UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MURIEL APARECIDO BARBARINE DESOBEDIÊNCIA CIVIL APLICADA AOS DIREITOS DA CÓPIA CURITIBA 2012 UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ MURIEL APARECIDO BARBARINE DESOBEDIÊNCIA CIVIL APLICADA AOS DIREITOS DA CÓPIA Projeto de Pesquisa apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Sergio Staut Jr. CURITIBA 2012 RESUMO Espécie do gênero direito de resistência, a desobediência civil pode ser considerada como um dispositivo constitucional implícito que permite a recusa à obediência de leis patológicas ao Estado Democrático de Direito. Com a popularização da internet, tal recurso pode ser usado em meio eletrônico como forma de protesto direto ou indireto aos direitos da cópia, que muitas vezes limitam o direito de acesso à cultura. PALAVRAS-CHAVE: Direito de resistência. Desobediência civil. Direitos da cópia. TERMO DE APROVAÇÃO MURIEL APARECIDO BARBARINE DESOBEDIÊNCIA CIVIL APLICADA AOS DIREITOS DA CÓPIA Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção de grau de Bacharel em Direito no Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, ____ de _______________de 2012. ______________________________ Eduardo de Oliveira Leite Coordenador do Núcleo de Monografia Orientador: _______________________________ Prof, Sergio Staut Jr. Examinador 1: _____________________________ Examinador 2: _____________________________ SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO................................................................................................. 5 2. DIRETRIZES JUSTIFICADORAS DO DIREITO DE RESISTÊNCIA LATO SENSU.......................................................................................................6 3. APLICABILIDADE DA DESOBEDIENCIA CIVIL EM MEIO ELETRÔNICO.................................................................................................. 13 3.1 HIPÓTESE PRIMÁRIA DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL EM MEIO ELETRÔNICO.....................................................................................................13 3.2 DIRETRIZES DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL APLICADAS À HIPÓTESE....14 3.3 DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO DIREITO FUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 .............................................................22 4. CONFLITO ENTRE A DESOBEDIÊNCIA CIVIL E OS DIREITOS DA CÓPIA.................................................................................................................26 4.1 MODOS DE EXERCÍCIO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL................................26 4.1.1 A desobediência Civil Eletrônica.........................................................................30 4.2 DOS PROJETOS DE LEI QUE CERCEIAM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO.......................................................................................................31 4.3 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL PUNIVEL...........................................................33 4.4 OS CRIMES CONTRA DIREITOS DA CÓPIA .............................................. 34 4.5 DO CONFLITO ENTRE LIBERDADE E DIREITOS DA CÓPIA. .................37 5. CONCLUSÃO ....................................................................................................42 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................44 5 1. INTRODUÇÃO A desobediência civil é espécie do Direito de Resistência, onde os cidadãos descumprem publicamente uma lei que entendam injusta ou inconstitucional, com o desiderato de que o Estado a modifique. O objeto da presente monografia é identificar a Desobediência Civil na Constituição Federal de 1988, para então ponderar tal princípio com as diretrizes do Direito da Cópia, sob o ponto de vista da liberdade de expressão, sem lançar mão, para tanto, de fundamentos religiosos e morais. Para chegar ao objetivo aspirado foi empregada a metodologia dedutiva, partindo-se das ideias gerais sobre legalidade, hipóteses de resistência dentro da nossa Lei Maior, até chegar a uma ponderação entre os direitos da cópia e a Liberdade de Expressão. Para a concretização dessa monografia foi necessária também a análise de referências bibliográficas interdisciplinares. O desígnio do presente tema se justifica pela repercussão geral do assunto, que permite uma democracia plena, onde o estado deva temer o cidadão, e não o inverso. Ora, hoje vivemos em um Estado de ―quase justiça‖, onde, é verdade, poucos são os motivos práticos para a aplicação extremada do puro direito à resistência. Mas será que tudo continuará como está para sempre? Seria despicienda a precaução pelo estudo dos princípios do direito da resistência? A vontade do Estado está sempre correta? –A história mostra que não. A escolha por um tema onde um passo separa o direito da ilegalidade se justifica quando pensamos nos efeitos benéficos da aplicabilidade de tais conceitos como uma vacina contra inúmeros casos de opressão estadual, tendo como exemplo máximo o Nazismo. Destarte, passado o susto inicial de muitas pessoas com o tema do presente, nota-se a importância sociológica, filosófica e jurídica do assunto, sobre a ótica do princípio constitucional da liberdade. O assunto envolve todos os operadores do Direito, eis que estes têm a Lei como alicerce geral; interessa também aos legisladores; aos professores, que ministram a hermenêutica jurídica; e principalmente a todos e qualquer cidadão, que acate as leis... ou a elas resista. 6 2. DIRETRIZES JUSTIFICADORAS DO DIREITO DE RESISTÊNCIA LATO SENSU Preliminarmente importa citar um trecho da obra de Vieira que resume a essência do tema: ―Em princípio, se consideram as leis sempre boas e justas, quando na realidade muitas leis são injustas e ilegítimas.‖ (VIEIRA, 1983, p. 83). Até onde vai nossa democracia? Vivemos sob um Estado Democrático de Direito, onde ―De fato, é importante saber-se que se a democracia pode e deve tolerar, para não contradizer seu próprio princípio, a pregação de ideias capazes de destruíla.‖. (PAUPERIO, 1978, p. 263). Para Maria Helena Diniz ―A resistência é legitima desde que a ordem que o poder pretende impor seja falsa, divorciada do conceito ou ideia de direito imperante na comunidade.‖. (1997, p. 97). Ela compara a desobediência civil a uma legítima defesa do cidadão perante atos governamentais contrários as ideias morais e sociais de um grupo. Em alguns países desenvolvidos, o direito de resistência está positivado na proporção do grau de evolução (ou desenvolvimento) de sua democracia, senão vejamos: Dispõe a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França de 1789 em seu artigo 2º: Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DA FRANÇA DE 1789, p. única). Inobstante, insta observar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão garante o direito propriedade, que é base dos direitos autorais, da mesma forma que a assegura ao direito de resistência à opressão, fomentando ainda mais o eterno conflito entre inobediência, liberdade de expressão e direitos da cópia. 7 A Declaração de Independência dos EUA, de 04 de julho de 1776, positiva a resistência a um governo se necessário for: Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objecto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistemlhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colónias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do actual Rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidas injúrias e usurpações, tendo todos por objectivo directo o estabelecimento da tirania absoluta sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os factos a um mundo cândido. (DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA DOS EUA, 2012, p. única). Dispõe ainda, a Declaração do Bom Povo de Virgínia de 1776: Que o governo é instituído, ou deveria sê-lo, para proveito comum, proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; que de todas as formas e modos de governo esta é a melhor, a mais capaz de produzir maior felicidade e segurança, e a que está mais eficazmente assegurada contra o perigo de um mau governo; e que se um governo se mostra inadequado ou é contrário a tais princípios, a maioria da comunidade tem o direito indiscutível, inalienável e irrevogável de reformá-lo, alterá-lo ou aboli-lo da maneira considerada mais condizente com o bem público. (DECLARAÇÃO DO BOM POVO DE VIRGÍNIA DE 1776, 2012, p. única). Em Portugal, a Constituição dá a todos o direito de resistir a toda ordem que afronte direitos, liberdades e garantias: 8 Artigo 21 da Constituição da República Portuguesa: Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer a autoridade pública. (CANOTILHO, 2007 p. 420). Para Canotilho (2007), portanto, que o direito de resistência, em Portugal, não serve apenas perante o poder público, podendo ser usado contra particulares. Pode-se resistir tanto a uma ordem policial que ilegitimamente frustre a liberdade de ir e vir, como pode-se resistir a uma ordem patronal que expulse o laborador de seu posto de trabalho. Pode-se resistir a uma invasão domiciliar de um policial da mesma forma que se pode em face de um invasor particular. Neste sentido se manifesta a Jurisprudência brasileira reunida na obra de Jorge Beltrão (1971). ... ―Qualquer particular tem o direito de opor-se à execução de uma ordem ilegal. Quem resiste a um ato arbitrário não intenta contrariar a execução da lei; resiste justamente porque a lei não é executada. O agente que se permite um ato irregular ou arbitrário comete um excesso de poder‖ (Sentença do Dr. Luís Sanches de Lemos, in Ver. Forense, vol. XVII/163). (BELTRÃO, 1971 p. 191) ― O crime de resistência deixa de subsistir quando se verifica a repulsa do agente a um ato ilegal.