter teológico dos temas em discussão, como: Igreja, sacramentos, ministérios, e outros. Isso acena para um compromisso com a perspectiva ecumênica na compreensão da fé cristã...; 3) pela preocupação em fazer com que a busca da unidade tivesse também uma dimensão pastoral, fator esse que se intensificou sobretudo a partir de 1971, quando a publicação da Exortação Apostólica Octogesima Adveniens, da Igreja Católica, impulsionou a atenção para as implicações sociais do Evangelho e para a nova teologia latino-americana. Os trabalhos da Sociedade para o Desenvolvimento e a Paz - SODEPAX e a 3 Jornal Solidário, ano X, n. 429, Porto Alegre, 29de out – 11 de nov. 2004. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 97 A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios nova teologia emergente, na perspectiva da “libertação”, impulsionam os temas focalizados nesse sentido.4 As conversações ecumênicas não podiam permanecer no nível teórico, pois é a natureza das mesmas impulsionar para a ação. Assim, em 1969 foi fundado, em Porto Alegre, o Serviço Interconfessional de Aconselhamento (SICA). Mais tarde, outros organismos surgiram, como o Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria – CECA (1973) e Centro de Estudos Bíblicos – CEBI (1979). Outro passo concreto e importante foi a realização, em 1975, do primeiro Encontro de Dirigentes de Igrejas, com a participação da Igreja Católico-Romana, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e da Igreja Metodista. Esses encontros foram decisivos para a posterior criação do Conselho Nacional de Igrejas. Para os Dirigentes de Igrejas, tornava-se cada vez mais forte a consciência de que a divisão entre os cristãos é contrária à vontade de Deus, um escândalo para o mundo e um obstáculo para o testemunho comum. Sentiram a dor da separação e passaram a empenhar-se, cada vez mais, pelo cumprimento do desejo de Cristo “que todos sejam um” (Jo 17, 21). Propuseram, então, oficialmente, a criação de um Conselho Nacional de Igrejas, “aberto ao diálogo e à colaboração com quaisquer outras organizações eclesiais, sem intenção de substituí-las ou de competir com seus programas” (doc. do CONIC 5, p.53). Entre as atribuições do Conselho está o incentivo aos diálogos bilaterais e multilaterais entre as Igrejas. De grande contribuição para o surgimento do diálogo católicoluterano, tanto em nível internacional, quanto local, foram as conquistas do Vaticano II (1962-65). Novas possibilidades a partir dele se abriram. O teólogo católico, estudioso de ecumenismo, Elias Wolff cita , neste particular, os seguintes elementos advindos do Concilio: “a liturgia no vernáculo, o uso da Bíblia, a nova eclesiologia, a nova relação com o mundo moderno, a nova relação com as igrejas e com 4 98 W. 2002, p 102. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Ervino Schmidt as outras religiões, a elasticidade da reflexão teológica. No Brasil, a presença da Igreja no meio social e o seu compromisso com as questões que o afligem, o surgimento de um modo próprio de fazer teologia, que mostra o vigor e o dinamismo da fé num engajamento concreto no meio social, as comunidades populares que assumem a consciência eclesial, são fatores, entre outros, que influenciam de tal modo na visão protestante do catolicismo que alguns chegam até mesmo a reconhecer nele ‘o rosto da infância do protestantismo’. A Igreja Católica passa a ser vista como uma Igreja-irmã[...] nesse contexto situa-se o nascimento e crescimento do movimento ecumênico no Brasil5. Em 1967 foi criada a Comissão Mista Internacional CatólicoLuterana. Ela foi nomeada pela Federação Luterana Mundial (FLM) e pelo Secretariado para a Unidade dos Cristãos, da Igreja Católica Romana, para iniciar o diálogo, buscando a unidade na verdade e a eliminação das diferenças causadoras de divisão, rumo à comunhão eclesial (koinonia). Em 1973, o Pr. Bertholdo Weber passou a fazer parte dessa Comissão. Nesse período foi aprovado o “Relatório de Malta”, documento que recolhe os primeiros frutos do diálogo ecumênico internacional. Em carta de 23 de janeiro de 1974, dirigida ao, Pe. Paulo Homero Gozzi, então assessor para ecumenismo da CNBB, o Pr. Weber escreve: “A Comissão Mista Católico-Luterana, em sua 2ª sessão realizada de 8 a 12 de janeiro pp., em Roma, deu especial importância ao processo de recepção dos resultados do diálogo entre católico-romanos e evangélicoluteranos, apresentados no documento ‘O Evangelho e a Igreja’[...]. Como primeiro passo, torna-se, a meu ver, necessária a formação de uma comissão mista entre as nossas Igrejas, para uma avaliação do Relatório de Malta e o estudo das implicações conseqüentes para a comunhão eclesial praticada e vivida”6. A CNBB aceitou a proposta e nomeou, no mesmo ano, os padres Jesus Hortal e Sinésio Bohn como seus membros. Já os luteranos seriam representados pelos pastores Bertholdo Weber e Walter Altmann. 5 Wolff, Elias, 2002, p.38. 6 Wolff, Elias, 2002, p.119. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 99 A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios Estava constituída a primeira Comissão Mista Católico-Luterana Naciona! Agora, porém, não se tratava mais de encontros de docentes e sim, de Igrejas através de seus delegados oficialmente nomeados. 3 Alguns frutos do trabalho da Comissão A Comissão Nacional Mista Católico-Luterana desenvolveu, com fidelidade, suas atividades até os dias de hoje. Por vezes, porém, experimentou momentos de estagnação. Mas reconstituía-se e continuava sua tarefa de estimular o diálogo específico entre as duas Igrejas, estudar pontos comuns de doutrina de ambas, refletir os resultados alcançados em diálogos ecumênicos internacionais, organizar seminários de estudo, traçar projetos de ação comum7. Vejamos alguns exemplos de sua atuação: Logo na primeira fase, ela traduziu um importante texto do diálogo católico-luterano internacional, o Relatório de Malta, e realizou, no Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto de Pesquisa Ecumênica de Estrasburgo, França, um seminário que resultou na publicação do livro “Desafio às Igrejas”. No ano de 1978, a Comissão Mista Nacional traduziu o documento “A Ceia do Senhor”. Em 1980 traduziu a declaração: “Todos juntos sob o mesmo Cristo” (devido aos 450 anos da Confissão de Augsburgo), e em 1983, a declaração intitulada “Martinho Lutero, Testemunha de Cristo” (motivada pelo quinto centenário do nascimento do Reformador. Em 1998 a Comissão voltou a realizar seminários. O primeiro foi: “Hospitalidade Eucarística”. Os estudos foram posteriormente publicados. No mesmo ano foi lançado o livro “Doutrina da Justificação por Graça e Fé”, numa co-edição EDIPUCRS/CEBI. Em 1999 a Comissão redigiu uma carta às Igrejas, conclamando-as a ficarem atentas à assinatura do documento de extraordinária importância que viria a ser assinado, em nível mundial, pelas Igrejas Católica Romana e Evangélica Luterana, em Augsburgo, ainda no mesmo ano. 7 100 Cf. Guia Ecumênico da CNBB p. 66-67. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Ervino Schmidt Nos dias 7 e 8 de setembro de 2000, a Comissão realizou, na Casa Matriz de Diaconisas, em São Leopoldo, o seminário sobre Ministérios. Os resultados desse seminário encontram-se na publicação:”Os Ministérios”. Em 2002, aconteceu o encontro de estudos sobre “Comunhão, Ministério e Sacramentos”. Não localizei a publicação. Em novembro de 2004 foi levado a efeito um seminário intitulado “A Tradição Apostólica”. No momento, estuda-se a possibilidade da publicação das palestras também desse seminário. Além de tudo o que foi enumerado acima, houve o planejamento e a realização do primeiro encontro de Bispos e Pastores Sinodais, em 2002. No ano em curso está sendo realizado o segundo. Esses encontros são entendidos como mais um espaço privilegiado de reflexão e vivência ecumênicas. Bem, o que eu fiz foi tecer memória! Não mais do que isso. Não tive a pretensão de apresentar algo completo e acabado. Mas essa breve memória deixa transparecer que unicamente a graça de Deus leva Igrejas a trilharem o caminho da unidade. É no amor imerecido de Deus, também, que estamos aqui reunidos sob o tema: “A Declaração da Justificação por Graça – 10 anos de testemunho no contexto religioso brasileiro”. Concluo com uma observação que o Pastor Presidente Walter Altmann fez, dez anos atrás, sobre a assinatura dessa Declaração Conjunta. Diz ele que a mesma é “uma pedra (quem sabe uma pequena parede) nessa casa de fraternidade eclesial que queremos construir em comum. Essa assinatura foi essencial para fortalecer a base comum da fé que temos em nosso Senhor Jesus Cristo e, naturalmente, propicia a continuação tanto do diálogo teológico quanto da cooperação prática nas comunidades8. Que os trinta e cinco anos da Comissão Nacional CatólicoLuterana e os dez anos da Declaração Conjunta sobre a Justificação por Graça, nos sejam inspiração nos caminhos do ecumenismo, hoje, com seus novos desafios! 8 Os Ministérios, 2000, p.11. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 101 A Comissão Nacional Católico-Luterana. Retrospectiva e desafios 4 Bibliografia DREHER, Martin.N. Igreja e Germanidade. São Leopoldo: Sinodal, 1984. FÉ BRASIL. Ecumenismo, direitos humanos e paz. Rio de Janeiro, 2006. HORTAL, Jesus. 25 Anos de Diálogo Católico-Luterano no Brasil. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 22, n. 1, p 264-270, 1982. SEMINÁRIO Bilateral Misto Católico Romano – Evangélico Luterano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002 (Introdução). SINNER, Rudolf von; WOLFF, Elias; BOCK, Carlos Gilberto (Orgs.). Vidas Ecumênicas: Testemunhas do ecumenismo no Brasil. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Padre Reus, 2006. WEBER, Bertholdo. O Diálogo Católico-Luterano Internacional. Estudos Teológicos. São Leopoldo, ano 22, n. 1, p 271-282, 1982. WOLFF, Elias. Caminhos do Ecumenismo no Brasil: história, teologia, pastoral. São Paulo: Paulus, 2002. Endereço do Autor: E-mail: [email protected] 102 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: Este artigo pretende analisar as estratégias de marketing e de merchandising de algumas denominações religiosas neopentecostais brasileiras e seu ávido esforço para busca, manutenção e atendimento de seu suposto público-alvo. Para tal empreendimento, estaremos utilizando como base epistemológica o paradigma mercadológico das Ciências da Religião. Palavras-chave: religião, neopentecostalismo, marketing, merchandising, público-alvo e mercado Abstract: The purpose of this article is to analyse the strategies of marketing and merchandising of some brazilian neopentecostal religious denominations and their eager to gather and serve their supposed target public. For such study, we will use as an epistemological base, the merchandising paradigm of the Religion Science. Key-words: religion, neopentecostalism, marketing, merchandising, target public and market. Neopentecostalismo e marketing religioso: uma análise das técnicas de merchandising em instituições religiosas brasileiras Anderson Jankus de Souza* * O Autor é Bacharel em Teologia pela PUC/PR, e Pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 103-122. Neopentecostalismo e marketing religioso Introdução A presente proposta de estudo aqui delineada será embasada pelos óculos mercadológicos constantemente referendados pela sociologia da religião. Enganar-se-á quem tentar ler o presente artigo sob o prisma simplesmente religioso, como muitas vezes faz o teólogo cristão, vítima das fronteiras dogmático-eclesiásticas; e enclausurado pela camisa-deforça denominacional. A análise é simplesmente abordada por outra modalidade. É até um “reducionismo epistemológico”. Mas, não há outra maneira para avanços quando se pretende render-se a multifacetada e fragmentada razão ocidental. Pois é bom lembrar que estamos em crise de paradigmas. Tudo está sob/em re-construção! 1 A gênese “Deus está usando os Anglo-Saxões para conquistar o mundo pra Cristo a fim de despojar as raças fracas e assimilar e moldar outras. O destino religioso do mundo está nas mãos dos povos de fala inglesa. À raça anglo-saxã, Deus parece ter entregue a empresa de salvação do mundo.” (Pr. Metodista) Sabe-se que o bom e velho sujeito pertencente a alguma denominação do moderno protestantismo histórico1, consciente de sua tradição e herança se contorceria ao ler o que vamos escrever agora: – “tanto o “pentecostalismo”, como a sua mais nova configuração, o “neopentecostalismo”, são seus primos-irmãos”. Querendo ou não, o “protestantismo” é um desenrolar sócio-religioso de uma vertente do cristianismo que vai se dividindo e/ou subdividindo no reboque da dinâmica social. De maneira celular ele precisa se dividir! Está na sua gênese. Em seu mecanismo interno há uma “reserva de sentido”2 que os grupos dissidentes utilizam com muita propriedade para legitimar a separação. De outra parte, sua 104 1 Protestantismo de missão é o movimento oriundo da Reforma Protestante que tinha em seu bojo o expansionismo denominacional. Aqui no Brasil, os mais conhecidos são: Presbiterianos, Batistas, Metodistas e Congregacionais. 2 “Reserva de sentido” – As possibilidades de um texto dizer mais do que pensou seu autor. In: CROATTO, S. José. Hermenêutica Bíblica. São Leopoldo: Ed. Sinodal & Paulinas. 1986. p. 60. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza pujança reside em se re-adequar para responder sempre às demandas sociais quando necessário. Para se entender um pouco mais do neopentecostalismo é preciso ter em mente três coisas. Primeiramente o próprio ethos do protestantismo. Em segundo lugar EUA. E em terceiro, a demanda mercadológicosocial. Não precisa ser repetitivo para vislumbrar esses três quesitos, que aparentemente cheiram “ares de simplicidade”, mas já foram estudados e re-estudados por vários especialistas. Há uma vastidão de livros e textos demonstrando o que foi e o como apareceu o protestantismo em nosso país3. Entretanto, precisa-se voltar a essas fontes para podermos criar estruturas para que nosso texto não fique suspenso no vazio. Deixaremos de lado as raízes pertencentes ao protestantismo de migração (Geralmente – luteranos e anglicanos). Concentrar-nos-emos mais no outro “tipo”. O protestantismo de missão. Pois é nele, que de fato, concentra-se o “espírito” expansionista e mercadológico norteamericano. Queremos o espectro4. Queremos encontrar o “espírito” do “vendedor-missionário”! Antônio G. Mendonça com muita maestria demonstrou que o protestantismo de missão que vemos no Brasil é fruto de um longo processo de assentamento e re-configuração social, antes de fincar terreno em “terra brazilis”5. Pois, aquilo que chamamos de “espírito” do protestantismo “histórico brasileiro adveio diretamente dos três principais laboratórios da grande emigração européia – Inglaterra, Escócia e Irlanda”6. Nessas três nações foram fundidas as principais doutrinas de parte do protestantismo que desaguaram nos Estados Unidos da América. O protestantismo que se configurou na América do Norte sempre esteve ligado ao “protestantismo de missão”7. Não temos tempo e nem espaço para delinear a “grande empresa missionária expansionista”, proveniente da segunda metade do século XIX. Já se tem literatura farta 3 Cf. Cf. MENDONÇA. G. Antônio. O Celeste Porvir. São Paulo: Ed. ASTE & Pendão Real & Imprensa Metodista, 1995; MENDONÇA, G. Antônio & FILHO, V. Prócoro. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Ed. Loyola, 1990 e LÉONARD, G. Émile. O Protestantismo Brasileiro. São Paulo: ASTE, 1963. 4 Expressão devida a Antônio G. Mendonça para o texto em questão. 5 Cf. MENDONÇA. G. Antônio. op. cit. São Paulo, pp. 48-59. 6 Cf. MENDONÇA, G. Antônio. op. cit. pp. 35. 7 Cf. MENDONÇA, G. Antônio. op. cit. pp. 48-49. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 105 Neopentecostalismo e marketing religioso e abastada sobre o assunto. Mesmo assim, o protestantismo de missão brasileiro só pode ser compreendido, e o é realmente, quando se levar em conta a auto-compreensão missionária do protestantismo puritano norte-americano. Sabe-se que a expansão missionária dos EUA, não só está estritamente ligada ao universo religioso como a doutrina do “Destino Manifesto”8 e dos “Revivals” (Avivamentos), como no caso, do Metodismo de Wesley. Mas também, aos ideais do “imperialismo econômico e cultural” e do “American Way of Life” (estilo de vida americano)9. Na verdade há uma grande simbiose entre Sociedade, Indústria, Mercado, Estado e Religião no “universo ideológico” norte-americano. O protestantismo dos Estados Unidos, no intuito de trazer uma “boa nova” (Euangellion), traz em seu bojo também, o “ethos gestaltico” da cultura hegemônica. Muitos poderiam nos perguntar: Qual a razão disso tudo? Simplesmente, dizer que os traços do neopentecostalismo residente aqui no Brasil, em seu “gene”, têm um pouquinho do “evangelismo transnacional” pertinente às instituições evangélicas tradicionais dos EUA como: Presbiterianos, Metodistas e Batistas residentes aqui. Em um estudo mais acurado, pode-se vislumbrar que, boa parte das instituições religiosas dessa vertente é proveniente de “cismas” ocorridos nas três principais correntes do protestantismo de missão. É nesse sentido que afirmamos, lá no inicio do texto, que o neopentecostalismo é “primoirmão” do protestantismo histórico. 