“Faça o que eu mando, mas não o que eu faço”: A situação e atuação das forças existentes nas terras do Brasil em defesa dos interesses de Portugal no século XVIII Francisco José Corrêa Martins 1 – Algumas Considerações Sobre O Estudo Da História Militar Brasileira No momento em que o Brasil sedia, pela primeira vez, o Congresso Internacional de História Militar, consideramos adequado fazer algumas breves colocações sobre a pesquisa dessa temática aqui, pois que este momento é fruto de um processo não linear, através de um caminho marcado por obstáculos e desvios. Ao olharmos para trás, vemos que, na maior parte do mundo ocidental, predominava na história militar, até a primeira metade do século XX, uma visão tradicional bélico-diplomática, e cujos produtos clássicos eram a história-batalha ou a história focada nas ações de grandes personagens militares1. A Segunda Guerra Mundial e o advento da Guerra Fria acabaram por trazer novos atores e perspectivas à baila, fazendo com que países como os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha e a França, para citarmos apenas alguns, passassem a ter enfoques distintos sobre o tema2. Em relação ao Brasil, a produção historiográfica militar até os anos 1940 pouco destoava do que fora produzido mundo afora3. 1 As narrativas pessoais de militares, que não oficiais-generais, retratando aspectos de suas vidas dentro de campanhas ou em forças em operações, deixadas ao longo dos séculos eram vistas, até então, sobretudo como memórias, reminiscências, petit histoire, em contra ponto à grand histoire e, portanto, desprezada pela grande maioria dos estudiosos, fardados ou não. Contudo, existiram exceções. Um exemplo de petit histoire nacional daquele período é o trabalho pioneiro de Cidade (1927), sobre as condições de vida dos soldados nos anos 1820, ao qual deu, consoante ao espírito da época, o subtítulo jocoso de “ninharias de história”, algo que parece não ter sido compreendido por Castro et al. (2004: p. 17). Outra honrosa exceção é Magro (1936), em um trabalho que buscou analisar os aspectos da história militar relativas à capitania de São Paulo, estudo não referido por Castro et al. (2004). 2 Enquanto os EUA emergiam da 2ª GM como a grande potência do ocidente, liderando esse bloco, a Grã Bretanha enfrentava seu declínio como antiga potência, agravada pelo desmantelamento de seu império colonial, semelhante à França, que também tinha a assombrá-la a derrota de 1940. 3 Fato esse que passou despercebido por Castro et al. (2004). Cabe lembrar que mesmo com a criação dos primeiros cursos superiores na área das ciências humanas no Brasil na década de 1930, a produção era dominada por escritores de origem militar, destacando-se os oficiais do exército, em sua maioria. 1 Mas, se em outros países as especificidades levaram ao desenvolvimento de outras análises, com a inserção de novos pesquisadores4, no Brasil, além das influências externas, as injunções políticas internas acabariam por colocar, praticamente em campos opostos, acadêmicos civis e militares, a partir de 1964, como resultado de uma ruptura institucional. Deste modo, enquanto a pesquisa acadêmica brasileira, ligada a setores de esquerda, procurava entender o momento em que viviam através de estudos sobre os aspectos políticos, sociais e das ações dos militares em outros momentos históricos5, a produção orgânica militar reagiu, aferrando-se aos aspectos clássicos da história militar tradicional, em um modelo já superado em outros países. A mudança da situação veio na conjugação de fatores internos e externos, como o fim do regime autoritário, em 1985, a queda do Muro de Berlim e a desintegração do bloco soviético, que permitiram tanto uma distensão como um outro olhar que não o ideológico sobre as coisas militares. E, dessa forma, tem havido desde aquele tempo, embora lentamente, um crescente interesse da sociedade civil sobre a história militar, especialmente em aspectos sociais como o recrutamento nos períodos colonial e imperial, bem como sobre o papel dos militares na ocupação e colonização dos espaços geográficos brasileiros ao longo do tempo, ocupação e pesquisas produzidas desde então, além do papel representado pelas forças luso-brasileiras e brasileiras em conflitos internacionais, na América e na Europa. Quanto aos militares, estes têm buscado estabelecer laços com o mundo acadêmico através da realização de cursos de graduação e pós-graduação, bem como participarem de eventos científicos, nacionais e internacionais, como o que ora se realiza. 2. A Questão Da Defesa No Século XVIII, Em Portugal E No Brasil 2.1 - Antecedentes Após a longa Guerra da Restauração (1640-1668), travada contra a Espanha, Portugal estava esgotado, bem como sua colônia americana, onde se desenrolara a luta contra os holandeses no 4 Como, por exemplo, na França (Martel, 1971: p. 107-113). CASTRO et al (2004: p. 18), ao abordarem a pequena quantidade de trabalhos sobre instituições militares na História Geral da Civilização Brasileira, apontam isso como “um termômetro do interesse da profissão (sic) histórica no Brasil” sobre o assunto e falam de “uma medida clara da dificuldade para estudar as Forças Armadas [FA] durante a ditadura militar (sic)”. A verdade é que a grande maioria dos pesquisadores acadêmicos que tinham a história como objeto de estudo não possuía grande interesse no aspecto militar da mesma. A título de esclarecimento, não se encontram evidências de que, em algum momento, mesmo no período 1964 - 1985, tenha havido qualquer determinação, explícita ou não, militar ou não, que impedisse ou restringisse aos interessados o acesso aos documentos de caráter histórico depositados nos arquivos específicos das FA. Portanto, a alegada “dificuldade” não existiu de fato, sendo ela fruto da própria aversão dos profissionais acadêmicos à história militar, e não devido à “gente fardada”. 5 2 nordeste (1630-1654), cujos engenhos e plantações de cana-de-açúcar foram praticamente destruídos durante o conflito, e posteriormente prejudicados ao perder a primazia da produção açucareira com entrada no mercado do açúcar antilhano. Isto resultou em um longo período de lenta recuperação, em ambas as margens do Atlântico, até praticamente o início do século. Por outro lado, a União Ibérica (1580-1640), durante sua vigência, anulara de fato o Tratado de Tordesilhas (1492), permitindo o ingresso de portugueses e colonos do Brasil na direção do oeste, noroeste e sudoeste, com o avanço sobre espaços geográficos sem a efetiva presença espanhola, pois, ao atacar tribos e reduções indígenas, acabavam por recalcar esses grupos mais para o ocidente, criando vazios que vieram a ser ocupados pelos luso-brasileiros. É nesse cenário que surgiu, ao sul, um ponto de atrito entre Portugal e Espanha, a Nova Colônia do Sacramento, fundada em 1680, com o objetivo de disputar o comércio interior da América do Sul com a praça de Buenos Aires, e que foi objeto da discórdia entre aqueles dois reinos (e respectivos colonos), por mais de um século. Por outro lado, a descoberta de ouro, em 1697, na região que viria a ser conhecida como Minas Gerais, ao mesmo tempo em que proporcionou elevados recursos a Portugal através da cobrança de 20% do que do ouro extraído (o famoso “quinto”), suscitou um aumento do controle da burocracia estatal sobre a colônia, reduzindo a autonomia legal, que fora uma tônica nos séculos XVI e XVII. 2.2. – “De Espanha Nem Bom Vento, Nem Bom Casamento”6: O Incômodo Vizinho De Portugal O século XVIII mal começara e Portugal logo se veria lutando novamente contra os castelhanos, na Guerra de Sucessão da Espanha (1702-1712). Inicialmente, D. Pedro II foi convencido a apoiar a França, aliada de seu vizinho, mas logo os ingleses, inimigos da aliança franco-espanhola, iniciaram conversações que resultaram tanto em um tratado de comércio como a adesão portuguesa ao à Grande Aliança. Em 1704 o Arquiduque Carlos, aspirante ao trono espanhol, desembarcou em Lisboa à frente de suas tropas, ação essa que equivalia um positivo reconhecimento da dinastia fundada em 1640 (Monteiro, 2004, V.2, p. 301-302). Durante a campanha, as forças lusas atuaram, na Península Ibérica, isoladamente ou ao lado principalmente dos aliados ingleses, entre outros, sendo o conflito controlado pela sazonalidade do clima. Além disso, os portugueses enfrentaram problemas como a morte do rei, o recrutamento e um 6 Máxima bastante difundida em Portugal, que refletia a visão do povo sobre o país fronteiro. 