‖ ( 1ª Câm. do Trib. de Just. do D. Federal in Jurisp. Mineira, vol. VI/469). (BELTRÃO, 1971 p. 189) ― Não há falar no delito de resistência se não houve violência ou ameaça‖ ( Ac. Unan. 1ª Câm. Trib. Alçada de S. Paulo, in Ver. Forense, vol. 200/249). (BELTRÃO, 1971 p. 190) ―O crime de resistência não se integra pela simples resistência dita moral.‖ (sentença o Juiz de Direito Dr. Alcino Pinto Falcão, da 24 Vara Criminal do D. Federal, in Ver. Forense vol. LXXI892). (BELTRÃO, 1971 p. 190) ‖ Inexiste o delito de resistência se era ilegal o ato contra o qual se insurgiu o agente.― (Ver. Forense, vol. 145/431 – Ac. Unân. 2ª Câm. Crim. Trib. Justiça de S. Paulo). (BELTRÃO, 1971 p. 191) ― Deixa de configurar o crime de resistência , se for ilegal o ato contra o qual se insurge o acusado‖. ( 1ª Câm. Trib. de Alçada de S. Paulo, in Ver. Dos Tribs., vol. 362/274). (BELTRÃO, 1971 p. 192) 9 Inobstante o mencionado, em nossa Lei Maior optou-se por não mencionar expressamente o direito a resistência, tal como o fizeram na Declaração de Independência dos EUA, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem, da França de 1789, o que não significa, no entanto que tal direito esteja excluído de nosso mundo jurídico, pois tal direito busca seus fundamentos em outros princípios constitucionais. Assim, segundo Maria Helena Diniz, podemos interpretar como uma faculdade, não autorizada (mas também não proibida) normativamente, dos cidadãos de reagir contra a opressão. logo ―a resistência é um fato, cuja legitimidade (não legalidade) é uma questão metajurídica, por depender da consonância desse fato com os autênticos interesses da vida humana‖, (DINIZ, 1997, p. 99). A Carta Magna, quando reconhece o direito à resistência, opera na defesa do sistema de direitos fundamentais e também na ―concordância estrutural do direito a resistência com a ordem constitucional‖ bem como na compatibilidade do direito de resistência com os preceitos constitucionais e na defesa do regime democrático e dos direitos fundamentais. Portanto, sempre que o poder público negligenciar sua função, a liberdade, ou a dignidade humana, é cabível o direito de resistência. O grande problema do direito de resistência perante a ótica constitucional está em garantir a autodefesa da sociedade, os direitos fundamentais e controle de atos governamentais, sempre zelando pelo cumprimento da ordem constitucional por parte do Estado. (BUZANELLO, 2012 p. 10). Assim: Quando um governo, ainda que bem intencionado e eficiente, faz com que sua vontade se coloque acima de qualquer outra, não existe democracia. Democracia implica autogoverno, e exige que os próprios governados decidam sobre as diretrizes políticas fundamentais do Estado. (DALLARI, 2002, p. 304). Para o direito de resistência, não basta uma mera ―admissão formal no texto da Carta Magna, devendo haver uma ―relação justa‖ entre o comando normativo e as práticas constitucionais‖. (BUZANELLO, 2012). Seu conceito tem dois polos, um político e outro jurídico: 10 a) o direito de resistência é a capacidade de as pessoas ou os grupos sociais se recusarem a cumprir determinada obrigação jurídica, fundada em razões jurídicas, políticas ou morais; b) o direito de resistência é uma realidade constitucional em que são qualificados gestos que indicam enfrentamento, por ação ou omissão, do ato injusto das normas jurídicas, do governante, do regime político e também de terceiros. (BUZANELLO, 2012 p. 16). Muitas vezes as sanções jurídicas disponíveis para combater os abusos de poder não são palio para coibir a injustiça de determinada lei, ou governante, por isso, em certos casos é dado aos governados o direito de recusar a obediência de três modos: revolução, resistência ou mera oposição às leis que considerem injustas (desobediência civil). ―Pela oposição às leis injustas, concretiza-se a repulsa de um preceito particular ou de um conjunto de prescrições em discordância com a moral.‖, podendo tal direito ser exercido em grupo ou isoladamente. (PAUPERIO, 1978, p. 11). Brilhante conclusão neste sentido é a do professor Lafer: ―O direito de resistência é, portanto, a consequência de uma crise no estado da sociedade civil, que fere a liberdade tornando possível a reversão provisória ai estado de natureza.‖ (LAFER, 1941, p. 190) Destarte, a resistência, pois, não deve ser encarada como mero ataque insólito contra a ordem e autoridade, e sim como uma ―característica de autêntica proteção a ordem estabelecida‖, uma espécie de autodefesa do sistema, uma reação jurídica que sanciona a desordem. (PAUPERIO, 1978 p. 19.) Buzanello (2012 p. 17) constrói uma classificação disposta em gênero (direito de resistência) e suas espécies: ―1) objeção de consciência; 2) greve política; 3) desobediência civil; 4) direito à revolução; 5) princípio da autodeterminação dos povos‖. Inobstante, adverte: ―Essa classificação não é exaustiva, pois muitas vezes os elementos de análise habitam uma área de difícil identificação entre gênero e espécie.‖. No presente trabalho nos aprofundaremos somente no estudo da desobediência civil como espécie do direito de resistência. O direito de resistência se divide, também, em implícita e explícita, sendo esta as que a constituição expressamente declara, como é o caso da objeção de consciência, do artigo 5º VIII c/c art.143§1º da Constituição Federal Brasileira (1988); 11 ―greve política‖ artigo 9º do mesmo diploma legal; e o princípio da autodeterminação dos povos do artigo 4º III da Constituição Federal. A ―materialidade da resistência‖, por sua vez, é um direito implícito, e se combina com elementos formais da constituição, como os princípios da dignidade humana e pluralismo político, pilares do Estado Democrático de Direito, estabelecido no artigo 1º, III, V da Constituição Federal, e ainda a ―abertura e a integração para dentro do ordenamento constitucional de outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados‖, conforme preceitua o artigo 5º, §2º da Constituição Federal. Destarte, Buzanello conclui que a Constituição Federal se abre uma porta para o direito a resistência, no § 2 de seu artigo 5º. (VADE MECUM, 2012). Afirma ainda que ―A abertura constitucional possibilita a ampliação de novos direitos‖, de forma que o direito de resistência se torna uma verdadeira ―garantia constitucional ao Estado de Direito‖. ―O fato de não constar no texto constitucional não quer dizer que um elemento esteja excluído da realidade jurídica‖. E ainda, a questão constitucional do direito de resistência consiste na ―garantia da autodefesa da sociedade, na garantia dos direitos fundamentais e no controle dos atos públicos, bem como na manutenção do pacto constituinte por parte do governante.‖. (BUZANELLO, 2012 p. 12). Os direitos fundamentais, entre eles os individuais, se classificam em três espécies: a) os direitos individuais expressos na própria Constituição Federal Brasileira b) os implícitos, que são os direitos individuais que ficam subentendidos na norma constitucional, como, por exemplo, as ramificações do direito à vida, à identidade pessoal e a atuação geral (art. 5º, II, §3). E por fim os direitos individuais oriundos de tratados internacionais em que o Brasil seja signatário, não constando implícita nem explicitamente, como ocorre com o direito de resistência. O direito de resistência é em regra um direito constitucional, não obstante pode vir a ser cível e até mesmo penal, uma vez que o que define se tal direito em um caso concreto será licito ou não é o ordenamento jurídico civil ou penal, dependendo da ótica dada ao caso de resistência. Buzanello faz um paralelo entre a resistência e a legítima defesa, sendo, no caso uma defesa da ―ordem constitucional e democrática‖. Para que a resistência seja lícita, deve haver uma analogia com a legítima defesa cível, penal ou mesmo estado de necessidade. Ou seja, deve ser uma reação a uma violação. Destarte, para ser lícita, 12 entende que a resistência deve ser ―a) ato ou efeito de resistir; b) qualidade de resistente; c) defesa em favor de direitos e contra-ataque; d) defesa contra constrangimento ou ordem ilegal ou injusta‖. (BUZANELLO, 2012 p. 24). Compulsando-se as teorias neste capítulo analisadas acerca do direito de resistência, verifica-se certo distanciamento entre o direito de resistência proposto e a hipótese que será analisada pela presente monografia. Vimos que tal direito de resistência está sempre voltado a situações extremadas de conflitos, muitas vezes armados, que autorizam o direito de resistir como ultima ratio. Neste sentido: ―Quanto mais perfeita é uma sociedade, menos razão de ser tem a resistência‖. (PAUPERIO, 1978 p. 24) Inobstante, temos que a presente análise foi imprescindível para atingir-se a base e compreensão do que passa a expor, devemos reiterar que o direito de resistência é apenas gênero. Passemos agora a análise de nossa hipótese primária sob a ótica específica da desobediência civil. 