2 O “ethos”: expandir sempre! “Para a América cristã, no final, a extensão do poder e influência nacionais e a propagação da fé são os dois lados da mesma moeda” (In: Clifton Olmstead). Quando olhamos para os EUA, não vemos a “neurose” de domesticação dos fiéis que as instituições evangélicas brasileiras sofrem para 106 8 Doutrina norte-americana que consiste em se denominarem o novo “Israel de Deus” para levar o seu ideal político-religioso e “modus vivende” a todo o orbe terrestre, e com isso implantar a paz e os ideais da “civilização perfeita”. 9 Cf. MOREIRA, S. ALBERTO (Org.). Sociedade Global. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999. pp. 92-102. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza coibir e manter o controle ideológico e comportamental dos mesmos aqui em nosso país. Religião e sociedade nos EUA são quase que a mesma coisa. Os belos hinos cantados pelos “negros batistas” (Gospels) podem ser notadamente tocados por uma banda de “rock ‘n’ roll”, sem escandalizar seus fiéis. Não há muita diferença entre o “secular” e “profano” por aquelas bandas. Eles fundaram as treze colônias (Mayflower)10 sob a égide de ser o povo escolhido por Deus. Eles já habitam um tipo de “moderna Canaã”. Mas precisam expandir tais ideais religiosos, mercadológicos e sociais da poderosa América Cristã por todo orbe terrestre! No afã de “evangelizar” o mundo, acabam introduzindo o “American Way of Life”; bem como suas principais corporações mercadológicas. Interpretamos um dado que para muitos não parece interessante. Parece bobagem! Mas, entendemos ser de muitíssima valia. Observem os jogos e os esportes nos EUA! Dificilmente se observa o lúdico nos jogos americanos. Parece paradoxal. Mas é a mais pura verdade. O “jogo” sem o “lúdico”! Mas, analisem os fatos com os “óculos” que estamos utilizando. O futebol americano é um bom exemplo. A cada “jarda” conquistada, se delimita uma fronteira e se coloca uma “base”. A partir dela, buscam-se novas conquistas. Coisa de Americano! Precisam ter bases militares em todo o mundo. É um campo inimigo a ser conquistado! Precisa-se conquistar, expandir e vencer sempre! Outros esportes como: Basquete e Basebol, estruturalmente, encarnam internamente estratégias de conquista também. Jogo sem ludicidade! Pois, lá tudo soa belicismo, estratégia e conquista; e o seu colega de profissão – o “player” da outra equipe – é um inimigo que precisa ser derrotado! Ao se transferir essas dimensões para o Estado norte-americano, mudando o que precisa ser mudado, vemos a mesma lógica expansiva. Vejamos o relato que se segue: A profunda convicção alimentada pelos americanos de que sua nação tinha sido escolhida para uma missão universal foi nutrida e sustentada através da Guerra Civil e recebeu um novo batismo de poder, no período que se seguiu. Muitas forças se combinaram para exaltar o papel do “Destino Manifesto” na consciência americana. A partir do darwinismo, os americanos tiveram a intuição de que pela seleção natural os Estados 10 Cf. MENDONÇA. G. Antônio. O Celeste Porvir. São Paulo: Ed. ASTE & Pendão Real & Imprensa Metodista, 1995. p. 60. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 107 Neopentecostalismo e marketing religioso Unidos tinham se tornado uma nação superior destinada a dirigir os povos mais fracos. As filosofias idealistas enfatizavam a capacidade natural do homem e, interpretada a história em termos de progresso, tudo vinha favorecer a ideologia expansionista. Em um período em que as nações européias expandiam seus interesses imperialísticos pela África, Ásia, América Latina e Pacífico, os americanos se sentiam comissionados para estender as bênçãos da civilização cristã e o governo democrático (MENDONÇA, 1995, p. 62). É assim que funciona a ideologia expansionista norte-americana. Precisa-se expandir e conquistar sempre! Ingenuidade seria pensar que as instituições religiosas pensam d’outra forma. Em um olhar mais acurado na realidade religiosa dos EUA, vai se perceber que as suas grandes denominações religiosas sempre tiveram um papel legitimador do Estado norte-americano11. E o grande álibi que possuem é “demonizar” os outros! Precisa-se acabar com o “demônio” do paganismo obscurantista dos outros povos/nações e redemocratizá-los. E, com isso, levar o seu ideal social e modus vivendi. Não há outra maneira para evangelizar as outras nações. Assim, no ideal de levar a religião oficial do país, acabam levando suas transnacionais, sua tecnologia e sua cultura também. 3 As corporações do sagrado “Quando uma determinada corporação evangélica faz um acordo com o Estado guatemalteco, ou com o Estado brasileiro, para ampliar sua presença midiática nesses países, esse acordo é conduzido segundo os mesmos critérios mercantilistas que regem a venda do petróleo ou de máquinas” (José Jorge de Carvalho) Max Weber, ao analisar as grandes corporações capitalistas do século passado, já frisava que o capitalismo sistematizado e organizado das modernas corporações capitalistas de nossa era provinha da ascese de seus donos puritanos calvinistas. Muitos afirmam que Weber fez uma leitura apressada da doutrina calvinista da “Glória de Deus”. Mas é difícil solapar os argumentos de um dos maiores pensadores do século passado. Pois, Weber admitia que o lucro e a troca sempre existiram12. Até mesmo 11 Cf. MOREIRA, S. ALBERTO (Org.). Sociedade Global. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999. 12 108 Cf. o livro de: WEBER, Max. Ética Protestante e Espírito do Capitalismo. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza nas sociedades mais primitivas. O que enfatizou foi a sistematização e o cálculo utilizados dentro das modernas corporações capitalistas em torno do trabalho. Pois para o “calvinista puritano”, o trabalho era para a “glória de Deus”! Nada poderia ser perdido! Era sinal de sua eleição. Isso contribuiu para o avanço do espírito do capitalismo no mundo ocidental. Lembrando-se que “Geist” no alemão pode ser traduzido por impulso, força criativa, desconfiamos de que Weber interpretava “espírito” nesse sentido. Hoje em dia, as grandes corporações religiosas seguem à risca o que Weber dizia. Não há mais espaço para o profeta, o mágico e o sacerdote. Seguindo esse matiz de perto, diz um grande especialista em religião no Brasil: “Não sei de nenhuma instância em que os teólogos tenham sido convidados a colaborar na elaboração de planos militares. Não me consta igualmente, que a sensibilidade moral dos profetas tenha sido aproveitada para o desenvolvimento de programas econômicos. E é altamente duvidoso que qualquer industrial, convencido de que a natureza é criação de Deus, e portanto sagrada, tenha perdido o sono por causa dos males da poluição” (ALVES, 1999, p. 10). A ênfase não está mais no “carisma pessoal”, mas na “organização religiosa”. Em um mundo desencantado, esses ofícios são trocados por outra figura. Entra em cena – o “vendedor”. É bom lembrar que, nos Estados Unidos, o vendedor é um “herói”! Ele é um tipo “semideus”, que consegue vencer metas impossíveis e jogar com a incapacidade de seus clientes dizerem “não”! Fazer isso nos EUA é extremamente valorizado. “Mutatis mutandis”, não é o que ocorre com algumas das principais corporações religiosas brasileiras? Um olhar mais clínico, não nos faz observar que a primeira coisa que as igrejas neopentecostais fazem é se estruturarem numa hierarquia rígida e piramidal de poder? Olhemos para o caso da IURD13. O “bispo” Macedo é soberano. O restante são sombras. Quando muito, “ecos” do grande líder. Mesmo os “bispos” do alto escalão são apenas réplicas de um líder que é imitado e referenciado ao extremo. Até o “sotaque”, um nítido “carioquês”, é levado ao extremo 13 Igreja Universal do Reino de Deus. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 109 Neopentecostalismo e marketing religioso por esses, e pelos “pastores” do baixo escalão. Em segundo, a racionalização e segmentação de seu empreendimento. Vejamos: Igrejas de grande sucesso descobriram fórmulas racionalizadas muito eficazes para sua propagação, fórmulas que são tiradas da economia e não da teologia. A igreja é um empreendimento, como o líder religioso deve ser um empreendedor em matéria administrativa, para o que conta com um arsenal de soluções pré-testadas. Em matéria estritamente religiosa repete fórmulas simples e pasteurizadas controladas pela hierarquia, que podem ser ouvidas em qualquer lugar do mundo aonde essas igrejas vão se instalando (PRANDI, 1999, p. 69). Quando em décadas passadas despontavam os grandes pregadores midiáticos como Jimy Swaggarty, Tammy Faye, Jerry Falwell, muitos pregadores, aqui no Brasil, pegaram essa onda. Nesse afã, Macedo de reboque, conseguiu aparecer e foi o grande destaque. Mas, sua ênfase era outra. Os primeiros tinham uma linha mais voltada para o “milagre” e com nítidos traços “evangelicais” lá no mundo do Atlântico-norte. Já no “bispo”, a força estava no “exorcismo” e na “prosperidade financeira”. Dentro em pouco, o líder se consolidou. Nas décadas de oitenta e um pouco mais à frente, a IURD e a IIGD14 viraram “febre” entre os evangélicos no Brasil. Entendido o “ethos” dos fundadores e a estruturação da corporação religiosa, é possível agora analisarmos as estratégias de venda, a sua segmentação e seu mercado de atuação. 4 Os “pê’s” da religião As grandes corporações, que produzem bens de consumo e se aventuram no mercado, precisam adotar uma série de ações para que tenham sucesso e se consolidem. Nenhuma empresa “séria” lança um produto no mercado sem pesquisar seu “público-alvo”. Pois elas não vendem um produto, mas a satisfação de uma necessidade e/ou um desejo, por meio de um suposto produto. A tarefa é saber identificar quais seriam as necessidades desse “público-alvo”! 14 110 Igreja Internacional da Graça de Deus. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza Para os pesquisadores do assunto em pauta, nos anos 50 e até meados de 80, o Brasil passava por vários problemas institucionais. Era uma época de grandes problemas sócio-conjunturais e econômicos. Um Estado desmantelado. Uma inflação desequilibrada. E um povo carente de referenciais. Mendonça chama a atenção para o fato de o fenômeno do pentecostalismo ser mais forte em nações carentes economicamente e com graves problemas sociais (cf. já elencados). Se fizermos um cruzamento dos indicadores, iremos perceber que o aparecimento das grandes corporações religiosas, como no caso do neopentecostalismo, emergem justamente nesse período. Mas acrescentaríamos outro fator, que também não é muito desconhecido dos estudiosos: o “mercado de bens simbólicos” (P. Bourdieu). Esses fatores, aliados a outras forças históricas, é que vão desembocar no uso calculado de estratégias de vendas, segmentação e marketing agressivo por parte das corporações religiosas em questão. Se na verdade elas possuem o “ethos” do vendedor/missionário e do expansionismo norte-americano, já impregnado em sua estrutura consciente e/ou inconsciente, é só por meio do aparecimento considerável da concorrência religiosa, por busca de novos mercados e de “fiéis/clientes”, que as mesmas, por analogia, procuram desenvolver as mesmas linhas utilizadas pelas grandes empresas capitalistas ávidas de lucro. Não basta salvar as almas; antes, é preciso investir, inovar, mudar, para não perder fiéis/clientes e ser “líder” no mercado de “bens simbólicos”. 4.1 O PdV (Ponto de Venda)15 “O ‘P’ de pontos-de-venda é também chamado simplesmente de ponto, praça ou distribuição. É uma forma mnemônica de se referir a um conjunto de elementos que visa tornar o produto disponível para o consumidor onde e quando ele o desejar.” (José Antônio Ferreira de Oliveira, FGV) Facilmente poderia alguém nos contestar com relação ao “ponto de venda” das corporações neopentecostais, alegando que, em quase toda 15 Indicamos aqui as seguintes obras: CAMPOS, S. Leonildo. Teatro, Templo e Mercado. São Paulo: Ed. Umesp & Vozes e Simpósio, pp. 228-231; (Vários Autores). Fundamentos de Marketing. São Paulo: Ed. FGV. pp. 41-44. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 111 Neopentecostalismo e marketing religioso a história do cristianismo, todas as igrejas sempre tiveram “templos”. Isso realmente é verdade! Entretanto, a configuração não é a mesma. Enquanto que nos templos religiosos do protestantismo histórico – em sua arquitetura – os mesmos possuíam uma “áurea sacra” em sua “nave”, vitrais em cores, torres com sinos arremetendo ao incondicional16; toda uma disposição de mobília rigidamente arquitetada em consonância com sua liturgia e teologia – artefatos sacros simbolizando a “história da salvação”; por sua vez, nas novas corporações religiosas, buscam-se espaços amplos e vazios. Geralmente supermercados desalojados e/ou cinemas desativados. A semelhança é enorme aos espaços ocupados pelas lojas dos Shopping Centers. O capitalismo tem essa característica. Ele é selvagem! De pouco em pouco tempo as lojas que estavam totalmente estruturadas recebem nova decoração “in totum”. Precisam mudar para se re-adequarem às novas demandas do mercado. Por isso, não são mais “templos”. Recebem uma nova configuração para as trocas simbólicas. Geralmente eles estão localizados em grandes avenidas de grande circulação. Seguem à risca uma das vértebras do marketing – o “ponto-de-venda”. Vamos dar um passeio no passado. Quem não se lembra do antigo comerciante? Como se dava a disposição dos produtos em seu recinto? Ora, na maioria dos casos, o comerciante ficava atrás de um grande balcão! O cliente indicava/mostrava o que queria, e o dono da venda recolhia, pesava e embalava a mercadoria para o comprador! Hoje, nas modernas redes de supermercados, e até mesmos nas mercearias de bairros da periferia, a disposição visa o famoso “self-service” (sirva a si mesmo). Nas gôndolas/prateleiras o cliente fica à vontade para poder se servir, conforme aquilo que necessita/deseja. É a satisfação das necessidades em uma ambientação semelhante a um passeio. Qual a finalidade do “carrinho de compras”? Seria um passeio no recinto, a imitação de uma viagem? Um “touring” ao paraíso das compras? Sim! Essa é a idéia! Criar um “mundo de sonhos” e uma viagem de satisfação! E nas corporações religiosas? O que os clientes precisam sentir no “ponto-de-venda religioso”? Silveira Campos afirma que as peças do discurso da IURD, por exemplo, seguem quatro passos chaves. Inventio17, 112 16 TILLICH, Paul. Filosofia de La Religión. Buenos Aires: Ed. La Aurora, pp. 61-76 1973. 17 Busca de provas. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza Dispositio18, Elocutio19 Actio20. Elas estão fincadas na história da retórica grega, remetendo a gênios como Aristóteles e Platão. São peças do discurso que tem a finalidade de criar um ambiente de “sentido” coletivo e assim, persuadir o destinatário. Na venda de uma mercadoria, não se vende o produto de “per si”, mas um sentimento que subjaz ao mesmo! É conforme afirma um dos “papas” do marketing: “O cliente nunca compra um produto. Por definição, ele compra a satisfação de um desejo”21. Desta forma, no “templo/mercado”, o “cliente/fiel” se sente com “poder”. O vazio e a lógica do protestantismo histórico são preenchidos pelo “emocionalismo”. Nas igrejas neopentecostais, o “fiel” expulsa o demônio, fica poderoso e torna-se empresário. Na linguagem de Sá Martino a quebra da linearidade dos papéis e funções sociais é que leva a pessoa à busca pelo “sagrado”. Assim, dentro do “PdV religioso”, “permite-se ao fiel nortear novamente a sua vida. Lá ele adquire novas forças para fazer com que sua vida retorne ao fluxo normal, superando os fatores de desequilíbrio social”22. 4.2 A Propaganda23 “O objetivo final é alcançar a dominação tendencial do campo religioso, as condições de monopólio para a produção do sagrado, destituindo os concorrentes de sua razão de ser, provando que suas obras e filosofias são pífias e que seu capital religioso é menor, falível, portanto inútil.” (Luís M. de Sá Martino) Diz o adágio popular que a propaganda é a alma (coração) do negócio! O protestantismo sempre esteve ligado à propaganda/anúncio. 18 Ordenação das partes do discurso. 19 Arte de apresentar o discurso. 20 Ação do ator e recurso à memória. 21 Cf. DRUKER, Peter. O Melhor de Peter Drucker: a administração. São Paulo: Ed. Nobel, 2001. 