1 Do circo e da cidade, ou da crise e da Justiça! A estória não é originariamente minha, recebi-a seguramente através de um qualquer dos milhentos canais da net, mas o aproveitamento dela neste contexto, esse sim, é inteiramente da minha responsabilidade. O circo chegou à cidade. Muita gente havia que há muito o esperava. Muitos outros não imaginavam sequer a sua chegada, distraídos, ou não queriam nem admiti-la como iminente. Mas toda a cidade se envolveu ( ou foi envolvida ) e toda a gente estava no circo, o espectáculo com a lotação esgotada. Eis que chega o número dos leões e o imprevisto acontece – o leão não respeita o domador, sai da pista, salta o fosso de protecção e lança-se sobre as bancadas. Toda a gente se levanta e foge, desordenadamente, cada um procurando por si subtrair-se ao pesadelo o mais rapidamente que pudesse. E eis que uma pessoa, mais atenta aos outros do que ao risco que corria, olha… e repara: há um coxo amarrado a uma cadeira de rodas. E grita, solidária – olha o coxo, olha o coxo !! Toda a gente, em fuga, roda finalmente a cabeça, se condói, e em uníssono, engrossa o grito – olha o coxo, olha o coxo, olha o coxo !! E é então que, por cima da vozearia angustiada, é o próprio coxo que levanta a voz, e grita mais alto: 2 Calem-se… deixem o leão escolher!! Ao que vem esta estória aqui, neste contexto? perguntaremos. E respondo – é de uma alegoria que se trata, é como alegoria que pretendo tratá-la. Quando o “circo” da crise se instala na cidade, a primeira preocupação dos tribunais é estar atento a todas as vozes, sobretudo à voz dos mais fracos, à voz do coxo. Por cima da vozearia que se impõe, mas que ensurdece, é preciso estar atento a todas as vozes, à outra voz, à voz do outro, sobretudo quando o outro é o cidadão que só nos tribunais pode fazer-se ouvir. É necessária a serenidade e a confiança e, naturalmente, a preparação e o conhecimento, que permitam discernir por sobre as vozes o verdadeiro pulsar da cidade, o sentido exacto com que a cidade enquanto tal se construiu e lhe há-de permitir encontrar o caminho de saída, sem atropelos nem desordens. Claro que não é aos tribunais que compete criar uma nova ordem, inteiramente fora do parque que a cidade desenhou ( e onde o circo da crise se instalou ) e onde se inscrevem os caminhos que é possível percorrer. Mas compete-lhes, dentro desse desenho, descobrir ou sugerir ou afirmar o caminho certo por onde o colectivo possa caminhar sem postergação dos direitos de cada qual, sobretudo dos mais fracos. ~~ Ouvir todas as vozes implica atenção e paciência. Porque é preciso ouvi-las mesmo, ouvir a expressão de cada qual e ouvir o sentido exacto dessa própria expressão. Ouvi-las lá bem no fundo e descobrir em cada uma delas o que quer dizer para além da espuma dos dias. E pensar também que para além de cada uma haverá 3 sempre uma outra, que poderia ainda não se ter exprimido. E até mesmo outra ou outras cuja expressão ou sentido não seria sequer imaginável. E que todavia existem – e com sentido – para além do que uma imaginação menos atenta ou ponderada poderia considerar. Alguém esperaria, na estória que vos contei, que a voz do coxo surgisse e surgisse com tanta nitidez e verdade? É preciso estar permanentemente atento ao canto esquerdo do computador e acreditar que há uma outra voz que abre um caminho que nem sequer sonháramos. Por vezes é difícil descobri-la? Por vezes é difícil afirmá-la por sobre o unanimismo que parece cair sobre a cidade? É. Mais fácil seria alinhar no coro colectivo. E tantas, tantas vezes somos tentados a seguir essas pisadas! Tentados pela cidade e tentados mesmo, dentro de nós próprios, pelos pequenos deuses que constroem e vigiam a nossa especial identidade. Mas é preciso lutar contra a facilidade. Para isso somos juízes e a nossa luta é a afirmação dos caminhos justos, dentre os vários que parecem estar abertos, e a descoberta de caminhos novos – que o parque da cidade, naturalmente comporte, e não quaisquer outros que vivam apenas na nossa particular soberba – caminhos que possam ser desenhados dentro desse parque e conduzam a cidade no sentido da paz e da justiça. Essa é a nossa tarefa e a nossa exigência. Ao nosso dispor temos todo o parque do direito. Dentro dele todos os caminhos podem ser concebidos. Mas ao juiz importa desenhar apenas aqueles que conduzam a cidade à Justiça por que anseia. ~~ 4 E desenhá-los com rigor e nitidez, de uma forma absolutamente clara