3 comando tumultuoso. Nas negociações de paz, Portugal logrou estabelecer limites com a França ao norte do Brasil e recuperou a Colônia de Sacramento, tomada pela Espanha. Seguiu-se um período inédito, de “quase paz”, entre os países ibéricos, perturbado somente por questões diplomáticas na Europa ou fronteiriças na América, com tropelias de ambas as partes. Foi nesse cenário que se criaram as condições propícias que levariam ao Tratado de Madrid (1750), que buscou resolver os contenciosos seculares nas terras do Novo Mundo. O grau de cooperação era tal que, inclusive, quando da demarcação das fronteiras sul-americanas, os dois países não exitaram em unir-se para fazer os índios aldeados nas Missões se submetessem às decisões do tratado, o que resultou na Guerra Guaranítica (1752-1756). Todo esse trabalho seria baldado, por um lado, com a morte do soberano espanhol e a ascensão de Carlos III, e do outro com o aumento da influência do Conde de Oeiras que, através do Tratado de El Pardo (1761), anulava-se, de fato, aquele de 1750. Nesse ínterim, a Guerra dos Sete Anos (17561763) acabou por colocar, novamente, Portugal e Espanha frente a frente. O conflito encontra Portugal, em 1762, em tal despreparo frente à evolução experimentada pela arte militar na Europa, que o Conde de Oeiras se vê compelido a pedir à sua velha aliada, a Inglaterra, tanto oficiais-generais capazes para comandar como corpos de infantaria e cavalaria ingleses7. O Conde reinante de Schaumbourg-Lippe8, à testa dos reforços ingleses, se colocou a frente de um exército anglo-luso que reunia não mais que 15.000 homens, enquanto o inimigo contava com uma força de 42.000 soldados. Através de manobras, aproveitando-se das condições fisiográficas e da incompetência do comando inimigo, Lippe consegue reverter a situação antes que a neve obrigue a suspensão das operações (Costa, 2004, V.2, p. 338-341). Já no ano da paz de 1763 Lippe empreendeu suas reformas militares que, embora tenham efetivamente mudado a face do exército português, fato reconhecido até pelos inimigos, não conseguiram sobreviver ao seu idealizador quando este deixou Lisboa, quando as forças permanentes de terra experimentaram um longo declínio até que a guerra as viessem chamar, outra vez, já no fim do século para uma atuação limitada junto com uma velha conhecida, a Espanha9. Ao tratar das guerras travadas durante o “século da luzes”, DÍEZ-ALEGRÍA (1984: 17), assim sintetizou aquela época: 7 Para não falarmos de suprimentos bélicos em geral (Costa, 2004, V.2, p. 331-334). Em Portugal, seu nome é grafado dessa forma. Já os alemães escrevem “Schaumburg-Lippe”. 9 Trata-se da Campanha do Rossilhão (1793-1795), onde a Espanha, com o apoio de uma pequena força portuguesa, atacou a França, em função das execuções de Luís XVI e sua esposa pelos revolucionários. Bem sucedidos inicialmente, as forças ibéricas foram ao final derrotadas, tendo a Espanha perdido territórios para os franceses, com quem acabariam por se aproximar, o que teria sérias conseqüências para Portugal no século seguinte. 8 4 As lutas neste período não eram motivadas por causas religiosas como nos séculos anteriores, nem pelo nacionalismo das que se seguiram. Seus objetivos eram mais modestos: retificar limites, adquirir alguma região, aumentar a influência própria ou reduzir a do rival. Combatia-se com apego às convenções, predominando nelas a manobra e não o propósito de destruir o inimigo. [Elas] tem sido qualificadas como guerras de gabinete, carentes de paixão, que ademais ocasionavam escassas mudanças de fronteiras.10 2.3 - A Visão Do Poder Metropolitano Sobre O Sistema Defensivo Colonial A mineração de ouro e diamantes no Brasil nos setecentos representava a principal fonte de recursos para o Reino de Portugal, através dos “quintos” que incidiam sobre o que era extraído das várias jazidas em exploração. Assim, visando o aumento de controle sobre essa produção, e resultante cobrança e recolhimento de tributos, a Administração Real, através de uma série de medidas administrativas, ampliou o controle sobre as terras e súditos no Novo Mundo, com consequências sobre o aparato defensivo colonial. Por outro lado, a questão da indefinição dos limites com as colônias espanholas na América do Sul suscitara, não poucas vezes, o enfrentamento entre os colonos das duas coroas, sendo isso mais frequente no oeste e sul do país, com avanços e recuos territoriais de parte a parte, que os tratados acordados na Europa pouco auxiliavam a resolver. Foi nesse cenário de paz instável que Martim Lopes Lobo de Saldanha foi designado, como governador e capitão-general, para a Capitania de São Paulo, em substituição a D. Luís Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus. Seria um fato corriqueiro da burocracia estatal lusitana a designação do novo governante, se ele não viesse munido de uma Instrucção Militar11, elaborada por Martinho de Mello e Castro, Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, da qual nos ocuparemos com atenção. Em uma leitura inicial, aquelas instruções mostravam terem sido elaboradas com o objetivo principal de coordenar os esforços que as capitanias do Rio de Janeiro e São Paulo deveriam desenvolver ante a ocupação de ambas as margens do Rio Grande de São Pedro12 pelos espanhóis, que ali se mantinham em desacordo com o Tratado de Paris, de 1763, assinado ao final da Guerra dos Sete Anos, e que previra a devolução dos territórios invadidos anteriormente. Declarava 10 Tradução nossa. A Instrucção Militar para Martim Lopes Lobo de Saldanha, Governador da Capitania de S. Paulo se encontra reproduzida, na íntegra, nos Documentos Interessantes para a Historia e os costumes de S. Paulo, Vol 43, p. 27-52, 1903. De agora em diante Instrucção Militar, DI, 43. Faremos referência amiudada a esse documento neste trabalho. 12 Na realidade, esse “rio” era a desembocadura da Lagoa dos Patos, no litoral do estado do Rio Grande do Sul, em cuja margem setentrional está hoje São José do Norte e, na meridional, a cidade de Rio Grande, ambas oriundas desse período de colonização e lutas. 11 5 Martinho de Mello a certa altura, que era obrigação dos Vice-Reis do Estado do Brasil “defenderem os Districtos de Viamão, Rio Pardo e Rio Grande de São Pedro”, por lhe serem jurisdicionados, tanto quanto da Capitania de São Paulo, “socorrer os mesmos Districtos, não só por lhe serem confinantes, mas por formarem a Barreira Meridional da dita Capitania”13. Embora elaborada no limiar do último quartel do século XVIII, a Instrucção Militar recebida pelo Governador Lobo de Saldanha sintetiza, em nossa opinião, como Portugal encarou a questão da defesa de sua colônia na América praticamente desde o início de sua ocupação, há mais de duzentos anos. Enfocando a existência então em São Paulo de seis regimentos de auxiliares, “e para que Vossa Senhoria conheça a importancia desses corpos hé precizo que tenha por principios invariáveis” Que o pequeno Continente de Portugal, tendo Braços muitos extensos, muito distantes e muito separados huns dos outros, quaes são os seus Dominios Ultramarinos nas quatro Partes do Mundo, não pode ter meyos, nem forças com que se defenda a si proprio e acuda ao mesmo tempo á prezervação e segurança de cada hum delles.14 A seguir, lembrava que isso não era uma excepcionalidade, já que “nenhuma Potencia do Universo por mais formidavel” que fosse pudera ou tentara até então defender suas colônias exclusivamente com forças metropolitanas. Por isso, concluía Que o unico meyo que até agora se tem descoberto e praticado para occurrer á sobredita impossibilidade foi o de fazer servir as mesmas colonias para a propria e natural defença dellas: E na inteligencia deste inalteravel principio as principaes forças q.’ hão de defender o Brazil serão as do mesmo Brazil.15 13 O redator, Antonio de Toledo Piza se equivocou ao afirmar, em nota (p. 34-35), que os distritos citados não confinavam com a Capitania de São Paulo. Como apontou MAGRO (1936, p. 39), aquela capitania era constituída, grosso modo, por partes dos atuais estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, enquanto a ilha do mesmo nome ficava sujeita à capitania do Rio de Janeiro. 