22 Cf. destaca: MARTINO, S. M. Luís. Mídia e Poder simbólico. São Paulo: Ed. Paulus, 2003. pp. 33-34. 23 Indicamos aqui as seguintes obras: CAMPOS, S. Leonildo. Teatro, Templo e Mercado. São Paulo: Ed. Umesp & Vozes e Simpósio, pp. 239-293; (Vários Autores). Fundamentos de Marketing. São Paulo: Ed. FGV. pp. 44-50. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 113 Neopentecostalismo e marketing religioso Já demonstramos o “ethos” do protestantismo dos EUA, e seu bisneto – o neopentecostalismo brasileiro. Nunca foi novidade que as grandes corporações comunicativas e de imprensa nos EUA são monopolizadas pelas instituições religiosas24. Essa herança subjaz às corporações já delineadas até aqui. A comunicação/propaganda é o pressuposto dessas mega-corporações. Seguindo de perto seu “avô”, o neopentecostalismo entendeu isso muito bem! Investiu pesadamente no “espaço midiático”. E seu discurso, segue e encanta as massas populares com muita eficiência. É lá, que sua mensagem surte o efeito desejado. IURD e IIGD, ambas possuem modernas estruturas de propaganda comercial. Na imprensa escrita, a IURD possui a “Folha Universal”. Já a IIGD o jornal o “Show da fé”. Não somente esse mecanismo, como também as Rádios difusoras e as Redes de televisão. A Rede Recorde é grande símbolo de transmissão. E o que falar de R. R. Soares? Mesmo sem ser “dono” de uma “Rede de televisão”, com a pujança e grandeza da Rede Record de Edir Macedo, ele consegue, mesmo assim, ser o homem que mais aparece em rede televisiva no Brasil. Para as duas instituições supracitadas, a propaganda religiosa tem um único sentido: proclamação e anúncio do poder de Deus. Entretanto, a mercadologia analisa de outro prisma! Para se entender bem a dinâmica da propaganda dentro das instituições religiosas, é preciso ter “óculos socioeconômicos”, como frisa Sá Martino: “A mídia escrita transmite a idéia de objetividade, contribuindo para a difusão de bens simbólicos e conteúdos ideológicos disfarçados de informação neutra. [...] Em se tratando de jornais religiosos, todas as atitudes e ações são tomadas por esse prisma, garantindo a impressão de realidade derivada do prestígio da mídia.” (MARTINO, 2003, p. 58). Dessa forma, achar que os jornais religiosos possuem “neutralidade”, na formulação de seus noticiários,é uma grande ilusão. Nem mesmo nos jornais laicos de grande circulação isso acontece! As informações, antes de serem colocadas “no ar”, passam por uma série de “peneiras” (gate keepers), até receberem a configuração final para o seu destino der24 114 Cf. MOREIRA, S. ALBERTO (Org.). Sociedade Global. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza radeiro. Ou seja, “audiência” e “lucro”. Assim, os jornais religiosos, que supostamente criam nos fiéis a ilusão de informar e mostrar a realidade “nua” e “crua”, na verdade, seguem direções diametralmente opostas. Em nossa interpretação, as informações da mídia religiosa sempre têm três focos principais. a) Criar um habitus entre seus membros para manter a fidelidade deles para com a corporação. b) destruir e/ou desautorizar a concorrência e c) o merchandising de seus produtos. O principal elemento que nos chama a atenção em relação à propaganda das grandes corporações, não seria o elemento a) e nem o elemento b) acima elencados. Pois, todas as instituições religiosas possuem esses mecanismos. Divertimo-nos, quando vemos dentro do protestantismo, a falácia de que a Bíblia é para eles a única regra de fé e prática. Como retórica é belíssimo! Entretanto, na prática não é bem assim. Pois em toda denominação religiosa existe uma “interpretação oficial” dos livros sagrados. Na verdade, quem define o que é regra e prática nas instituições são os detentores do poder interpretativo e normativo. São eles quem dita o que é “certo” e o que é “errado”; em consonância com a interpretação que realizam. Mas agora, em relação à propaganda/merchandising (ponto “c”) de seus produtos, esse é o diferencial que queremos analisar. A grande “sacada” da IURD e da IIGD é o artifício retórico que conseguem introduzir sem serem muito notados. É uma jogada sutil. Eis o grande diferencial! Basta olhar as manchetes dos jornais. Em vez de levarem o “evento Crístico”, eles levam e elevam o poderio institucional e/ou de seus “papas/apóstolos” fundadores. Isso muitas vezes, não é tão fácil de perceber. Pois já falamos que é uma jogada sutil. Mas, vamos tentar analisar. Geralmente, nos jornais religiosos, a propaganda não é em relação ao “Deus” que eles professam. Mas sim, à “corporação”. Na Folha Universal, por exemplo, os grandes fatos de vitória – quando narrados por algum “fiel” – nunca são direcionados à divindade, mas à instituição. Vejamos: “(reviravolta financeira – manchete) Durante 20 anos trabalhou em uma multinacional e apesar de ser bem remunerado, não conseguia desfrutar de uma vida estável e vitoriosa, tampouco obter a tão sonhada ascensão profissional. [...] Mas desde que entrou na IURD decidiu colocar em prática os ensinamentos de como usar a fé de forma inteligente. Hoje, como resultado dessa atitude, afirma desfrutar de uma vida totalmente Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 115 Neopentecostalismo e marketing religioso diferente da que levava antes, sem muitas perspectivas [...] Proprietário de uma academia, afirma:: hoje minha academia faz muito sucesso. e tenho recebido novos clientes a cada dia [...]. Hoje nossa família vive em paz e muito feliz. Houve uma reviravolta em nossa vida, concluí.” (FOLHA UNIVERSAL, 2008, p. 7). Nota-se que a lógica é essa: “encontrei sucesso na IURD e/ou na IIGD”. Não é a partir da “divindade”. Mas sim, do encontro com a “divindade” dentro do lócus já especificado. O que se enfatiza é o poder de “Deus” dentro da corporação! Observamos certa vez, no mesmo Jornal, algo interessante! Em determinada parte, eram colocadas pequenas porções textuais de personagens célebres da humanidade como: Pascal, Marx, Sartre, Unamuno, Aristóteles, Platão e outros renomados. Juntamente com elas, uma frase do “bispo” Edir Macedo. O que seria isso? Elevar o “Bispo” à condição de “gênio”? Mostrar aos fiéis que a instituição tem legitimidade, inteligência? E dessa forma despertar no “público alvo” o status de pertencer a uma instituição fundada por um “gênio”? Para quem não conhece as técnicas de mercadologia e de merchandising do mundo corporativo, isso não tem muito sentido! Mas, tivemos a oportunidade de respirar e viver isso na prática. Trabalhamos em grandes Cia’s de bens de consumo. Mesmo diante de nosso parco “know how”, a estrutura mercadológica é a mesma. O relato acima é merchandising puro! E, cá entre nós, de altíssima qualidade! Poucas pessoas sabem o que realmente acontece nos bastidores das vendas e da segmentação de mercado das grandes corporações de bens de consumo. É uma guerra! Guerra no sentido estrito do termo! Vamos pegar como exemplo novamente as poderosas redes de supermercados. Todos os produtos expostos em suas gôndolas seguem à risca um “planograma”25 negociado em suas “centrais de distribuição”. A Unilever, por exemplo, potência na área de higiene e limpeza, dificilmente deixa seus produtos na parte de 25 116 “Planograma” é o posicionamento em seqüência e segmentado dos produtos e/ou mercadorias expostos nas gôndolas dos supermercados. Nada do que está exposto ali, encontra-se “ao acaso”. Pelo contrário, é nesse espaço, que se dá a grande guerra das corporações para visualizarem melhor seus produtos. Seus “promotores” são pagos e fornecidos, a tais redes, para um único propósito: aumentar o “share” e estimular a demanda. Fazer com que o produto saia do depósito para o interior da loja, rumo ao consumidor final o mais rápido possível. Esse é o seu papel. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza baixo da gôndola (roda-pé). Pois ela sabe, por meio de pesquisas, que o brasileiro é “preguiçoso”. Não se agacha para pegar produtos! Tudo tem que ser fácil e com visibilidade. As empresas se digladiam dentro dos supermercados para posicionarem seus produtos nos chamados “lugares nobres”. Ou seja, nas partes entre o “peitoral” e a “cabeça do cliente”. É ali que eles visualizam os produtos para a compra! No caso das “corporações do sagrado” a lógica é a mesma! Seus serviços e bens simbólicos precisam ser divulgados e anunciados a todo instante, para arrebanhar clientes. Novamente citaremos o exemplo do supermercado. Toda grande rede de mercado tem em seu cardápio uma grande gama de fornecedores. Mas olhem que interessante. O fornecedor fornece! E fornece a todos! A “guerra” das grandes redes de supermercados é essa. Eles têm produtos da Nestlé, da Unilever, da Gillette, da poderosa Procter&Gumble etc. Mas, qual seria o diferencial? O serviço! Não seria o preço? Os preços são quase todos iguais nas grandes Redes! Se assim não for, eles não vendem! O anúncio é: compre no “Big”, no “Angeloni”, no “Mercadorama”, no “Sendas”, no “Carrefour” e/ou no “Super Muffato”. “Temos o melhor dos preços, as melhores possibilidades de compra para você”. Eles não anunciam o produto, mas sim, a possibilidade de melhor compra do mesmo, na suposta Rede anunciante! No caso do universo mercadológico dos serviços religiosos, a dinâmica é a mesma. O fornecedor das bênçãos – “Deus” – fornece a todas. O diferencial é o serviço; bem como as corporações que subsidiam o negócio. A lógica é desvelada aqui. Foi a mensagem trazida pelo missionário R. R. Soares e/ou o “Deus” que encontrei na IURD, que me levaram ao sucesso! Isso já é tão notório em tais instituições, que até as mensagens religiosas dos “bispos”, “apóstolos” e “missionários” podem ser recebidas, hoje em dia, pelo celular. Mas, para que as mesmas resultem em “benção”, precisam ser subsidiadas e interpretadas pelos grandes “líderes” da instituição. Observem o seguinte anúncio: “CD e DVD de R. R. Soares levam multidão em São Paulo. A Festa foi transmitida ao vivo pela nossa Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 117 Neopentecostalismo e marketing religioso rádio”26. Linda mensagem, não? Mas, olhem o resultado do evento no público-alvo: 1) Sempre peço a minha mãe que traga para casa discos de música e de mensagem, preferencialmente dois de cada, pois uso esse material para evangelizar [...] 2) Fiquei presa em uma cama, doente e em depressão, por sete anos. Quando me converti, passei a deixar o rádio ligado sempre na nossa Rádio. A palavra e os louvores foram transformando minha vida. Milagrosamente, fui liberta e comecei aos poucos a recuperar a saúde [...] 3) Meu primeiro contato com a música de Deus aconteceu na Igreja da Graça, a qual conheci quando ainda era dependente químico. Foi nos louvores que encontrei o convite para uma nova vida e forças para buscar tratamento em uma clínica evangélica. Alguns, parecia que falavam sobre minha vida, garante” (JORNAL SHOW DA FÉ, 2008, p. 09) O que observamos? É simples! Com esses indicadores é que a propaganda utilizada pelas grandes corporações religiosas, em seu fundamento, possui sintomaticamente a feitura do merchandising de seus produtos e serviços. Na tarefa de anunciar o “sagrado”, afirmam que o mesmo só tem eficácia quando encontrado/comprado dentro dos “Pdv’s/ Templos” da corporação. As grandes Redes de supermercados, subliminarmente, ajudam-nos a desvendar esse “mistério”! A bem da verdade, e que isso fique bem claro aqui, subliminarmente os jornais e as propagandas televisivas de tais empreendimentos religiosos possuem a mesma dinâmica dos mecanismos de anúncio e propaganda dos empreendimentos de bens de consumo. São flys, panfletos e jornais de vendas de serviços e de produtos sagrados endossados por uma grande Empresa já consolidada nesse mercado. “Pare de sofrer! Tenha prosperidade financeira com as bênçãos de “Deus” que oferecemos aqui!” Essa é, para nós, uma das grandes chaves do sucesso financeiro de tais corporações! 4.3 O preço27 “Preço é somente uma parte do valor.” (Peter Drucker) 118 26 JORNAL SHOW DA FÉ. 10/2008, p. 09. 27 Indicamos aqui as seguintes obras: CAMPOS, S. Leonildo. Teatro, Templo e Mercado. São Paulo: Ed. Umesp & Vozes e Simpósio, pp. 231-236; (Vários Autores). Fundamentos de Marketing. São Paulo: Ed. FGV. pp. 39-41. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza A linguagem religiosa sempre andou de mãos dadas com a ciência econômica. Na verdade, a tradição cristã veterotestamentária é profundamente carregada de pagamentos e de dívidas. Na verdade “Economia” e “Teologia” estão fortemente entrelaçadas. Na atual crise financeira, os Secretários e Ministros da Fazenda e/ou Economia de vários países não se cansam de utilizar a linguagem religiosa também. Adoram falar em “sacrifício”. O “sacrifício” coletivo, para a salvação e o resgate do mercado! Como também vemos, nos medievais, como em Sto. Anselmo e sua “teologia da expiação” do Cur Deus homo28, trabalhando questões como: “preço”, “pagamento” e “sacrifício”. Assim, falar em mercadologia no universo religioso, não é tão desprovido de sentido como pensam alguns. Silveira Campos afirma que na teologia da IURD, por exemplo, o “preço” é a “resposta sacrifical do fiel. Seria a apresentação de uma contra-oferta a Deus por causa da grande dádiva dada por Ele aos homens – seu filho Jesus Cristo” 29. Naturalmente que “preço”, no universo religioso, requer muito cuidado. Porque a fixação do mesmo não é igual ao de produtos/bens tangíveis, mas sim, de um bem intangível (bens de salvação). Acrescentaríamos, entretanto alguns outros produtos. Não é só “salvação”. Mesmo que seja num futuro escatológico. Pois, os neopentecostais se preocupam muito com o “aqui” e o “agora”. Os “bens” e “serviços” que eles vendem são: “prosperidade financeira”, “saúde de homem-de-ferro”, “poder de exorcizar os demônios”, “vitória na vida”; produtos esses, sempre acompanhados com a faixa dizendo: “pare de sofrer”30. O que se precisa fazer para que haja a troca é o “sacrifício”. Sem “sacrifício” é impossível agradar a Deus (“bispo” Macedo). A lógica se dá nos “dízimos” e nas “ofertas”. Quem paga a igreja, obriga “Deus” a restituir o valor. Ele, por causa da “igreja”, repreenderá o “devorador” (Ml 3.10). Desta feita, se o fiel/cliente paga à igreja, por esse ato, Deus será compelido a recompensar o dinheiro investido em forma de “pros28 Obra Clássica de Stº. Anselmo que relata entre outras coisas a “teologia da expiação” e o “preço” – Um pagamento da dívida? Pecado pago com sangue?. Ou seja, - Cur Deus Homo (Por que Deus se fez homem?). 29 Cf. CAMPOS, S. Leonildo. op. cit. p. 232. 30 “Slogan” preferido da IURD para atrair seus possíveis clientes. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 119 Neopentecostalismo e marketing religioso peridade financeira”! Esse é o “preço” estipulado ao “público-alvo” – a saber – o seu “sacrifício” financeiro! Dizem os especialistas, que o que rege o mercado, é a famosa “lei” da oferta e da procura. Ultimamente, tem-se visto o seu império nos templos/Pdv’s da referida corporação. Pois, a fixação do “preço” tem sido feita por meio da dinâmica dessa “lei”. Parece uma “feira” e/ ou “leilão” populares. O “pastor/vendedor” e/ou “bispo/empreendedor” tem utilizado esse tipo de técnica. Lança-se um “desafio” com um valor inicial, que, depois, vem sendo reduzido a “preços” menores. Já se têm muitos “relatos orais” em relação a esse tipo de atuação. Outra coisa que se destaca são os “elementos simbólicos” que são postos à venda. Os mesmos possuem um alto “valor agregado”. “Óleo de Israel”, “pedaço de madeira”, “oliveira” e “pedaço de pano” que foram buscados na “Terra Santa” e abençoados pela autoridade (“bispo/ pastor”) da corporação. O “poder” que deles irradia pode fazer a vida de todo aquele que tem uma “fé inteligente”, (slogan Iurdiano) mudar sua situação financeira do dia para a noite. Lembramos novamente do que diz Drucker: “As pessoas não compram um bem de “per si”, mas sim o desejo que subjaz a ele”. Pagam-se altos “valores” pelo poder de transformação que tais elementos conferem aos clientes/fiéis. Vejamos o que diz Silveira Campos: Entre outras estratégias de comunicação está o emprego de símbolos tradicionais da religiosidade popular como água, sal, vinho, óleo, pão, pedras-símbolos, flores, manto abençoado e outros mais [...] Todos esses são apresentados como pontos de contato que são oferecidos exaustivamente pela mídia Iurdiana ao seu público (CAMPOS, 1997, p. 277). E ainda mais, Decida-se agora mesmo. Dê adeus às doenças, à miséria e todos os males, tenha um reencontro com Deus e assuma novamente a sua posição na família de Deus [...] A vida abundante que Deus, pelo seu grande amor, nos garante através de Jesus Cristo, inclui todas as bênçãos e provisões de que necessitamos, ou mesmo que venhamos a desejar [...] Não perca a oportunidade de ser sócio de Deus. Coloque-se à sua disposição com tudo que você tem e comece a participar de tudo o que Deus tem [...] O dinheiro é uma ferramenta sagrada usada na obra de Deus [...] O dinheiro, que é humano, deve ser a nossa participação, enquanto que o 120 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Anderson Jankus de Souza poder espiritual e os milagres, que são divinos, são participação de Deus. [...] Dar o dízimo é candidatar-se a receber bênçãos sem medida [...] Quando pagamos os dízimos a Deus, ele fica na obrigação de cumprir a sua palavra (CAMPOS, 1997, p. 233). Dessa forma, ficam evidentes quais são os “produtos” e o “preço” que os fiéis/clientes pagam para conseguir tais benefícios. Lembramos que, naturalmente, quem está em situação de caos e de desilusão para com a vida, torna-se muito mais vulnerável e susceptível a esse tipo de “oferta”. Seria como entrar em um supermercado para fazer uma pequena compra semanal “com fome”... Eis a grandeza do empenho... eis o seu sucesso... Conclusão A grande “sacada” das corporações religiosas que se aventuraram no mercado de bens simbólicos e serviços de consumo, foi a inteligência de saber adequar os seus símbolos às demandas existentes em determinado período da história. Apenas transplantaram a estrutura e organização das modernas corporações racionalizadas capitalistas ao seu universo. Tais estruturas, além de possuírem poderosos aparelhos de comunicação e de imprensa, não possuem um corpo de trabalhadores com vínculo empregatício. A isenção de impostos, por se tratar de instituições filantrópicas, quando mensurável, é assustadora! Somando todos esses fatores à genialidade de seus pastores/ vendedores bispos/empreendedores, temos a razão de seu sucesso mercadológico! Acredito que poucos sobreviverão se não se adequarem às regras das grandes corporações no mundo econômico! É mudar para sobreviver. Ou, quem sabe, mudar para não morrer! Eles mudaram... E são os “gigantes” dos negócios da fé! É só “calcular” para “crer”. Referências CAMPOS, S. Leonildo. Teatro, Templo e Mercado. São Paulo: Ed. Umesp & Vozes e Simpósio, 1997. VV. AA. Fundamentos de Marketing. São Paulo: Ed. FGV, 2006. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 121 Neopentecostalismo e marketing religioso MOREIRA, S. Alberto (Org.). Sociedade Global. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999. CROATTO, S. José. Hermenêutica Bíblica. São Leopoldo: Ed. Sinodal & Paulinas 1986. FOLHA UNIVERSAL (02/11/2008). JORNAL SHOW DA FÉ. (10/2008). MARTINO, S. M. Luís. Mídia e Poder simbólico. São Paulo: Ed. Paulus, 2003. MENDONÇA. G. Antônio. O Celeste Porvir. São Paulo: Ed. ASTE & Pendão Real & Imprensa Metodista, 1995. WEBER, Max. Ética Protestante e Espírito do Capitalismo. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006. ALVES, Rubem. O Que é Religião. São Paulo: Ed. Loyola, 1999. PRANDI, Reginaldo. A religião no Planeta Global. In: ORO, P. Ari, STEIL, A. Carlos (orgs). Globalização e Religião. Petrópolis: Ed. Vozes. 1999. Drucker, Peter F. O Melhor de Peter Drucker: a administração. São Paulo: Ed. Nobel. 2001. TILLICH, Paul. Filosofia de La Religión. Buenos Aires: La Aurora, 1973. MENDONÇA, G. Antônio & FILHO, V. Prócoro. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Ed. Loyola, 1990. LÉONARD, G. Émile. O Protestantismo Brasileiro. São Paulo: ASTE, 1963. Endereço do Autor: E-mail: [email protected] 122 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Resumo: O objetivo do artigo, expresso no seu título, é o enquadramento do Ensino Religioso na pós-modernidade. Após refletir sobre o niilismo e o “fim da religião”, o autor comenta o “retorno ao sagrado” e, a seguir, descreve o “pluralismo religioso na pós-modernidade”. Apresenta, então, o Ensino Religioso, como um “modelo que se adequa à pós-modernidade”. Comenta detalhadamente a “regulamentação do Ensino Religioso”, em 1996, e reflete sobre a “globalização da religião”, visível nas propostas vigentes do Ensino Religioso. Na opinião final do autor, “o modelo supra-convencional de Ensino Religioso, tendo como conteúdos programáticos os propostos pelo FONAPER, é o que melhor se enquadra à pós-modernidade”. Abstract: The object of this article is the enrolment in the discipline of Religious Education after post-modernity. Prior to the state of affair some thoughts have been brought to attention concerning nihilism and the “end of religion”, and now the focus is directed towards the “return to the sacred” arriving at “religious pluralism in the era of post-modernity”. Special attention is paid on Religious Education as a model to be achieved in post-modernity. Detailed comments are made about the “Directives of religious Education” issued in 1996, and some thoughts are developed on the “globalization of religion” extant in the proposals in vogue relating to Religious Education. Summing up this exposé the author offers a model superseding the conventional programs of Religious Education including the contents in each discipline as proposed by the FONAPER which by far is the best offered after post-modernity. O ensino religioso na pós-modernidade Antônio Lopes Ribeiro* * Graduado em Pedagogia, Teologia, pós-graduado em Diálogo Ecumênico e Interreligioso pelo ITESC/SC e mestrando em Ciências da Religião, na PUC/GO. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 123-140. O ensino religioso na pós-modernidade Introdução Falar de Religião na Pós-Modernidade requer uma mentalidade aberta às mudanças globais que têm ocorrido. O que é a religião, dirá Rubem Alves (2007, p. 27), “senão um sonho de grupos humanos inteiros? A religião é, para a sociedade, aquilo que o sonho é para o indivíduo”. Acontece que o indivíduo pós-moderno mudou sua maneira de sonhar, o que afetou consequentemente sua maneira de ser religioso. A religião não pode ser mais concebida da forma tradicional, numa sociedade em que o pluralismo religioso cresce da noite para o dia. Segundo Martin Buber (2007, pg. 15), uma época pode ser caracterizada por meio das relações “que nela se manifestam entre a religião e a realidade”, e qualquer interpretação que queiramos ter da realidade atual será realizada sempre num contexto sociocultural, dentro de uma tradição geralmente fundamentada numa religião (cf. MIRANDA, 2006, p. 263). No caso do Brasil, ainda predomina o Catolicismo. Mesmo assim, qualquer interpretação que seja, não será completa, pois a época em que vivemos, caracterizada por mudanças profundas, afetou também a religião, que, na pós-modernidade, se apresenta de forma fragmentada, bastante diversificada e pluralizada. O nosso objetivo neste artigo é o enquadramento do Ensino Religioso na pós-modernidade. Seria impossível conceber um modelo de Ensino Religioso ideal para a atualidade, sem um conhecimento prévio de como se encontra a religião no contexto da cultura pós-moderna, no qual a relação entre a Religião e a realidade encontra-se profundamente alterada. Uma pergunta um tanto sugestiva para iniciar qualquer análise sobre como se encontra a situação atual da religião, sem dúvida é esta: Será que Nietzsche tinha razão ao anunciar a “morte de Deus”? Uma vez morto, seria também o fim da religião, pois a mesma perderia essencialmente seu sentido de ser no mundo. 1 O niilismo e o fim da religião Existencialistas como Nietzsche e Heidegger apostaram no desaparecimento da religião, com a perda dos valores supremos, reduzindo a crença no absoluto como algo efêmero, sem qualquer valor. Nietzsche chegou a anunciar “a morte de Deus”, com o conseqüente fim da metafísica (idealizado por Heidegger). Para Vattimo (2004, p. 20), fica a impressão de que “o anúncio da morte de Deus não fecha definitivamente 124 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro o discurso relativo à religião”, mas pelo contrário levanta a questão: “se, e até que ponto, o que Nietzsche chama de “morte de Deus” (ou superação do Deus moral) [...] implica realmente o término de qualquer possível experiência religiosa”. Porém, a religião não deixou de existir. Esse Deus que morreu é o que Pascal chamava de “Deus dos filósofos”, cuja morte tornou-se terreno fértil para a abertura do “caminho para uma vitalidade renovada da religião” (ibid, p. 24). Segundo Vattimo o fim da metafísica e a morte do Deus moral “liquidaram as bases filosóficas do ateísmo” (p. 27), fazendo com que os filósofos de hoje sejam ou irreligiosos ou anti-religiosos “por inércia, e não em função de fortes razões teóricas”. Antes, Deus era negado por dois motivos: ou por não ser verificável empiricamente,ou por sua superação no “processo de iluminação da razão”. O fim da metafísica, segundo o autor, corresponde “sem nenhuma ligação de dependência causal”, ao “renascimento do religioso no seio da sociedade industrial avançada” (ibid), tendo em comum as mesmas circunstâncias históricas. Dentre essas, vale destacar que, com o fim do colonialismo, houve uma libertação das culturas “outras” “que tomaram a palavra nas sociedades ocidentais [trazendo] consigo as suas próprias teologias e crenças religiosas” (p. 27) e o desenvolvimento de uma sociedade multiétnica, na maioria dos países industrializados. Aquilo a que o autor denomina de “retorno da religião” ou “renascimento da religiosidade”, embora existam outros elementos motivadores, tal retorno ou renascimento parece depender da dissolução da metafísica. A liberação da metáfora é que “torna novamente possível aos filósofos falar de Deus, de anjos, de salvação etc., e é sobretudo o pluralismo característico das sociedades da tarda modernidade que permite que as religiões venham de novo à tona” (p. 28). Portanto, como vimos, quem morreu foi o Deus dos filósofos, não o Deus cristão e de outras religiões, que permanece vivo e assim também a religião. Um jovem caminha pela rua vestido com uma camiseta com os seguintes dizeres estampados no peito: “Deus está morto, assinado, Nietzsche”; estampados nas costas, “Nietzsche está morto, assinado, Deus”. Isso ilustra bem sobre a consciência atual a respeito de Deus: a morte de Deus não se comprovou e muito menos o desaparecimento da Religião. Pode-se admitir que as grandes tradições religiosas tenham se enfraquecido, devido à perda de poder causada pelo processo de seculaEncontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 125 O ensino religioso na pós-modernidade rização e com a idéia de que Deus já não era mais o centro do universo e sim a razão, aliada à ciência. Aconteceu uma descentralização do transcendente, saindo da esfera da religião, passando para a subjetividade do indivíduo. O sociólogo Zygmunt Bauman (1997, P. 231), ilustra bem isso: a pós-modernidade tornou-se a era dos especialistas na identificação de problemas, de “restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de ‘auto-afirmação”. Esse autor intitula a era em que vivemos como a era do “surto de aconselhamento”, em que ”a incerteza de estilo pós-moderno não gera a procura da religião: ela concebe, em vez disso, a procura sempre crescente de especialistas na identidade” (BAUMAN, 1997, p. 222). Os homens e mulheres de nosso século, perante suas incertezas, não “carecem de pregadores para lhes dizerem da fraqueza do homem e da insuficiência dos recursos humanos”. Mas precisam, sim, da “reafirmação de que podem fazê-lo [e de] como fazê-lo” (Ibid). No mundo secularizado, a prática do sagrado se desloca da esfera do tradicionalismo religioso para irromper de forma diversificada no mundo profano, num pluralismo que envolve seitas, cultos, misticismo, magia, esoterismo, filosofias orientais, yoga, horóscopo, Wicca (bruxaria), Nova Era etc. Há uma crescente busca de emancipação de alguns fenômenos principalmente advindos do movimento da Nova Era, que são “defendidos como religiões por seus seguidores exatamente com o objetivo de elevá-las ao status legal e social tradicionalmente desfrutado pelas religiões” (DENNETT, 2006, p. 19). Na realidade, defendem a idéia de uma religião sem Deus ou deuses, cuja definição seria a de “um sistema social cujos participantes confessam a crença em um agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam” (Ibid). Embora, na visão do mundo atual, a idéia de Deus e da Religião se encontre totalmente diferenciada da visão tradicionalista, principalmente a cristã, o niilismo não pôde dar seu grito de vitória. De fato, sua profecia não se cumpriu, pois tanto Deus quanto a religião permanecem vivos. 2 O retorno ao sagrado Acontece atualmente uma prática religiosa totalmente nova, em que o indivíduo sente-se livre em ser, por exemplo, um fervoroso católico que participa de um grupo pentecostal (diga-se RCC) na Igreja Católica Oficial, podendo aproximar-se da ioga, ir à Índia e descobrir o asceta Sai Baba, com sua mensagem transcendente, e na volta fundar um círculo de 126 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro seguidores do referido guru para freqüentá-lo aos domingos após a missa (cf. ORO; STEIL, 1997, p. 34). Vemos aqui um verdadeiro sincretismo, em que se aproveita um pouco de tudo: de catolicismo, de hinduísmo, de pentecostalismo, numa prática solitária e sem culpa em que, para o indivíduo envolvido, o que está dividido e até mesmo em conflito, está unido (cf. Ibid). Esse tipo de prática religiosa evidencia certa confusão e desorientação frente a um mercado religioso cada vez mais crescente, com uma infindável variedade de ofertas religiosas, que levam, por falta de conhecimento e aprofundamento, a uma duplicidade de fé. Por outro lado, verifica-se atualmente uma prática religiosa de contestação, com relação às religiões tradicionais, principalmente em função das rígidas exigências para a adesão de fé, que leva o indivíduo a uma prática mais “light” da religião, atirando-se “com avidez sobre as correntes esotéricas, a magia, a astrologia, as técnicas de meditação e aperfeiçoamento psíquico [caindo], nas mãos de gurus e mestres formados nas teosofias orientais” (RAMPAZZO, 1996, p. 161). O professor Wilmar Luiz Barth (2007, p. 102), da PUC/RS, se refere ao retorno ao sagrado como um “boom” religioso pós-moderno, cuja prática “não se restringe a uma camada social. São ricos e pobres, doentes e sãos, professores universitários e serventes de pedreiro. Todos professam sua crença e a manifestam na medida de suas necessidades”. Essa manifestação de crença dá-se de forma bastante diversificada, em que não se fala mais em religião tradicional, mas em religião de alguma tribo: “surfistas, eskaitistas, homossexuais, empresários liberais etc” (Ibid, p. 102). Para Luiz Barth, o que existe na verdade “é a formação do ‘coquetel religioso’. O homem pós-moderno vive a religião ‘à la carte’, de tipo ‘self-service’, numa mistura de vários aspectos que mais interessam e satisfazem as exigências e necessidades momentâneas”, em que, ao se buscar um sentido para a vida, “cria-se o deus e a religião pessoal... “, admite-se: “Jesus Cristo sim, Igreja não” (Ibid, pg. 102). Esse “boom” religioso a que se refere o autor é caracterizado por um “misticismo difuso e eclético”, “onde se vive a preferência religiosa” e o “suave consumismo religioso”, cuja razão de ser se dá principalmente pela perda do domínio da religião, em que “qualquer pessoa pode atribuir-se o título de ‘bispo’, missionário, e oferecer o serviço religioso como qualquer serviço de tele-entrega rápida e soluções milagrosas” (Ibid, p. 103). Tal prática Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 127 O ensino religioso na pós-modernidade religiosa estaria completamente de acordo com a definição de Religião dada por William James, que a qualificou como “os sentimentos, atos e experiências de homens, individualmente, em sua solidão, desde que se vejam em relação com qualquer coisa que possam considerar divina” (JAMES, 1902, apud DENNETT, p. 21). Torna-se bastante evidente, na era atual, uma acentuada perda de valores e de sentido da verdade. Se antes o indivíduo tinha como referencial dos valores éticos e morais, aqueles ensinados pela religião, agora o indivíduo se vê sem qualquer referencial válido para nortear seus princípios, ficando à mercê das ideologias de consumo a serviço do neoliberalismo, as quais pregam uma falsa idéia de felicidade: o indivíduo é tanto mais feliz, quanto mais bens possuir. Essa perda de valores, e também do sentido da verdade, tem feito com que muitas pessoas, ao experimentarem um vazio espiritual, que nem a ciência e nem a religião podem preencher, busquem as alternativas oferecidas pela Nova Era, a sensação do momento. A Nova Era surge como expressão do retorno ao Sagrado, com plena força, como uma das ofertas do mercado religioso, evidenciado na pós-modernidade. Apresenta-se como alternativa às religiões tradicionais, com vocação de ser grande, única, universal, cujo sonho é “recriar, já não desde a racionalidade lógica, mas, desde a intuição, uma visão holística que supere as dicotomias e alcance a totalidade: ciência e mística, num mundo físico e espiritual” (LIBÂNIO, 1995, p. 41). Também chamada de New Age, a Nova Era marca o fim da “Era de Peixes”, para a entrada na “Era de Aquarius”.1 É caracterizada principalmente pelo misticismo, sofrendo fortes influências das religiões orientais, principalmente do budismo, em que a pessoa pode se auto-realizar sem a ajuda da ciência, da religião e, conseqüentemente, sem a ajuda de Deus. Esse fenômeno, que muitos denominam de religião da auto-ajuda, em plena pós-modernidade, se apresenta como uma alternativa às religiões tradicionais, oferecendo uma espiritualidade “light”, que tem arrebanhado diversos tipos de pessoas, desde os agnósticos, a até mesmo cristãos tradicionais, que aderem a esse movimento, em que tudo é válido e o indivíduo pode alcançar todo o seu potencial, sem intermediação da religião. Portanto, como vimos, a religião da pós-modernidade passa a ser caracterizada como uma religião “sem fronteira e sem território, sem 1 128 Tem como sua principal arquiteta a escritora Marylin Ferguson, autora do livro “A Conspiração de Aquarius”, em que anuncia o fim da “Era de Peixes” e a entrada na “Era de Aquarius”, governada por uma consciência diferente e universal. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro ser contudo universal e única, como o catolicismo, o protestantismmo clássico e o Islão” (ORO; STEIL, 1997, p. 69), o que se torna um grande desafio ao ER, no que se refere à liberdade religiosa do educando, com seu direito pleno e assegurado pela lei, de professar a sua fé. 3 O pluralismo religioso na pós-modernidade Antes alicerçada por um princípio religioso, principalmente sob a égide do cristianismo, a sociedade atual, num mundo globalizado, caracteriza-se por um processo de transformação muito intenso dentro de seu seio, tendo ingressado no terceiro milênio “com seu campo religioso profundamente transformado e reordenado, em que diferentes formas de expressão religiosa – institucionais e não-institucionais, tradicionais e novas, permanentes e efêmeras, fundamentalistas e performáticas, sectárias e ecumênicas – convivem no contexto de um pluralismo que parece não colocar limites à diversidade” (STEIL, 2008, p. 7). Assim, nesse contexto de mudanças, surge esse fenômeno que se denomina como “pluralismo religioso”. Embora tenha se iniciado na era moderna, fomentado principalmente pela separação entre Igreja e Estado, permitindo com isso a “emergência de diferentes grupos religiosos que irão atuar no nível da cultura e do conhecimento” (ibid, p. 8), neste início de terceiro milênio, o pluralismo religioso irrompe como fenômeno, de forma bastante acentuada, num crescendo incomparável de novas formas de expressão religiosa, como vimos anteriormente, de retorno ao sagrado, ocupando assim definitivamente seu espaço no mundo globalizado, na era pós-moderna. Com a perda de monopólio da Igreja, o Estado se torna laico, passando a garantir a liberdade religiosa, tanto aos indivíduos que crêem, como àqueles que não crêem. O pluralismo religioso surge como um novo paradigma da teologia das religiões, nivelando todas as religiões, como iguais, verdadeiras, que na sua essência, embora sigam caminhos diferentes, convergem a um mesmo fim. Esse é o contexto portanto no qual se enquadra o Ensino Religioso, cujo objeto de estudo é o fenômeno religioso. 4 O ensino religioso: um modelo que se adequa à pós-modernidade Como vimos anteriormente, a pós-modernidade é caracterizada por grandes transformações de ordem econômica, política e sócioEncontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 129 O ensino religioso na pós-modernidade cultural, que afetaram a maneira de ser do homem pós-moderno. Isso fez com que a educação tomasse novos rumos, no contexto atual. Com o processo da globalização, a educação também tem de ser pensada de forma globalizada, universal, pois, como formadora da cidadania, tem que contextualizar-se. Consequentemente, no que se refere ao Ensino Religioso, em vista da secularização e de um mundo globalizado, em que se emerge um pluralismo religioso cada vez mais acentuado, principalmente pela interação das culturas no mundo todo, não há mais espaço para o modelo tradicional catequético, exclusivista, praticado pela maioria das instituições confessionais. Esse modelo, por demais ultrapassado, dá lugar a um novo modelo, defendido pelo Estado, não mais sob a batuta de uma religião, mas de acordo com a legislação vigente, com alcance às várias formas de expressão de fé, que se constitui no pluralismo religioso. Ao longo de toda a sua história, o Ensino Religioso foi sofrendo transformações, mas sempre ministrado como ensino catequético, tanto pela Igreja Católica quanto pelos protestantes. Sempre se questionou a presença do ER na escola pública, com relação à sua coerência, em função da “confessionalidade religiosa e da laicidade do Estado” (PASSOS, 2007, p. 50). Ademais, há uma diferença substancial entre a atividade-fim de um e de outro, pois a catequese “é vista como atividade de educação da fé, realizada no seio da comunidade confessional, enquanto o ER é considerado uma atividade de educação da dimensão religiosa dos estudantes dentro das escolas” (Ibid. p. 51). O debate sobre a inclusão do ER na escola pública, sempre se deu nessa polaridade: Estado x Igreja, tendo de um lado grupos formados por “defensores do princípio da laicidade e, de outro, defensores do princípio de que o Ensino Religioso é um direito do cidadão, como ser religioso que frequenta a escola pública” (PCNER, 1998, p. 16). No estado laico, o ER tradicional, antes considerado como elemento eclesial na Escola, passa a fazer parte da grade curricular, “como elemento normal do sistema escolar” (PCNER, 1998, p. 11), sendo entendido não mais como “Ensino de uma Religião ou das Religiões na Escola, mas sim uma disciplina centrada na antropologia religiosa”. (Ibid, p. 11). Essa interpretação foi de fundamental importância, principalmente como uma saída lógica para que a esfera estadual pudesse remunerar os professores de ER, já que o Estado laico não poderia destinar verbas para fins religiosos. No regime republicano, o ER foi introduzido nas escolas públicas, pela primeira vez, em 1931, pelo Decreto 19.941, servindo de jurisprudência para as 130 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro sucessivas constituições, até culminar com a atual Constituição que, em seu Artigo 210, parágrafo 1º, Capítulo III, da Ordem Social, assim estabelece: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. 6 Regulamentação do ensino religioso A regulamentação desse artigo só viria a acontecer em 1996, oito anos mais tarde, com a edição da Lei 9394, sancionada pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, após diversos debates a nível nacional e com uma enorme pressão de “lobistas” junto aos parlamentares, tendo o Congresso Nacional, para sua aprovação, chegado à seguinte redação: Art. 33 – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa. Assim, o ER passa a fazer parte do currículo escolar, conforme previsto no Art. 210, § 1º, da Carta Magna brasileira, como um novo modelo de ensino, não mais na forma catequética e de iniciativa de confissões religiosas, mas um ensino sem proselitismo, fundamentado no respeito ao pluralismo religioso, bem como à diversidade religiosa. Embora o ER nas escolas públicas tenha sido regularizado pela LDB, atualmente, as escolas confessionais continuam livres na escolha de modelos de ER para seus alunos. Na escola pública, o modelo proposto ainda não foi implantado integralmente no País, dada às dificuldades na definição de conteúdos e pela falta de professores devidamente qualificados para lecionar a matéria. A maioria dos escritos sobre o ER enumera três modelos: o confessional, o interconfessional, o supra-confessional. Modelo Confessional: O mais antigo de todos, por sua similaridade à catequese, é também chamado de catequético, tendo sido Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 131 O ensino religioso na pós-modernidade praticado por muitos anos, principalmente pela histórica hegemonia da Igreja Católica na sociedade brasileira. Embora entendido na maioria das vezes como ensino da religião católica, não se restringe à mesma, pois é praticado também pelas igrejas protestantes, como ensino do cristianismo, a partir da queda do Padroado, quando essas tiveram direito de liberdade de sua expressão de fé, garantida pela Constituição. Esse modelo tem, como meta principal, “a busca da hegemonia por parte das confissões religiosas na sociedade... intentando reproduzir para seu exterior os conteúdos e métodos de sua ação pedagógica interna” (PASSOS, 2007, p. 59). Como esse modelo, em sua prática, não acarretava ônus para o Estado, o mesmo foi praticado também na escola pública por longos anos, devido a acordos, a título de concessão à Igreja, porém, de modo a que a mesma acomodasse seus valores fundantes, sem que se instaurasse a supremacia de um poder sobre o outro (Ibid, cf. p. 59). Embora ainda praticado nos dias atuais, o modelo confessional, por suas características vinculantes, exclusivistas e proselitistas, tornou-se ultrapassado perante os reclames da pós-modernidade, que, devido à interação entre as culturas do mundo globalizado, exige uma mentalidade de ER para além das fronteiras de uma determinada religião. Modelo Inter-Confessional: Denominado por alguns autores como ecumênico, é praticado principalmente em escolas de igrejas ou confissões cristãs diferentes (Igreja Católica e protestantes), com ensinamentos pautados nas três virtudes teologais: fé, esperança e caridade, nos valores ético-morais e símbolos comuns ao cristianismo, “sem proselitismo”, em que se respeita a doutrina específica de cada uma. Por se tratar de uma concepção que rompe com a idéia de uma confessionalidade estrita, superando consequentemente a prática catequética, esse modelo é denominado, por João Décio Passos (2007, p. 60), como “modelo teológico”, contextualizado com “uma cosmovisão religiosa moderna que supera a visão de cristandade e de expansão proselitista e empenha-se em oferecer um discurso religioso e pedagógico no diálogo com a sociedade e com as diversas confissões religiosas, mas, sobretudo, respaldando referências teóricas e metodológicas”. Esse modelo pretende inserir as questões religiosas no universo curricular da escola, esforçandose em “promover o respeito e o diálogo entre as religiões, dentro de um horizonte de finalidades ecumênicas” (Ibid, p. 60). Embora esse modelo tenha o mérito de distinguir-se da catequese, de afirmar sobre o direito à diversidade religiosa e também em valorizar o diálogo inter-religioso e ecumênico na prática educativa, o mesmo 132 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro encerra em si o risco de se promover uma catequese disfarçada, “não tanto pelos seus conteúdos, mas pela responsabilidade ainda delegada às confissões religiosas” (Ibid, p. 64). Apesar de uma pretensa superação do modelo anterior, reconhecidamente antiquado aos tempos atuais e não condizente com um estado laico, o modelo inter-confessional, que se diga ecumênico ou teológico, não atende à realidade pós-moderna, por ter um campo de atuação restrito ao cristianismo, não contemplando, portanto, o pluralismo religioso, em suas variadas formas de expressão. Supra-Confessional: Praticado nas escolas públicas de acordo com o disposto na LDB, tem como base principal, para definição de seu conteúdo, os parâmetros curriculares nacionais estabelecidos pelo FONAPER – Fórum Nacional Para o Ensino Religioso. Esse modelo não admite a prática proselitista e nem qualquer tipo de intolerância religiosa que possa ferir o direito dos alunos, de professar seu credo ou até mesmo de não professar credo religioso algum. Pautado no respeito à diversidade religiosa, esse modelo é o que mais atende ao universo religioso característico da pós-modernidade. O ER passa a ser visto não mais como ensino da religião ou de religiões, mas assume postura científica, reconhecendo “a religiosidade e a religião como dados antropológicos e socioculturais que devem ser abordados no conjunto das demais disciplinas escolares por razões cognitivas e pedagógicas”. (Ibid, p. 65). Inserido na grade curricular da escola, esse modelo de ER se torna um contributo para a formação social e ética do cidadão, estando não mais sob a responsabilidade de uma determinada confessionalidade, mas sim dos sistemas de ensino e submetido “às mesmas exigências das demais áreas do saber que compõem os currículos escolares” (Ibid). O modelo supra-confessional, denominado por Décio Passos como modelo das “Ciências da Religião”, torna-se o modelo ideal na era da pósmodernidade, superando os dois anteriores, por ter uma visão ampla do universo religioso, oferecendo “base teórica e metodológica para a abordagem da dimensão religiosa em seus diversos aspectos e manifestações, articulando-a de forma integrada com a discussão sobre a educação” (Ibid, p. 65). Devido ao respeito à diversidade religiosa, isento de proselitismo, atendendo, portanto, às exigências da Legislação atual, esse modelo se enquadra perfeitamente na era da pós-modernidade, caracterizada, como vimos anteriormente, pelo crescente pluralismo religioso. Dentro das perspectivas desse novo modelo, as propostas curriculares que melhor se encaixam, sem qualquer dúvida, são as do Fórum NaEncontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 133 O ensino religioso na pós-modernidade cional de Professores de Ensino Religioso – FONAPER, principalmente por atenderem às exigências legais, bem como aos apelos pós-modernos. Preocupado em garantir um Ensino Religioso a partir das Ciências da Religião, que não estude uma única religião, mas a religião enquanto fenômeno, o FONAPER defende a introdução dessa disciplina na escola pública, legitimada e garantida pela Constituição Federal; pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), com nova redação do artigo 33, na Lei 9.475/97; e pela Resolução 02/98 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O FONAPER propõe um ER no âmbito científico, entendido como área de conhecimento e de conteúdo disciplinar próprio, interagindo com as demais matérias no âmbito escolar, na forma do modelo transconfessional, mantendo estreita relação com as Ciências da Religião, da qual é variável e dependente. É nas Ciências da Religião que o ER encontrará sua base epistemológica, sem a qual não se justificará sua razão de ser na escola. Sabemos que a religiosidade é parte intrínseca do indivíduo e, como tal, é preciso tornar-se conhecida e compreendida, devendo estar presente na sua formação integral. No cumprimento de sua tarefa na escola, o ER se servirá do manancial oferecido pelas Ciências da Religião, a fim de proporcionar ao educando o conhecimento e a compreensão do fenômeno religioso como realidade atual. A religião não é um assunto de interesse somente “do indivíduo que crê e milita em alguma Igreja, ou apenas das instituições confessionais; ela é um fato antropológico e social que perpassa de maneira ativa todos os âmbitos da vida dos cidadãos que compõem o Estado plural e laico” (PASSOS, 2007, p.76). A relação do ER com as Ciências da Religião legitima a sua presença nas escolas, uma vez que “não se inscreve, fundamentalmente, na esfera do debate sobre o direito ou não à religiosidade, mas do direito à educação de qualidade que prepare o cidadão para visões e opções conscientes e críticas em seus tempos e espaços” (Ibid, p. 67). 