13 3. APLICABILIDADE DA DESOBEDIENCIA CIVIL EM MEIO ELETRÔNICO 3.1 HIPÓTESE PRIMÁRIA DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL EM MEIO ELETRÔNICO Aos dezenove dias do mês de janeiro de 2012, o maior site de compartilhamento do mundo, megaupload.com, que permitia o a difusão de arquivos entre particulares, foi fechado mediante decisão judicial (que ainda não transitou em julgado) pela acusação facilitar a troca de conteúdo protegido pelos direitos da cópia. O portal não tinha um letreiro piscando a frase: ―COMPARTILHE SUAS COISAS PIRATAS COM A GENTE‖, mas seus motivos eram evidentes. Parece que, no caso, a questão vai muito além da troca de arquivos com copyright. Havia indícios de que a pirataria era o menor dos crimes dos proprietários do portal. Na época, foram criados diversos projetos de lei com o propósito de salvaguardar os direitos da cópia de atos rotineiros de pirataria e de protestos e organizações que declaravam guerra aos direitos da cópia, ou copyright. A ironia está no fato de que, o FBI conseguiu tirar o site megaupload.com do ar apenas com recursos legais já existentes, sem precisar lançar mão de novos projetos de lei, o que demonstra suas desnecessidades. (BURGOS, 2012) Em protesto ao fechamento do portal de compartilhamento, bem como aos projetos de lei que estavam sendo criados, o hackers do grupo Anonymous (palavra de origem inglesa, que pode ser traduzida como anônimos) revidaram, derrubando em poucas horas os sites responsáveis pela acusação de pirataria, como o da Universal Music, do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, da Warner Music Group, inclusive o próprio site do FBI. Seria atitude do Anonymous justificável como ato de desobediência civil? Para responder a estas perguntas, é necessário um estudo aprofundado do direito da resistência, em especial a desobediência civil, para então poder aplica-la corretamente ao Ordenamento Jurídico Pátrio, ponderando os princípios da liberdade de expressão e os direitos da cópia. 14 Tal liberdade se constitui em um direito absoluto? Ou poderia tal princípio ser limitado pelos direitos de copyright? Temos a liberdade de compartilhar qualquer informação que se queira, mesmo que ofendendo direitos autorais, igualmente protegidos pela Constituição? 3.2 DIRETRIZES DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL APLICADAS À HIPÓTESE Inicialmente impende ressaltar que: ―O cidadão que resiste à autoridade não é sempre um mero rebelde. Tem muitas vezes o sentido mais elevado da ordem. Não desobedece por desobedecer. Desobedece para alcançar o respeito e a harmonia da ordem que julga violada.‖(PAUPERIO,1978 p.15) Reale (1986) afirma que é dever do legislador evitar a separação entre a realidade e as normas despropositadas, pois colidentes com os verdadeiros interesses sociais. No entanto, inobstante os ensinamentos de Reale, não podemos esquecer que na em nossa sociedade, não é sempre que os legisladores considerem esta separação, prevenindo, ou mesmo reparando tal equívoco. De forma que, muitas vezes tal lei acaba se perpetuando, em sua forma patológica. Tal fato ocorre por diversos motivos, decorrentes de uma verdadeira crise institucional em nosso atual sistema ―democrático‖ eleitoral , que contribui para uma eleição de políticos de capacidade muitas vezes questionável, o que acaba por engessar essa via preventiva de controle de constitucionalidade das leis. Isto posto, vamos ao conceito de obediência e desobediência segundo o Dicionário Michaelis: Desobediência é: Ação de desobedecer. 2 . Falta intencional de obediência. 3. Transgressão de uma ordem. 4. Hábito de desobedecer; o oposto de obediência. Sinônimo de: inobediência. Para o mesmo dicionário, obediência é: 1. Ato ou efeito de obedecer. 2. Submissão à autoridade legítima; sujeição. 3. Disposição para obedecer; hábito de obedecer. 4. Autoridade, domínio. 5. Aquiescência, docilidade. 6. Um dos três votos dos monges, que consistia em obedecer cegamente às ordens do superior. 7. Dependência. 8. Ecles Ato de acatamento à vontade de outrem como vinda de Deus; virtude que dispõe o súdito a fazer a vontade do seu superior, com respeito, piedade e 15 amor. 9. Mosteiro, granja ou pequeno priorado sujeito ao superior da ordem (na ordem de São Bento). 10. Nome dado às casas religiosas inferiores, sujeitas às casas principais, delas afastadas.(MICHAELIS, 2009). Vamos agora a um primeiro conceito jurídico de desobediência civil: 1. Possibilidade de um grupo social, ou de um cidadão, agindo conforme sua consciência e protegido pela Constituição, opor-se a um princípio constitucional. 2. Exercício de direito de resistência passiva por parte de certo grupo social resultante do descumprimento de lei ou de ato governamental contrário à ordem jurídica ou à moral pública (...). (DINIZ, 2005, p. 120). É necessário descrever a desobediência civil como ―um ato que tem em mira, em ultima instância, mudar o ordenamento sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor‖. Para ele, existem três circunstancias que ―favorecem a obrigação de desobediência‖: a lei ilegítima, a lei injusta e a lei inválida ou inconstitucional, sendo que a última não enseja, para Bobbio, essa ―obrigação de desobediência‖, pois a Constituição Federal, em seu artigo 103, limita o controle de constitucionalidade das leis, o qual não é dado ao cidadão comum, e mais, o fundamento dessa obrigação de desobedecer se encontra em uma ―reciprocidade que haveria entre o cidadão e o legislador‖, fundamentando que ―se é verdade que o legislador tem direito à obediência, também é verdade que o cidadão tem o direito de ser governado com sabedoria e com leis estabelecidas‖. A desobediência civil é espécie do gênero do direito à resistência. Para ele a desobediência civil é ―uma das situações em que a violação da lei é considerada eticamente justificada (...)‖. (BOBBIO, 2000 p. 335-336). Para Maria Helena Diniz, ―a desobediência civil é uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça, a ilegitimidade a invalidade da lei e com o fim mediato induzir o poder a mudá-la. Dai ser um ato inovador e não destruidor‖. (DINIZ, 1997 p. 16 97) Observa-se aqui uma especial característica da desobediência civil, a sua forma de atuação, que pode aspirar fins diretos e também indiretos. A desobediência civil ganha força no século XX com a obra de Herry David Thoreau, sendo, especialmente ligada a uma questão fiscal, de resistência ao pagamento de impostos. Em um paralelo com o contemporâneo caso do fechamento do portal Mega Upload, pode-se tecer uma analogia, se considerarmos que o Mega Upload nada mais faz do que permitir que as pessoas compartilhem arquivos, entre eles arquivos piratas, ou seja, que simplesmente não recolhem impostos. Ainda sobre a resistência fiscal podemos citar casos em que além dos altos tributos em sentido imediato, há uma resistência indireta (ou mediata) em pagar impostos, (leia-se financiar) um governo que pratica, ou quer praticar, ato que o desobediente civil considere como injusto. Neste sentido, Thoreau propõe: Se mil homens se recusassem a pagar seus impostos este ano, esta não seria uma medida violenta e sangrenta, como seria a de pagá-los e permitir ao Estado cometer violências e derramar sangue inocente. Esta é, de fato, a definição de uma revolução pacífica, se tal for possível. (THOREAU, 2010, p. 32) Fica claro que para Thoreau existe também a preocupação em resistir a questões tributárias em duas vias, a imediata e a mediata, que consiste em recusa ao financiamento de um estado que fomenta o racismo, escravidão e ainda por cima fomente a guerra. Para tanto ―O movimento da desobediência civil visa à destruição da injustiça, da violência, da segregação, do egoísmo, da falsidade etc.‖, ao passo que ―tal movimento se aproxima e reveste, com o manto do respeito, o injusto, o violento, o segregacionista, o egoísta, o falso etc.‖. (VIEIRA, 1983 p. 25) Para movimento de desobediência civil, a maior tragédia não consiste na brutalidade dos partidários da violência. A maior tragédia está no silencio, na compreensão pouco profunda os homens de boa vontade. Isto é pior oque a total incompreensão . do que a total rejeição, por parte dos violentos. A atitude do individuo moderado, que tudo entende, mas nada realiza, mostra como ele é mais amigo da ―ordem‖ do que da justiça. Acaba sendo barreira para movimento inspirado pela não violência. Em qualquer conversa, 17 independentemente do local, sempre existem pessoas que crêem em nobres e elevados ideais. Calam-se, porém, com medo de serem vistas como diferentes, ou com temor de comprometem-se perante os outros. (VIEIRA, 1983 p. 27). A desobediência civil é um ―mecanismo indireto de participação na sociedade, já que não conta com suficientes canais participativos junto às esferas do Estado‖, sem os quais não pode considerar-se um ―ente político legítimo‖. O Grande problema da desobediência civil tem caráter simbólico, que, na maioria das vezes, se encaminha para uma ―deslegitimação da autoridade pública ou de uma lei, como a perturbação do funcionamento de uma instituição, a fim de atingir as pessoas situadas em seus centros de decisão.