14 Instrucção Militar, DI, 43, p. 43. 15 Instrucção Militar, DI, 43, p. 43-44. Grifos nossos. 6 Para isso, reforçava o princípio de que todas as capitanias do Brasil tinham o dever de se socorrer mutuamente em caso de necessidade16. E que para isso ocorresse, determinava que cada capitania tivesse hum corpo de Tropa Regular que sempre deve estar armado, exercitado, disciplinado e prompto, não só para defender o Paiz que elle guarnesse17, mas para marchar ou embarcar com o primeiro aviso ao soccorro de qualquer das Capitanias que precizar ser assistida18 Para respaldar essas assertivas, rememorava então as lutas contra os franceses do Rio de Janeiro19, contra os holandeses na Bahia e em Pernambuco, e das ações dos paulistas contra as Missões espanholas nas regiões dos atuais estados do Mato Grosso, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Mais à frente, Martinho de Mello e Castro incluiu, entre as forças que poderiam atuar na defesa da colônia, as tropas do rei, mas que 7 Estas forças, porem, devendo consistir em Tropas Regulares e Auxiliares e não permittindo as conveniências de cada Capitania que haja das primeiras mais que o numero proporcionado á capacidade e situação della, porque de outra sorte seria converter em estabelecimentos de guerra hum Paiz que só deve constar de colonos e cultivadores20 O primeiro ponto a ressaltar é a reafirmação de que as forças com que a colônia poderia contar eram as formadas pelos permanentes e auxiliares. As chamadas “tropas de ordenanças” não eram sequer citadas21. E o número de unidades de tropas regulares dependia tanto dos recursos de cada 16 Mais adiante, reforçava essa ideia tecendo considerações sobre o socorro mútuo entre as capitanias do Grão Pará e Mato Grosso, e da ida de tropas de Pernambuco e da Bahia para o Rio de Janeiro (Instrucção Militar, DI, 43, p. 35), sem qualquer informação quanto aos efetivos transferidos ou levando em consideração tempo gasto no trajeto, nem como isso tinha sido feito. 17 Ou seja, o significado da palavra “país”, no século XVIII, dizia respeito a um local ou determinada região, equivalendo ali à capitania. Não tinha, pois, o significado que adquiriu nos séculos seguintes. 18 Instrucção Militar, DI, 43, p. 30. 19 Provavelmente referia-se ali ao episódio da França Antártida (1555-1567). 20 Instrucção Militar, DI, 43, p. 45 Grifos nossos. 21 A historiografia militar tradicionalmente registra que as chamadas “ordenações sebásticas” de 1569 e 1570 marcariam o início da organização militar no Brasil colônia. Ocorre que dados reportados por Leonzo (1998) e Magro (1936), nos permitem verificar que isso ocorreu de forma muito desigual e que só se tornou efetiva no século XVIII. Além disso, COSTA (2004, V2, p. 73) afirma, ao analisar o Regulamento de 1570, que “não é (sic) uma lei destinada a organizar o capitania como da sua situação estratégica. Cabe aqui lembrar que um dos grandes problemas colocados quando os exércitos permanentes surgiram foi como eles seriam sustentados, o que foi solucionado através de lançamento de impostos, o que não era bem recebido pelos súditos em geral. Daí as constantes reclamações das câmaras municipais, no sentido de não quer arcar com esses custos22. E esse número de unidades permanentes não deveria interferir na principal finalidade de uma colônia, que era de produzir bens para que a metrópole lucrasse com os mesmos através de seu monopólio comercial. Não há, pois, qualquer evidência de uma possível intenção da Administração Portuguesa em implementar no Brasil uma “administração militarizada” ou que buscasse “militarizar” a população como ALDEN (1968) e MELLO (2004) afirmaram, entre outros, pois que as questões relativas à “guerra” e ao “militar” eram então muito distintas do que vemos do século XX em diante23. Se o número de unidades permanentes deveria ser pequeno, então por consequencia [é] indispensavelmente necessario que as segundas, isto he, os Corpos Auxiliares formem a principal defença das mesmas Capitanias, porque os Habitantes de que se compoem os mesmos corpos são os que em tempo de Paz cultivão as Terras, crião os Gados e enriquecem o Paiz com seu trabalho e industria; E em tempo de Guerra são os que com as Armas na mão defendem os seus bens, as suas cazas e as suas famílias das hostilidades e invazões inimigas.24 o que reafirmava a transferência da responsabilidade da defesa, por parte do Estado, para seus súditos, repetindo, de uma forma renovada, o que se encontrava nos forais e no Regimento de 1548. Por isso, já se determinara anteriormente que se formasse levantamento e a mobilização das forças para a guerra”, com o que concorda Amaral (2000-2010). Isto aponta para a necessidade de um reexame cuidadoso daquelas ordenações. 22 MAGALHÃES (1998, p 145) registrou que os moradores da Bahia, em 1670, continuavam reclamando contra os encargos pesados oriundos da manutenção de sua infantaria, e pediam essa força fosse reduzida a um terço de 800 homens. 23 HESPANHA (2005) lembra que “Falar de guerra e de governo militar, parece evocar, desde logo, a centralidade, a disciplina e a obediência. Nada é mais errado, se nos referimos à ‘guerra à portuguesa’, anterior aos finais do séc. XVIII”. O recrutamento de companhias de aventureiros em São Paulo, por iniciativa de particulares, para lutar contra os espanhóis é um exemplo que subverte a ideia que se tem, hoje, de uma ação militar, que é da alçada exclusiva do Estado, e não um empreendimento particular. Logo, falar-se em “militarização” sem ter em conta o tempo onde o conceito está sendo aplicado se reveste de sérios problemas. 24 Instrucção Militar, DI, 43, p. 45 Grifos nossos. 8 em todas as suas Colonias os Corpos de Auxiliares25 que nellas poderão levantar segundo as Forças e População de cada huma: E este corpos tãobem devem ser armados, exercitados e disciplinados não só para se unirem á Tropa Regular do proprio Paiz de cada Capitania quando se tractar de defença dellas, mas para supprir e fazer todas as funcções militares da mesma Tropa quando elle for empregada em outro serviço.26 como, de fato, veio a ocorrer quando a tropa paga e a Legião partiram de São Paulo em socorro dos distritos de Viamão, Rio Grande e Rio Pardo27. 