7 Globalização da religião Vivemos numa era caracterizada pela globalização em todos os sentidos, inclusive com relação à Religião, em que, num mundo globalizado, “as diferenças culturais e religiosas misturam-se e confrontam-se de maneira direta ou virtual – de ambas as formas reais – na vida cotidiana e desafiam os cidadãos a terem sobre elas uma visão e uma postura” 134 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro (Ibid, p. 67). Ora, isso somente poderá ser possibilitado pelo ER, cujo modelo supra-confessional se nutrirá de conhecimentos fornecidos pelas Ciências da Religião. O Ensino Religioso, como disciplina na escola pública, se fundamenta numa concepção de educação integral, plena, sob todos os aspectos, envolvendo todos os níveis de conhecimento possíveis ao ser humano: “o sensorial, o intuitivo, o afetivo, o racional e o religioso” (FONAPER, 1998, p. 29). De acordo com o FONAPER, a escola é entendida como “espaço de construção de conhecimentos e principalmente de socialização dos conhecimentos historicamente produzidos e acumulados”. Portanto, “como todo conhecimento humano é sempre patrimônio da humanidade, o conhecimento religioso deve também estar disponível a todos os que a ele queiram ter acesso” (Ibid., 2008, p. 21). Em razão disso, a escola não pode recusar-se a concretizá-lo. Na implantação do ER na escola pública, não há consenso nacional quanto ao conteúdo de sua grade curricular, nem tampouco no que se refere aos procedimentos didáticos e avaliação, pois cabe a cada estado e a cada município, a iniciativa própria nesse sentido. Com exceção do Rio de Janeiro, cujo governo adotou um modelo diferente daquele ideal proposto pela Lei, a maioria dos estados e municípios brasileiros estão se norteando nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso – PCNER, propostos pelo FONAPER, com cinco eixos orientadores para estudo, em que se adota um modelo supra-confessional, que mais corresponde à realidade contemporânea, caracterizada pelo fenômeno do pluralismo religioso, buscando garantir um ER sem proselitismo, no estudo do fenômeno da religião. Vale lembrar que os PCNER propostos pelo FONAPER, embora não sejam documentos oficiais, são o melhor referencial que existe no país para o ensino religioso, sendo, portanto, um contributo exemplar para a orientação daqueles que estão envolvidos com a implantação dessa importante matéria no universo escolar. Os conteúdos programáticos, sugeridos pelo FONAPER, objetivam estudar o fenômeno religioso, a fim de responder às questões ligadas ao sentido último da vida do ser humano, para além da morte: “a ressurreição, a reencarnação, o ancestral, o nada” (FONAPER, 2006, p. 32). Ao longo da história, procurou-se por várias respostas possíveis, ensaiadas pela humanidade, que se organiza em sua individualidade, numa estrutura comum. Dessa estrutura comum, tipo uma fonte “Q”, a exemplo da Bíblia, “é que são retirados os critérios para organização e seleção dos conteúdos e objetivos do Ensino Religioso” (Ibid). De acorEncontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 135 O ensino religioso na pós-modernidade do com esses critérios, são formados cinco blocos (eixos) de conteúdos: Culturas e Religiões; Escrituras Sagradas; Teologias; Ritos; e Ethos. O conteúdo desses blocos/eixos são dispostos em quatro etapas de formação, denominadas pelo PCNER de ciclos, que correspondem aos diferentes níveis de faixa etária dos educandos. Portanto, um conteúdo específico pode ser visto tanto no primeiro ciclo quanto no quarto ciclo. No primeiro bloco, o objeto de estudo é o fenômeno religioso à luz da razão humana, “analisando questões como: função e valores da tradição religiosa, relação entre tradição religiosa e ética, teodicéia, tradição religiosa natural e revelada, existência e destino do ser humano nas diferentes culturas” (FONAPER, p. 33). Estão presentes, nesse bloco, “o conjunto de conhecimentos ligados ao fenômeno religioso, em um número reduzido de princípios que lhe servem de fundamento e lhe delimitam o âmbito da compreensão” (FONAPER, p. 33), não se separando das ciências que têm a tradição religiosa como idêntico objeto de estudo: filosofia, história, sociologia, psicologia, e nem delimitando, “de maneira absoluta e definitiva, um critério epistemológico unívoco” (Ibid). No segundo bloco, temos como conteúdos a revelação, a história das narrativas sagradas, o contexto cultural e a exegese. O transcendente se comunica com o homem por meio daquilo que revela. Essa revelação está exposta nos textos sagrados, por meio dos quais “o Transcendente faz conhecer aos seres humanos seus mistérios e sua vontade, dando origem às tradições. E estão ligados ao ensino, à pregação, à exortação e aos estudos eruditos” (FONAPER, 2006, p. 34). O homem é um ser em referência ao Transcendente. Sem um referencial para direcioná-lo em sua vida, ele se perde pelo meio do caminho. Por isso, busca orientar-se naquilo que está escrito nas escrituras sagradas, ou nos ensinamentos transmitidos pela tradição oral, “nas tradições religiosas que não possuem o texto sagrado escrito” (Ibid). No terceiro bloco, estudam-se as Teologias. Segundo o FONAPER (2006, p. 35), “teologias são o conjunto de afirmações e conhecimentos elaborados pela religião e repassados para os fiéis sobre o Transcendente, de um modo organizado ou sistematizado.” Nesse terceiro bloco, estudam-se as verdades de fé contidas nas tradições religiosas, tais como: divindades (descrição das representações do Transcendente), verdades de fé (mitos, crenças e doutrinas) e vida além da morte (ressurreição, reencarnação, ancestralidade e o nada). 136 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro No quarto bloco, estudam-se os ritos, valendo destacar que, conforme propõe o FONAPER (2006, p. 36), no PCNER, observa-se certa diferenciação entre ritos e rituais, em que ritos se refere a uma “série de práticas celebrativas das tradições religiosas, formando um conjunto de rituais, símbolos e espiritualidade.” Toda e qualquer tradição religiosa tem a presença de ritos e rituais em suas práticas celebrativas (liturgia), de fundamental importância para o próprio existir da religião. Apesar de os ritos referirem-se a práticas religiosas, podem referir-se também a práticas profanas. Os ritos são carregados de toda uma simbologia para aqueles que os praticam. É por meio de sua prática que as pessoas reafirmam suas crenças e seus valores. No ER deve-se estar atento, pois os mesmos diferem muito de religião para religião. No quinto bloco, estuda-se o Ethos, que a nosso ver, faz com que o Ensino Religioso seja uma ferramenta essencial em plena pósmodernidade, para resgatar os valores perdidos, principalmente devido à secularização. Fazem parte desse eixo de conteúdos: a alteridade, em que caberá ao professor orientar seus alunos para um relacionamento com o outro, permeado de valores; os valores propriamente ditos, em que se evidenciará o “conjunto de normas de cada tradição religiosa apresentado para os fiéis no contexto da respectiva cultura” (Ibid, p. 38); e por fim, limites, em que se observará “a fundamentação dos limites éticos propostos pelas várias tradições religiosas.” (Ibid). Éthos, significa hábito, costume. Êthos, o lugar, morada. Embora a ética possa se concentrar na primeira definição, como um conjunto de hábitos ou costumes, referentes à prática dos atos humanos, na segunda definição, “ethos diz respeito a como compreender e organizar a conduta, tanto na vida privada quanto na pública” (BOMILCAR, 2005, p. 136). Numa conceituação geral, seguida pela maioria dos autores, teremos Ethos significando morada do homem, lugar onde ele habita, e também seu modo de ser ou seu caráter, dos quais se apropria ao longo de sua existência. O FONAPER, ao sugerir os conteúdos do PCNER, associa o Ethos à Moral, definindo ethos como “a forma interior da moral humana em que se realiza o próprio sentido do ser. É formado na percepção interior dos valores, de que nasce o dever como expressão da consciência e como resposta do próprio ‘eu’ pessoal” (2006, p. 37). O FONAPER assim delineia uma linha de trabalho no ER, envolvendo a moral, iluminada pela ética, “cujas funções são muitas, salientandose a crítica e a utópica. A função crítica, pelo discurso ético, detecta, Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 137 O ensino religioso na pós-modernidade desmascara e pondera as realizações inautênticas da realidade humana. A função utópica projeta e configura o ideal normativo das realizações humanas.” (Ibid). Essa dupla função, segundo salienta o FONAPER (Ibid, p. 37), “concretiza-se na busca de ‘fins’ e de ‘significados’, na necessidade de utopias globais e no valor inalienável do ser humano e de todos os seres, onde ele não é sujeito nem valor fundamental da moral numa consideração fechada de si mesmo”. Conclusão Como vimos, o modelo supra-convencional de Ensino Religioso, tendo como conteúdos programáticos os propostos pelo FONAPER, é o que melhor se enquadra à pós-modernidade. Levando-se em conta que a religião se encontra pluralizada na atualidade, esse modelo se propõe a estudar a religião enquanto fenômeno, o que tem grande relevância sociocultural. De fato, o fenômeno religioso “demonstra ter indiscutível importância na tradição histórica e cultural dos diversos grupos humanos, e continua a representar para muitas pessoas um ponto de referência para a própria concepção de vida, de sociedade e de história” (XAVIER, 2006, p. 52). Esse modelo difere fundamentalmente dos modelos confessional e interconfessional, voltados para a religião cristã, ao propor um estudo da religião enquanto fato histórico, analisandoa como “fato religioso” e não como crença e vivência. Um modelo que respeita a liberdade religiosa do indivíduo, por certo é a melhor aposta para a construção de um futuro melhor para nossos filhos, para que se possa viver num mundo onde reine o respeito mútuo, a paz, a fraternidade e o amor. Um mundo de justiça, com menos violência e menos guerra. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso um esforço conjunto dos envolvidos na educação de nosso País, no sentido de conscientizar os pais de alunos sobre a importância desse modelo para a formação de seus filhos, bem como aos docentes, a praticarem esse ensino religioso cuja postura ética seja expressão do mais alto profissionalismo, sem qualquer discriminação e sem proselitismo, com capacidade de ensinar de forma livre e respeitando o direito do aluno, de manifestar a sua própria fé. Sem passar por um processo de formação adequado, o professor de Ensino Religioso jamais estará capacitado a agir de acordo com a ética profissional que esse tipo de ensino requer. O mesmo deve ainda estar consciente de que não só a prática ecumênica, mas também o diálogo entre as religiões, são caminhos perfeitos para 138 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Antônio Lopes Ribeiro se alcançar êxito nesse modelo proposto, bem como a unidade desejada entre cristãos e não cristãos. Gostaria de finalizar este artigo com as palavras de um autor hindu, Swami Vivekananda (2004, p. 7), que sabiamente se pronuncia, a respeito da religião: “Se existe uma verdade comum a todas as religiões, eu a apresento aqui: é realizar Deus [...] podem existir milhares de raios diferentes, mas todos convergem para um único centro, que é a realização de Deus”. Referências ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. 6. ed. São Paulo: Papirus, 2007. BARTH, Wilmar Luiz. O Homem Pós-Moderno, Religião e Ética. Revista Teocomunicação. Porto Alegre, v. 37, março. 2007, p. 102. BAUMAN, Zugmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BUBER, Martin. Eclipse de Deus: Considerações sobre a relação entre religião e filosofia. São Paulo: Verus editora, 2007. DENNETT, Daniel C. Quebrando o encanto: A religião como fenômeno natural. São Paulo: Editora Globo, 2006. FONAPER. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religoso – PCNER. 8. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1998. LIBÂNIO, J. B. A vida religiosa na crise da modernidade brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1995. MIRANDA, Mário de França. A Igreja numa sociedade fragmentada. São Paulo: Edições Loyola, 2006. ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto (Orgs.). Globalização e Religião. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. STEIL, Carlos Alberto. Oferta simbólica e mercado religioso na sociedade global: O Futuro da Religião na Sociedade Global. São Paulo: Paulinas, 2008. VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade. Trad. Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 139 O ensino religioso na pós-modernidade VIVEKANANDA, Swami. O que é religião. 2. ed. Rio de Janeiro: Lótus do Saber Editora, 2007. XAVIER, Mateus Geraldo. Contribuição do Ensino Religioso no acesso à fé: uma leitura teológico-pastoral. São Paulo: Loyola, 2006. Endereço do Autor: ITESC Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524 Pantanal 88040-001 Florianópolis, SC 140 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Simpósio sobre ecumenismo Jundiaí, janeiro de 2010 Ecumenismo na pastoral Exigências da realidade sócio eclesial Terezinha M. Cruz* * A autora é assessora da CNBB nos temas catequese e ecumenismo. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010, p. 141-152. Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial O ecumenismo não costuma ser muito rejeitado. O mais frequente é perceber que se trata, para muitos, de território desconhecido. Então sempre acho que se pode aplicar a esse tema o que já dizia Paulo sobre a divulgação do evangelho: E como crerão naquele que não ouviram? E como ouvirão se ninguém o proclamar? E como o proclamarão se não houver enviados? Assim é que está escrito: Quão bem vindos os pés dos que anunciam boas novas! (Rm 10,14-15) Por que esse tema? – Dois grandes desafios: conhecimento da voz da Igreja e pastoral de conjunto Andando pelo Brasil afora, falo de ecumenismo e percebo com frequência duas reações diferentes, mas que apontam para o mesmo problema: – Uns dizem: Isso existe mesmo ? Que bom! Já não era sem tempo! – Um grupo bem menor reage assim: Mas isso contraria a verdade! Como um católico pode aceitar “essa gente”? Em ambos os casos, se percebe um grande desconhecimento do que a Igreja já disse, de muitas maneiras, sobre esse assunto. Nossos muitos e complicados documentos não chegam ao povo católico, como seria desejável. Mas desconhecer o “sinal verde” para o ecumenismo (ou qualquer outra orientação básica e atualizada da Igreja) é apresentar uma Igreja mutilada, com sua face deformada. Em alguns casos, há pessoas dizendo, com pleno e sincero entusiasmo, em nome de seu amor à Igreja, coisas que a própria Igreja não aprova. Isso, é claro, não acontece só com o ecumenismo: há muito a corrigir em áreas variadas. Outras vezes, ninguém nega algum aspecto da orientação pastoral da Igreja: simplesmente se “esquece” que aquilo existe. É o que vemos, por exemplo, quando não aparece nem uma única frase sobre ecumenismo em homilias sobre textos que dariam uma boa abertura ao tema. Uma vez, num dia de Todos os Santos, o padre nos lembrou que santos não são só os canonizados, mas dava para incluir aí 142 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Terezinha M. Cruz nossa mãe, nosso avô e outros. Depois da missa fui à sacristia conversar com ele, elogiando a ampliação do time dos santos e perguntando se ele não incluiria ali gente como Martin Luther King, Gandhi... Ele me disse: Claro! Só não falo nisso porque o povo não está preparado para ouvir. Fiquei pensando: quando estará, se, como adverte Paulo, não houver quem o proclame? Mas uma visão de conjunto da postura da Igreja ajudaria a pôr as coisas no seu devido lugar. É importante ajudar o povo a perceber que não somos ecumênicos “apesar” de sermos católicos, mas exatamente “porque” somos católicos somos ecumênicos. Não é um “risco”, uma “ameaça” à nossa identidade, é algo que faz parte da afirmação dessa identidade e só engrandece a Igreja. São conhecidas as dimensões da ação pastoral que precisam ser oferecidas ao povo de forma orgânica: comunitária; missionária; bíblico-catequética, litúrgica, de ecumenismo e diálogo interreligioso; sócio-transformadora. Nenhuma dessas dimensões funciona bem sozinha. A excessiva ênfase em qualquer uma delas, com esquecimento das outras, leva a um esvaziamento, mais cedo ou mais tarde. Foi o que aconteceu, por exemplo, com certos trabalhos da teologia da libertação. É o que acontece com a oração desencarnada, com a catequese que for somente doutrinária, com a homilia que não se relaciona com a vida extra eclesial, com o ecumenismo vivido como um “departamento” que interessa só aos que se empolgam particularmente com ele. – Ser Igreja é ser também testemunho de diálogo e agente de reconciliação Quem acreditará em nós se falamos de paz e brigamos, dentro da própria família cristã? A missão de Jesus é basicamente a reconciliação da humanidade com Deus, mas ele mesmo adverte que, antes de chegar com a oferta ao altar, é preciso reconciliar-nos com o irmão (Mt 5,23). Olhando o panorama social, vemos que não precisamos só de reconciliações individuais. Temos que reconciliar um mundo dividido, violento, omisso diante da injustiça e da opressão, com famílias que não se entendem, com estudantes que humilham os colegas, com uma pressão consumista que desvaloriza quem não segue o modelo proposto pelo mercado. Isso ultrapassa o terreno ecumênico propriamente dito. Mas, desenvolvida dentro do mesmo espírito, essa reconciliação ficaria facilitada pelo cultivo de uma dimensão ecumênica de presença transversal em todas as nossas Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 143 Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial áreas de trabalho. Afinal, as qualidades necessárias para a vivência de uma espiritualidade ecumênica são as mesmas que nos preparam para o diálogo, a reconciliação, a valorização da paz, o acolhimento, a cooperação que multiplica nossos resultados. Tudo isso nos ajudaria também em outros terrenos, no âmbito pessoal, comunitário e social. Perceber a vantagem, para os agentes da Igreja, de uma formação ecumênica, é algo necessário para vencer barreiras e começar a marcar presença nas atividades pastorais. A pastoral tem que ter uma visão ampla da grande missão da Igreja. Igreja existe para o mundo, não para si mesma... e o mundo precisa de paz e reconciliação, de cooperação em vez de competição. Iniciar pessoas à vida da Igreja sem essa visão maior é ser infiel à grandeza do projeto cristão e ignorar o que a sociedade precisa receber de nós. A partir do ecumenismo cristão, a pastoral pode educar para o trabalho solidário de todas as pessoas de boa vontade. E isso porque o mais importante, como vemos nas bem-aventuranças e na parábola do juízo final, é transformar a vida, aliviar sofrimentos, vencer o que atrapalha a convivência fraterna. – Superar o que foi assimilado de maneira errada (por nós e pelos outros) Antes de semear, prepara-se o terreno. E, neste caso, o terreno está cheio de pedregulhos e ervas daninhas. Todos nós crescemos ouvindo falar do outro de forma negativa. Temos estereótipos e preconceitos de muitos tipos. Diante disso, a pastoral tem que incluir o diálogo que vem da amizade normal entre pessoas de Igrejas diferentes e precisamos – dos dois lados – ouvir a história de cada um contada por ele mesmo. Teríamos que superar também a visão exclusivamente negativa da diversidade das Igrejas, a esperança míope de um sonho que confunde unidade com uniformidade. Teríamos que lembrar o que disse João Paulo II, quando foi interrogado sobre esse assunto. Pergunta: Por que o Espírito Santo teria permitido tantas e tais divisões e inimizades entre aqueles que no entanto se dizem seguidores do mesmo Evangelho, discípulos do mesmo Cristo? 