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FOLHA DE LONDRINA, domingo, 15 de março de 2015
Arte que liberta
Fotos: Lis Sayuri
Sesc Cadeião traz uma nova
perspectiva para a cultura londrinense
Ana Paula Nascimento
Reportagem Local
D
izem que é do caos que
vem o cosmo, e, num
sentido bem concreto,
é o que se pode dizer da transformação do antigo “Cadeião”
de Londrina, no agora Sesc
Cadeião Cultural. Em uma
ação inovadora, que ainda
pretende intervir em toda a
quadra - o que inclui a desativação da 10ª Subdivisão Policial -, a ideia do Sistema Fecomércio Sesc Paraná é transformar um espaço que já foi sinônimo de tristeza e morte
em um polo produtor de arte.
O termo de comodato prevê o
uso do espaço por 20 anos, renovável por mais 20.
Entregue como um presente pelos 80 anos da cidade, no
ano passado, a reforma do novo Cadeião é fruto de um investimento de quase R$ 4 milhões. A estrutura original do
prédio da década de 40 está
mantida. Do lado de fora, com
a pintura novinha em folha, a
guarita ainda está lá, lembrando-nos logo de cara que
aquele lugar durante 50 anos
foi uma cadeia, que enfrentou
problemas de superlotação,
violência e torturas (para mais
informações, vale a pena conferir os livros “Escândalos da
Província” (1959), de Edison
Maschio; “Dos Porões da Delegacia de Polícia” (1979), de
Marinósio Filho; “Noites Ilícitas: histórias e memórias da
prostituição”, (2005), de Edson Holtz Leme e “Terra Vermelha” (1998), de Domingos
Pellegrini).
Na entrada principal, pela
Rua Brasil, um buraco na parede, com os tijolos originais à
vista, é a marca registrada da
ação para destruir o antigo
prédio, na década de 90. Na
foto histórica, publicada na
Folha de Londrina, e que estampa a parede do hall de entrada do Sesc Cadeião Cultu-
“Espaço Memória”: nas celas preservadas,
recortes e desenhos infantis
ral, podemos ver o então secretário de segurança pública
José Tavares em pé, em um
trator, numa negociação acirrada com professores e alunos
de Arquitetura da Universidade Estadual de Londrina, comandados por Marcos Barnabé, em uma tentativa frustrada de convencer a todos que o
melhor era destruir a edificação que se tornara, de certa
forma, um arquivo do “lado B”
da nossa cidade.
TRANSFORMAÇÃO
Inevitável questionar os
funcionários se alguém, mais
sensível (ou sensitivo, como
preferem alguns) teria passado mal devido ao histórico de
sofrimento do local. “Alguns
passam mal, dizem que sentem coisas estranhas, mas a
maioria vem com uma imensa
curiosidade e acaba se encantando com o que vê”, admite a
técnica de atividades Yuka
Toyama Borges, transferida do
Sesc Londrina para o novo espaço. “Aqui o sol continua
‘nascendo quadrado’ [as grades originais foram mantidas
nas janelas], mas há vida neste
espaço e, hoje, podemos dizer
que respiramos cultura neste
lugar”, atesta.
A parte triste da história oficial também foi preservada:
duas celas muito simbólicas
foram mantidas no térreo. Nas
paredes, entre recortes de revistas pornográficas, destacam-se desenhos coloridos de
personagens infantis – talvez
uma tentativa meio distorcida
de se preservar, de algum modo, uma infância perdida ou
‘Aquele lugar é assombrado’
Com a simplicidade e
generosidade das pessoas
comuns que já viram muitas coisas no decorrer da
própria história, a comerciante Maria Ionice Ribeiro, a Xuxa, de 60 anos, tem
opinião própria e uma visão muito particular do
novo espaço cultural que
durante 50 anos foi uma
cadeia.
Há mais de 20 anos à
frente do “Bar da Xuxa”, localizado diante da entrada
principal da 10ª Subdivisão Policial (ao lado do antigo “Cadeião”), ela acabou
sendo testemunha ocular
de muitas tragédias.
Da parte de dentro do
balcão do bar, onde na parede ao fundo se vê uma
estampa de Nossa Senhora
de Fátima, uma placa de
metal com o nome do bar e
um grande quadro sobre
as benfeitorias que o Major
Pimpão fez em prol de
Londrina durante a sua rápida passagem como prefeito (em 1943), dado por
um amigo advogado, ela
abre o jogo e remexe em
suas memórias: “‘Fia’, vou
te falar uma coisa. Isso
aqui, para mim, era muito
melhor quando a cadeia
funcionava. O meu bar vivia cheio e atendia até de
madrugada”, conta.