‖. (BUZANELLO, 2012 p. 18) Para ele, na correta identificação de um caso de desobediência civil (que é espécie do já analisado direito de resistência), devem ser observadas as suas principais características: a) é uma forma particularizada de resistência e qualifica-se na ação pública, simbólica e ético-normativa; b) manifesta-se de forma coletiva e pela ação ―não-violenta‖; c) quer demonstrar a injustiça da lei ou do ato governamental mediante ações de grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado; d) visa à reforma jurídica e política do Estado, não sendo mais do que uma contribuição ao sistema político ou uma proposta para o aperfeiçoamento jurídico. Propõe apenas a negação de uma parte da ordem jurídica, ao pedir a reforma ou a revogação de um ato oficial mediante ações de mobilização pública dos grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado. (BUZANELLO, 2012 p. 19). Ainda para Buzanello, a desobediência civil pode ser classificada em direta e indireta. A primeira ocorre quando ―as leis do Estado são desafiadas abertamente‖, e cita como exemplo desta categoria as ―diretas já‖, no Brasil. Já a desobediência civil indireta ―ocorre quando as estratégias do Estado são desafiadas através de ataques a leis isoladas‖ daí decorrem casos em que a lei é ―legal, porém ilegítima‖. (BUZANELLO, 2012 p. 19) Vamos conferir se a nossa hipótese de desobediência civil se encaixam nos requisitos apontados por Buzanello: 18 a) ―é uma forma particularizada de resistência e qualifica-se na ação pública, simbólica e ético-normativa‖; - A primeira característica é a publicidade da conduta, que não pode se dar às escuras. Ora, evidente que no nosso caso concreto todas as ações cometidas são permeadas pela publicidade máxima, que é a publicidade virtual, ou viral (publicidade que atinge ampla audiência). Tal publicidade é também simbólica e ético-normativa a medida que prega a todo momento mensagem carregadas de significados ideológicos. b) manifesta-se de forma coletiva e pela ação ―não-violenta‖; - mais uma vez há compatibilidade com nosso caso concreto. As ações em análise são coletivas e desprovidas de qualquer tipo de ação violenta. c) quer demonstrar a injustiça da lei ou do ato governamental mediante ações de grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado; - Não há definição melhor que enquadre a ideologia do movimento em estudo. d) visa à reforma jurídica e política do Estado, não sendo mais do que uma contribuição ao sistema político ou uma proposta para o aperfeiçoamento jurídico. Propõe apenas a negação de uma parte da ordem jurídica, ao pedir a reforma ou a revogação de um ato oficial mediante ações de mobilização pública dos grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado. – O presente requisito não poderia encaixar-se de maneira mais espetacular no caso sob análise, dispensando maiores comentários. A desobediência civil tem suas raízes na política, economia e cultura, e seus princípios se destacam sempre que a dignidade humana precisa ser salvaguardada. ―Os cidadãos fazem parte da autoridade soberana, e esta autoridade só se garante pela soberania do povo.‖ Sendo inadmissível que se permita aos mais fortes a conversão da força dos cidadãos em direito, pois ―Os cidadãos não devem consentir que o mais forte imponha a obediência como dever, retirando-lhes o amparo de seus direitos essenciais‖. (VIEIRA, 1983) E exemplifica com maestria: 19 A lei é injusta quando discrimina um grupo minoritário, embora possa ate ter sido votada pela maioria. Tal fato não elimina a discriminação por qualquer motivo: raça, religião, cultura, idade, sexo etc. A lei é injusta quando se impõe a pessoas sem direito a voto. Estas pessoas devem obedecê-la, mas não participaram da elaboração da lei e, muito menos, tiveram condições de votá-la, conforme acontece com os analfabetos, etc. A lei é injusta quando uma minoria a torna obrigatória para a maioria, que não foi consultada, nem lhe deu pelo voto autorização para existir. Eis o caso da chamada Constituiçao de 1937, durante o Estado Novo no Brasil. È também o caso da Emenda Constitucional nº1, de 17 de outubro de 1969, promulgada no Brasil, pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exercito e da Aeronáutica Militar. Leitor, tenha mais paciência e veja até onde vai a injustiça! A lei é injusta quando votada por falsa maioria, que só aparenta representar a maior parte dos indivíduos , devido a jogadas feitas durante as eleições . A lei é injusta quando submete uma infindade de pessoas a viverem miseravelmente. A lei é injusta quando permite que um país pressione de qualquer moo ou ataque militarmente, ou apenas ocupe outro país, outra região , sem consentimento de seus próprios habitantes. Neste caso, tal lei agride povos diferentes, pouco importando os motivos. (VIEIRA, 1983, p. 22). Não se pode, contudo, pensar que se trata de uma enumeração exaustiva, há muitos outros exemplos de leis que se tornam injustas. Ademais, há também condições de vida completamente injustas, em todos os setores da sociedade. ―O seguidor da desobediência civil acredita que a violência dá origem a muito mais problemas do que de fato ela vem resolver.‖ (...) e exemplifica: ―Basta parar e olhar: se o salário da maioria da população se mantém abaixo do preço das mercadorias, eis ai uma situação de violência.‖. (VIEIRA, 1983, p. 23) E ai que surge a violência de segundo grau, ou violência gerando cada vez mais violência, pois: Daí, se reprimem os movimentos pelos aumentos de salários, se proíbem as liberdades de reunião e de expressão de ideias, se censura tudo o que diz respeito à aplicação da violência, se acaba em geral partindo para a agressão física dos homens. (VIEIRA, 1983 p. 23). Para Vieira ―(...) essa tirania, cuja forma grosseira agora desapareceu, oculta-se debaixo de formas hipócritas e subsiste ainda em nossos dias‖. (VIEIRA, 1983) Surge aqui um nicho que pode abrigar revoluções ―mais sutis‖, como, por exemplo, a revolução digital. 20 Baseando-se nas ideias de Vieira (1983) e de Thoreau (2010), chegamos a conclusão de que ainda subsiste muitas formas de violência em nossos dias, podendose aceitar perfeitamente um hipotético episódio de desobediência civil contra os altos impostos em espécie, contra o monopólio da cultura, que é protegida pelos direitos autorais, e que a exemplo da quebra de patentes de direitos autorais de medicamentos, deveria ser também livre o acesso a cultura em todas as suas formas. Mesmo se não fosse possível tal hipótese, ainda existiria a hipótese indireta, ou mediata de aplicação da desobediência civil, na sua modalidade protesto, por tão infindáveis motivos nacionais e atuais de igual ou superior relevância aos motivos que moviam Thoreau (2010) em sua época. Para entender melhor esses conflitos, passemos a tratar das diretrizes da desobediência civil clássica: A desobediência não violenta nunca cria conflitos, ela tão somente denuncia publicamente os conflitos já existentes e busca soluções para eles sem recorrer a meios violentos para tanto. (VIEIRA, 1983) Isaias Berlin, põe como questão central da politica a obediência e a coerção, e formulam questões acerca da liberdade: ―Porque não devo viver como me agrada?‖ ―Preciso obedecer?‖ ―Se eu desobedecer, poderei ser coagido?‖ ― Por quem e até que ponto e em nome do quê e em favor de quê?‖, ou então, podemos sintetizar em uma única e grande questão: ―por que obedecer?‖. (BERLIN, 1981, p. 135) Para Maria Garcia (1994), trata-se de uma questão de legitimidade, aceitação e convicção, além da legalidade. A questão de autoridade, que é tida como a origem da coerção, é um antônimo de liberdade, e se encontram em permanente conflito. Ou seja, em uma balança onde um passo separa o desequilíbrio da anarquia do temido totalitarismo. O antigo escritor espanhol Eduardo Garcia Enterría, em sua obra ―La Lucha Contra Las Imunidades del Poder‖ citado por Maria Garcia exibe o problema da Lei, que já foi: ― entendida como o maior escudo da liberdade: hoje um fato que passou a ser um dos seus mais terríveis inimigos.‖ E ainda, que a lei se tornou ―um simples meio técnico de organização coletiva, de modo que pode: ―não fazer nenhuma referência à justiça‖, como pode ―converter-se num modo de organização antijurídico, 21 num modo de perversão do ordenamento‖. E continua dizendo que: ―se impõe a necessidade de estabelecer, juridicamente, um sistema de defesa contra a Lei que permita tornar efetiva essa defesa por outras vias‖. Garcia cita o comentário de Régis Fernando de Oliveira: ―há leis tão absurdas, casuísticas e desprovidas de sentido que fatalmente não são obedecidas‖ O mesmo autor adverte da importância de uma manutenção da desobediência. Daí vem o termo desobediência civil, que nada mais é que uma ―desqualificação do detentor de poder‖, (...) onde ―as ordens passam a ser descumpridas com a aquiescência de toda a comunidade‖. (GARCIA, 1994 p. 219) Para Reale (1986) só existe perfeição legislativa em leis providas de fundamento ético, não obstante sabemos que ainda existem leis ...nascidas puramente do arbítrio ou de valores aparentes, que só o legislador reconhece. Entretanto, não deixam de ser jurídicas, porque possuem vigência. Daí um problema dos mais sutis e relevantes: o da obediência ou não às leis destituídas de fundamento ético e a sua positividade. Há, por outro lado, fenômenos curiosos de mudança de fundamento. Muitas vezes, os meios técnicos não alcançam os resultados previstos; o legislador pensa atingir um fim, mas a lei fica a meio caminho, insuficiente e incapaz de atingir o alvo colimado (REALE, 1986, p. 592). Destarte, nota-se que muitas vezes as leis são propostas com um objetivo, mas alcançam outros com implicações inesperadas. Quando tais fenômenos ocorrem, mesmo que notória a imperfeição de determinada lei, está não deixará de ser jurídica, e deste modo, construirá uma realidade diversa da que foi projetada, ―com força de lei‖. La Boètie (1986) defende que o cumprimento de leis desarrazoadas, injustas, e até surrealistas, não é obediência, mas servidão. E envolve um dos maiores princípios constitucionais, o da dignidade da pessoa humana. (La Boètie, 1986) Nas palavras de Arendt, ―Dissidência implica em consentimento e é a marca do governo livre: quem sabe que pode divergir sabe também que de certo modo está consentindo quando não diverge‖. (ARENDT, 2010, p. 79) Para ela, é pré-requisito que o indivíduo ―se invista na titularidade de cidadão‖, para então, munido de suas garantias e prerrogativas de cidadania, possa agir 22 pessoal e efetivamente nas decisões politicas. Para ela, a desobediência civil pode ser invocada tanto para promover mudanças necessárias quanto para restaurar a sociedade ao status quo; contudo, ―em nenhum dos casos a desobediência civil pode ser comparada à desobediência criminosa‖. E continua: ―a distinção entre a violação aberta da lei, executada em público, e a violação clandestina é tão claramente óbvia que só pode ser ignorada por preconceito ou má vontade‖. A segunda característica apontada à desobediência civil, pelo mesma autora, é a não violência, ―e dai decorre que a desobediência civil não é revolução‖. (ARENDT, 2010, p. 51-90) Michel Walzer apresenta a desobediência civil como uma ―reinvindicação pública contra o Estado, publicamente expressa em ação‖, não obstante sempre está ligada a um dever moral: A desobediência civil é, geralmente, um conflito não-revolucionário com o estado. Uma pessoa infringe a lei, mas não disputa a correção básica dos sistemas legal ou político. Sente-se moralmente obrigada a desobedecer, mas também reconhece o valor moral do Estado. A desobediência civil é seu modo de mover-se cuidadosamente entre essas moralidades conflitantes‖. (WALZER, 1977 p. 26). 