144 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Terezinha M. Cruz Resposta de João Paulo II: Para essa pergunta podemos achar duas respostas. Uma, mais negativa, vê nas divisões o fruto amargo dos pecados dos cristãos. A outra, pelo contrário, mais positiva, é gerada pela confiança Naquele que tira o bem até mesmo do mal, das fraquezas humanas: por isso, não poderia ser que as divisões tenham sido também um caminho que levou e leva a Igreja a descobrir as múltiplas riquezas contidas no Evangelho de Cristo e na redenção operada por Cristo? Talvez tais riquezas não pudessem vir à luz de maneira diferente. (...) É necessário que o gênero humano alcance a unidade através da pluralidade, que aprenda a reunir-se na única Igreja, mesmo na pluralidade das formas de pensar e de agir, das culturas e civilizações. (Cruzando o limiar da esperança – Ed. Francisco Alves) – Mesmo que os outros não façam? Quando trabalho com a questão do reconhecimento do Batismo, costumam se manifestar aqueles que ficam ofendidos porque, em relação a certas Igrejas, nós reconhecemos a validade do Batismo e elas não retribuem a “gentileza” e rebatizam os que eram nossos. Em situações desse tipo, a conversa com o povo poderia caminhar por duas vertentes: a) Quando o outro está errado, a pior coisa que podemos fazer é copiar o erro, deixar que o equívoco alheio nos diminua, nivelando por baixo; não é a outra Igreja que, nesse caso, vai determinar como nós temos que nos comportar. b) “A quem muito foi dado muito será pedido” – disse Jesus (Lc 12,48). Nossa Igreja é maior, tem uma raiz histórica sólida. Ela não tem desculpa para não fazer o melhor. Nossa responsabilidade é maior do que a daquelas Igrejas menores que apareceram depois. Somos nós que temos que dar o exemplo mais visível, adulto e consistente. Sabiamente Jesus mandava caminhar 2 km com quem quer nos forçar a acompanhá-lo por 1 km (Mt 5,41). Ou seja: a generosidade é o melhor meio de vencer um enfrentamento. Elogiar quando nos censuram é um bom processo de desarmamento do outro, mas não pode ser simplesmente uma estratégia , deve ser parte de uma autêntica espiritualidade. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 145 Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial – E por que faríamos tudo isso? No trabalho pastoral, é preciso ajudar o povo a perceber que ecumenismo não é uma concessão, uma generosidade dispensável e, muito menos, uma rendição diante do pluralismo. Precisamos ser ecumênicos: a) Porque o mundo e o evangelho precisam desse trabalho. A necessidade do ecumenismo, como sinal de diálogo e reconciliação, torna-se um dos chamados “sinais dos tempos”. É também a credibilidade do evangelho que está em jogo (e isso Jesus já havia avisado: sejam um para que o mundo creia, Jo 17,21). b) Porque a divisão enfraquece a todos. “Dividir para conquistar” é tática que qualquer guerreiro conhece desde o começo das disputas humanas. Energias gastas em “provar que o outro está errado” seriam empregadas com muito mais proveito em outras coisas e até no trabalho em conjunto em áreas em que isso é possível. É uma ilusão achar que “acusar o outro” prepara a comunidade para resistir ao “trânsito religioso”. Pode funcionar até ao contrário, quando alguém descobre que o outro tem valores que lhe foram ocultados. Para os de fora, o enfrentamento não aparece como zelo pela verdade , mas como conflito de interesses, o que desmoraliza todas as partes envolvidas e a própria mensagem cristã. c) Porque isso vai exigir uma Igreja melhor com gente mais preparada. Para ser ecumênico, é preciso conhecer e amar muito a própria Igreja. É necessário também discernir o essencial e o acessório ou contingente. Muita coisa que um católico nem se interessaria muito em saber se torna importante porque ele vai estar em diálogo com alguém que tem outro ponto de vista. Só responde com tranquilidade quem está seguro. Ora, de gente segura na sua identidade de fé a Igreja precisa muito. – Com quem vamos tratar desse assunto na pastoral? Cada grupo pode ter necessidades e potencialidades diferentes, mas todos na Igreja podem e devem fazer parte dessa caminhada. Então vamos trabalhar: 146 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Terezinha M. Cruz a) Com os jovens e crianças O convívio e a comunicação já existem, na escola, na vizinhança, nos programas de TV. Escolas dominicais podem ter materiais interessantes para a catequese, músicas evangélicas já são usadas por nós (mesmo que alguns desconheçam sua origem). Jovens de Igrejas diferentes podem participar de encontros de corais, atividades ecumênicas sazonais. Mas é muito importante incluir uma postura ecumênica no material catequético, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento da validade do batismo. b) Com as famílias de pertença múltipla Este é um campo em crescimento, para o qual deveríamos já estar preparando agentes especializados. Já temos “Encontros de Casais de Segunda União”, mas precisaríamos muito ter encontros de casais (ou de famílias) de Igrejas diferentes. Orações, círculos bíblicos, estudos e trabalhos conjuntos têm aí um campo fértil para diálogo e partilha fraterna. Precisamos também organizar esquemas de preparação – do tipo curso de noivos – para casais de casamento misto. Em Brasília temos um grupo de casais assim, com uma experiência bem positiva, que poderia ajudar na multiplicação desse tipo de iniciativa. Nessa situação é importante ver a situação não como “problema” mas como “missão”. Essas famílias devem ser convidadas a se perceber como “primícias” , amostras antecipadas da unidade que Deus deseja para seu povo. c) Com os padres que educam e fazem homilias Dizem que a missa tem que ser “católica” ... e é verdade! Mas se o ecumenismo faz parte do ensinamento e das dimensões pastorais da Igreja, é preciso despertar os padres para as possibilidades de menções ecumênicas na abordagem dos temas e na orientação dos agentes de pastoral. Famílias de pertença mista necessitam de acolhimento, especialmente quando há sacramentos envolvidos. d) Com as diversas pastorais e movimentos Há mais semelhanças do que muitas vezes nos damos conta, entre a espiritualidade de certos movimentos e o estilo dos pentecostais clássicos, por exemplo. Às vezes pode ser que essa semelhança até motive uma afirmação de identidade em Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 147 Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial confronto (todo mundo sabe que irmãos brigam mais do que primos), como aconteceu por muito tempo entre judeus e cristãos. Mas aos poucos vamos descobrindo possibilidades de diálogo. Outros movimentos, como o Focolare, já nasceram ecumênicos, e podem ajudar a dissipar os receios que muitos têm da proximidade com irmãos de outras Igrejas. Muitas pastorais sociais já têm experiência ecumênica: pastoral da terra, da criança, do migrante... Tudo que já é feito sem risco de identidade perdida e com respeito à identidade de todos deve ser divulgado para incentivar e tranquilizar outros grupos. e) Com os catequistas e outros educadores da fé Sem catequese, nada feito! É aí que cada um começa a conhecer a Igreja. O assunto mais tratado na catequese hoje é Iniciação Cristã. Aí se destaca a necessidade de fazer uma experiência de fé (mais do que simplesmente saber coisas) e sentir-se Igreja. Esse “sentir-se Igreja” precisa se referir à Igreja por inteiro, em todas as suas dimensões. É urgente uma revisão nos manuais e na formação dos catequistas, não só para uma correta inserção do ecumenismo, mas também para uma percepção mais ampla da missão e da identidade da Igreja, que precisa ser testemunhada na vivência concreta da comunidade. Em 1979, o documento Catechesi Tradendae já dizia: “A catequese terá uma dimensão ecumênica, pois, se ela, sem renunciar a ensinar que a plenitude das verdades reveladas e dos meios de salvação instituídos por Cristo permanece na Igreja Católica, no entanto fizer tal ensino com sincero respeito, em palavras e obras, para com as comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com essa mesma Igreja. Nesse contexto, é sobremaneira importante fazer uma apresentação correta e leal de outras Igrejas e comunidades eclesiais, das quais o Espírito Santo não recusa servir-se como de meios de salvação.” (CT 32) f) Com as comunidades cristãs mais próximas e dispostas 148 Tudo deve começar com relações pessoais. Conversar com um amigo é diferente de encarar um estranho. Um gesto de ajuda numa dificuldade, uma partilha de espaço ou de material, uma conversa a partir de uma ação comunitária, Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Terezinha M. Cruz são alguns passos que podem levar a uma parceria ou pelo menos a um desarmamento. – Como faríamos isso? O povo católico precisa se sentir seguro, à vontade, em paz com a sua Igreja, quando se envolve em relacionamentos ecumênicos. Para isso precisamos considerar alguns aspectos importantes: a) Há necessidade de esclarecer bem o que ecumenismo é, e o que ecumenismo não é (com abertura para o diálogo inter religioso). Sem clareza de conceitos, alguém pode prejudicar o processo, mesmo que tenha as melhores intenções. b) Ecumenismo é “dupla jornada de trabalho”, para quem sabe o que está fazendo e tem condições de representar a sua Igreja. Não é boa política deixar de fazer alguma coisa na sua própria Igreja porque estamos ocupados numa tarefa ecumênica. Isso gera má vontade nos que ainda não participam ou têm medo desse tipo de proximidade. Por isso é bom, por exemplo, não marcar encontros ecumênicos para o domingo. Quem trabalha com ecumenismo precisa ter um testemunho transparente de fidelidade à sua Igreja. c) São desejáveis tanto a participação conjunta em tudo que for possível, como o cultivo da espiritualidade ecumênica dentro da própria comunidade Às vezes é possível ter atividades ecumênicas em campanhas, eventos, semanas de oração, celebrações de datas especiais, atendimento a doentes, população em situação de risco, encarcerados e outros. Em alguns locais, isso pode ser difícil por falta de disponibilidade da outra parte. Mas, se queremos ser católicos fiéis à nossa Igreja, sempre é possível, pelo menos, trabalhar uma espiritualidade ecumênica dentro da nossa própria comunidade, preparando corações e mentes para um desejo de diálogo, reconciliação, reconhecimento do valor do outro. d) Muita coisa boa nasce de uma leitura ecumênica da Bíblia Não se estuda a Bíblia para comprar briga, mas católico que não conhece bem a Escritura está despreparado para o diálogo. Em grupo que já se acolhe bem é possível – e muito gratificante – estudar o texto juntos e apresentar as Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 149 Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial divergências de interpretação – se houver – tranquilamente, como informação para cada um conhecer melhor o outro e não para provar quem tem razão. Já tive experiência de estudo bíblico ecumênico em que, depois de certo tempo de convívio e confiança mútua, os próprios protestantes pediram para estudar o livro de Judite, que não consta da Bíblia deles, para ‘saber como era”. Mas isso só acontece num clima onde se desenvolveu a confiança mútua. e) A linguagem deve refletir a espiritualidade ecumênica Depois de tantos anos de desconhecimento mútuo e enfrentamento, cuidados com a linguagem são indispensáveis. Não se trata de ser hipócrita para agradar o outro, mas de ter delicadeza para não ferir, e alegria de destacar o que já nos une. g) É preciso divulgar os acordos já feitos, especialmente sobre o reconhecimento do batismo Com o ecumenismo acontece algo parecido com aquela história dos soldados japoneses que ficaram dois anos escondidos numa caverna para escapar dos soldados americanos, porque ninguém lhes comunicou que a guerra havia acabado. Muita gente continua em espírito de batalha numa guerra que já acabou, porque não lhes foram apresentados os tratados de paz. É parte importante do trabalho pastoral a divulgação do que a Igreja já permite, aceita e manda fazer. h) Divulgação de materiais e experiências Além dos óbvios textos das Campanhas da Fraternidade Ecumênicas e das Semanas de Oração, há outros materiais que devem ser conhecidos e divulgados, especialmente a cartilha “Diversidade e Comunhão”, os textos da CNBB sobre ecumenismo, os acordos bi ou multi laterais, artigos de revistas e outros. – Ação de graças pelo dom de sermos chamados a algo tão importante Ecumenismo não é só um trabalho, mesmo que como tal seja muito importante; ele é uma fonte de gratificantes experiências, de vários tipos. Nisso encontramos: 150 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Terezinha M. Cruz – A alegria de ser parte de um milagre A restauração plena e visível da unidade talvez não seja algo que possamos ver durante o tempo de nossa vida terrestre. Só Deus sabe! Mas fico imaginando ver lá do céu a coisa finalmente acontecer e a gente podendo dizer com alegre entusiasmo: – Eu estava lá! Eu ajudei a fazer isso! Os agentes de pastoral têm que ser formados na consciência de quanto é gratificante ter sido chamado por Deus para algo tão milagrosamente construtivo. – Qualidades que nos tornarão melhores de muitas maneiras Ecumenismo é tarefa exigente, sem dúvida! Mas, justamente por isso, deve ser acolhida com alegria porque vai nos fazer crescer no conhecimento, nas qualidades necessárias ao diálogo, na visão do mundo e do próprio cristianismo, na fraternidade, na consciência de responsabilidade pela construção solidária da paz. O diálogo ecumênico nos prepara para muitos outros diálogos, importantes para a riqueza das nossas relações humanas. – Viver o espírito dos primeiros apóstolos A Igreja nascente tinha muita diversidade, porque a comunicação entre comunidades não era tão fácil e ainda não havia códigos e procedimentos disciplinares tão organizados. Mas foi viva e forte para se sentir una dentro das múltiplas comunidades, para reconhecer uns aos outros como irmãos em Cristo e para ser semente de um cristianismo universal. – Ganhar “novas janelas” para ver uma bela e inesgotável paisagem Penso que João Paulo II tinha razão: o cristianismo é grande e rico demais para ser apreciado a partir de um só ângulo. Se conseguirmos nos alegrar com a diversidade , mais facilmente ela se constituirá numa unidade multifacetada, capaz de mostrar de modo melhor ao mundo a imensa riqueza da proposta evangélica. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 151 Ecumenismo na pastoral: exigências da realidade sócio eclesial Reflexão final: “A união faz a força” – diz o provérbio. Mas a união também faz tudo o que nos sustenta. A vida e o próprio universo são feitos de forças que interagem, que se combinam, para construir algo maior. Assim também, embora o ecumenismo já seja em si um projeto de união, não queremos que ele seja vivido isoladamente, como um departamento da Igreja. É no conjunto de todas as suas dimensões que a Igreja, ligada às necessidades prementes da nossa sociedade, se torna um chão seguro e bonito para a caminhada humana. Endereço da Autora: E-mail: [email protected] 152 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 CAMPANHA DA FRATERNIDADE ECUMÊNICA 2010 Oração: “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” Mt 6,24c Ó Deus criador, do qual tudo nos vem, nós te louvamos pela beleza e perfeição de tudo que existe como dádiva gratuita para a vida. Nesta Campanha da Fraternidade Ecumênica, acolhemos a graça da unidade e da convivência fraterna, aprendendo a ser fiéis ao Evangelho. Ilumina, ó Deus, nossas mentes para compreendermos que a boa nova que vem de ti é amor, compromisso e partilha entre todos nós, teus filhos e filhas. Reconhecemos nossos pecados de omissão, diante das injustiças que causam exclusão social e miséria. Pedimos por todas as pessoas que trabalham na promoção do bem comum e na condução de uma economia a serviço da vida. Guiados pelo teu Espírito, queremos viver o serviço e a comunhão, promovendo uma economia fraterna e solidária, para que a nossa sociedade acolha a vinda do teu Reino. Por Cristo, nosso Senhor. Amém. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Recensões MOLINARI, PAULA (org.), Música brasileira na Liturgia II, col. Liturgia e Música, n. 8, São Paulo, Paulus, 2009, 21 x 13,5cm, 104 p. Ney Brasil Pereira* Mais um título, o oitavo, da coleção “Liturgia e Música”, da Paulus, iniciada em 2004 com o lançamento de “Cantando a Missa e o Ofício divino” (atualmente em 3ª. edição), de Frei Joaquim Fonseca, que é também o coordenador da coleção. Este volume, organizado por Paula Molinari, tem o título de “Música brasileira na Liturgia II”, apresentando-se, portanto, como a continuação ou complementação de “Música brasileira na Liturgia”, relançado em 2004 como o vol. 2 da coleção. Digo “relançado”, porque sua primeira edição data de 1969, pela editora Vozes, de Petrópolis. O apresentador do volume, Frei Luiz Turra, então assessor nacional de música litúrgica, esclarece que “Música brasileira na Liturgia II é fruto precioso do 1º encontro de compositores de música litúrgica, promovido pelo setor Música Litúrgica da CNBB e realizado em setembro de 2006, em São Paulo” (p. 6). O mesmo esclarecimento é dado, com mais detalhes, pela organizadora do livro, Paula Molinari, que informa ter sido achado oportuno “repensar e, quem sabe, reformatar as considerações do livro Música brasileira na Liturgia. Passados quase quarenta anos, desejávamos ouvir e analisar a expressão e produção musical surgidas e assimiladas nesse período” (p. 7). O mencionado “1º Encontro nacional de compositores e letristas” teve sua continuidade no triênio seguinte, abordando, além dos temas litúrgicos, também aspectos músico-culturais, como “música e mídia”, inculturação, estética na música e poesia brasileiras, além de oficinas de produção de textos e composição musical (pp. 8-9). A primeira contribuição é a do Pe. José Weber, que foi assessor nacional de música litúrgica da CNBB entre 1967 e 1983, cujo texto é um detalhado relato sobre “a CNBB e a renovação do canto litúrgico no Brasil” (pp.11-25), relato apresentado primeiro num Encontro nacional * O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas e membro da Pontifícia Comissão Bíblica, é professor no ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, em Florianópolis, SC. Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 155 Recensões de músicos em 2002, e reformulado em 2007. Relato bastante completo, objetivo, de quem participou diretamente dos fatos, em vários deles como autor principal. Pe. Weber começa com breve síntese da situação “antes do Vaticano II” (pp. 11-12), destacando a seguir “os salmos e cânticos de Gelineau” (p. 12); os “pioneiros”, à frente dos quais se encontrava o Cônego Amaro Cavalcanti; as “fichas de canto pastoral” do Rio de Janeiro e de Campinas”, publicadas a partir de 1961; o Concílio Vaticano II (1962-65), com a sua abertura à participação da assembléia e à liturgia em vernáculo; a “luta entre os esteticistas e os pastoralistas” (p. 14); os “encontros de reflexão e estudos da assessoria da CNBB”, entre os quais o de Valinhos, o de Vitória, e ainda dois encontros no Rio de Janeiro, entre 1965 e 1968 (pp. 14-16); a “procura de um assessor formado em Música Sacra” (pp. 15-17); os “cursos de canto pastoral” que, após o Rio de Janeiro, espalharam-se por todo o Brasil (pp. 17-18); os “assessores da CNBB para a Música Litúrgica”; os “encontros ecumênicos”, em 1976 e 77; o “folheto ‘Povo de Deus’”, lançado em 1967; os cantos da “Missa da Campanha da Fraternidade”, a partir de 1969 (pp. 19-20); as publicações da CNBB sobre Música Litúrgica: “Estudos sobre os cantos da Missa”, do Pe. José Weber, 1976; a “Pastoral da Música Litúrgica no Brasil”, doc. da CNBB, n. 7; “A Música Litúrgica no Brasil”, Estudos da CNBB, n. 79; a coleção “música sacra”, da Ed. Vozes, de Petrópolis, que publicou 5 títulos entre 1966 e 1970; “Paulinas, Padre Zezinho e outros” (p. 21-22); “a Paulus e as missas de ‘O Domingo’”; a “Liturgia das Horas”, com sua tradução ritmada dos salmos, em 1995, e com partituras para os cantos de Laudes, Vésperas e Completas, em 2007 (p. 23); o “Hinário Litúrgico” da CNBB, coorden. por frei Joel Postma, em 4 fascículos, publicados entre 1985 e 1997 (pp. 23-24); o “Ofício Divino das Comunidades”, aparecido em 1988; a “influência dos cantos da RCC”; o “Curso ecumênico de formação e atualização litúrgicomusical”, CELMU, iniciado em 1992 e ainda em atividade (pp.24-25). Pe. Weber termina sua resenha com um parágrafo interrogativo: “para onde caminham a música e o canto litúrgico atuais?” E expressa sua preocupação com o fato de que “salvo raras exceções, a geração atual não tem formação litúrgico-musical satisfatória” (p. 25). A segunda contribuição, de Frei Joaquim Fonseca, apresenta o “panorama da música litúrgica no Brasil” (pp. 27-33). Sem entrar nos detalhes do Pe. Weber, Frei Joaquim faz interessante síntese, em três pontos: 1) O “Impulso inicial, provocado pelo Concílio Vaticano II”. Frei Joaquim o analisa “sob o ponto de vista da reflexão teológico- 156 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Recensões litúrgica”, mencionando um “período de hibernação”, nas décadas de 80 e 90, e “sob o ponto de vista da produção litúrgico-musical”, apenas elencando o principal (p. 28). 2) O “Impulso dos 40 anos após o Vaticano II”, também “sob o ponto de vista da reflexão teológico-litúrgica”, mencionando aí o Encontro Nacional de Músicos em 2002; a criação da “Equipe de reflexão sobre música e liturgia”, da CNBB, em 2004; a “19ª Semana de Liturgia”, em 2006; os “Encontros anuais de formação litúrgico-musical para compositores e letristas”, desde 2006 (pp. 28-30). Sob o ponto de vista da “produção litúrgico-musical”, menciona os CDs da série “Liturgia”, da Paulus; a coleção “Liturgia e Música” da Equipe de reflexão”, publicada pela Paulus, já oito volumes; os “Documentos sobre a Música Litúrgica”, da Santa Sé e da CNBB, Paulus, 2005; o opúsculo “Canto e Música na Liturgia; princípios teológicos, litúrgicos, pastorais e estéticos”, 2ª ed. CNBB, 2006; o DVD “Canto e Música na Liturgia”, da Verbo Filmes, em parceria com a Paulus e a rede “Celebra”, 2006 (pp. 30-32). 3) Entre os “desafios”, Frei Joaquim menciona a “urgente necessidade da capacitação de formadores litúrgico-musicais”, recomendando, a propósito, o texto “Lex orandi, Lex credendi”, que se encontra no Apêndice I do livro. Outro desafio, para Frei Joaquim, é a “inculturação da música litúrgica”, da qual o “Ofício Divino das Comunidades” é expressivo testemunho (p. 33). Celso Mojola nos oferece a terceira contribuição: “A música brasileira e suas implicações na composição de música ritual cristã ” (pp. 35-41). Partindo do fato de que “a característica mais geral da música brasileira é a sua diversidade, ele afirma que é “bastante complexo o processo de unificar essa variada produção musical sob a égide de uma cultura nacional” (p. 35). Se há bastantes estudos sobre nossa música popular, temos bem menos textos sobre nossa música erudita, embora esta, “em termos históricos”, seja “uma das mais significativas das Américas” (p. 35). Quanto à música popular, é preciso distinguir entre música popular rural e música popular urbana, e não esquecer o “intenso processo de mudança” que o Brasil vem passando “desde 1950” (p. 36). Essa mudança questiona os estudos feitos com base no folclore e na teoria nacionalista de Mário de Andrade, no final da década de 1920 (p. 36) P. ex., “o conceito de ‘constância’, desenvolvido pelo pensamento nacionalista”, “apresenta problemas de natureza prática e teórica”. “‘Constância’ é um conceito constritor, restritivo do processo de criação” (p. 38). “No lugar de ‘constância’, que se valorize a observação do artista” (p. 38). “O caminho escolhido por Béla Bartók, gerando nova Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 157 Recensões harmonia a partir do sistema modal das melodias populares húngaras, por ele recolhidas, é igualmente válido e pode ser usado pelos compositores sacros...” (p. 40) Esses, porém, antes de serem ‘compositores de música sacra’, devem ser ‘compositores’, isto é, conhecedores das principais técnicas de composição, tradicionais e contemporâneas” (p. 40). “A transposição pura e simples de gêneros exteriores à liturgia, para o universo sacro, não parece ser a solução mais adequada...” “A música litúrgica volta-se para uma acessibilidade universal, o que recomenda evitar excessiva complexidade” (p. 40). “A música litúrgica deve, sim, apoiar-se nas manifestações culturais brasileiras, mas será necessário saber manipular esse material. E quem deve fazer isso é o compositor tecnicamente preparado” (p. 41). A última contribuição, de Paula Molinari, propõe “apontamentos de estudo nas áreas de folclore, etnomúsica, música culta e música popular brasileira como subsídios para a produção de música brasileira litúrgica” (pp. 43-48). Ela apresenta “uma síntese do pensamento de quatro musicólogos”, citados, com suas obras, na p. 44: Karl Dahaus, em Fundamentos de la Historia de la Musica; Bruno Netttl, em Musica folklorica y tradicional de los Continentes Occidentales; Juan Pablo Gonzáles R., em Musicologia Popular en America Latina: síntesis de sus logros, problemas y desafios; e Gérard Béhague, em Música ‘erudita’, ‘folclórica’ e ‘popular’ do Brasil. Interações e inferências para a Musicologia e Etnomusicologia modernas. Assim, adotando a perspectiva de Dalhaus, ela crê “poder afirmar que, cientes da tendência nacionalista do texto apresentado na primeira publicação (de 1969), nos é cabível tomar a experiência como exposição do passado histórico” (p. 44) e “nos aponta uma nova direção, de ação libertadora”, em relação às “estruturas desse passado” (p. 45). Mais adiante, ela chama a atenção para a necessária interdisciplinariedade: “A questão interdisciplinar, que perpassa a musicologia, ficou intocada durante anos, emergindo hoje como essencial na análise das obras” (p. 45). Molinari concorda com Mojola quanto aos limites da busca de ‘constâncias’ na música brasileira: não reduzi-la a “recortar esse universo em fragmentos quase imperceptíveis” (p. 45). Quanto a “uma nova perspectiva de observação’, ela aceita de Béhague a proposta de “repensar os métodos de classificação do elemento nacional singular” (p. 46) e concorda em que “hoje não podemos afirmar que a música é brasileira porque tenha elementos recorrentes de síncopes rítmicas”... Descrevendo o “olhar do músico brasileiro litúrgico”, Molinari afirma: “Não seja um olhar que recorte, que desconstrua, mas que vislumbre a 158 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 Recensões flexibilidade da adaptação dos diversos elementos, reconstruindo-os” (p. 47). Ela concorda com Reginaldo Veloso quanto à necessidade de o compositor litúrgico dever ser alguém “integrado na comunidade cristã” (p. 48). E termina, insistindo na “formação, investimento, apoio da Igreja para propiciar ao músico litúrgico condições de dedicação exclusiva com assunto tão sério” (p.48). Após breve “Conclusão”, que reafirma a “necessidade de capacitação de formadores” (p. 49), seguem dois Apêndices. O primeiro, com o título “Lex orandi, Lex credendi. A propósito da urgente necessidade da capacitação de formadores litúrgico-musicais” (pp. 51-60), é um texto elaborado por Frei Joaquim Fonseca, assumido e assinado pelos Bispos da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia, e apresentado na 44ª Assembléia Geral da CNBB, em 2006, na secção “Assuntos de Liturgia”. O texto foi elaborado em cinco pontos: 1) “A importância da música na vida humana” (p. 52). 2) “O insistente apelo do Magistério da Igreja sobre a formação litúrgica e musical dos agentes pastorais”, com citações dos Papas, desde Pio X até João Paulo II, do concílio Vaticano II (Sacrossanctum Concilium, 1963), de duas Instruções da Sagrada Congregação dos Ritos, antes (1958) e depois do Concílio (1967), de uma Instrução da Sagrada Congregação para a Educação Católica (1979), do documento da CNBB, n. 7, sobre a “Pastoral da música litúrgica no Brasil” (1976), e do estudo da CNBB n. 79, sobre “A música litúrgica no Brasil” (pp. 53-57). Isto é, os documentos não estão fazendo falta... 3) “Como anda a formação litúrgica e musical entre nós?” A pergunta é respondida breve, mas incisivamente, e levanta novas perguntas, p. ex., “que modelo de Igreja”, ou “que tipo de compromisso cristão” ou, ainda, que “cultura musical” esse cantar ‘dominante’ está promovendo?” (p. 57). 4) “Julgando a partir do axioma Lex orandi, Lex credendi, o texto afirma que “ não podemos descuidar da qualidade do canto e da música na Liturgia, senão estaremos alimentando uma fé pouco consistente e até duvidosa” (p. 58). 5) “Buscando soluções”, o texto começa reafirmando a “urgência” de “disponibilizar meios e recursos para a formação litúrgica, pastoral, artística e técnico-musical nos seminários e casas de formação” (p. 59) – o que, pelo visto, está longe de acontecer! – e propõe medidas “a curto prazo”, p.ex., “valorização das estruturas existentes”... e “a médio prazo”, p.ex., liberação e encaminhamento de presbíteros, religiosos/as e leigos/as para estudos de Liturgia e Música... (pp. 59-60). O segundo Apêndice, de autoria de Frei Francisco van der Poel, com a colaboração de Edilson e Paula Molinari, apresenta “65 Ritmos”, Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010 159 Recensões com o subtítulo “Método para aprender ritmos a partir de músicasexemplo e da anotação elementar do compasso rítmico” (pp. 61-99). É um trabalho já de 1994, testado pelos alunos do CELMU e pela organizadora, agora oportunamente incluído neste volume. Pessoalmente, eu teria preferido um número bem menor de ritmos, e mais clareza na sua descrição, para um aproveitamento mais prático. Quanto aos exemplos da “tradição católica”, e imagino que também da “evangélica”, não sei o que o autor entende por “tradição”: quase todos os exemplos aduzidos são de composições recentes... Um comentário sobre o conceito de “música sacra”, substituído pelo de “música litúrgica”, conforme explica Pe. José Weber na p. 16. Pessoalmente penso que se pode, até se deve, manter a terminologia de “música sacra”, reservando-a para todo o imenso repertório em latim, tanto gregoriano, como polifônico, clássico, romântico, moderno, contemporâneo. Parte desse repertório, em latim, será também “litúrgico” – p. ex. o “Ave verum”, quer o de Mozart, quer o gregoriano – se propiciar a participação efetiva da assembléia celebrante. A música “litúrgica”, por sua vez, é a música ritual, composta no espírito do Vaticano II, com texto e música que correspondam ao momento e ao tempo litúrgico em que se celebra. Agora, umas poucas observações de revisão. Na p. 31, quanto à autoria dos “Documentos sobre a música litúrgica”, em vez de “VV.AA.”, não seria melhor escrever “Santa Sé e CNBB”? Na p. 33, no fim da segunda alínea, se explicite que se trata do “apêndice I”, não simplesmente do “Apêndice” do livro. Na p. 54, no fim da segunda alínea, acrescentar duas vírgulas: “oferecer, a esse tal, ensejo de...” Na p. 65, assassinou-se o original italiano da canção “Non ho l’età”, que virou “Nono l’età”... Concluindo esta recensão, parabéns à organizadora do volume, Paula Molinari, e ao coordenador da Coleção, Frei Joaquim Fonseca. Tudo o que se fizer, especialmente uma obra assim, com tantos elementos de reflexão, para se melhorar a qualidade da “Música brasileira na Liturgia”, é bem-vindo e meritório. Tarefa desafiadora, diante dos rumos ambíguos que o canto litúrgico vai tomando, e por isso mesmo tanto mais necessária. Endereço do Recensor: Endereço postal: ITESC, cx postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC E-mail: [email protected] 160 Encontros Teológicos nº 55 Ano 25 / número 1 / 2010