e perceptível, sem rodeios ou tergiversações, por forma a que todos, em todos os momentos, saibam qual é o caminho a seguir e os falsos caminhos que não podem ser trilhados, por mais apetecíveis que pudessem apresentar-se. Clareza, nitidez e rigor nas decisões. Descarnadas ( e por isso entendíveis ), sem a proliferação – valha-me outra vez Cesário Verde – do “granzoal azul de grão de bico” que abafe ou esconda o “ramalhete rubro das papoulas”, mas com força e convicção. ~~ E isto tem um duplo sentido. Por um lado, a convicção intrínseca da própria afirmação decisória, clara e descarnada mas sustentada num raciocínio rigoroso e transparente que a torne indestrutível mesmo para quem dela não beneficie ou com ela não concorde, transportando a decisão em si mesma a força dessa convicção; por outro, a força adquirida no exercício profissional, no dia a dia da profissão de juiz, onde tudo se joga e tudo se ganha ( ou tudo se perde ). Dentro da cidade e, sobretudo, dentro da sala de audiências ou no silêncio do gabinete, onde se afirma ou se destrói uma autoridade que só é autoridade – e não apenas poder! - enquanto se impuser pela assumida aceitação por parte da cidade. É aqui que se joga ( e se ganha ) o prestígio dos tribunais porque é aqui que se ganha ou se perde o prestígio dos juízes – pelo seu conhecimento, pelo seu mérito, pela sua conduta ( profissional e cívica ), pela sua atitude, pela sua ponderação, pela atenção ao outro, seja qual for a posição em que esse outro se encontre no palco judiciário. 5 É esse o momento em que o poder se transmuta em autoridade e só a autoridade pode ser decisiva no enfrentar da crise. É preciso que a voz que responda à aflição de quem está dentro do circo e precisa de fugir dele, seja não apenas audível mas indiscutível e indiscutida, porque antes dela a sua modulação e a sua expressão conquistaram uma aceitação inquestionável na cidade. Só a clareza e o rigor da voz de quem decide e o timbre prestigiado dessa voz podem conduzir a que a cidade encontre com o equilíbrio necessário os caminhos exactos da saída do circo. Sem isso todos se perderão e o leão terá a sua tarefa facilitada. ~~ Construir a expressão e fazer ouvir a voz, por mais que quem o faz se empenhe nessa construção, não prescinde das condições que permitam garantir a genuinidade da comunicação e potenciar o volume da voz. E, com clareza também, permitam identificar a proveniência de eventuais distorções, seja por um contínua variabilidade do pulsar do direito construído pela cidade ( que não possibilita a certeza e a segurança necessárias à indicação dos caminhos de saída, tão volúveis são os riscos desenhados ) seja porque os potenciadores de voz, que deviam ser ouvintes conhecedores e rigorosos, transmitem apenas os ruídos que ouvem ou os ruídos que querem fazer ouvir. É preciso que cada um, sobretudo em tempo de crise, se não conforme. E lute, lute sem receio e com frontalidade, pela criação das condições necessárias à clareza e segurança da voz que lhe compete criar e à genuinidade da difusão dessa mesma voz. Por forma a que, perante a perplexidade da mensagens, a cidade se não perca por caminhos ínvios 6 que vão de lado nenhum para lado nenhum e o leão da crise mais rapidamente se acerque de quem lhe quer fugir. É imprescindível que mensageiro tenha a preparação suficiente para ser o primeiro a entender o sentido da voz e o primeiro e o último a difundi-la exactamente nos termos em que foi lançada ao vento. E a voz, o dono da voz, não pode deixar apenas a outros a exigência dessa qualidade ou colocar-se na posição cómoda de nada fazer ou dizer “nada tenho que ver com isso” – tem que lutar para que essa exigência se cumpra. Tem que estimular – e exigir mesmo – a criação das condições adequadas ao seu exercício profissional, para que sobre ele não recaia aquilo que só a outros diz respeito, e a sua voz possa permanecer autorizada por sobre os desvarios ou desconchavos que a outros responsáveis são imputáveis. ~~ Também não importa, de modo algum, perante a pressão do leão da crise que se lança voraz sobre a plateia, abdicar de uma voz própria e trazer à resolução dos desenhos alternativos de saída vozes alternativas. Não é bom criá-las nem é bom aceitar uma política que as apresente como a panaceia para todos os males que afectam a voz própria da Justiça. Porque a voz é a voz e, num último momento, a cidade que desordenadamente foge do leão é, nessa voz, que se