3.3 DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMO DIREITO FUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Vimos o conceito e as hipóteses que autorizam a incidência do recurso da desobediência civil, muitos deles com suas bases na Constituição Federal de 1988, nosso próximo passo vai mais longe, na tentativa de elevar tal direito ao status de direito fundamenta de nossa Lei Maior. Primeiramente, cabe lembrar que, segundo Celso Lafer a desobediência civil é um direito humano de primeira geração, sendo individual quanto ao modo de exercício, quanto a titularidade e sujeito passivo. ―a ação que objetiva a inovação e a mudança da norma através da publicidade do ato de transgressão, visando demonstrar a injustiça da lei.‖, para ele, transgredir à norma, usando da desobediência civil, é tido como ―um dever ético do cidadão‖, para ele este 23 dever não tem a pretensão de ter uma ―validez universal e absoluta‖, e sim ―se coloca como imperativo pessoal numa dada situação concreta e histórica‖.(LAFER, 1988, p. 200) Assim, para Reale (2000) nada impede, em princípio, a recepção de tal direito, eis que o que dá autenticidade ao direito não é o fato de ele ter sido declarado, mas sim o de ele ser reconhecido pela sociedade como tal, pois é ela que vai conviver com referida norma, que deve ser incorporada de forma a integrar a sociedade. As leis deveriam ser perfeitas, para educar os homens a perfeição, e não o contrário. Surge, pois o conceito de Justiça Social, que justifica as leis sociais que aplicam o assistencialismo e o protecionismo. O principal argumento para propor a inserção da desobediência civil como direito fundamental é que a Constituição, em seu artigo 5º, § 2º, cria uma cláusula aberta, ao admitir outros direitos e garantias, de onde decorre o direito da desobediência civil. E mais, ―liga-se especialmente aos princípios da proporcionalidade e da solidariedade, que permitem protestos contra atos que violem esses princípios da ordem pública.‖. (BUZANELLO, 2012 p. 19). Neste sentido, Maria Helena Diniz, ensina que quando a nossa Lei Maior, em seu artigo 5º, inciso II estabelece que: ―ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei‖, está-se diante de uma garantia constitucional implícita de resistência à ilegalidade. Ademais, nossa Carta Magna, em seu artigo 5º §2º, confessa que a catalogação dos direitos e garantias fundamentais não é exaustiva, ao prescrever que ― Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.‖. o que abre espaço para uma hipótese de elevar o direito de resistência e de desobediência civil ao status de garantia constitucional fundamental. E mais, em seu artigo 142, a nossa Lei Maior estabelece que as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem, bem como, pelo seu artigo 17 se a organização dos partidos políticos ―deve observar o regime representativo e democrático, baseado na pluralidade partidária e na garantia dos direitos fundamentais do homem, reconhecido está o direito de resistência‖. (DINIZ, 1997, p. 99). 24 Vale lembra que o estudo da desobediência civil não se dirige ao direito de revolução, objeção de consciência, destruição da lei e da ordem, da autoridade, ou normas necessárias à convivência social. É tão somente um ―direito de garantia do exercício de cidadania‖, que dá ao cidadão o poder de criar a lei, e de não obedecê-la quando contrária a Carta Magna, seus direitos e garantias asseguradas. Cabe aqui, destacar a diferença entre desobediência civil e objeção de consciência, pois esta segue um padrão moral, que induz o cidadão a não violar um ―imperativo supremo de sua ética‖, de forma que acaba por não cumprir a lei positivada. Enquanto aquela tem por desiderato demonstrar a ―injustiça da lei através de uma ação que almeja a inovação e a mudança da norma através da publicidade do ato de transgressão.‖, desta forma, Garcia, ao final, conceitua a desobediência civil como ―forma particular de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão, à lei o ato de autoridade, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e garantias fundamentais.‖. (GARCIA, 1994, pag. 279). Também para ela, a desobediência civil está inserida, no § 2º do artigo 5º da Constituição, no rol dos direitos políticos, de ―acesso à condução da coisa pública ou, se preferir, à participação na vida política‖. Essa forma especial de desobediência civil pode se manifestar de dois modos: passiva ou negativamente (ou seja, não fazer algo determinado). Para tanto é necessário um conflito com a norma constitucional e seus princípios e garantias fundamentais. A Constituição é um ―sistema aberto às mudanças da realidade social e às concepções cambiantes da ―verdade‖ e da ―justiça‖.‖. A desobediência civil é um direito fundamental, pois é ligado à ordem constitucional, que, como já foi dito, é um ―— sistema aberto e incompleto, de amplitude e indeterminação — que admite e assimila a desordem consubstanciada na vida social:‖. Destarte, ―a desobediência civil é um direito fundamental de garantia, contido no mandamento do artigo 5º da Constituição Federal‖. Este direito decorre do principio constitucional da liberdade e é destinada ao ápice da liberdade, que é a cidadania. Portanto, tanto o cidadão isolado quanto em conjunto tem o direito a desobediência civil, direito este decorrente do princípio da cidadania. (GARCIA, 1994). 25 Conforme ensinado por Diniz, (1997) vimos a possibilidade de desobediência à lei que se julgue inconstitucional. Mas o grave problema político da desobediência civil, e também muito comum por ser a constituição um processo popular, esta na possibilidade de um cidadão individual ou coletivamente, agindo em conformidade com sua consciência e protegido pela Constituição opor-se a um princípio constitucional. Tais colisões são mais comuns do que se imagina, é o caso, por exemplo, da recusa a norma constitucional que previa o serviço militar obrigatório muito comum nos Estados Unidos, em suas guerras contra o México, relatadas por Thoreau. O mesmo vale para a Guerra do Vietnã e os contemporâneos conflitos no oriente médio. No nosso caso sob análise cabe indagar como fica a questão do portal megaupload.com e suas denuncias contra direitos da cópia, uma espécie de direitos da propriedade, versus o direito de livre compartilhamento de informações, arquivos e o que quer que se queira compartilhar no maior site de compartilhamentos do mundo, cujo sigilo foi quebrado pelo FMI, mediante decisão judicial que ainda não transitou em julgado. Afinal, o direito a liberdade de expressão, informação, compartilhamento e acesso a cultura poderia contrapor-se ao direito de propriedade ou não? 26 4. CONFLITO ENTRE A DESOBEDIÊNCIA CIVIL E OS DIREITOS DA CÓPIA 4.1 MODOS DE EXERCÍCIO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL O direito de resistência, mais que meros atos de ―transgressão jurídica‖, é um ―instrumento de defesa da ordem democrática e constitucional.‖. Para, a resistência, ―sempre que possível pode e deve requerer a proteção judiciária, sem prejuízo de outras construções jurídicas que informam a justificação menos jurídica e mais política.‖ (BUZANELLO, 2012 p. 25). Quais seriam, pois, as consequências do não atendimento da iniciativa de desobediência civil por parte do poder público? O direito de petição, que é instrumento da desobediência civil, não aceita nenhum tipo de ação negativa ou omissão da autoridade. É cabível a impetração de mandado de segurança, para salvaguardar o direito liquido e certo, pois ainda que a Constituição não preveja expressamente a punição da autoridade ―... parece-nos certo que ela pode ser constrangida a isso por via do mandado de segurança, quer quando se nega expressamente a pronunciar-se quer quando se omite para tanto...‖. (SILVA, 2009, p. 444). Em meados dos anos 60, Martin Luther King Jr. foi um dos líderes na vanguarda de campanhas não violentas contra o racismo. Para ele, havia quatro princípios basilares a serem sempre observados: ―a reunião de acontecimentos capazes de definir a existência de injustiças; a negociação; a autocrítica, e a ação direta. ‖. E por ação direta, ele chamava a representação da ―desobediência não violenta, muito bem pensada e analisada, visando atacar a injustiça sobretudo atrevida‖, de forma a, primeiro revelar publicamente os problemas questionados, para então conduzir-se a um acordo, que pode ser voluntário ou via ação direta. (VIEIRA, 1983). Excetuando-se os casos extremados de desobediência, como o de revolução, que ameaça todo o ordenamento, ―a resistência de menor intensidade política, como a objeção de consciência, é formalizada em petições que acrescem a possibilidade da solução da demanda.