2.4 – Um Esquisito Modo De Lutar – As Tropas Ligeiras E A “Pequena Guerra”28 Nas reformas que implantou no exercito português, o Conde de Lippe não se preocupou apenas com o aprestamento da tropa, pois não desconhecia as vantagens de uma preparação continuada daqueles que iriam comandar para obter o sucesso em seu emprego. Daí afirmar que: 9 A Lleitura serve para formar-se o espirito Militar e prover-se de idéas: por ella se enriquece com as luzes, e com a experiencia dos outros; e os Senhores Officiaes não poderão melhor, nem mais agradavelmente (para aquelles que amam a sua Profissão) empregar, do que na Leitura, as horas de descanso que deixão, especialmente, em tempo de paz, as funções do serviço diario.29 Para tanto, SCHAUMBOURG-LIPPE (1782, p. 6-7) indicava que existisse em cada guarnição um conjunto de livros militares que seriam disponibilizados aos oficiais para leitura, principalmente para os generais, e que eram a “Arte da Guerra, pelo Marechal de Puysegur: 2 vols.”, as “Memorias do Marquez de Feuquieres: 4 vols.”, as “Instruções del Rei de Prussia aos seus Generaes, com hum Tratado das Obrigações da Cavalaria Ligeira”, a “Arte da Guerra, pelo Conde de Turpin: 2 vols.”, as 25 Novamente salientamos o fato de que, em nenhum dos 55 parágrafos constantes da Instrucção Militar de 14 de janeiro de 1775, exista qualquer referência às “ordenanças”, embora o 18º trate do recrutamento para o regimento de infantaria permanente, ordenando que, após verificar as faltas, expedisse logo “ordens aos differentes Districtos da mesma Capitania para se fazerem as Recrutas necessárias, até completar o dito Regimento e o pôr sobre o mesmo Pé dos que se achão estabelecidos em Portugal”. 26 Instrucção Militar, DI, 43, p. 30. 27 Instrucção Militar, DI, 43, p. 48. 28 Essas tropas e seu emprego não receberam maiores atenções nas obras de Barroso (2000), Magalhães (1998) e Sodré (1979), entre outros pesquisadores da história militar brasileira. 29 SCHAUMBOURG-LIPPE (1782, p. 4). “Memorias de Montecuculi: I vol.”, as “Reflexões Militares, e Politicas do Marquez de Santa Cruz: 11 vols.”, de “Ray de St. Genies; Arte de Guerra Pratica” de; 2 vols., de “Grand Maison, a pequena Guerra, ou Tratado do Serviço da Tropa Ligeira em Campanha: 2 vols.”, de “La Croix, Tratado da Pequena Guerra: 1 vol.” e “Clairac, Engenharia de Campanha: 2 vols.”. Parece ter passado despercebido aos pesquisadores que, entre as obras recomendadas por Lippe, as de Grand Maison, La Croix e do Marquês de Feuquière tratassem da “Pequena Guerra” que na época do Ancien Regime, designava “todas as formas de combate indireto que não ocorressem dentro das regras clássicas dos confrontos dos exércitos regulares” e se aplicavam tanto aos soldados regulares das tropas permanentes adestrados nessas operações como às populações civis que lutavam contra forças de ocupação, recebendo, no século XVIII, o qualificativo de “partisans”30. E não era sem razão que o Conde de Lippe detinha sua atenção sobre essa forma de luta, pois que, segundo WALTER LAQUEUR (1977 apud PESCHOT, 1993), os pensadores militares daquele século estavam “muito preocupados com ataques- surpresas, emboscadas e outras operações”31 realizadas por pequenos corpos pouco equipados, e que, devido a isso, se caracterizavam por sua alta mobilidade, algo que ele mesmo vivenciara na campanha de 1762 em Portugal, e que é muito pouco recordado32. Assim, as voltas com os problemas metropolitanos, é pouco provável que Lippe tivesse, em algum momento dirigido suas vistas para as terras brasileiras, onde uma tradição de combate não convencional se estabelecera há muito tempo. Ao analisar “a existência de um modo brasileiro de guerrear” no Brasil, WEHLING (1998, p. 357) apontou que ela teria sido registrada, pela primeira vez por Diogo Soares Moreno que, ao relatar as lutas contra os franceses no Maranhão, entre 1612 e 1615, narrava que, na batalha de Guaxenduba, em 1614, enquanto os franceses, com roupas pesadas, como se usava na Europa naquele momento, ficavam presos no lodo, os índios, aliados dos portugueses, “saltavam pelo lado como gamos” e quebravam suas “cabeças com paus”. Essas maneiras não formais de combate, que WEHLING (1998, p. 357) chamou de “táticas heterodoxas de combate direto”, se fizeram presentes durante as invasões holandesas da Bahia (1624-1625) e em Pernambuco (1630-1654), sendo que esta última passou à história como “Guerra Brasílica”. E mais de cem anos depois, quando escreveu abordou esse período em sua História Militar do Brazil, MIRALES (1900, p. 31) afirmava que “os nossoz soldados mais pelejavao’ 30 PESCHOT (1993). Tradução nossa. PESCHOT (1993). Tradução nossa. 32 Costa (2004, V.2, p. 337-338). 31 10 movidos do seo notorio valor, que do prefeito (sic), e necessario conhecimento das regras militares sientificas, porque parece que alem deque naquelle tempo ainda se ignorava grande parte dellas”33. Não é por acaso que o reconhecimento do mérito daquele “exquizito modo de guerra” nas palavras de MIRALES (1900, p.36) enfrentava resistências, notadamente dos militares europeus. Em comunicação ao soberano espanhol, D. Luís de Rojas y Borba afirmara que “não era macaco para andar pelo mato” (apud WEHLING, 1998, p. 365), insistindo em lutar nos moldes da Europa, o que o levou a ser derrotado e morto no Combate da Mata-Redonda, em 1636 (BRASIL, 1972, V1, p. 146)34. Salientamos ainda que, em sua obra, D. José de Mirales fez constantes referências aos aspectos “científicos” da guerra. Analisando o contexto em que ele escreveu, entre outros aspectos, WEHLING (1998, p. 356) opinou que essas influências racionalistas oriundas do “estrangeirados” o teriam levado a ter uma atitude depreciativa para com aqueles combatentes do passado35. Mas se alguns militares tradicionais tinham reservas quanto ao valor e emprego dessas forças, as autoridades políticas portuguesas parecem ter visto sua potencialidade como agentes de desestabilização e desgaste das forças da Coroa espanhola estacionadas na porção sul da América Meridional, como se estabelecia na Instrucção Militar, ao ordenar o estabelecimento, em São Paulo, de um “corpo ou legião de Tropa Ligeira, composta de Homens de Armas Sertanejos e Caçadores”, unidade que já teria sido formada mediante instruções dadas ao seu predecessor, D. Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, mas da qual Magro (1936) parece não ter encontrado qualquer registro a respeito36. Não podemos afirmar, de forma peremptória, que essa era a primeira vez, na história militar do Brasil, que a Coroa portuguesa ordenava formalmente a constituição de uma tropa que não atuaria 33 Esse aspecto não parece ter passado despercebido ao autor desconhecido de um tratado de fortificação e artilharia, escrito entre 1653 e 1656, e que lutara no Brasil contra os holandeses. A certa altura, autor afirma que seu livro era pensado “pera o exercitante começar a aprender em caza em quanto moço, pera que quando sair á guerra facilmente conceba, o aperceba a industria das mâchinas e as varias formas dos esquadroes , e como se batalha com elles; e o que destes tratados não colher, a experiencia lho fará manifesto” (CARDOSO, 2007). 34 Esta obra, realizada sob a direção do Estado-Maior do Exército Brasileiro no âmbito das comemorações do sesquicentenário da independência do Brasil, é uma “história oficial” da força sobre si mesma, algo totalmente ignorado por CASTRO et al. (2004: p. 16) que afirmaram que “aqui [no Brasil] o Exército nunca publicou histórias oficiais”. Grifos nossos. 35 O fato é que Mirales vivia em um tempo em que se acreditava que tudo podia e devia ser regrado, medido e codificado através da ciência, que a tudo resolveria. Daí a quase cega aplicação dos preceitos militares estratégicos e táticos, criados na Europa, nas terras da América, e não só pelos portugueses. Aspectos como clima, topografia, distância e vegetação, entre outros, sem falar nos recursos humanos, nada parecia ser obstáculo para procedimentos oriundos de uma operação científica racional. 36 Instrucção Militar, DI, 43, p. 39. MAGRO (1936, p. 41 e 42) apontou, além da criação de duas companhias de tropas regulares, a formação de companhias de auxiliares, consoante à determinação contida na Carta Régia de 22 de março de 1765, e que estão citadas na Instrucção Militar, DI, 43, p. 43. 