refugia. Transitoriamente pode aceitar vozes alternativas ( sobretudo se essas vozes lhe parecerem favoráveis ), ou podem fazer crer os mais fortes aos mais débeis que essas vozes se identificam com a voz. Mas é preciso que esta nunca se desidentifique da cidade, sobretudo dos mais fracos ( e as vozes alternativas são mais frágeis 7 perante o desequilíbrio ) e de qualquer modo, quando a situação se deteriora, é à voz dos tribunais que a cidade recorre e só nela acredita. Aos tribunais os conflitos – mais agudos – refluem. Não adianta resolver a crise saindo do parque judiciário, para mais tarde vir a sentir o peso redobrado da agudização do conflito. O que importa, isso sim, todavia, é seleccionar dentre as vozes que gritam no jardim, quais aquelas a que importa verdadeiramente dar atenção e postergar os gritos daqueles que são responsáveis pelas suas próprias dores mas que, porque têm mais capacidade, “colonizam” a atenção de quem tem que ouvir. A esses sim, haverá que reconduzi-los à sua responsabilidade própria, fazendo-os suportar também a dor na proporção da dor que provocaram. Devolvendo-lhes o grito que a sua conduta mais reflectida e mais séria ( ou até mais generosa ) teria evitado. ~~ Apetecia-me dizer agora que, no jardim do direito, ( quase ) todos os caminhos são possíveis, é possível desenhar( quase ) todos os caminhos. E há, por vezes, caminhos que nos parecem mais fáceis de desenhar ou porque nos parecem mais directos ou porque já foram desenhados ( tantas vezes pelos pequenos ou grandes deuses de dentro ou de fora do jardim! ) ou simplesmente porque dão menos trabalho a desenhar. Mas é preciso não ceder à tentação de aceitar até o abstruso. O jardim é o jardim mas o tempo do jardim não é sempre o mesmo, ainda que o jardim se mantenha o mesmo. 8 Os caminhos são apenas aqueles que, no concreto momento do desenho, possam realmente ser um trajecto de saída que a cidade aceite porque assim o desenhou na sua construção. Por mais lindo que seja o desenho, por mais trabalhado e minucioso que pareça, é preciso perceber que o único caminho que a voz pode assumir é o do tempo e do lugar em que a cidade se confronta, no circo, consigo própria. É neste tempo e neste lugar e para estas pessoas que os caminhos se constroem. E é preciso que a cidade perceba aonde vai conduzir o caminho desenhado e o entenda como o trajecto necessário para a saída, para que ela possa aceitar a autoridade da voz que o proclama. Não adianta, por exemplo, dizer a um credor que a sua dívida de 300 000,00 euros está garantida porque está penhorado um sexto do vencimento mensal de 500,00 euros da mulher do seu devedor ( que subtraiu todos os mais bens à penhora ) e por isso indeferir o requerimento para penhora de um lauto depósito bancário que posteriormente se encontrou. Como não adianta dizer a quem ficou, que não tem direito à pensão de sobrevivência que julgava ter, porque dois dias antes da morte do seu “companheiro de facto” de longos quinze anos com ele, e a pedido dele, se casou e já não há por isso união de facto e ainda não há o tempo de casamento necessário à pensão. É possível desenhar qualquer destes caminhos dentro do jardim do direito, mas a cidade não os entenderia. E à voz do direito impõe-se, dentro do mesmo jardim, um outro desenho que a cidade possa entender e aceitar. ~~ Terminando: 9 não deixemos adormecer o desenho dos caminhos. Não deixemos adormecer as decisões. Saibamos, no universo das vozes que nos compete ouvir, responder primeiro àquelas que nos pareçam mais aflitas, estabelecendo uma hierarquia de prioridades que atenda em primeiro lugar aos mais fracos e aos mais necessitados de Justiça. Não nos deixemos perder em construções rendilhadas dos caminhos, chamando a bordejá-los coisas que já todos sabem, só porque nos parece que assim o caminho que percorremos nos surge mais ornado de luzes … ou de sombras. Sejamos directos e rápidos - sem deixarmos de ser profundamente ponderados! – para que nos não falte o tempo para o essencial. E o essencial não é que desenhemos os mais lindos trajectos na cidade, mas que não demos ao leão o tempo para alcançar algum de nós. É tudo. O meu mais despretensioso desejo é que, quando sairmos dos Açores, ninguém se lembre das palavras que vos deixo. Mas que na sala de audiências ou no silêncio do gabinete sempre nos lembremos do circo, do leão … e da voz do coxo! João Pires da Rosa Juiz Conselheiro Ponta Delgada – 30 de Outubro de 2011