‖ Destarte, cabe indagar como se pode garantir juridicamente uma 27 resistência implícita? ―Essas garantias constitucionais visam sanar e corrigir inconstitucionalidades ou ilegalidades e abusos de poder‖. (BUZANELLO, 2012 p.13). ―O remédio mais demandado é o direito de petição ou representação ao poder público para a defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abusos de poder (art. 5º, XXXIV, CF)‖. Destarte, qualquer cidadão pode demandar o poder público peticionando a autoridade competente, instaurando, se for o caso, inquérito administrativo contra a autoridade que cometer abuso ou irregularidade, sem prejuízo das garantias constitucionais do mandado de segurança, quando houver ameaça a direito liquido e certo, e de habeas corpus, sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer restrição de liberdade. Para tanto, condiciona, tais atos devem ser fundamentados, para só então poder criar, modificar ou extinguir os ―atos jurídicos, ou políticos, medidas governamentais e atitudes de determinados indivíduos em conformidade com o Estado de Direito.‖. (BUZANELLO, 2012 p. 25). E conclui: ―O direito de resistência, por fim somente se justifica no caso de descumprimento de algum direito primário, tanto que opera quase sempre de forma similar a direito de defesa, pois aquele que resiste a uma ordem injusta defende-se. É também um direito para se ter direito, isto é, um direito secundário que supõe que seu exercício está em favor do gozo de um direito primário, como a vida, a justiça, a dignidade humana, a propriedade.‖. (BUZANELLO, 2012p. 27). Os seguidores da desobediência civil creem que o Estado teme o confronto intelectual ou moral com o cidadão; ―O estado ataca o corpo do indivíduo (...) pois não possui considerável inteligência ou honestidade‖. Daí vem a importância de um meio eficiente de lutar contra os ―fiéis adoradores da força bruta‖, e esse meio é pensado estrategicamente de modo diverso das táticas aplicadas pelos opressores. Essas táticas ―não nasceram do nada‖, elas são oriundas de ―profundas meditações sobre o inestimável valor da vida, e tomam o sentido contrário a qualquer manifestação de violência‖. (VIEIRA, 198, p. 20) 28 Neste sentido Thoreau afirma que ―Num governo que aprisiona qualquer pessoa injustamente, o verdadeiro lugar de um homem justo é também a prisão‖. (THOREAU, 2010, p. 30) E ainda: Se alguém pensa que ali sua influência se perderá, que sua voz não mais atormentará os ouvidos do Estado e que ele não será como um inimigo dentro de suas muralhas, é porque não sabe o quanto a verdade é mais poderosa que o erro, nem o quão mais eloquente e eficazmente pode combatera injustiça aquele que já a tenha experimentado em sua própria carne‖. (THOREAU, 2010, p. 30) Para que não se cometa o erro que mais se condena, a desobediência civil adota o total repúdio a violência e injustiça. Está, pois fundada no ―princípio da ação não violenta‖, sendo, pois, contrária a tudo que ―humilha a consciência humana‖. A lei injusta por si só configura um ato de agressão, e a punição pelo seu descumprimento é ainda mais grave, consistindo em um ato de agressão de segundo grau. Ao contrário, ―a desobediência civil, que é a desobediência dos cidadãos, realiza sua oposição de maneira mais digna, afastando os defensores da violência através da ação não violenta‖. (VIEIRA, 1983, p. 21) Assim, um instrumento compatível com a desobediência civil é o dispositivo do inciso XXXIV a do artigo 5º da Constituição Federal, o ―direito de petição aos poderes públicos‖, cuja função é defender direitos ou atacar ilegalidades e abusos de poder. (GARCIA, 1994). Nesse sentido, para José Celso de Mello Filho ―a importância desse direito público subjetivo mais se acentua quando se verifica que os Poderes do Estado não podem deixar de responder à postulação deduzida‖. Para ele, se as referidas petições forem arquivadas sumariamente, e sem resposta (seja ela afirmativa ou negativa), mais do que uma ilegalidade, estar-se a diante de uma violação a norma constitucional. (MELLO FILHO, 1986, p. 480). 29 Pinto Ferreira lembra que ―a autoridade que recebe a petição deve encaminhá-la à autoridade competente que deve examiná-la, para atender ou negar o pedido‖, e lembra que ―as Constituições Federais anteriores (1981, 1934, 1946) permitiam ―promover a responsabilidade das autoridades‖. A atual Constituição Federal se omitiu, no entanto, acerca deste dispositivo, inobstante, tal direito permanece implícito na Constituição Federal de 1988, ―do contrário de nada serviria‖. FERREIRA, 1989-v.1, p.138) Canotilho ensina que esse direito de petição é um direito político que pode ser usado tanto na defesa de simples direitos pessoais, como na defesa da própria Constituição Federal, das leis ou do interesse geral. Podendo ainda ser exercido coletivamente ou individualmente, ―perante quaisquer órgãos de soberania ou autoridade‖. (CANOTILHO, 1991, p. 677) Para José Afonso da Silva, importa ressaltar que o direito de petição ―não pode ser destituído de eficácia. Não pode a autoridade a quem é dirigido escusar pronunciar-se sobre a petição, quer para acolhê-la quer para desacolhê-la com a devida motivação. (...)‖. (SILVA, 2009, p. 443) Bascuán, apud (GARCIA, 1994), completa: ―O direito de petição não pode separa-se da obrigação da autoridade de dar resposta e pronunciar-se sobre o que lhe foi apresentado, já que, separada de tal obrigação, carece de verdadeira utilidade e eficácia‖. Uma vez reconhecido o direito de petição resta questionar sobre as consequências advindas de sua improcedência, ou melhor, sobre a hipótese de represarias. Garcia entende que não, para ela ―A imposição de qualquer sanção, importaria em equiparar o cidadão, neste caso, ao mero descumpridor da lei, uma norma tributária, por exemplo, sem qualquer consideração — o que é vedado — do seu status activatis, a cidadania, fundamento do Estado‖. Destarte, sendo o pedido improcedente, só resta a volta ao status quo, devolvendo ao cidadão, uma vez que estavam apenas suspensas, ―todas as condicionantes pré-existentes à iniciativa da desobediência civil de que se utilizou‖. (GARCIA, 1994, p.264/265). 30 4.1.1 A desobediência Civil Eletrônica O grupo Critical Art Ensemble CAE (2001) inovou em seu livro Distúrbio Eletrônico, lançando a proposta de desobediência civil eletrônica como forma de resistência cultural. Primeiramente, devemos nos lembrar de que a desobediência civil tal como a temos hoje é um modelo antigo, que foi construído na década de 60, um período muito distante de nossa realidade, pois hoje com a popularização da internet, esta se tornou uma ferramenta cada vez mais indispensável e de acesso facilitado. Naquela época, os desobedientes civis, como Henry David Thoreau não dispunham das mesmas facilidades de acesso à internet que temos hoje, de modo que a forma e os m+étodos da desobediência civil ficaram limitados ao referido contexto social, e político daquele período histórico. No entanto, as ideias destes pensadores não foram apagadas com suas mortes, permanecendo as suas influências nos dias atuais, mas munidas de outros modos de exercício, operadas em um terreno mais poderoso que qualquer dos métodos individuais usados por Thoreau – a internet. Neste sentido é que surgiu a ideia do movimento de copyleft (movimento que aspira a liberdade de informação e softwares livres), em contraposição aos direitos da cópia, os copyrights, como uma forma de exercício eletrônico de inobediência civil, que é uma releitura da desobediência civil tradicional adaptada aos avanços da sociedade. Sua grande bandeira é a resistência cultural, e sua arma poderosa é a rede de computadores mundial. Uma das formas usadas pela desobediência civil eletrônica é o ativismo hacker, usado por grupos como o Anonymous, como forma de desobediência civil eletrônica cujos métodos consistem em tirar sites importantes do ar, de forma a chamar atenção para problemas sociais e suas ideologias. É o caso dos ataques hackers que surgiram pelo mundo todo como forma de protesto ao fechamento do portal de compartilhamento megaupload.com, que poderia ser facilmente enquadrado nas hipóteses de desobediência civil com objetivo mediato, já analisadas nos capítulos anteriores. 31 4.2 DOS PROJETOS DE LEI QUE CERCEIAM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO As grandes detentoras de direitos autorais pressionam os governos do mundo todo para a criação de medidas mais severas que possam coibir os atos de pirataria, mediante cerceamento do direito de difundir informações em meio eletrônico, com a criação de constantes projetos de lei como o SOPA, nos EUA, e o ACTA, em escala mundial. Tais projetos foram cancelados provisoriamente, mediante pressão popular, no entanto sabemos que muitos outros funcionam, eis que todos nós já reparamos em mensagens de ―vídeo removido‖ no YouTube e de sites fechados pelo FMI, como foi o caso do megaupload.com. O SOPA, (Stop Online Piracy), foi um projeto de lei antipirataria discutido no Congresso americano que dá detentores dos direitos da cópia um poder extraordinário sobre a internet. Com o SOPA os provedores de internet podiam ordenar que o Google.com retire o site acusado dos mecanismos de busca, e mais perigoso ainda, impedir que as pessoas tenham acesso a tais site. Isso tudo sem contraditório ou pronunciamento judicial. Só era preciso uma acusação de que o site citado infringiu o conteúdo autoral, a qual era sempre tida como de ―boa fé‖. Sendo que alguns sites como o da Visa ou YouTube ainda seriam dispensados de tal procedimento, bastando apenas uma mera indicação dos sites que infringem leis em uma espécie de ―lista negra da internet‖. Se o governo decidir que alguma parte de tal site (como, por exemplo, o seu perfil no site de relacionamentos facebook.com) realmente infringe direitos autorais ele poderia ser excluído sumariamente. (MARTINS , 2012, p. única). Rafael Cabral (2012) noticia que o ACTA é um pacto internacional que promete regras rígidas antipiratarias, levando em conta apenas o lado com os detentores de direitos da cópia, chegando a ser repressivo e abusivo contra a pirataria digital, e também a pirataria física. Os países signatários devem criar leis nacionais de direitos autorais mais severas, com dispositivos que assegurem a retirada imediata de conteúdo pirata da internet e a identificação responsáveis. Para tanto, os provedores de acesso e a polícia devem agir preventivamente para proteger a propriedade intelectual, ―o que pode levar à desconexão forçada de reincidentes e de alguma forma impedir a 32 livre circulação de ideias na internet e também fora dela.