Com a desativação da
cadeia e transferência dos
presos, a partir de 1990, gradativamente os negócios
começaram a ir mal e hoje
ela fecha as portas antes do
anoitecer com medo dos
“maloqueiros”. “Antes não
era assim não. O pessoal errado tinha medo de passar
por aqui”, recorda.
Acostumada a receber os
funcionários da cadeia e familiares de presos em seu
bar, na sua visão os problemas que aconteceram no
Cadeião foram provocados
pelos próprios presos. “Uma
vez eles até colocaram fogo
nos colchões. Era feio o negócio, mas não acredito que
os policiais faziam maldades”, assegura.
Pela proximidade com os
funcionários, ela tinha a liberdade de “matar a curiosidade” quando algo mais
grave acontecia. “Cheguei a
ver um preso que se matou
enforcado na cozinha e essa
cena não me sai da cabeça”,
pontua, acrescentando que
até mesmo no Instituto Médico Legal chegou a ter trânsito livre para ver como é a
“cor da carne humana”.
Ainda sem ter coragem de
colocar os pés além do hall
de entrada do novo Cadeião,
ela admite que o lugar ficou
bonito, mas que não consegue dar conta das suas lembranças. A última vez que
entrou lá foi em 2002, para
assistir à peça “Apocalipse
1,11”, do grupo Teatro da
Vertigem (São Paulo), durante o Festival Internacional de Teatro (Filo). E ficou
chocada com as cenas de
sexo explícito e repressão
policial, já que a montagem
fazia referência aos 111
mortos do Carandiru, ocorrido em 1992.
“Aquele lugar (Cadeião) é
assombrado. Tem muita
gente ali que morreu antes
da hora e acredito que o espírito fica vagando por lá”,
sentencia. Ela mesma diz
ter visto “uma pessoa de
branco” quando, durante a
reforma, foi lá dar uma “espiada” no que estava acontecendo. “O pessoal que trabalhava lá também diz que
viu ou sentiu muita coisa,
não sei não...”, comenta, ressabiada. (A.P.N.)
Fruto de um
investimento
de quase
R$ 4 milhões,
reforma
manteve a
estrutura
original da
década de 40;
tijolos à vista
marcam a
tentativa de
destruí-lo na
década de 90
uma certa inocência diante de
um cotidiano repleto de horrores.
“Nós recebemos, após a
inauguração, a visita de um
ex-detento, que chegou a ser
preso nove vezes aqui. Ele
contou que fez questão de vir
conhecer o prédio após a reforma e saiu emocionado e satisfeito com a transformação
daqui”, acrescenta Yuka, sem
saber, infelizmente, o nome
do egresso.
PARA TODAS AS ARTES
Além do “Espaço Memória”,
onde estão as celas preservadas, o que se observa é uma
série de detalhes minuciosos
em prol da cultura. No pátio,
onde antes os encarcerados
tomavam banho de sol, hoje
há um café cultural, o CaféEscola Senac, que serve cafés
gourmet e quitutes saborosos.
Como uma espécie de solário,
o telhado de vidro com película especial retém uma boa
parte do calor e permite que o
ambiente seja invadido com
uma luz natural, que até beneficia a observação das obras
de arte disponíveis na galeria
montada no local (até o dia 31
está em exposição a mostra
fotográfica “Incrível como um
distúrbio afeta a credibilidade”, de Rogerio Ghomes). Um
mezanino é uma novidade
bem-vinda no espaço e sofás
confortáveis compõem o ambiente propício para o lançamento de livros e atividades
afins.
No andar de cima, as anti-
Pátio onde os encarcerados tomavam banho
de sol hoje abriga um acolhedor café-escola
gas celas viraram salas de aula
e semanalmente são oferecidos para crianças cursos gratuitos ligados à arte-educação,
como música e teatro. Na Sala
de Espetáculo, é possível assistir a peças teatrais e à programação do CineSesc (sus-
Dona do bar
em frente à
delegacia há
mais de 20
anos, dona
Xuxa não tem
coragem de
entrar no
prédio
restaurado:
“Tem muita
gente ali que
morreu antes
da hora”
pensa temporariamente por
problemas técnicos).
Além disso, na Sala de Leitura, o cliente Sesc tem à disposição, para consulta local e empréstimo, aproximadamente 3
mil títulos, além de textos em
dramaturgia e um banco de
partituras. Já a Sala de Ensaio
serve para a realização de ensaios artísticos, cursos e
workshops. No Espaço Conexão, internet livre, oficinas dinâmicas e curso de introdução
à informática.
Veja vídeo
www.folhaweb.com.br
SERVIÇO
Sesc Cadeião Cultural
Onde – R. Sergipe, 52
Informações - (43) 3572-7700 e
www.sescpr.com.br
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Arte que liberta