11 nos moldes do que se praticava nos exércitos permanentes europeus37, mas o fato é que Portugal não ignorava as experiências de luta aqui vividas38. Quando das demarcações a serem realizadas na América, frutos do Tratado de Madri (1750), o comissário português Gomes Freire de Andrade foi acompanhado por uma companhia de aventureiros paulistas para auxiliá-lo (1754-1756), ficando no sul após o retorno daquele agente. Em 1762, quando da Guerra dos Sete Anos, as forças espanholas, em maior número, e comandadas por D. Pedro de Ceballos, tomaram Sacramento novamente e rumaram para o norte e leste, tomando a entrada do Rio Grande de São Pedro39, praticamente ocupando a porção meridional do atual estado do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, formaram-se mais quatro companhias de aventureiros em São Paulo, que rumaram para o sul, para atacar os castelhanos, tendo Rio Pardo como base. As ações desses aventureiros, que reuniam não só paulistas, mas também habitantes de Laguna (SC) e outros lugares, chefiados, entre outros pelos Pinto Bandeira, pai e filho, varriam a campanha arrebanhando milhares de cabeças de gado, mais de 5.000 cavalos, além de canhões e muitos prisioneiros (Magro, 1936, p. 32-37). O Tratado de Paris (1763), que marcou o final daquela guerra, previa a restituição dos territórios porventura tomados durante o conflito, mas, na América, somente a Colônia de Sacramento foi devolvido, mantendo os espanhóis a posse de Rio Grande de São Pedro. Essa situação motivava incidentes naquela região, pois os portugueses a consideravam como seu território, enquanto os espanhóis mantinham sua posse, sendo que os aventureiros faziam incursões constantes tanto ali como na região das Missões. Em fins 1773, D. Juan José de Vertiz e Salcedo, governador de Buenos Aires, iniciou uma marcha, a partir de Montevidéu, para atacar Rio Pardo. Embora não lograsse seu intento, os espanhóis estabeleceram um forte, o de Santa Tecla40. Essa ação parece ter decidido Pombal a buscar recuperar aquele território (MAGRO, 1936, p. 53), reforçada por outras ações do então SargentoMor Raphael Pinto Bandeira, um “lendário guerrilheiro” que, em 1774, desbaratara destacamentos inimigos (CURADO, 1998, p. 60). 37 Há registros, referidos por MONTEIRO (1936: 96), de que a Junta Governativa do Rio de Janeiro estabelecera, em 6 de janeiro de 1763, frente as posições conquistadas pelos castelhanos, ordenara que se combatesse “com partidas pequenas mettidas pelos Mattos e máos passos, e dellas sahir ao encontro aos inimigos, diminuindo-os e procurando arruinar-lhes a cavalhada, gado, viveres, e trazendo-os em continuo desasocego que tudo se pode executar com partidas pequenas” junto aos passos dos rios, onde essas operações eram mais propícias. 38 A escolha de São Paulo não fora casual. Ao abordar dos séculos iniciais da colonização, Magro (1936, p. 6-8) lembrava que, entre outros aspectos, que a metrópole deixara aos paulistas o encargo da defesa da capitania que habitavam, além do socorro prestado às outras, como Pernambuco, nas guerras contra os holandeses (1630-1654), Bahia, para combater os índios que ameaçavam Salvador, por volta de 1671 e ou no combate ao quilombo dos Palmares, já no final do século XVII. 39 Entrada da Lagoa dos Patos, RS. 40 Praticamente onde hoje se localiza a cidade de Bagé, RS. 12 A legião teria como comandante designado o próprio Lobo de Saldanha, para “dispor o animo e atrahir a vaydade dos Paulistas a buscarem o serviço de huma Tropa comandada pelo seu Governador e Capitão General”, além de alguns oficiais tirados das tropas regulares. Mas os capitães deveriam ser “moços dezembaraçados e das Famílias mais distinctas, ricas e da mais conhecida fidelidade que houver na Capitania”, enquanto os tenentes e alferes deveriam ser buscados entre “os Sugeitos mais habeis e que mostraem mayor propensão ao serviço [militar]”. E cabia aos capitães nomeados “allistarem nas suas respectivas companhias os Soldados que elles mesmos escolherem e lhes supprirá com Recrutas os que faltarem para completar”, e a tropa seria conhecida como Legião de Voluntários Reais da Capitania de São Paulo41. As tropas da legião teriam o encargo específico e importante, que era de penetrar na região das Missões (e mesmo quaisquer outras percorridas pelos espanhóis), para devastando-se ao mesmo tempo as Casas e Estancias que lhe pertencem [i.e, as aldeias das Missões], de sorte que dellas não possão tirar os Castelhanos os consideraveis soccorros de Indios, Gados, Cavallos, Bestas Muares e Provizões com que engrossão e sustentão as forças com que nos vem attacar; antes pelo contrario, para que os Despojos que ali se fizerem sirvão de abastecer e animar as nossas Tropas.42 Assim, cabia aos paulistas retirar, impedir, e quando não destruir, todos os recursos, quer fossem alimentos, transporte ou pessoal, que pudessem ser empregados pelos espanhóis, inimigos da Coroa portuguesa43, porque “as Tropas da Capitania de São Paulo [eram] as mais proprias e as melhores para este serviço”, lembrando ainda Martinho de Mello que era “muito natural que todas as vezes que com antecipada vigilância” se detectassem movimentos dos castelhanos, os recursos passíveis de uso no território que o inimigo pudesse percorrer deveriam ser destruídos44. A confiança quase ilimitada da Coroa portuguesa nos corpos de sertanejos e caçadores de São Paulo transparecia na passagem em que se determinava levantar distancias e caminhos percorridos até Viamão e Rio Pardo, e que deveriam ser providos do necessário às forças, “principalmente Paulistas, que com o unico provimento de Polvora e Chumbo tem penetrado e descoberto a mayor 41 Instrucção Militar, DI, 43, p. 39-41. Instrucção Militar, DI, 43, p. 50, grifos nossos. 43 Essa forma de ação, “terra arrasada”, tem contato com aquela que veio a ser empregada pelos russos quando da invasão napoleônica de 1812-1814. 44 Instrucção Militar, DI, 43, p. 51, grifos nossos. Observe-se que não se tratavam de bens da Coroa espanhola, mas sim de propriedades de seus súditos americanos. 42 13 parte do Brazil”45. Se apenas com munição os paulistas haviam alargado as fronteiras, o que não fariam com os suprimentos adequados? Não surpreende, então, que a legião tivesse diversas regalias, como a posse de tudo que pilhasse ao inimigo, que as armas tomadas seriam compradas pela Coroa, recebendo ainda recompensas por troféus e pelas ações mais importantes que desempenhassem, sendo ainda estabelecido que servissem por apenas oito anos, ao final dos quais seriam liberados “sem demora, nem dificuldade alguma”46. A forma como esses homens lutavam aparece dentro do plano da legião, que acompanhava a Instrucção Militar, e que está sintetizada a seguir A tropa desta Legião [que mais ha de marchar pelos Mattos e combater nelles do que em raza Campanha,] deve ser armada na forma que ella quizer e segundo o seu uso e costume, deixando-lhe igualmente livre o methodo particular que se tem de fazer a Guerra, de surprezas, emboscadas e incursões no Paiz inimigo: Para se tirar porem toda a vantagem possivel do seu mesmo methodo e uso particular de combater, preciza dar-lhe alguma ideia das principaes Manobras com que as Tropas Regulares se fazem redutaveis aos inimigos, assim em hum dia de Acção como na pequena Guerra: A estas Manobras [realizadas durante um mez em cada anno] se reduzirão todos os Exercicios da referida Tropa47 2.5 - Os “Aventureiros” E Suas Ações, Segundo A Visão De Um Alemão Se a Administração Real depositava grandes esperanças nas ações das tropas paulistas que formariam a Legião, por outro lado, o oficial-general que as teria sob comando não parecia ter a mesma opinião. É o que transparece em parte das Memórias de João Henrique Böhm48, um militar alemão que servira com o Conde de Lippe como coronel em Portugal e, às instâncias do antigo chefe, concordara em retornar para as terras lusitanas e de lá foi transferido para o Vice-Reino do Brasil, com o posto de tenente-general e com o cargo de inspetor geral das tropas, em 1767, quando 45 Instrucção Militar, DI, 43, p. 49. Plano da Legião de Voluntarios Reaes da Capitania de São Paulo, de 14 de janeiro de 1775. DI, 43, p. 56. Entre os troféus, as bandeiras capturadas aos espanhóis ocupavam um lugar de destaque. 