‖ O Brasil diz que não vai assinar o ACTA, no entanto, certamente sentiremos seus reflexos, já que países como ―Estados Unidos, Canadá, Coreia do Sul, Japão, Marrocos, Cingapura, Austrália e Nova Zelândia são os primeiros signatários, mas outros países – como México, Suíça e membros da União Europeia – podem aderir até 1º de maio de 2013‖. ENTREVISTA: ‘Brasil não vai assinar o acordo’, diz Itamaraty Kenneth Félix Haczynski, chefe da Divisão de Propriedade Intelectual do Itamaraty Por que o Brasil não aderiu ao Acta? O Acta é um acordo que nasce com pouca legitimidade, negociado por um grupo restrito de países, não foi discutido multilateralmente e a sociedade civil não participou do processo. Os Brics não participaram, assim como nenhum país sul-americano. O Acta torna muito mais rígidas as medidas antipirataria, com as quais o Brasil também é comprometido. Mas não acreditamos em receita pronta. Qual sua opinião sobre a aplicação do acordo na internet? As disposições levam ao modelo ‗three strikes and you‘re out‘ (três advertências e está fora) , que desconecta os infratores. Ao tentar agilizar o combate à pirataria, corremos risco de comprometer direitos, a privacidade e a liberdade da rede. O Acta servirá como elemento de pressão para a aprovação de leis nacionais mais rígidas? Acho possível que o Acta seja imposto a vários países, mas não ao Brasil e a outros países emergentes. O grande problema do Acta é que as suas disposições são focadas demais em um lado só, o dos grandes detentores de copyright. O que queremos é mais equilíbrio, principalmente no meio digital. (CABRAL, 2012, p. única ) O ponto mais polêmico certamente é o que fala que provedores de acesso e a polícia devem agir para ―prevenir‖ e impedir infrações da propriedade intelectual, o que pode levar à desconexão forçada de reincidentes e de alguma forma impedir a livre circulação de ideias na internet e também fora dela. Para tanto, os provedores de internet teriam que monitorar tudo o que você faz na web. Lá vão a liberdade e a privacidade na internet. ―Comprometer liberdades civis para combater a pirataria de forma antidemocrática é algo que não podemos aceitar‖. (CABRAL, 2012) Importa citar aqui as inesperadas palavras do grande mestre e diretor Francis Ford Coppola, em entrevista ao Site The 99 Percent, traduzido pelo portal gizmodo.com, que adotou nossa posição radical sobre o debate em torno dos compartilhamentos virtuais, direitos da cópia e arte: ―talvez os estudantes que baixam 33 filmes e música estejam certos‖, ele diz. ―Talvez os artistas não devam ser pagos‖. E continua: Essa ideia de que o Metallica ou qualquer outro cantor de rock tem de ser rico é algo que não necessariamente vai acontecer daqui para frente. Porque, como estamos entrando em uma nova era, talvez a arte seja gratuita. Talvez os estudantes estejam certos. Eles devem ter o direito de baixar músicas e filmes. Eu vou levar um tiro por dizer isso. Mas quem disse que a arte custa dinheiro? E, portanto, quem disse que os artistas têm que ganhar dinheiro? (MARTINS, 2012, p. única) No entanto, o maior site de compartilhamento do mundo, megaupload.com, foi fechado sem precisar recorrer a projetos como o SOPA e o ACTA, o que só reafirma o quão despropositados tais projetos são para início de conversa. 4.3 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL PUNÍVEL Como exemplo de tipos penais podemos citar os crimes constitucionais do artigo 5º, incisos XLIV da Carta Magna, o crime de resistência do art. 329 do CP, e o crime de desobediência, do artigo 330 do mesmo Diploma Legal. O professor Buzanello ressalta que o direito de resistência jamais poderá ser usado como ―escudo de proteção de atividades ilícitas, nem como argumento para afastamento da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos.‖ (BUZANELLO, 2012 p.24). Veja o caso da Lei de Segurança Nacional ( Lei nº 1.802, de 5/1/1953). Em seu Artigo 17, afirmava ela: ― instigar, publicamente, desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública. Pena: - detenção de seis meses a 2 anos‖. Nada mais vago, pois não se conhecia a forma do ―instigar, publicamente, desobediência coletiva‖, não se sabendo consequentemente quando se configurava o crime. (VIEIRA, 1983 p. 81). Por exemplo: quanto á desobediência não violenta, diz esta Lei de 1978, em seu Artigo 36: ― Incitar: II – à desobediência coletiva às leis: ...Pena: Reclusao , de 2 a 12 anos‖. (VIEIRA, 1983 p. 82). ... A Consolidação das Leis do Trabalho ( CLT) afirma, por exemplo, no Artigo 723: ― Os empregados que, coletivamente e sem prévia autorização 34 do Tribunal competente, abandonarem o serviço ou desobedecerem a qualquer decisão proferida em dissidio incorreraõ nas seguintes penalidades: a) suspensão do emprego até 6 (seis) meses, ou dispensa do mesmo; b) perda do cargo de representação profissional em cujo desempenho estiverem; c) suspensão , pelo prazo de 2 (dois) a 5(cinco) anos, do direito de serem eleitos para cargos de representação profissional‖. (VIEIRA, 1983 p. 83). Interessante ressaltar que, na última citação resta claro que, em que pese o ―Direito de greve‖, os trabalhadores dependem de autorização do Tribunal do Trabalho, sendo que jamais poderão desobedecer a uma decisão dada pelo referido Tribunal. Por fim, se sujeitam a uma série de punições, como suspensão, perda do cargo, e proibição de eleição sindical. 4.4 OS CRIMES CONTRA OS DIREITOS DA CÓPIA Primeiramente cumpre lembrar que os direitos da cópia são distintos dos direitos autorais, enquanto estes se preocupam com a autoria de obras, a pessoa, o ―gênio criador‖, aqueles são baseados em leis americanas e inglesas, regulam somente a difusão das obras, ou seja, o produto e o capital. A presente hipótese de desobediência civil analisada em nosso caso concreto sob estudo se restringe, pois, aos direitos patrimoniais do copyright. Fazer download ou compartilhar conteúdos piratas, sem autorização, viola os direitos do autor de tais obras, incorrendo nas sanções do art. 184 do Código Penal, (muito conhecido por sua presença em advertências de proteção de propriedade intelectual, como por exemplo as que aparecem no início de filmes) que prevê pena de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, podendo ser transformada em pena de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Se houver tal prática objetivar a obtenção de lucro: Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, 35 interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2o Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. § 3o Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 4o O disposto nos §§ 1o, 2o e 3o não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto. ( VADE MECUM, 2012,p. 599) (Grifo nosso) Lembrando que não se isenta do dever de indenizar, a ser determinado em Juízo, ao autor cuja obra for violada (artigos 107 e 108 da Lei de Direitos Autorais, nº 9.610/1998). Primeiramente cabe indagar em que consiste ―violar direitos de autor e os que lhe são conexos‖. Estamos diante de uma norma penal em branco, que é a que necessita de outro texto que a regulamente, como, por exemplo, a Lei nº 9610, da proteção à propriedade intelectual, cujas hipóteses de violação podem se resumir basicamente em fazer algo não autorizado expressamente pelo autor, excetuados os casos do artigo 46, 47 e 48 da referida lei: Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; 36 b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais. (VADE MECUM, 2012, p.1649) Cabe aqui outra discussão, a lei quando autoriza a reprodução de pequenos trechos no inciso II do artigo supracitado, pode dar margem a interpretação de uma faixa musical como um trecho de um álbum completo. Legitimando o compartilhamento de faixas musicais isoladamente. Outro ponto que confunde muitas pessoas é a da desnecessidade de intuito lucrativo para configurar o tipo penal. O intuito de lucro é, pois uma qualificadora, sem a qual o crime subsiste ainda que se violem os direitos do autor e conexos por motivos diversos, que não o de auferir lucro. 37 Inobstante as tentativas do legislador pátrio em coibir compartilhamentos de arquivos ―piratas‖, inclusive os que não visão lucro, tais leis se mostram despidas de antijuridicidade e de eficácia, e, por conseguinte, as pessoas que praticam tais atos, ainda que identificadas, dificilmente serão punidas. Nos casos em que não se objetiva o lucro, eventual denuncia fica condicionada a iniciativa da parte lesada, ou interessada, sendo competente o Ministério Público apenas nos casos que visão lucro. Processar todas as pessoas que compartilham arquivos suspeitos pela internet, e ainda ter o ônus da prova trás um custo economicamente inviável. Pelo princípio da ―Bagatela‖ e da intervenção mínima, entendemos inconveniente aprisionar alguém que não tenha causado um dano relevante, como alguém que apenas compartilha poucos arquivos em sua casa. E ainda que, o que se admite apenas para argumentar, alguém fosse mesmo levado à prisão por compartilhar tais arquivos, a baixa pena ainda autorizaria inúmeros benefícios, como o da suspensão do processo pelo art. 89 da Lei nº 9099. 4.5 DO CONFLITO ENTRE LIBERDADE E DIREITOS DA CÓPIA. Dispõe a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da França (1789), em seu artigo 19 sobre a Liberdade Intelectual como direito fundamental de todo ser humano, o que contém o direito de compartilhamento de informações, que é precipuamente a função do site de compartilhamento: todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão‖.(Grifo nosso). (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789, p. única). Princípio este recepcionado em nossa Carta Magna (1988), em seu artigo 5°, incisos IV e IX: 38 IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (VADE MECUM, 2012, p.68). Eis aqui a maior arma que o desobediente civil poderia invocar no caso em estudo, não fosse por um detalhe: A constituição dá a liberdade de expressão com uma mão e veda o anonimato com outra. Ora, os ataques hackers realizados em protesto ao fechamento do site de compartilhamento pelo grupo Anonymous têm, pois, um grande problema estrutural, pois sua filosofia está totalmente baseada justamente no anonimato que nossa Lei Maior proíbe expressamente. O que acaba por tirar qualquer razão do movimento, ao menos em território nacional. Por outro lado, a ideologia do grupo, quando aplicada no Brasil, tem o apoio das prerrogativas constitucionais de livre acesso ao meio ambiente cultural, expressos nos artigos 215, 216 e 225 de nossa Constituição Federal. Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional. ( VADE MECUM, 2012, P.130). Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; 39 V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. § 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: I - despesas com pessoal e encargos sociais; II - serviço da dívida; III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. ( VADE MECUM, 2012, P.131). Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. ( VADE MECUM, 2012, P.133). Destarte, partindo-se da premissa imposta pelo artigo 225 de nossa Lei Maior, a coletividade tem o direito e também o dever de manter o meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma vez que o mesmo é essencial à sadia qualidade de vida. Desta forma, como sabemos, uma das faces do meio ambiente é justamente o meio ambiente cultural, expresso no artigo 216 de nossa Constituição. Ademais, estabelece ainda o artigo 215 da referida lei que tal direito ao meio ambiente cultural nacional deverá ser garantido e difundido para a sociedade. No entanto, a propriedade, artística, científica e literária também é agasalhada pelo art. 5º, incisos XXVII e XXVIII da Carta Magana: XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; 40 XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; (VADE MECUM, 2012, P.69/70). De modo que podemos concluir que, uma fonte cultural, uma vez dentro do patrimônio cultural brasileiro, deveria ser de livre difusão ou compartilhamento, devendo a lei estabelecer uma forma de mitigar o direito da propriedade cultural, reduzindo, por exemplo o tempo de vigência de referida propriedade, para que cumpra sua função social, a exemplo do que ocorre com a quebra de patentes de remédios em tempo reduzido. Vejamos a duração absurda dos direitos autorais em nossa legislação, (LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998): Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo Art. 43. Será de setenta anos o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre as obras anônimas ou pseudônimas, contado de 1° de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação. Art. 44. O prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre obras audiovisuais e fotográficas será de setenta anos, a contar de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de sua divulgação. Art. 96. É de setenta anos o prazo de proteção aos direitos conexos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subseqüente à fixação, para os fonogramas; à transmissão, para as emissões das empresas de radiodifusão; e à execução e representação pública, para os demais casos. (VADE MECUM, 2012, p.1648-1652). Ponderar a liberdade de expressão e a violação dos direitos de copyright é o complexo caminho do bom senso: devemos, sim, nos expressar, difundir ideias e compartilhar arquivos, procurando não desrespeitar os direitos de copyright. Até porque, como já foi dito, atualmente há uma forte tendência de monitoramento eletrônico, realizado pelos provedores da internet, o que, na maioria dos casos identifica a pessoa por de trás do computador, ainda que, na prática seja inviável punir os milhões de indivíduos que compartilhavam e ainda compartilham suas coisas 41 piratas com o mundo todo. Antes de pensar em recorrer ao direito de desobediência civil eletrônica é necessário o cumprimento de uma série de requisitos já analisados, devendo tal recurso ser aplicado sempre em ultima ratio; Do contrário, pode-se estar cometendo um ato criminoso, eis que, em todo mundo, nota-se que cada vez mais que o olhar do direito recai sobre os acontecimentos virtuais, que já não passam mais despercebidos, como o fora no passado recente. 42 5. CONCLUSÃO Este trabalho de conclusão de curso teve por objetivo geral identificar a Desobediência Civil na Constituição Federal de 1988, analisar se tal direito pode invocado pelos cidadãos como um verdadeiro direito fundamental, para então ponderar tal princípio com as diretrizes do Direito da Cópia, sob o ponto de vista da liberdade de expressão e de difusão da cultura. Chegou-se à conclusão de que a desobediência civil está prevista em nossa Lei Maior, conforme a doutrina analisada, de forma implícita. Chegou-se a esta afirmação pela interpretação hermenêutica de nossa Carta Magna, sendo os principais motivos a analise do seu art. 1º, que dita os princípios basilares do Estado brasileiro, e principalmente do artigo 5º em seu paragrafo 2º, que abre a porta da Constituição Federal de 1988 a direitos fundamentais não expressos. Assim, passado o susto inicial que o título do presente trabalho possa vir a despertar, podemos afirmar que a desobediência civil não é um ato que devemos temer, ao contrário, ela se destina exclusivamente a servir a população, como forma de defesa a leis patológicas e inconstitucionais, sendo, em verdade, instrumento de defesa de nosso Ordenamento Jurídico. Partindo-se da premissa que a atual Lei Fundamental Brasileira reconhece o recurso a desobediência civil, buscamos, com base na análise de um caso concreto, o fechamento do portal de compartilhamentos mais famoso do mundo megaupload.com, criar uma hipótese de uso da desobediência civil em confronto aos direitos da cópia, episódio que somente foi eleito a figurar no trabalho a título exemplificativo, por envolver muitos dos nossos pressupostos teóricos abordados Tendo em vista que os conceitos da desobediência civil foram construídos na década de 60, sendo, destarte limitada aos recursos que a sociedade possuía naquela época, fez se necessária uma adaptação da teoria da desobediência civil aos tempos modernos, eis que a constante mutação é uma característica inerente à humanidade, e atualmente, com a popularização do acesso a rede mundial de computadores, tornou-se prática cotidiana a rápida difusão e troca de informações, muitas delas de originalidade 43 duvidosa, que demonstra uma rejeição cada vez maior da sociedade as limitações do acesso à cultura. Chegou-se a uma forma nova de operar a desobediência civil, a desobediência civil eletrônica. Tal modalidade de inobediência civil faz uso, principalmente, de protestos públicos que almejam a derrubada de sites famosos, buscando, de forma indireta, chamar a atenção a injustiças sociais, promovendo a conscientização da sociedade. Tais atos deviam ser fomentados como instrumento de democracia, não obstante, por serem inconvenientes às atividades capitalistas, vem sofrendo ampla censura por leis repressivas editadas em governos do mundo todo, que encaram a desobediência civil eletrônica como atos criminosos, e até mesmo como terrorismo digital, imputando altas penas aos responsáveis identificados. Tal argumento não se justifica, pois resta evidente o caráter pacífico de tais protestos, que, em geral, tão somente atacam momentaneamente sites opressores, sem nunca causar nenhuma morte como no terrorismo tradicional. A principal ideia defendida por tais movimentos, que gozam de apoio popular, é ligada ao meio ambiente cultural, mais precisamente ao direito de acesso a cultura, sendo consideradas antissociais as normas de direitos autorais que restringem o acesso ao conhecimento, à cultura e às ideias a condição de propriedade privada. Também é muito criticada a violação a liberdade de compartilhamento de informações e ao risco de invasão do Estado na privacidade particular. Tal movimento, no entanto, não pode ser exacerbado, devendo sempre operar-se pelo bom senso, buscando um equilíbrio entre os interesses de quem produz e de quem consome o ambiente cultural. 44 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah – Crises da República, Ed. Perspectiva, S. Paulo, 2010. BELTRAO, Jorge. Desacato, resistência, desobediência, MG: .Juriscredi Ltda.1971, BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1969. 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