47 Plano da Legião de Voluntarios Reaes da Capitania de São Paulo, de 14 de janeiro de 1775. DI, 43, p. 54, 55 e 56. Grifos nossos. 48 Escritas originalmente em francês, essas memórias foram traduzidas e publicadas dentro da obra de BENTO (1996) que busca apresentar dados para sua compreensão. Contudo, por vezes, além de confusos, são por diversas vezes redundantes. O tradutor fez inserções no texto, buscando melhora-lo, mas de forma equivocada, utilizou parênteses e não colchetes. 46 14 também vieram para o Rio de Janeiro três regimentos de infantaria das tropas pagas (Curado, 1998, p. 57). Böhm (1996, p. 43-46) relatou que, em julho de 1774, o Marquês de Pombal determinara ao Marquês do Lavradio realizar os preparativos para a expedição militar49, que seria comanda por ele, para a restituição das partes invadidas pelos espanhóis. Seus comentários sobre a tropa existente, o desconhecimento das regiões a percorrer, as incertezas sobre o inimigo, entre outras coisas, mostram seu desconforto com uma situação que não estava habituado nas forças de Frederico II50. As tropas do Rio de Janeiro que iriam participar das operações vieram por mar até a ilha de Santa Catarina, e de lá foram levadas até Laguna, de onde marcharam até a margem setentrional do Rio Grande de São Pedro, atual São José do Norte, onde Böhm chegou em 19 de janeiro de 1775. Na outra margem estavam os inimigos castelhanos, ocupando o forte do Rio Grande51. Ao escrever para o Vice-Rei sobre os corpos que encontrou naquela capitania, BÖHM (1996, p. 65) reportou que o comandante da tropa leve, o Major Rafael Pinto Bandeira informara contar com 190 homens, que os cavalos que possuíam eram “dos próprios homens”, mas uma companhia estava “mas muito mal-armada”. A outra havia recebido “velhas armas dos Dragões”. A de caçadores era constituída de “indivíduos de toda a região, sem fé nem lei e perigosos”. Sobre a quarta, “constituída de índios”, nada escreveu porque outro oficial já se expressara a respeito52. Mas não devia ter sido favorável naquele momento, pois que, em julho de 1775, ao subir o Rio Guaíba, encontrou-se com a referida companhia, que “me surpreendeu por sua capacidade de silêncio e aspecto sob as armas”53. Mas a prevenção continua. BÖHM (1996, p. 93) afirmava que as quatro companhias leves do Major Bandeira “formaram um Corpo demasiado desigual”, que os caçadores eram “a vergonha do 49 E não como Puntoni (2004, V. 2, p. 315) equivocadamente escreveu. As Memórias de João Henrique Böhm são ricas em informações sobre as regiões e populações por onde passou, tecendo considerações que já deixavam claras a inexistência de um sistema defensiva na ilha de Santa Catarina antes do ataque de Ceballos ocorrer em 1776. A questão do fardamento, da alimentação das deserções, tanto de brasileiros, portugueses e espanhóis, são alguns dos aspectos relativos à administração militar. É importante salientar que os escritos de Böhm contrariam a afirmativa de Alden (1968, p. 336-337), de que o Marquês do Lavradio nunca deixara de atender as necessidades de pagamento até a vinda da segunda expedição de Ceballos, Já em 24 de outubro de 1776, meses antes da chegada das forças navais espanholas, Böhm (1996, p. 164) solicitava uma solução para as necessidades de dinheiro que tem, e que seria uma tônica até a retirada das forças luso-brasileiras, em janeiro de 1779. De fato, por mais de dois anos, a situação foi de constante falta ou atraso de pagamento das tropas e dos fornecedores, o que gerou não poucos problemas. Outro equívoco grave de Alden (1968, 337) foi chamar as tropas que estavam no sul de “forças armadas”, um conceito que só surgiu no Brasil no princípio do século XX, anacronismo este infelizmente repetido muitas vezes por vários pesquisadores. 51 Como nosso objetivo aqui são as tropas ligeiras, não nos deteremos sobre as peripécias sucedidas com as tropas pagas e que Böhm registrou. 52 BÖHM (1996, p. 65), informava, ao Marquês do Lavradio, que o “Corpo de Cavalaria Auxiliar que a Corte considera tão bom ou melhor que as tropas pagas – 500 homens, não existe nem pode nunca ter existência”, evidenciando aqui tanto o descontrole administrativo com os desvios que poderiam suceder com o pagamento de tropas inexistentes. 53 BÖHM (1996, p. 90). E acrescentava que “aqueles homens me pareceram de diferente aparência dos nossos índios do Rio de Janeiro”. 50 15 militar” e os índios sabiam “manejar armas”, mas que jamais se incutiria neles “o espírito de bons soldados, nem o de gente de bem”. E dizia a Pinto Bandeira que era preferível juntar os melhores elementos em uma só e outras coisas mais. Mas o próprio memorialista foi surpreendido. O major, com o qual discuti este plano, deu-me, à tarde, um espetáculo assaz bonito: o de uma tropa que chega às margens de um rio profundo, sem encontrar pontes ou balsas, nem meios de as fazer. Ele mata, imediatamente, alguns bois; tira seus couros e faz destes couros frescos uma espécie de balsas grandes e redondas dentro das quais metem suas bagagens e as amarram na parte de cima. Em seguida põem estas balsas para flutuar; a elas ligam uma correia. Um homem assenta sobre cada pelota. Um outro, despojando-se das roupas, se mete na água, toma a correia dentre os dentes e atravessa o rio a nado, com a pelota, que é descarregada do outro lado. Fazem também pelotas quadradas, abertas em cima, mas as redondas são mais seguras. Ele se admirou da velocidade com que fizeram todas aquelas operações, e lembrou-se que Xenofonte, na História da Retirada dos 10.000, falava de coisas semelhantes, “mas que essa gente daqui certamente não leu, nem dele tirou a ideia de fazerem pelotas”. A principal fonte de alimentação para a tropa ali estacionada consistia na carne, obtida do gado que existia na campanha, e na farinha de mandioca54, trazida de outras regiões do Brasil. A necessidade de alimentar os efetivos ali existentes, que se somava à população ali presente demandava, na estimativa do general, 1.000 bois por mês só para aquela porção do território. Em novembro de 1775, com a escassez se anunciando, BÖHM (1996, p. 102) em mais uma carta para o Vice-Rei, escreveu que autorizou o Major Rafael a percorrer as regiões ocupadas pelos espanhóis com suas tropas, para arrebanhar o gado para prover a subsistência das tropas. O que no entanto está em suas anotações pessoais mostra sua relutância antes de concordar com aquela ação sobre São Martinho, nas Missões, pois “como tudo me levava a fazer semelhantes expedições, as quais me pareciam roubo, resolvi dar-lhes um certo aspecto militar”55. E aqui aparece uma das oposições entre as chamadas Grand Guerre e Petit Guerre. Para um oficial treinado sob as ordens de Frederico, o Grande, um dos maiores capitães da Europa e da História, as operações envolviam efetivamente marchas, fintas, cercos, ataques, entre outros 54 CIDADE (1948, p. 25) ressaltou o papel desempenhado por esse alimento durante a expansão portuguesa na América do Sul, ao lembrar que: “Sem a farinha de mandioca, alimento fácil de transporta e conservar, enorme seriam as dificuldades alimentares dos soldados e bandeirantes”. E afirmou que: “A farinha sempre entrou na alimentação de nossos soldados e marinheiros, desde os primeiros tempos da colonização portuguesa. Foi também a nossa primeira ração de reserva.” (grifos nossos). 55 BÖHM (1996, p. 98). Grifos nossos. 16 aspectos, contra um adversário claramente estabelecido e que lutava de acordo com as mesmas regras, como a primeira preconizava. Não era concebível, para muitos militares então, inclusive Böhm, uma ação que levasse a tomar, retirar, negar suprimentos ao inimigo sem enfrentá-lo, pois que isto se afigurava como uma ação de salteadores, e não uma nobre atuação militar. Somente a premência, e sob “um certo aspecto militar”, era possível tolerar tais incursões. O ataque, desfechado em 31 de outubro de 1775 foi um sucesso, rendendo, além de 6.000 cabeças de gado vacum, centenas de outros animais, armamentos e prisioneiros (Böhm, 1996, p. 106-107)56. O sucesso alcançado por Pinto Bandeira fez ver ao comandante das forças luso-brasileiras que era possível a utilização daquela força irregular dentro do território inimigo, atuando com rapidez e com o conhecimento da região, venciam em velocidade e manobra as unidades formais que pudessem ser lançadas em seu encalço. E nesse cenário que ele iniciou o planejamento de um ataque ao forte de Santa Tecla, posição chave que controlava o acesso às Missões ao centro da capitania (Böhm, 1996, p. 112). A operação parece ter sido acertada entre o fim de janeiro e início de fevereiro de 1776, recebendo o major um reforço de dragões da capitania, somando então 617 homens, entre soldados, gaudérios, espanhóis, índios e escravos, para colocar a posição espanhola sob cerco, tomando o gado e os cavalos, que Böhm (1996, p. 124) comunicou ao Marquês do Lavradio em março daquele ano57. Enquanto isso, chegavam as primeiras tropas da Legião de São Paulo, 90 homens, enquanto o restante ainda estava na estrada, em hospitais. Pouco antes, em fevereiro, malograra a ação intentada pela marinha portuguesa contra a posição de Rio Grande. Enquanto no Rio de Janeiro, o Vice-Rei se impacientava e exigia que Böhm agisse, sem ter ideia dos obstáculos que aquele general enfrentava, este buscou cercar-se dos meios necessários para obter sucesso no ataque a Rio Grande. Assim, contando com ventos favoráveis, que coincidiram com as comemorações do aniversário da rainha de Portugal, ele fez com que duas companhias de granadeiros cruzassem, durante à noite, com jangadas, a embocadura da Lagoa dos Patos, desembarcando cada uma nas extremidades dos sistema de defesa espanhol, partindo então para a tomada das posições à arma branca, para evitar que os tiros chamassem a atenção dos 56 É necessário lembrar que as tropas pagas, acantonadas naquela região, não tinham realizado qualquer ação militar contra os espanhóis. Assim, os problemas com esses corpos eram praticamente diários. 57 Mais uma vez o general alemão tivera que ceder um pouco em sua posição pois que ele considerava aquela operação “senão como um golpe-de-mão, uma surpresa feita por tropas leves”, mas na qual o Governador da Capitania, José Marcelino, via um maior alcance. Assim logrou que os dragões seguissem com Pinto Bandeira (BÖHM, 1996, p. 121122). E quando, em 02 de abril, recebeu a notícia da capitulação de Santa Tecla e seu arrasamento, escreveu que “embora não seja da maneira com eu quis, estou satisfeito de os espanhóis terem perdido aquele asilo” (BÖHM, 1996, p. 139, grifos nossos). 17 inimigos58. Os espanhóis, surpreendidos, fugiram e já na manhã de 1º de abril de 1776 a extremidade meridional do Rio Grande de São Pedro estava de novo em mãos luso-brasileiras (Böhm, 1996, 127136)59. No dia 30, chegavam ordens para cessar as hostilidades. Em 10 de junho de 1776, em carta para o Marquês do Lavradio, BÖHM (1996, p. 150) informava da chegada das últimas tropas de São Paulo, cuja cavalaria estava “sem cavalos, sem armas, sem dinheiros, sem cabeça e sem pés”. Sua irritação levou-o a escrever que “Conjuro Vossa Excelência a dizer-me seriamente, se crê que com tais tropas se pode guerrear. Estou convencido que a ausência de tantos homens trará mais prejuízo à Capitania de São Paulo do que vantagem, se é que se pode tê-la com sua presença aqui”. Quase três meses depois reclamava da infantaria e escrevia que não podia usar a cavalaria “montada e armada” como estava, e que estava propenso a reenviá-la para casa. Por fim, ele a juntou às tropas de Pinto Bandeira, agora coronel e, finalmente, em janeiro de 1777, ele fez um elogio a essa tropa dizendo que ela “se tem conduzido muito bem” até o momento60. Frente à ameaça real de um ataque espanhol, o Vice-Rei expediu ordens para que Böhm despachasse Pinto Bandeira “contra o gado e os cavalos dos espanhóis”, mas o alemão discordava dessas decisões, “como se nossa salvação dependesse unicamente disto: guerrear contra os animais e os bens dos pobres particulares”. O general alemão obedeceu a contragosto, mas não deixou de expressar sua contrariedade com essas missões executadas pelo comandante das tropas ligeiras, em resposta ao Marquês. Sim, Bandeira tinha “toda a habilidade e pode assolar esta parte da América com toda a sua extensão, deixando após si o mais desolador deserto”. Mas, ele não poderia “dificultar o inimigo marchar de Montevidéu, por onde quisesse”. Por outro lado, se fosse encarregado de atacar “um corpo espanhol” em marcha, ele prestaria um serviço relevante se sua missão fosse “lhes tomar os rebanhos e cavalos que conduzem consigo”, pois colocaria os inimigos em dificuldades. Escrevia ainda que “suas corridas a esmo, que fazem a infelicidade de alguns miseráveis particulares que nelas perdem seus bens, não são sentidas pelo inimigo. A não ser como uma ofensa. Eles têm pouco interesse para com o Rei.” E arrematava que, “quanto à coragem e intrepidez destes homens rudes, após os exemplos destes tempos presentes, não ouso replicar!”61 58 A utilização de jangadas, ou embarcações leves, de pequeno calado, foi uma imposição das condições hidrodinâmicas daquela região, com a constante mudança de bancos de areia, alterando os canais de navegação. As referências à preparação das jangadas aparecem desde dezembro de 1775 (Böhm, 1996, p. 110). 59 A ressaltar o fato de que os navios portugueses, que deveriam apoiar a ação ao raiar o dia, não conseguiram se movimentar por falta de vento. 60 BÖHM (1996, p. 161, 166, 173 e 179). Nesse momento começavam a circular rumores sobre a expedição aprestada na Espanha para realizar represálias contra as ações luso-brasileiras. Sem quaisquer informações positivas a respeito, ele concentrou as defesas em torno da entrada da Lagoa dos Patos. 61 BÖHM (1996, p. 183, 185-186). 18 Embora Böhm reconhecesse no comandante e nos componentes das tropas ligeiras alguns valores militares, novamente sua mentalidade não permitia encarar a retirada de suprimentos do território inimigo como uma ação de guerra legítima, mas sim como um roubo, um saque. Ele só aceitava a ação como válida se o alvo fosse um corpo de tropa inimigo, porque isso estaria de acordo com as regras, com a sua consciência. Parecia querer ignorar que essa era uma prática tanto de um lado como do outro na América Meridional. E ainda, não entendia que, ao compelir unidades inimigas a levarem seu suprimento, isso imobilizava efetivos para sua guarda, o que afetava as dimensões da força pronta para a ação, além de limitar os caminhos que poderia percorrer62. As ações diminuíram, pois se firmara o Tratado de Santo Illdefonso (1777), em que se retornava aos princípios estabelecidos em 1750, mas as tropas de Böhm só sairiam do Rio Grande em princípios de 1779, motivos de contínuos disabores para o general alemão. 3 – Breves Conclusões Em nosso estudo, evidenciamos que a questão defensiva no Brasil no século XVIII apresentava corolários aplicáveis, em nosso julgamento, a todo o período colonial. Foram diversos os exemplos em que ficou evidente a política da Administração Portuguesa em delegar aos próprios colonos e outros habitantes das terras americanas a defesa dos seus interesses. Mesma quando das agressões de monta, levadas a cabo contra o Rio de Janeiro e a capitania de Pernambuco, ainda sim poucos foram os recursos, bélicos e humanos, destinados ao Brasil pela metrópole. Daí a existência ínfima de corpos de tropa regulares, recaindo o esforço principal sobre os auxiliares (as futuras milícias), constituídos pelos colonos e normalmente sem remuneração alguma. Em parte isso parece refletir uma percepção portuguesa, de uma oposição a encarar a defesa como uma necessidade, na medida em que retirava recursos que eram tidos como melhor aplicados em outras áreas, levando o próprio território metropolitano a sofrer com essas posturas. Quando o território do reino foi atacado, Portugal buscou, sobretudo, que seus aliados o apoiassem, com tropas e recursos, colocando seus próprios recursos humanos em um segundo plano. Mesmo as reformas 62 Talvez que aqui se evidencie, mais do que uma questão de mentalidade, uma questão de antipatia de Böhm com o cabo de guerra dos irregulares. Ou, por outro lado, viesse à sua mente a lembrança das povoações saqueadas e dos habitantes mortos em Portugal durante a invasão espanhola de 1762-1763 (Costa, 2004, V.2, p. 341). Para que se tenha uma ideia das dimensões dos recursos deslocados junto com uma tropa espanhola em marcha, F. Matteos (1952 apud CURADO, 1999, p. 268) registra que, em 1754, o corpo do General José de Andonaegui, com um efetivo de 1.250 militares levava junto 400 peões, 11.000 cavalos, 1.500 bois para tração de 200 carretas e 5.000 cabeças de gado para abate. Infere-se, pois, todos os óbices que uma tropa enfrentava ao percorrer um território que não oferecesse recursos para o sustento da tropa. 19 implementadas por Lippe devem ser vistas, sobretudo, por sua excepcionalidade, e não como algo que deitou raízes. Além disso, enquanto predominava no território metropolitano a atuação das forças segundo as táticas formais, Portugal ordenou no Brasil a execução da pequena guerra, ou guerrilha, para minar o poderio espanhol na porção centro-sul da América Meridional. Atuações essas que, de forma consciente ou não, a coroa portuguesa, de maneira acertada, estrategicamente incentivara, ao longo dos séculos anteriores, na realização das ações de desgaste cometidas por seus colonos, através de grupos não-oficiais, que percorriam o espaço vazio do interior da América do Sul, ganhando terras para o rei. E a Administração Portuguesa não deixou de empregá-las, mesmo no âmbito de uma ação militar formal, como no caso das tropas leves organizadas por brasileiros, enquadradas dentro das forças que atuaram na Reconquista do Rio Grande (1775-1776), sob o comando do Tenente-General Böhm, oficial-general que não deixava de olhar com reservas para aquela forma de combate, como um esquisito modo de lutar que, apesar disso, dava resultados. Referências Bibliográficas 20 ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil with special reference to the administration of the Marquis of Lavradio ,Viceroy, 1769-1779. Berkeley, University of California Press, 1968. AMARAL, Manuel. A evolução das Ordenanças. Disponível em http://www.arqnet.pt/exercito/orgorden.html, 2000-2010. Acesso em 05 de jun. 2011. BARROSO, Gustavo [Dodt]. História Militar do Brasil. [3ª edição]. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 2000. BRASIL, Estado-Maior do Exército. História do Exército Brasileiro, Perfil Militar de um Povo. Rio de Janeiro e Brasília, FIBGE, 1972, 3 vol. CARDOSO, Maria Luiza. Um livro didático na América portuguesa: O Tratado de Aritmética, Geometria e Artilharia. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL - LIVRO DIDÁTICO: EDUCAÇÃO E HISTÓRIA, 2007, Anais ... . São Paulo, 2007. CASTRO, Celso, Izecksohn, Vitor, Kraay, Hendrich. Da história militar à “nova” história militar. In: CASTRO, Celso, Izecksohn, Vitor, Kraay, Hendrich (org.) Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004, p. 11-42. CIDADE, Francisco de Paula. Lutas, ao sul do Brasil, com os espanhóis e seus descendentes, 16801828. Rio de Janeiro, Biblioteca Militar, 1948. CIDADE, Francisco de Paula. O soldado de 1827: ninharias de história, relativas aos soldados da Guerra Cisplatina. Rio de Janeiro, Imprensa Militar COSTA, Fernando Dores. Milícia e Sociedade: Recrutamento. In: BARATA, Manuel Themudo e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir). Nova História Militar de Portugal. Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, Vol 2, p. 68-93. COSTA, Fernando Dores. Guerra no tempo de Lippe e Pombal. In: BARATA, Manuel Themudo e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir). Nova História Militar de Portugal. Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, Vol 2, p. 331-350. CURADO, Silvino da Cruz. O General Böhm no Brasil. Revista do Exército Brasileiro, v. 135, n. 3, p. 57-66, 1998. CURADO, Silvino da Cruz. A Guerra Guaranítica, uma guerra invulgar e incómoda. CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MILITAR, 24, Lisboa, 1998. Actas ... Lisboa, 1999, p. 259-270. DÍEZ-ALEGRÍA, Manuel. La Milicia en lo Siglo de las Luces. In: Marqués de Santa Cruz de Marcenado, [Alvaro de Navia-Ossorio], Reflexiones Militares. Edición del Tercer Centenário. Madrid, Comisión Española de Historia Militar (CEHISMI), 1984, p. 15-31 HESPANHA, António Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? ou O revisionismo nos trópicos. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ESPAÇO ATLÂNTICO DE ANTIGO REGIME: PODERES E SOCIEDADES, 2005. Lisboa. Anais ... Lisboa, 2005. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/antonio_manuel_hespanha.pdf. Acesso em: 12 de jun. 2011. LEONZO, Nanci. Ordenanças e Milícias no Brasil Colonial. CONGRESSO INTERNACIONAL DE 21 HISTÓRIA MILITAR, 24, Lisboa, 1998. Actas ... Lisboa, 1999, p. 423-430. MAGALHÃES, João Batista. A evolução militar do Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 1998. MAGRO, Omar Simões. A Legião de São Paulo e o Regimento de Infantaria de Santos nas campanhas do Sul: esboço da História Militar Paulista nos tempos coloniais. Revista do Arquivo Municipal – SP, Vol. 24, p.03-113, 1936. MARTEL, André. Le renouveau de l’histoire militaire em France. Revue Historique, v. 254, n. 497, p. 107-121, 1971. MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de Mello. A guerra e o pacto: a política de intensa mobilização militar nas Minas Gerais. In: CASTRO, Celso, Izecksohn, Vitor, Kraay, Hendrich (org.) Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004, p. 67-86. MIRALES, José de. Historia militar do Brazil. Desde o anno de mil quinhentos [e] quarenta enove, em q’ teve principio a fund.am da Cid.e de S. Salv.dor Bahia de todos os Santos ate o de 1762. In: Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Vol 22, p. 1-238, 1900. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. Dominação espanhola no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, Imprensa do Estado-Maior do Exercito, 1935. PESCHOT, Bernard, La notion de petite guerre en France (XVIIIe siècle). Histoire et Défense, les cahiers de Montpellier, V. 28, n. 2, 1993. Disponível em http://www.univ- montp3.fr/esid/documents%20textes/Textes%20divers/Peschot_petite_guerre.pdf. Acesso em 20 de fev. 2011. PUNTONI, Pedro. Lutas ao sul do Brasil (1680-1777). In: BARATA, Manuel Themudo e TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir). Nova História Militar de Portugal. Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, Vol 2, p. 307-316. SÃO PAULO, Archivo do Estado de São Paulo. Correspondência do Capitão General Martim Lopes Lobo de Saldanha (1774-1781). Documentos Interessantes para a Historia e costumes de S. Paulo. São Paulo, Typographia Andrade & Mello, Vol 43, 1903. 22 SCHAUMBOURG-LIPPE, Conde Reinante de. Memória sobre os exercicios de Meditação Militar para se remetter aos senhores Generaes e Governadores das Provincias a fim de se distribuir aos Senhores Chefes dos Regimentos dos Exercitos de S. Magestade. Lisboa, Offic. João Antonio da Silva. 1782. SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. 3ª edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979. WEHLING, Arno. Padrões europeus e conflitos coloniais: a questão da Guerra Brasílica. CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MILITAR, 24, Lisboa, 1998. Actas ... Lisboa, 1999, p. 355-366. 23